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As corridas de longa distância: prazer, excitação e êxtase

Las carreras de fondo: placer, excitación y éxtasis

 

Professor de Educação Física

Universidade Federal do Rio Grande Norte, UFRN

Membro do Grupo de Pesquisa Corpo e Cultura de Movimento

Doutor em Educação

Antônio de Pádua dos Santos

paduasant@gmail.com

(Brasil)

 

 

 

 

Resumo

          Neste texto, discutiremos, a partir de nossas observações e dos discursos dos atletas pesquisados, aspectos relacionados à emoção, à excitação e ao prazer de praticar corrida de longa distância e de participar dessas corridas.

          Unitermos: Esporte. Excitação. Prazer. Sacrifício.

 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 15 - Nº 146 - Julio de 2010

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Introdução

    Nossa proposta nesse artigo é trazermos aspectos teóricos e metodológicos que considere e compreenda o sujeito envolvido na prática do esporte de rendimento, para além do consumo, do mercantilismo e da competição. Nesse sentido, aspectos como o prazer, emoção e excitação são importantes na análise da prática esportiva. A partir desse olhar, acreditamos na possibilidade de podermos compreender como o sujeito-atleta se produz e é produzido diante dos diversos aparatos sociais que o cercam. Considerando o pressuposto que os atletas envolvidos na prática do esporte de rendimento, em especial o atletismo, afirma-o como uma marca importante nas suas vidas, por isso a necessidade compreender melhor os sentidos que estes atletas estão produzindo, de que modo se pensam e são pensados enquanto atletas.

    O esporte pode trazer em seu seio, outras vertentes de análises e de compreensão como encontramos em Elias (1992) quando relaciona essa prática a fortes experimentações de emoções e excitação. Parece-nos evidente que as atividades de lazer sejam elas de caráter individual ou coletivo, desenvolvidas nas sociedades ditas complexas e civilizadas (a nossa, por exemplo), exerçam exigências evolutivas no modo de ser das atividades de lazer, entre elas o esporte, para que possam dar conta das novas formas de vida, para atender as suas necessidades emocionais, de excitação, sentimentais entre outras. A excitação que os indivíduos procuram no seu lazer, especificamente no esporte, passa a ser compreendido como singular, como veremos no decorrer deste artigo, tratando-se em geral de uma excitação agradável.

A busca do prazer no esporte: da teoria a prática

    Refletindo sobre o propósito da vida humana – e incluindo nessa reflexão o esporte –, segundo Freud (1978), o princípio do prazer, como força que move toda a vida humana, terá que superar limitações, sejam elas da constituição interna do sujeito, sejam configuradas pelas ameaças e fontes de sofrimento que o mundo externo proporciona, dificultando a realização e a efetivação da felicidade. Tudo é planejado contra a realização dessa pulsão de vida. Regula-se a fonte social do sofrimento pelas relações sociais, estas sendo o primeiro momento da civilização, pautadas e valorizadas pela capacidade de efetivar as restrições à liberdade individual, que, em sua origem, é ilimitada. A partir dessas restrições, o ser humano passa a viver em permanente conflito com o mundo dito civilizado.

    Dessa maneira, o ser humano é constituído e transformado em um ser social, que, ao ser aprisionado nos moldes da civilização, mantém-se diante de certa ordem, pagando um custo muito alto, com a restrição da liberdade. Por perder a liberdade, ele entra em estado conflituoso e constante com a dita civilização, mas é assim que evolui e que é aceito pelo grupo social.

    Elias (1994) esclarece-nos a respeito do conceito de civilização, utilizando, para isso, um tratado de 1530 intitulado De civilitate morum puerilium (Da civilidade em crianças). Esse tratado, elaborado por Erasmo de Rotterdam, dá força a uma palavra bastante antiga originada de civilitas e depois interpretada por várias línguas. De civilitate morum puerilium foi dedicado a um menino nobre, filho de príncipe, aparentemente sem maiores pretensões, mas causou mudanças sociais, estabelecendo um novo modelo de comportamento para as pessoas, que incluía desde a maneira de olhar, passando por posturas na mesa, asseio, modos de sentar, de lavar as mãos antes das refeições, etc. O tratado chama a atenção por pontuar a diferença entre as atitudes bárbaras, ou incivilizadas, e as ditas civilizadas.

