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A Lei nº 10.639/03 e a Educação Física: memórias e reflexões 

sobre a educação eugênica nas políticas de formação de professores

The Law 10.639/03 and Physical Education: memories and reflections on eugenic educational in policies on teacher training

La Ley 10.639/03 y la Educación Física: memorias y reflexiones sobre 

la educación eugenésica en las políticas de formación de profesores

 

*Professora assistente do Centro de Formação de Professores da

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, UFRB

Graduada em Licenciatura Plena em Educação Física (UCSAL)

Mestra e Doutoranda em Educação (UFBA)

Membro do grupo de pesquisa HCEL/Cnpq/UFBA e Grpo DUCA/Cnpq/UFRB

**Professora Adjunta do Programa de Pós-Graduação em Educação (UFBA)

Licenciada, mestra e doutora em Educação Física

Anália de Jesus Moreira*

nanamoreira@bol.com.br

Maria Cecília de Paula Silva**

cecilipaula@yahoo.com.br

(Brasil)

 

 

 

 

Resumo

          Este artigo apresenta reflexões sobre a historicidade da Educação Física no Brasil, considerando a validade política da Lei nº 10.639/03 e analisando as políticas educacionais voltadas para a formação de professores. Promulgada no ano de 2003 a Lei 10.639/03 obriga a inclusão do ensino da história e da cultura afro-brasileira e africana nos currículos das escolas de ensino fundamental e médio. O texto foi escrito a partir de um dos capítulos da pesquisa de mestrado finalizado em 2008, na Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia. A completude do trabalho reforçou a necessidades de aprofundamento dos estudos étnico-raciais no campo da Cultura Corporal como condição elementar para que professores e alunos de Educação Física pudessem compreender, à luz da história, os desafios propostos pela Lei 10.639/03, especialmente na formação de professores.

          Unitermos: Formação. Lei 10.639/03. Educação Física.

 

Abstract

          This article presents reflections on the historicity of Physical Education in Brazil, considering the political validity of Law No. 10639/03 and analyzing educational policies aimed at teacher training. Enacted in 2003 the Law 10.639/03 inclusion requires the teaching of history and culture african-Brazilian and African in the curricula of schools of elementary and secondary education. The text was written from one of the chapters of the Master thesis completed in 2008, the Faculty of Education, Federal University of Bahia. The completeness of the work has reinforced the need for further studies of racial-ethnic in the field of Body Culture as a condition for elementary teachers and students of physical education could understand in the light of history, the challenges posed by Law 10.639/03, especially in training teachers.

          Keywords: Training. Law 10.639/03. Physical Education.

 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 15 - Nº 146 - Julio de 2010

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Introdução

    Este artigo apresenta reflexões sobre a historicidade da Educação Física no Brasil, considerando a validade política da Lei nº 10.639/03. Esta lei foi promulgada no ano de 2003 e obriga a inclusão do ensino da história e da cultura afro-brasileira e africana nos currículos das escolas de ensino fundamental e médio. O texto foi escrito a partir de um dos capítulos da pesquisa1 de mestrado finalizado em 2008, na Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia. A completude do trabalho reforçou a necessidades de aprofundamento dos estudos étnico-raciais no campo da Cultura Corporal como condição elementar para que professores e alunos de Educação Física pudessem compreender, à luz da história, os desafios propostos pela Lei 10.639/03.

    Para isso foi necessária uma análise do percurso histórico da Educação Física brasileira, cujo recorte foi feito entre os anos de 1920 e 1940, considerando que estas ocorrências estabeleceram relações entre a educação física e as políticas e ideologias de embranquecimento2 da pedagogia, ajudando a consolidar práticas eugênicas. Tratamos, portanto, do desvelamento das relações entre Educação Física, eugenia e formação de professores, objetivando compreender as possibilidades desta área do conhecimento na aplicação da Lei nº 10.639/03.

