O discurso como prática El discurso como práctica |
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Mestrando em educação UFRJ Prof. Espec. em Educação Física escolar UFF Prof. de Educação Física da rede municipal do Rio de Janeiro |
Joe Gomes (Brasil) |
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Resumo Este trabalho trata-se de uma pesquisa-ação que envolveu de práticas pedagógicas atentas à diversidade e diferenças culturais, visando subsidiar uma proposta de formação continuada da área em uma perspectiva inter/multicultural crítica. Tem como objetivo a articulação entre a pesquisa sobre formação continuada do professor de Educação e os estudos multiculturais, visando compreender a relação entre o discurso e as ações do professor de Educação Física. Nessa perspectiva, em um primeiro momento procura delinear o processo de construção da pesquisa, verificando a seleção dos sujeitos, objetos e análise de dados, a partir de uma olhar de “incertezas” e “estranhezas” sobre um contexto social e escolar transitório e de saberes provisórios. Em um segundo momento, procura responder as questões que surgiram ao longo do processo de investigação, optando pela realização de uma pesquisa-ação. A conclusão aponta para necessidade de pesquisas na área de formação continuada do professor de Educação Física que sistematizem práticas pedagógicas atentas à valorização e reconhecimento da diversidade e diferenças culturais e processos discriminatórios, à luz das relações de poder, tensões e conflitos, e a na ruptura do silenciamento de vozes e apagamento das identidades plurais. Unitermos: Discursos. Práticas pedagógicas. Pesquisa-ação.
Abstract This work is about an research-action that involved of practical pedagogical intent to the diversity and cultural differences, aiming at to subsidize a proposal of continued formation of the area in a critical multicultural Inter perspective/. It has as objective the joint enters the multicultural research on continued formation of the professor of Education and studies, aiming at to understand the relation between the speech and the actions of the professor of Physical Education. In this perspective, at a first moment it looks for to delineate the process of construction of the research, being verified the election of the citizens, objects and analysis of data, from one to look at of “uncertainties” and “queerness’s” on transitory a social and pertaining to school context and to know provisory. At as a moment, it looks for to answer the questions that had appeared throughout the inquiry process, opting to the accomplishment of a research-action. The conclusion points with respect to necessity of research in the area of continued formation of the professor of Physical Education that systemize practical pedagogical intent to the valuation and discriminatory recognition of the diversity and cultural differences and processes, to the light of the relations of being able, tensions and conflicts, and in the rupture of the silenciamento of voices and the deletion of the plural identities. Keywords: Pedagogical practical. Speeches. Research-action.
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EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 15, Nº 147, Agosto de 2010 |
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Introdução
Pensar em uma articulação entre os discursos das pesquisas educacionais com as ações do professor que atua na escola constitui-se em um dos meios mais promissores para promover a construção de práticas pedagógicas. As investigações sobre a reflexão-ação do professor e suas práticas, visando a transformação da realidade escolar pela qualidade das pesquisas educacionais, perpassam pelo diálogo constante acerca dos problemas sociais e educacionais do país.
A busca para atender aos critérios de uma pesquisa qualitativa atentas à diversidade e diferenças culturais (CANEN, 2005; 2006; 2008; CANDAU; LEITE, 2007), tem nos conduzido ao diálogo com os estudos multiculturais, por meio de análises sobre as ações dos professores e reflexões sobre a construção de práticas pedagógicas no contexto escolar e entender a formação continuada como um espaço discursivo privilegiado para superação dos desafios docentes. Em uma perspectiva de compreender os conflitos, tensões e relações de poder nas aulas de Educação Física e identificamos algumas questões que se apresentaram durante o trabalho. Em que medida é possível a articulação entre pesquisa e prática em uma perspectiva multicultural? Como traduzir uma experiência de pesquisa em proposta de formação continuada?
O presente estudo trata-se, portanto, de uma pesquisa-ação em uma perspectiva inter/multicultural, que visa subsidiar uma proposta de pesquisa sobre formação continuada do professor de Educação Física, buscando promover a interação entre o discurso da pesquisa e as ações docentes.