    Dessa maneira, a sociedade sofre mudança, começa aos poucos, a suprimir um componente importante nas pessoas, que é o prazer, ao mesmo tempo que engendra a ansiedade, tornando os prazeres privados secretos e aumentando a proibição social de muitos impulsos. Chega-se à situação em que “[...] os jovens têm apenas uma alternativa: submeter-se ao padrão de comportamento exigido pela sociedade, ou ser excluído da vida num ‘ambiente decente’” (ELIAS, 1994, p. 146).

    Pode-se perceber que essas mudanças acontecem através do que será denominado de processo civilizador. Entretanto, não podemos acreditar que esse processo tenha acontecido de maneira planejada. Segundo Elias (1993, p. 193), a civilização “[...] não é, nem o é a racionalização, um produto da ‘ratio’ humana ou o resultado de um planejamento calculado em longo prazo”. Mesmo tendo acontecido sem planejamento, o processo civilizador não deixou de ter certo tipo de ordem, o que é demonstrado pelos diversos controles impostos aos indivíduos e do modo como isso, através de outras pessoas, é convertido em autocontrole.

    Na verdade, isso não foi uma ideia concebida por pessoas isoladas nem dotadas de tal perspectiva a longo prazo. O que se pode colocar como evidente é que

    O processo civilizador nada mais é do que o problema geral de mudanças históricas. Tomada como um todo, essa mudança não foi ‘racionalmente’planejada, mas tão pouco se reduziu ao aparecimento e desaparecimento aleatórios de modelos desordenados (ELIAS, 1993, p. 194).

    O que ocorre é uma peculiar estabilidade do aparato do autocontrole mental como traço decisivo, uma vez que a expressão dos sentimentos já não pode mais ser saboreada sem ressalvas ou sem reflexão sobre suas possíveis consequências. Isso porque, embutida nos hábitos de todo ser humano civilizado, mantém-se, da maneira mais estreita possível, uma relação entre a monopolização da força física e a crescente estabilidade dos órgãos centrais da sociedade.

    Elias e Dunnig (1992, p. 125) observam que, apesar de todo esse aparato de controle imposto pela sociedade, ela segue com a tendência para experimentação de fortes emoções, mesmo que sejam de caráter não duradouro, mimético (o termo não está sendo utilizado em seu sentido literal, de imitativo). De certa maneira, na teoria elisiana, o termo mimético é usado num sentido específico, podendo ser aplicado em referência à “[...] relação entre os sentimentos miméticos e as situações sérias específicas da vida”. O que pode ocorrer em situações sérias da vida é que os indivíduos venham a perder o controle e se tornem um perigo para si mesmos ou para os outros ao seu redor. Na excitação mimética, essas coisas podem não acontecer, porque ela segue numa perspectiva social e individual, desprovida de perigo, e pode ter um efeito catártico, possibilitando aos indivíduos experimentarem a explosão de emoções em público, um tipo de excitação que não coloca em risco a ordem social determinada, diferentemente do que ocorre nas situações sérias da vida.

    Por isso a excitação que as pessoas buscam no lazer pode ser interpretada como única. Em geral, ela acontece de maneira agradável, encontrando-se nas sociedades contemporâneas vários fatores que podem levar à excitação, entre eles o esporte. Nosso interesse é discutir sobre a excitação e o prazer que os atletas sentem em praticar, especificamente, corridas de longa distância, tendo em vista que eles fazem desses encontros um espaço propício para deixarem extrapolarem suas emoções sem constrangimento, ressentimentos e culpabilidades. Adriana diz: “O atletismo é uma coisa prazerosa, porque me ajuda a relaxar”.