As ocorrências históricas: a Educação Física assumindo os traços e ranços de uma educação eugênica

    O termo eugenia foi assumido, cientificamente, por Francis Galton, em 1883, no livro Inqueires into human faculty. Influenciado por obras do seu primo, Charles Darwin, Galton defendeu que a capacidade humana está mais associada à hereditariedade que à educação, e a eugenia foi, então, descrita como “ciência” que lida com todas as influências que melhoram as qualidades natas de uma raça. Nas escolas brasileiras as heranças e concepções de Francis Galton sobre eugenia e higienia foram mais largamente difundidas nas décadas de 30 e 40, quando os princípios eugênicos colaboraram para orientar as políticas estruturais de saúde e educação. Esclarecemos que essa análise de tempo procura situar o recorte metodologicamente traçado: a Educação Física e a eugenia. Diante disso, necessário se faz considerar os fatos históricos como elementos não voláteis. Embora o recorte seja das décadas de 20 até 40, por vezes, recorremos a fatos anteriores e posteriores que se ligam em termos contextuais.

    Considerados profícuos para a educação brasileira, os anos 30 e 40 são refletidos na contemporaneidade como marcos da educação pública no país. Os pilares sobre os quais foram construídos os pensamentos educacionais da época validam essa perspectiva. Ideologicamente o Estado Novo se justificou na visão macro de realidade a partir da economia, da política e do social, elevando sentimentos de antiliberalismo, antitotalitarismo e o nacionalismo, bases de contraposição do “sufrágio internacional”, principalmente nas questões relacionadas à Itália, Alemanha e Rússia e seus regimes totalitários cujos modelos não se encaixavam à realidade brasileira.

    De modo geral, o pensamento educativo do Estado Novo ambicionava um sentido amplo de função educativa, formatado não apenas nas bases pedagógicas, mas, sobretudo, em elementos coletivos como consciência cívica e moral, cujo centro era a valorização das elites intelectuais e seus papéis. Os traços e ranços da ideologia eugênica se prevaleceram nas políticas públicas e na produção de recursos pedagógicos nas décadas de 50 e 60, principalmente livros e vídeos.

    No ano de 1923 ocorreu a fundação da Liga Brasileira de Higiene Mental por Gustavo Riedel com fortes influências no sistema educacional brasileiro. O objetivo desta liga era “[...] erradicar a identidade cultural daqueles que freqüentavam as macumbas e os centros de feitiçaria”, gente considerada pelos higienistas, como “grupos sociais atrasados em cultura”. (SANTANA, 2006, p. 43)

    Educadores influentes, a exemplo do professor Fernando de Azevedo (1918), defendiam uma ligação simbiótica entre cultura atlética ou Educação Física e a eugenia. Membro da Sociedade Eugênica de São Paulo, Azevedo pregava a regeneração da raça brasileira por meio de um controle corporal, segundo SOARES, 2004, p. 120-121: “Fernando de Azevedo entendia a eugenia como uma ciência capaz de intervir no meio ambiente físico, valendo-se dos avanços conseguidos pela engenharia sanitária, para exercer uma ação higiênica, educacional e sexual”.

    Outro exemplo marcante da afirmação eugênica na educação brasileira foi dado no período entre 1933-1938, quando da criação do Instituto de Pesquisas Educacionais (IPE). A base científica do IPE se apoiava na realização de testes de inteligência, físicos e psicológicos, que serviam para apartar alunos por turmas, determinando conceitos de “fracos, fortes, brancos, negros”. A reforma Francisco Campos (1931) pode ser considerada um marco na elitização do ensino secundário. Estruturando o ensino em duas etapas: cinco anos para o fundamental e outros dois anos preparatórios para o ensino superior, com rigidez avaliativa, a reforma tinha forte impacto na “formação identitária do país”. Por meio da disciplina História, Campos evidenciava a unidade nacional, destacando a questão étnico-racial e a busca às origens do povo brasileiro. No contexto exigido pela reforma, o negro era o “dominado pelo colonizador, conforme afirma Abud, 1998.”:

    Ele sempre era tratado como mercadoria, produtor de outras mercadorias. Enquanto ao índio se conferia o estatuto de contribuição racial, os livros didáticos salientavam a importância do africano para a vida econômica do país, mas procuravam mostrar que a negritude estava sendo diluída pela miscigenação. (ABUD, 1998, p. 3)

    No período do Estado Novo, 1937-1945, as práticas elitistas na educação foram ampliadas por meio da reforma Gustavo Capanema que demarcou os tipos de educação e cultura no país a partir das representatividades de classes, cultas e subcultas, pobres e ricos. Um dos marcos da reforma Capanema foi a instituição de educação intelectualizada e educação profissionalizante.