Conforme critérios de validação propostos por Anderson e Herr (1999 apud André 2007), a pesquisa-ação visa obter resultados significativos em relação aos seus objetivos, utilizando-se de uma metodologia que visa relatar e analisar as observações registradas pelos sujeitos durante e após a pesquisa.
Para CANEN (2006) a pesquisa-ação representa uma reflexão crítica sobre e nos discursos dos sujeitos, um processo pessoal e único do pesquisador em ação de reconstrução racional.
De acordo com RICHARDSON (2002) a pesquisa-ação visa produzir mudanças (ação) e compreensão (pesquisa) e suas possibilidades de uso são muito grandes. O rigor, validade e confiabilidade resultam da discussão e reflexão crítica no sentido de melhorar e compreender as práticas, assegurar a participação, oferecer condições para os sujeitos do processo estes tenham compromisso com as mudanças.
Dialogando com ZEICNHER (1998) entendemos que a pesquisa-ação “é uma pesquisa que tem menor possibilidade de reproduzir o sistema não democrático de relações que tem dominado a pesquisa acadêmica educacional” (ZEICNHER, 1998, p.211)
A partir de tais reflexões estruturamos o artigo de forma que, inicialmente, delineássemos o processo de construção da pesquisa, verificando a seleção dos sujeitos, objetos e análise de dados, a partir de uma olhar de incertezas e estranhezas sobre os conhecimentos e diálogos dos sujeitos históricos num contexto social e escolar transitório e de saberes provisórios nele construído, marcado, também, por tensões, relações de poder e conflitos, pelo silenciamento e apagamentos da diversidade e diferenças plurais e valorização da padronização das culturas. Em um segundo momento, responder as questões que surgiram ao longo do processo de investigação, optando pela realização de uma pesquisa-ação com alunos do 8º e posteriormente 9º ano do ensino fundamental de uma escola pública do município do Rio de Janeiro.
A conclusão aponta para necessidade de superação do hiato pesquisa e ação do professor de Educação Física, por meio da construção de discursos como prática pedagógica atenta à valorização e reconhecimento da diversidade e diferenças culturais e superação de processos discriminatórios.
Os caminhos da pesquisa
Ao procurarmos distinguir sujeitos e objetos de nossa pesquisa, deparamos com inúmeros desafios que ao longo do processo de construção, análise e descrição dos dados nos fez refletir, de forma que:
“Uma pesquisa é sempre, de alguma forma, um relato de longa viagem empreendida por um sujeito cujo olhar vasculha lugares muitas vezes já visitados”. (DUARTE, p.139, 2002). Portanto, o que, por que, como e para quem relatarmos esta “viagem”, de modo a torná-la estranha, para quem tantas vezes percorreu o caminho? Em um primeiro momento consideramos alguns aspectos importantes da nossa pesquisa e em diálogo com AMORIM (2000), intentamos tornar “estranho” para os professores de Educação Física e posteriormente retraduzir um olhar cotidiano e viciado dos fatos e dos problemas escolares. Um segundo aspecto, em diálogo com SOUZA SANTOS (2008; 2007; 2003), procuramos desconstruir certezas acerca dos saberes hegemônicos na área, cientes de que numa realidade escolar em constante transformação os saberes são provisórios e transitórios.
Entendendo que os problemas vividos intensamente e solucionados ao longo de anos pelos professores de Educação Física nas escolas públicas municipais do Rio de Janeiro, agora adquirem uma nova roupagem, procuramos uma pluralidade de visões sobre as formas de sistematizá-lo, por meio da pesquisa-ação.