    Nem sempre isso acontece sem que o corpo passe por sofrimentos e dores, mas também não se pode negar que esses sofrimentos e essas dores provocam prazer e excitação nos sujeitos-atletas. Observamos esse tipo de sofrimento durante um desafio de seis horas realizado em Natal/RN. Correr seis horas praticamente ininterruptas, parando apenas algumas vezes, rapidamente, para hidratação não foi uma tarefa das mais simples: exigiu toda uma preparação física e psicológica adequada, que, segundo os atletas, foi feita por eles mesmos, pois não dispunham de psicólogo nem de boa alimentação. O desafio começou às 10h da manhã e terminou às 16h, sob uma temperatura bastante alta. Mesmo assim, os participantes se mantiveram motivados a ir até o final da corrida.

    Mesmo sabendo do risco de morte que havia, segundo Josenaldo,1 as pessoas traçam objetivos como, por exemplo: “terminar a prova, conseguir terminar as seis horas correndo”. Muitos colocam a superação de si mesmos em primeiro plano, esquecendo os outros como adversários.

    Josenaldo e Sheyla fizeram, respectivamente, os comentários seguintes:

    Eu penso assim: eu acho que esse desafio... muita gente vai para buscar a própria superação, tentar superar os seus limites [...] Essa maratona, ali, para ele, é uma boa, mas é uma prova muito desgastante. Pois é bom ir com precaução, para não sobrecarregar demais. É uma prova muito desgastante, principalmente pelo horário que elas são realizadas.

    Superação... passa tudo no início da prova. Você começa a correr, você tá bem. Quando passa assim... três horas, a partir dali você já sente o cansaço, porque é visível, né? Você pensa assim: ‘Meu Deus! ainda falta a metade!’ Dá um desespero [risos]. Aí, conforme vai passando o tempo, tem as prévias, eles [os árbitros] vão falando de hora em hora. Aí, você... o pessoal desistindo de um lado, dá vontade de você desistir também. Porque você vê: Fulano já foi, então chega a minha hora também?. Mas, por outro lado, vem aquele que aparece [sopra] no seu ouvido: ‘Poxa! [risos] você pode, você não é tão pequeno. Tem que ir até o final, entendeu?!’.

    Mesmo havendo premiação em dinheiro, esta não foi muito significativa, em relação ao prazer do desafio a si mesmo, para alguns atletas realizarem a prova e conseguirem chegar até o final. Diz a atleta Sheyla:

    Eu cheguei a ganhar. Ganhei, mas é pouco. Cheguei em terceiro lugar, ganhei R$ 150,00. Não é pelo dinheiro, jamais, porque não vale a pena: perdi todas as unhas [risos], estraguei os meus tênis, perdi o dia de sábado.

    A quantia ganha pela atleta não dava para ela comprar um tênis adequado para esse tipo de corrida. Ela foi uma das que, mesmo chegando ao final da corrida, teve que passar por situações incompreensíveis por quem assiste. Os próprios familiares dos atletas que estavam vendo a prova achavam aquilo uma loucura. Mas os atletas acham que tudo isso vale a pena, como enfatiza Sheyla:

    Pra quem olha, fecha os olhos. Mas, para mim, eu ganhei, foi um desafio que eu consegui, foi um desafio mesmo. A palavra já diz tudo: a prova é um ‘desafio’. Foi dura, foi dureza, mas ‘eu vou conseguir! eu vou conseguir!’ Mas foi muito sofrido. Quando acabou a prova, dever cumprido.

    Para Sheyla, o atletismo, a corrida, “é uma coisa!... é uma adrenalina!... Mexe com muita coisa!”. O mexer com muita coisa é o que fez essa atleta correr a última hora de uma prova descalça, como vimos anteriormente. A compensação é terminar, é ir até o final, provar a emoção de correr e desafiar-se, seja num desafio de seis horas ou numa meia maratona. Ela diz: “[Estar lá] correndo – me arrepio todinha! – é uma coisa que mexe comigo, entendeu? Então eu gosto muito”.

    Essa adrenalina que os atletas afirmam sentir quando correm nos faz lembrar de Deleuze e Guattari (1996, p. 9) quando trazem a ideia do que venha a ser um Corpo sem Órgão. Para os autores, o CsO2 “Não é uma noção, um conceito, mas antes uma prática, um conjunto de práticas. Ao Corpo sem Órgãos não se chega, não se pode chegar, nunca se acaba de chegar a ele, é um limite”. São esses corpos que desfilam por aí, seja costurados, seja vitrificados, dançarinos – e por que não incluir os corredores de longa distância? –, muitas vezes, plenos de alegria e de êxtase! Vive-se na necessidade constante de encontrar o CsO, e saber “[...] fazê-lo é uma questão de vida e de morte, de juventude e de velhice, de tristeza e de alegria” (DELEUZE e GUATTARI, 1996, p. 11).

    Esse corpo é construído de tal maneira que só as intensidades interessam, mesmo que sejam passageiras, como observamos nos atletas. Ele cria de forma diferente suas ações e as condições de vivenciá-las.

    Ao falarem dessa adrenalina que o esporte proporciona, mesmo com o cansaço que ele provoca, as dores, os atletas o fazem entre risos e com um ar de emoção que só o prazer pode justificar. Para um deles, Eudésio, o atletismo não é um esporte que traz “sacrifício. Isso é uma alegria, bicho!”. Continua ele: “Pra quem não sabe o que é isso, pra quem não tá acostumado... ‘ Você é louco!’. Ó loucura boa!... é um prazer!...”. Os atletas demonstram que praticar atletismo, corridas de longa distância, não só exige esforço físico, representa, para eles, um encontro consigo mesmos, uma superação saudável e prazerosa.

    Esse prazer não se desliga do desejo; é aliviado na

    [...] alegria imanente do desejo, como se ele se preenchesse de si mesmo e de suas contemplações, fato que não implica falta alguma, impossibilidade alguma, que não se equipara e que também não se mede pelo prazer, posto que é esta alegria que distribuirá as intensidades de prazer e impedirá que sejam penetradas de angústia, de vergonha, de culpa (DELEUZE e GUATTARI, 1996, p. 16).

    Há, portanto, atletas que encontram na prática do esporte momentos que eles afirmam ser de pleno prazer, nos quais o desejo é aliviado. Muitas vezes, eles terminam a corrida cansados, alguns estropiados, pés calejados, cheios de dores, ou até vomitando. Eles experimentam o que os autores citados chamam de positividade do desejo, na qual a junção desejo-prazer não pode ser reduzida a nenhuma lei. Isso só se torna possível através da “lei da descarga”. É importante ressaltar que os atletas não se culpam, não reclamam das “torturas” que precisam passar para estar no esporte.

    Tais intensidades constroem um CsO na figura de um corpo drogado, que busca seu prazer nas drogas, fazendo-as seu alimento. Os atletas parecem buscar no esporte essa droga que lhes falta e que, quando é obtida, lhes serve de alimento para um corpo que precisa ser preenchido, saciado. Para Eudésio, praticar esporte, atletismo, é drogar-se. Ele se considera um viciado: “É um vício [...] é uma coisa que você sente falta se você parar um dia [...] É endorfina, anestesia”. Batista também afirma que, quando passa um dia sem treinar, sente falta. Ele precisa “dessa anestesia, dessa morfina, dessa endorfina. O corpo fica viciado”.

    Observamos nesses atletas a busca permanente da experimentação do corpo na atividade esportiva, vivenciada de uma maneira que lhes é favorável, sem que eles deixem de lado as intensidades.

    Essas intensidades fazem com que as dores corporais, no esporte, pelo que observamos, sejam uma constante. Muitos daqueles com quem tivemos oportunidade de conviver, de conversar, já sentiram dor ou continuam sentindo no seu dia a dia, tendo que conviver com ela, de alguma maneira, para não terem de abrir mão de continuar treinando e participando das corridas.