Identificamos dentre as inúmeras questões que se apresentam diariamente no cotidiano escolar, um tema no qual pudéssemos discorrer sem muitas certezas, porém ancorados em estudos que sustentassem nossos argumentos teóricos e ideológicos sobre valorização e reconhecimento das diferenças e da diversidade na superação de processos discriminatórios. Optamos por uma perspectiva inter/multicultural crítica, que incorpora as lutas contra as diferentes formas de desigualdade e preconceito com aqueles tidos como “diferente”, a intenção de formação das múltiplas identidades hibridizadas em um contexto plural como a escola, e o questionamento sobre a existência de uma cultura universal, muitas vezes centrada em valores e saberes norte americano e europeu, ignorando ou silenciando as outras culturas, assim como o diálogo colaborativo entre elas em contraposição as armadilhas ideológicas de relativizar todas as culturas e inviabilizar as identidades coletivas (CANDAU, 2005; 2007; 2008; CANEN, 2008; 2009; 2009ª).
Pesquisar em uma perspectiva inter/multicultural crítica implica enveredar por uma reflexão epistemológica onde discursos e práticas estão intimamente associados às críticas e autocríticas do pesquisador, aos diálogos em conflito, pela sensibilidade em reconhecer e valorizar a diversidade e as diferenças culturais para além do processo de essencializar as origens. Nesse sentido entendemos que a postura do pesquisador inter/multicultural crítico é de não ignorar conflitos, tensões e relações de poder entre sujeitos ou grupos de sujeitos e culturas históricas, mas procurar estratégias que promovam relações dialógicas e igualitárias, visando rupturas com visões essencializada da diversidade e das diferenças na construção de práticas pedagógicas (CANDAU, 2008; CANDAU e LEITE, 2007; CANEN; OLIVEIRA, 2002; CANEN, 2008; MOREIRA; CÂMARA, 2008, GABRIEL, 2005).
Por conseguinte, ao refletirmos sobre a construção do objeto de pesquisa, entendemos que dentro da problemática pesquisada, três objetivos ressaltaram a nossa curiosidade como pesquisador.
Um primeiro, com maior ênfase, pelos sucessivos incômodos com os quais temos vivido os processos de ensino e aprendizagem quando atuamos com alunos do 6º ao 9º ano do ensino fundamental, diz respeito a superar o discurso dos alunos em relação à rejeição das práticas propostas, sob a alegação do “eu não sei”, “eu não gosto” “eu não vou fazer” “eles não deixam”. Entendidos inicialmente como formas de enfrentamento à ordem do professor e posteriormente como forma explícita de relações de poder entre sujeitos no que diz respeito às atividades sugeridas, pelo continuísmo das intenções e ações entre professores e os alunos e a rotina de tarefas impostas pelo professor. Procuramos compreender que, por vezes, essas situações são geradas e geradoras de discursos e atos discriminatórios.
O segundo foi definir o objeto e o(s) sujeito(s) de pesquisa. Conforme DUARTE (2002) o objeto e os sujeitos da pesquisa são tão importantes quanto à elaboração do texto final. Essa, talvez, foi uma de nossas principais “incertezas”. Ao fazermos uso de alguns estudos do campo, para nos guiarmos ao longo desse objetivo, identificamos inúmeros entraves. Multiplicidade de objetos, necessidade de foco sobre qual processo discriminatório iríamos analisar, escolha de um sujeito ou mais sujeitos da pesquisa, redistribuição das relações de poder entre o referencial teórico e o que vai ser analisado a partir da pesquisa empírica.
O terceiro objetivo era na medida em que o(s) objeto(s) e sujeito(s) fossem selecionados, rumaríamos no sentido de buscar fazer com que a pesquisa definisse a sua relevância social e científica, buscando soluções para os problemas educacionais, uma prática reflexiva, crítica e multicultural sobre a realidade escolar, com etapas bem definidas e fundamentada por uma teoria que ampliasse os conhecimentos científicos e hegemônicos da área, a partir da análise rigorosa e criteriosa dos discursos como dados significativos (ANDRÉ, 1999; 2008, CHARLOT, 2006; SPINK; MENEGON, 2000; ALVES-MAZZOTTI; GEWANDSZNADJER, 1999; GOLENBERG, 1998).