    O sofrimento e a dor que o corpo sofre durante a prática do esporte são entendidos como positivos. Os atletas encontram no sofrimento e na dor um desafio a mais, transformando dor em prazer e passando, muitas vezes, por situações extremas, como comentam respectivamente, Josenaldo e Sheyla,:

    Eu acho que é importante você saber conviver com a dor, porque ali é uma dor de um esforço físico, então não é aquela coisa de machucado. Então, eu acho que todo atleta tem aqueles momentos de dores. Às vezes os excessos de trabalho, às vezes o esforço físico você sente.

    A dor é uma constante em qualquer corredor. Se tiver treinando bem ele tá sentindo alguma coisa. Não quer dizer que tenha alguma coisa errado não, é porque é comum mesmo. É convivência: vai ter que aprender a conviver com a dor, né?

    A dor que os atletas sentem ao praticar esporte deve ser compreendida como uma experiência que faz parte de uma construção subjetiva. Embora singular para quem a sente, como qualquer experiência humana traz a possibilidade de ser compartilhada, em seu significado, numa realidade coletiva – ainda mais quando estamos falando de atletas que estão sempre se refazendo no coletivo, mesmo que possuam interesses individuais na prática desse esporte. Os momentos de dor e de cansaço são sempre compartilhados com os outros, quer seja apenas para desabafar quer seja para receber algum conforto. A dor ultrapassa o fenômeno neurofisiológico: admite-se, cada vez mais, que, além dos componentes neurofisiológicos e psíquicos, existam os componentes sociais, que vão definir como se deve sentir e deixar transfigurar isso para os outros.

    Para alguns atletas, a dor tem um sentido de desafio e de superação, que os faz resistir a momentos difíceis durante os treinos e as corridas, como afirma Francimário:

    Com as dores? Rapaz, eu não sei nem explicar a você como é isso aí. Porque as pessoas quando vai fazer alguma coisa é porque suporta aquilo ali, entendeu? Pronto: você faz um treinamento forte hoje de noite, no outro dia eu não vou deixar de treinar, porque eu tô doído; aí eu vou e treino. Eu não vou deixar de terminar um trabalho: eu treino, mesmo estando doído. Finda você fazendo aquilo ali, e faz com seu corpo. A força de vontade é tão grande que você supera aquele cansaço e aquela dor; supera tudo.

    A dor, como realidade social, é simbolizada, ainda, mediante os distintos lugares sociais dos indivíduos. Dentro de uma mesma sociedade, os indivíduos têm condições sociais diferenciadas, de acordo com as clivagens sociais, entre elas as de gênero, de classe e de etnia. Pode haver maior ou menor tolerância à dor, conforme aquilo que do indivíduo se espera, segundo seu lugar social.

    Sheyla afirma que a dor é constante em sua vida de atleta:

    Mas assim... durante a corrida que eu tô sentindo muita dor, às vezes eu choro durante a corrida – ‘Nunca mais eu venho, nunca mais!’ –. É aquela de desespero, né? É um sofrimento. E, quando acaba a corrida, que passa o sofrimento, já tô pensando na próxima corrida.

    A dor, nos atletas, pode ser compreendida sob diversos ângulos. Vejamos o que comentam Josenaldo e André, respectivamene:

    Quando começava a aquecer, começava a sentir aquela dor no joelho. Então, eu parei um tempo, para me recuperar. E depois disso acabei ignorando a dor: achei que aquilo ali era só psicologicamente. Acho que às vezes você psicologicamente coloca aquilo na cabeça.

    Lógico que não é uma dor que me impede de treinar. Se fosse uma dor que eu não tivesse como suportar, eu ia ter que ficar tomando remédio ou algum analgésico pra treinar. Eu não faria isso, é uma dor suportável.

    Compreendemos, assim, que, ao se expressar em tempos e lugares diferentes, o corpo passa a representar não apenas aquilo que se revela biológico no homem, mas também as paixões, as sensibilidades, os saberes, marcas, trejeitos culturais, imposições, os prazeres, as excitações e etc.

    O esporte é uma dessas estruturas sociais que demarcam um momento histórico, com suas especificidades e valores, como ocorre, por exemplo, na construção do sofrimento e na dor corporal com que os atletas convivem no dia-a-dia ao praticarem o atletismo com o objetivo de poderem participar de corridas de longa distância, sem abrirem mão do prazer e da busca da felicidade, mesmo que para isso, tenham que sacrificar o corpo, como vimos, anteriormente, nos diversos discursos dos atletas.