Direcionamo-nos às alternativas metodológicas mais adequadas para solução do problema. Inicialmente elegendo como objeto, o discurso dos professores e alunos em relação à construção de práticas pedagógicas e processos discriminatórios. Escolhemos como abordagem a pesquisa qualitativa, visto que nossas intenções era descrever sobre e com os alunos, como estes lidam em situações de discriminação. A seguir selecionamos como os sujeitos da pesquisa, alunos do 8º ano do ensino fundamental de uma escola pública do município do Rio de Janeiro, no qual atuamos há mais de 10 anos, e o professor-pesquisador. A escolha por estes sujeitos implica em entendê-los como produtores de culturas na escola, e esta enquanto espaço-tempo de construção das identidades e diferenças culturais (CANDAU, 2005; 2008; GABRIEL, 2005). A escola foi entendida, também, como lócus de formação continuada e pesquisa do professor (CANDAU, 2008).
Conforme estudos anteriores (CANEN; OLIVEIRA, 2002; CANEN; 2006; CANDAU; LEITE, 2007), pensar em uma pesquisa inter/multicultural sobre/com o professor visando à construção de práticas que valorizem a diversidade e as diferenças culturais, no sentido de dialogar com saberes historicamente e culturalmente construídos, implica em apoiarmo-nos sobre duas categorias centrais: a crítica cultural e a hibridização cultural.
A crítica cultural remete às possibilidades dos professores junto aos alunos analisar identidades étnicas, criticar mitos socialmente construídos para os subjugarem, elaborar outras perspectivas sobre as culturas e solidarizar-se em torno do projeto de emancipação e democracia social. A hibridização cultural refere-se às possibilidades de construção de um discurso híbrido, ou seja, linguagens que se cruzam, plurilinguajamentos, encontros que rompam com as fronteiras culturais, incorporando uma multiplicidade de discursos e reconhecendo a sua diversidade e provisoriedade. Visa superar o congelamento de identidades culturais e discursos discriminatórios, conduzindo às práticas pedagógicas a valorização do plural, do múltiplo, do diverso, do outro até então visto como diferente (CANEN; OLIVEIRA, 2002; CANEN, 2007).
Nesse sentido o eixo da pesquisa buscou ampliar a compreensão dos problemas vividos pelo professor-pesquisador, analisando os seus discursos e dos alunos como fenômenos multiculturais.
A pesquisa-ação e o discurso como prática
A pesquisa-ação, como investigação qualitativa, implica, muitas vezes, em pensarmos como controlar a subjetividade que permeia o pesquisador em ação durante todo seu processo. Ao definirmos como objeto da pesquisa o discurso dos alunos e do professor-pesquisador sobre as atividades pedagógicas sugeridas, as interações e atitudes, mediante o que estava sendo proposto, intentaram validá-la apresentando sob forma de relato fatos ocorridos os desafios na sua elaboração.
A partir de tais reflexões, a ação inicial da pesquisa-ação consistiu de observações sobre os discursos e atos de discriminação nas nossas aulas de Educação Física, procurando abarcar, em uma perspectiva inter/multicultural crítica, os desafios da formação continuada do professor de Educação Física na construção de práticas pedagógicas multiculturalmente orientadas. Utilizamos como referencial teórico os estudos multiculturais de CANEN (2006; 2007); CANDAU; LEITE (2007).
A coleta de dados
Por meio de registros dos alunos, busquei relacionar os problemas observados em aula e a seleção de atividades. Após uma análise qualitativa dos dados, identificamos inúmeros conflitos de identidade étnica, de orientação sexual, gênero e estético corporal, resolvi selecionar algumas práticas pedagógicas como leitura de textos, pesquisas individuais, relatórios, assistir trechos ou filmes completos com fins didáticos, prática de esportes e jogos com regras adaptadas de acordo com as capacidades dos alunos, organização de diversas atividades por grupos de interesse no espaço e com os recursos disponíveis da escola. Fizemos três registros, dois no período que compreendeu a primeira fase (de setembro a dezembro de 2009) e um final na segunda fase (março a julho de 2010). A organização em dois momentos e continuidade das observações foi possível, em função de permanecermos como professor da turma, que inicialmente estava no 8º ano do ensino fundamental em 2009 e no 9º ano em 2010.
Disponibilizamos inicialmente dez aulas com dois tempos de cinqüenta minutos cada, onde foram designadas atividades de discussão sobre temas sobre conflitos étnicos e culturais como dos jovens negros e pobres revelados pela mídia ou presentes na comunidade ou como temas de filmes, acesso dos alunos da rede pública municipal às escolas técnicas e universidades públicas federais, histórias de vida real formação de conflitos e tensões culturais, de preconceito e descriminação cultural, étnica, de gênero, corporal e de orientação sexual vividos por eles na escola e principalmente nas aulas de Educação Física.
Sob forma de debate com pequenos grupos ou com a turma toda, realizamos o processo de interação dos alunos, utilizando avaliações por escrito e verbais e práticas de esportes e jogos. Nossos objetivos visavam uma interação e o diálogo entre as diferentes culturas e minimizar a formação de “guetos culturais”, assim como tratar práticas convencionais da Educação Física como os esportes e os jogos em uma perspectiva multicultural (CANEN, 2006). Nos limites do artigo, não serão analisados as observações e registros dos alunos, mas somente a narrativa do professor-pesquisador sobre os desafios vividos.
A Narrativa
A narrativa do professor-pesquisador sobre os desafios em implementar práticas multiculturalmente orientadas, visou subsidiar uma formação continuada do professor de Educação Física em uma perspectiva inter/multicultural crítica. Analisamos, através de registros, aplicados um a cada bimestre, os discursos dos alunos em relação às práticas apresentadas e as modificações ocorridas no comportamento individual e coletivo durante as aulas de Educação Física.
O que ensinar aos alunos sobre reconhecimento e valorização das diferenças culturais? Por que ensiná-los a reconhecer e valorizar as diferenças? Que propostas são mais adequadas e surtiriam mais efeito com eles? Como desafiar situações de discriminação e discursos preconceituosos? Como promover a formação de identidades culturais sem nos aprisionarmos aos modelos homogeneizadoras de gênero, etnia, orientação sexual e corporal?
Estas foram às perguntas iniciais que orientaram o nosso trabalho com alunos. Visando o reconhecimento e valorização das diferenças culturais e a superação de discursos e práticas discriminatórias, pautei-me nelas para a realização da pesquisa-ação com o objetivo de identificar os processos discriminatórios nas aulas de Educação Física. Tomei como referência uma turma de 8º ano do ensino fundamental pelas características bastante interessantes que a constituía: diversidade de idéias e condutas nas aulas, interesses bastante diferenciados sobre os conteúdos da Educação Física, formação de vários mini-grupos e isolamentos individuais, alunos portadores de necessidades especiais. Essa turma caracterizava-se, também, pelo fato de seus alunos nunca terem sido reprovados, nesta escola, visto que era a única do 8º ano, na parte da manhã, que foram promovidos automaticamente ao longo dos oito anos de escolarização, e sendo assim todos estavam dentro da faixa etária entendida como ideal para o ano escolar em que cursavam. Havia um equilíbrio entre o número de meninos e meninas, alunos com sérias necessidades de interação com a escola, um menino assumidamente homossexual e alguns casos de alunos onde identifiquei muitas pelas dificuldades em aceitar os seus limites na execução de tarefas motores propostas nas aulas.
Verificamos, durante as aulas de Educação Física, que os meninos constantemente procuravam eliminar a participação das meninas, adentrando no jogo que elas estavam fazendo, e quando faziam uma prática em conjunto procuravam formas de as fazerem desistir de participar como, por exemplo, não passar a bola ou chutar com força sobre elas durante um jogo de futebol. As meninas reclamavam constantemente da não intervenção do professor em relação à hierarquia no uso da quadra pelos meninos. Afirmavam que os meninos tinham mais privilégios em relação ao tempo e uso da quadra, porém mesmo quando era dividido o tempo não eram realizadas muitas atividades. As aulas terminavam sempre com a impressão de que nada de novo era possível.