    Nesse sentido, Elias (1992) traz uma contribuição importante para a compreensão do esporte e do lazer, como momentos propícios a excitação, prazer e emoções, quando diz que as atividades miméticas quebram a rotina da vida cotidiana, geralmente controlada. A atividade mimética seria um passaporte para se sair da rotina, o que só no momento do lazer é possível. Este, sob o ponto de vista do autor, corresponderia a uma esfera da vida dos indivíduos, podendo oferecer a experimentação agradável das emoções, ao mesmo tempo que se constitui numa excitação direcionada para o divertimento, experimentada em público, compartilhada com outras pessoas, e com aprovação social.

    Mesmo o esporte contemporâneo sendo configurado por essas regras e normas, para que apareça como uma prática social aceitável ele também se estabelece como um modo de se descarregarem as tensões, os sentimentos gerados no dia-a-dia, empurrando os indivíduos para o autocontrole. Na contemporaneidade, o indivíduo tem certa tendência para refrear seus impulsos de excitação. Mesmo assim, existem espaços nos quais ela pode ser exercida. Não é mais o encontro religioso que proporciona o relaxamento, a excitação; no lazer, o relaxamento está noutros espaços, noutras experiências, experimentando-se outros tipos de emoções, novos tipos de excitação.

    Observando-se bem a exposição desses atletas a situações de cansaço, de esforço nas corridas, fica explicada a profunda satisfação que eles sentem e exteriorizam. Assis comenta, de maneira contundente, essa situação vivida no esporte: “Quem participa é sofrido, mas quem participa do atletismo não quer largar fácil”. Para Sheyla, “As pessoas que participam agora do atletismo é um povo apaixonado. Quem corre é apaixonado: é um esporte muito pobre, duro, é de quem gosta mesmo”.

    Essa emoção tem forte identificação com os diversos grupos que se formam em plena contemporaneidade. O esporte é apenas um exemplo. Os atletas se unem não só para conviver nos momentos das corridas mas também para vibrar e para compartilhar emoções, na tentativa de fugir da cotidianidade social, organizada e racionalizada em demasia.

Considerações finais

    Parece-nos evidente que as atividades de lazer – sejam elas de caráter individual ou coletivo – desenvolvidas nas sociedades ditas complexas e civilizadas como a nossa têm passado por uma evolução no modo de ser, para poderem dar conta das novas formas de vida, para atenderem às necessidades emocionais, de excitação, de prazer, sentimentais, entre outras, dos indivíduos.

    Com base nas falas dos atletas e no que observamos que eles se revelaram apaixonados pelo atletismo, podemos afirmar que o prazer da prática ou do espetáculo esportivo deve-se não ao descanso e ao relaxamento proporcionados por uma situação de lazer (entendida, no senso comum sociológico, como complementar e antitética em relação ao trabalho), mas à excitação e à tensão produzidas pelo enfrentamento individual ou coletivo de corpos, pela excitação agradável, a busca do êxtase, mesmo os atletas tendo que passar por momentos de sofrimento corporal, dores e cansaços.

Notas

  1. Josenaldo, Sheyla, Francimário, Eudésio e André. Atletas entrevistados.

  2. CsO, sigla da palavra Corpo sem Órgão.

Referências

  • DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Tradução Aurélio Guerra Neto et al. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996. (Coleção TRANS, v. 3).

  • ELIAS, N. O processo civilizador. Tradução da versão inglesa Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. V.2

  • ______. O processo civilizador. Tradução da versão inglesa Ruy Jungmann Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. V.1

  • ______. DUNNING, Eric. A busca da excitação. Tradução Maria Manuela Almeida e Silva. Lisboa: Difel, 1992.

  • FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. In: ______. Cinco lições de psicanálise. Seleção de textos de Jayme Salomão. Tradução Durval Marcondes. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Os pensadores).

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