As aulas
As aulas de Educação Física são por uma construção histórica e cultural realizadas na maior parte do tempo ou integralmente na quadra de esportes, local reservado para se jogar, na maioria das vezes, futsal, basquete, vôlei e hand ball e, por vezes, queimado. Em algumas escolas este espaço não apresenta acomodações confortáveis, limpas, adequadas e arejadas, dificultando a participação dos alunos no que diz respeito à sua motivação.
Nessas condições as aulas de Educação Física podem tornar-se um espaço-tempo do “não fazer”, do ócio, das práticas espontâneas e isoladas de lazer como ouvir música, falar ao celular e até como registramos se conectar a internet, por meio de um notebook.
Nesse sentido a utilização da sala de aula, espaço onde os alunos ficam boa parte do tempo “estudando” não é bem recebida por eles e, por vezes quando ocorre, gera conflitos e tensões com os professores.
A utilização de outros espaços da escola como o pátio e corredores sempre causam polêmica com os demais professores, em função do barulho rompendo o silêncio sepulcro das outras aulas, verificamos que algumas atividades quando realizadas fora da quadra geravam comentários do tipo;
Muito em função do acúmulo de professores de Educação Física em único dia e turno de trabalho, algumas vezes era necessário reunir duas ou mais turmas na quadra, fazendo com que os professores combinassem a organização e supervisão das atividades.
A duração das aulas, em torno de 50 minutos, implica em formação de dois tempos chamados “geminados' ou seja, seguidos um do outro. Neste período o aluno se desloca muitas vezes da sala para quadra, passando pelo bebedouro, banheiro, outra sala para “dar um recado ao colega', “falar com meu irmão', “avisar que vou sair mais cedo”.
Nesse sentido procurei compreender a participação qualitativa (ação) dos alunos e possibilidades de intervenção durante as aulas; analisar limites e possibilidades na implementação de práticas pedagógicas multiculturalmente orientadas; compreender na relação entre seleção de práticas pedagógicas e participação dos alunos os conflitos, intenções de poder e tensões por meio de atitudes e discursos discriminatórios contra etnias, gênero, orientação sexual e corporal, à luz dos estudos do multiculturalismo; redimensionar a relação dos alunos com as aulas de Educação Física, verificando possibilidades, através dos seus conteúdos, de ampliar-lhes a percepção sobre o contexto social global e escolar.
Identifiquei que os alunos participavam de forma bastante diferenciada nas aulas na quadra e na sala de aula. Alunos por vezes arredios em participar das práticas esportivas, mostravam-se efusivos e eloqüentes durante os debates e vice-versa. Intentei, portanto, compreender esses conflitos, tensões e relações de poder entre as propostas do professor e os alunos, identificando e negociando formas de enfrentamento e participação em relação às atividades.
Apontei para os desafios a serem enfrentados na construção das práticas, verificando limites e possibilidades a partir dos discursos e formas de interação dos alunos. O resultado inicial indicava uma resistência muito grande dos alunos em participar de atividades na sala ou que não tivesse a prática do futebol.
A participação dos alunos em relação aos espaços das aulas de Educação Física
Fazendo uma análise crítica da minha atuação, percebi que muitos dos meus discursos não se coadunavam com a prática desejada e reduzidamente atingia os interesses gerais da turma. Por vezes, não sabia lidar com os enfrentamentos dos alunos, impondo somente ordens e tarefas inócuas como cópias de textos, no sentido de castigar os que não queriam fazer nada ou ocupar-lhes o tempo. Observei que essas práticas contribuíam para que, momentaneamente, os alunos “participassem” das aulas, porém um novo enfrentamento surgia na semana seguinte ou em alguns casos na mesma aula.
Procurei, em segundo momento, “ignorar' os alunos que não faziam as atividades, deixando-os livres para fazerem o que quisessem menos circular pela escola durante a aula. Em alguns momentos me vi vociferando, bem alto, palavras terríveis que cada vez mais nos empurrava para um alargamento entre o que dizíamos e o que fazíamos com os alunos. Intentei discutir com esses alunos, mobilizar o uso de recursos pedagógicos e físicos da escola em torno da aprendizagem de esportes e jogos em função deles. Verificamos que a participação dos alunos, até então mais resistentes, nesse modelo de organização das práticas era bastante significativa, com muita alegria e frutos de boas discussões posteriores.
Utilizei vários recursos e espaços da escola, como cordas, arcos, boliches para realizei brincadeiras onde o objetivo era refletirmos sobre as possibilidades individuais de cada um e formas de relacionar a eliminação no jogo à eliminação do “outro” na sociedade, e em particular naquela escola.
Na sala de aula fizemos análises de trechos de filmes (3) e de um filme completo que abordam temas como racismo, conflitos étnicos e culturais e formas de enfrentamento ao preconceito. Escolhemos os trechos dos filmes Homens de Honra, E defesa da Honra e Um grito de liberdade, e assistimos integralmente ao filme Escritores da liberdade. A temática dos trechos de filmes girava em torno das questões de ascensão social e acesso cultural dos negros nos Estados Unidos e África do Sul nas décadas de 1960 e 1970 e o papel da atividade física e do esporte. O filme Escritores da liberdade trata da implementação da educação inclusiva nos Estados Unidos na década de 1970 e os conflitos culturais e étnicos que se sucederam.
Meu objetivo era associá-los às questões educacionais, culturais e étnicas vividas no Brasil e em particular àquelas vividas no cotidiano da escola pesquisada e das nossas aulas. Tivemos a intenção, também, de analisar como essas questões afetam o processo de escolarização e como os discursos e atitudes discriminatórias podem impactar a participação nas aulas de alguns alunos. Trouxemos à tona uma discussão de como os esportes e os jogos puderam contribuir para organização política e social de um país como aconteceu, por exemplo, na África do Sul durante o Apartheid, e seus limites e possibilidades de transformar a realidade social e educacional do Brasil.
Visto que minha intenção era, para além de identificar os desafios do professor-pesquisador, construir uma proposta de pesquisa na formação continuada pautada em questões multiculturais e relacionadas à construção de práticas pedagógicas para além da essencialização da diversidade e mera aceitação e tolerância entre os sujeitos, sugeri a construção, no contexto das aulas, de práticas que dialogassem as minhas intenções com as dos alunos. Mobilizei articulações entre os meus saberes como professor-pesquisador da Educação Física e dos alunos, dialogando culturas provenientes da história dessa disciplina com culturas que os impactam e direcionam seus desejos, sentimentos, crenças e valores, tornando o momento da aula rico em conflitos e tensões. Procurei, portanto, promover um “diálogo colaborativo entre participantes com vozes culturais plurais (Canen, p. 123, 2006,)”, no sentido de enquanto professor-pesquisador reflexivo-crítico e multicultural em ação compreender as múltiplas identidades dos alunos.
Conclusão
Ao propormos uma pesquisa-ação para discutirmos a relação entre pesquisa e construção de práticas pedagógicas multiculturalmente orientadas com a utilização de filmes, pesquisas, textos e a discussão com os alunos, procuramos analisar os conflitos, tensões e relações de poder entre professores e alunos e formas de superação dos discursos discriminatórios entre etnias, de gênero e de conduta sexual. Verificamos, através de nossos registros no início, durante e no final do projeto que as atitudes e opiniões dos alunos em relação à participação individual e coletiva melhoraram significativamente. A relação deles com os personagens e o desfecho das histórias, possibilitou inúmeras reflexões e algumas soluções para as situações de conflito, tensões e relações que ocorriam nas aulas, culminando com reflexões sobre discursos e atos discriminatórios tanto do professor com os alunos, como dos alunos entre si e dos alunos com as práticas pedagógicas sugeridas. Porém inúmeros desafios e propostas podem ser apontados para as pesquisas de formação continuada e a construção de práticas pedagógicas pelo professor de Educação Física.
Sendo assim um primeiro desafio dirige-se para a busca contínua em formar o professor-pesquisador reflexivo, crítico e multicultural em ação, observando os discursos como produtos culturais, produzidos na escola e associados a uma sociedade multicultural complexa e marcada por conflitos, tensões e relações de poder entre sujeitos e culturas históricas. A articulação do discurso como prática pedagógica, investigando a relação do campo teórico da formação continuada da Educação Física escolar com a realidade escolar, procura analisar a construção de práticas pedagógicas multiculturalmente orientadas reconhecendo na diversidade e diferenças culturais uma perspectiva de pluralidade de formas de luta contra as desigualdades, de ruptura do silenciamento de vozes subalternizadas, e de formas de superação dos modelos de padronização e discriminação.
Um segundo desafio é tornar o espaço-tempo da formação continuada um diálogo entre culturas. É inviável para uma educação que se propõe transformadora mantermos uma relação hierarquizada entre aqueles que ensinam e os que aprendem entre os que pesquisam e os que atuam nas escolas, assim como perpetuar os limites impostos pelas condições didáticas desfavoráveis das escolas públicas. É importante reconhecer os esforços dos pesquisadores e professores em contribuir com a transformação do contexto escolar, porem precisamos de uma interação entre esses sujeitos na construção de práticas.
Nesse sentido algumas reflexões são importantes para subsidiar uma proposta de formação continuada em uma perspectiva inter/multicultural crítica.
Refletir sobre como ampliar e aprofundar pesquisas sobre questões relacionadas à sensibilização do professor de Educação Física em reconhecer a diversidade e as diferenças para além da essencialização e naturalização. A forma como vem sendo apresentada as propostas de pesquisa sobre formação dos professores de Educação Física revela uma intenção para o diálogo entre culturas sem conflito e tensões.
Refletir sobre a diversidade na elaboração de práticas, entendendo como complexa as condições didáticas desfavoráveis, porém identificamos ser bastante eficazes as formas de negociação, por meio do discurso com os alunos em torno da seleção das atividades, a distribuição dos espaços de aula, as discussões em torno das questões de gênero e orientação sexual, sobre os direitos das alunas no uso da quadra e da monocultura do futebol que isola os meninos que apresentam conduta ou se revelam homossexuais. A busca em romper com a monocultura do futebol, pode nos conduzir à construção de estratégias diferenciadas de participação nos jogos e esportes, organização de atividades coletivas e em pequenos grupos durante a aula, e a prática de jogos construídos na cultura da comunidade por diferentes gerações.
O uso de filmes e textos com temas sobre o cotidiano escolar e conflitos étnicos culturais, padrões estético-corporais, mostraram-se bastante significativos quando acompanhados de uma reflexão crítica sobre os problemas sociais e educacionais dos alunos. O uso de diferentes instrumentos de avaliação ou formas de participação se mostrou, também, bastante eficaz. Ao disponibilizarmos os canis eletrônicos (email e site de relacionamentos) tivemos um número significativo, em torno de 30% amais, no retorno das pesquisas e relatórios solicitados aos alunos. A diferenciação da participação até então focada na padronização da execução do movimento ou na atuação durante o jogo, permitiu aos alunos mais tímidos e menos habilidosos mobilizar outras habilidades.
O discurso como prática pedagógica em uma perspectiva inter/multicultural crítica, apesar da complexidade de atuar em um cotidiano escolar, marcado pela falta de condições didáticas, pela aglomeração de turmas em um mesmo espaço e tempo de aula, pelos conflitos generalizados entre os alunos e dos alunos com os professores, mostrou-se uma alternativa interessante se acompanhada de intervenções contínuas do professor junto aos alunos discriminados, reflexões entre pesquisadores e professores e dos professores com os demais sujeitos da escola.
A escola como espaço-tempo multicultural e lócus da formação continuada dos professores de Educação Física é o espaço-tempo das discussões em torno da prática e da prática de discussões.
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digital · Año 15 · N° 147 | Buenos Aires,
Agosto de 2010 |