    O Brasil foi o primeiro país sul-americano a ter um movimento eugenista organizado, a partir da criação da Sociedade Eugênica de São Paulo (1918), responsável pelos primeiros trabalhos sistematizados na área. Nome central dessa sociedade é do médico Renato Ferraz Kehl. Entre 1917 e 1937, Kehl foi ativo no movimento, publicou livros e fez palestras em todo o país. Em seu livro de 1923, intitulado “Por que sou eugenista”, Kehl afirmou ser necessário “instruir, eugenizar e sanear”. O movimento eugênico atuou junto à saúde pública e ao saneamento, bem como, à psiquiatria e à “higiene mental”, ao longo das décadas de 1920 e 1930.

    Sobre a eugenia no referido período, é preciso dimensionar seus efeitos na contemporaneidade: segundo D’Avila (2006, p. 93), “A Ciência da eugenia forneceu uma ponte entre a ideologia racial e a cultura popular, definindo uma cultura de pobreza”. Reitero o elo da diretriz eugênica nos anos de declínio da era Vargas, considerada “[...] tão forte que resistiu por mais tempo do que o apoio oficial à ciência que a orientou”. O autor conclui que, “[...] embora a eugenia tivesse perdido a legitimação, após o fim da Segunda Guerra Mundial, as instituições, práticas e pressuposições que ela criou persistiram”. (DÁVILA, 2006, p. 93)

    Pensamos que a eficácia da ideologia eugênica encontrou ressonância entre as instituições escolásticas e as práticas políticas e decretou para a epistemologia afro-brasileira uma posição fronteiriça entre a acomodação e a resistência. Consideramos, deste modo, que um dos grandes debates provocados pela Lei nº 10.639/03 no ensino da Educação Física se detém no problema do percurso epistemológico dessa área.

    A Educação Física brasileira tem sua origem ligada às instituições militares e à classe médica e essa relação se assumiu como simbiótica, também, na pedagogia. Pregando a educação do corpo e tendo como modelo de perfeição um físico saudável e equilibrado, organicamente, a origem da Educação Física associa-se a médicos higienistas que buscavam modificar os métodos de higiene da população. Essas diretrizes assumiram importância vital na construção da matriz racista e na ideologia racial brasileira, formulada e difundida no século XIX. Sobre esse aspecto, Oliveira, 2004, deixa entender que as passagens históricas mais importantes da Educação Física no Brasil revelam a estreita relação entre Educação Física, adaptação e pensamento dominante. Diz-nos este autor que:

    Um dos exemplos mais enfáticos é o da formação de associações civis destinadas a “prestar culto à pátria”. Soam bem significativos os modelos do tipo “Juventude Hitlerista”, “Juventude Brasileira”, “Mocidade Portuguesa”, “Juventude Comunista”, etc., criados na primeira metade do século. Estas instituições tinham, oficialmente, a finalidade de proporcionar educação cívica, moral e física aos cidadãos. (OLIVEIRA, 2004, p. 98).

    Faz-se oportuno pontuar que a eugenia no Brasil considerou a Educação Física como estratégica na difusão e organização de suas práticas. Posso sintetizar o pensamento eugênico descrevendo, brevemente, a realização no Rio de Janeiro, em 1929, do I Congresso Brasileiro de Eugenia onde se firmou a idéia de que a Educação Física ajudaria a “regeneração e o revigoramento da raça brasileira”:

    Apresentando o tema “Da educação pysica com o fator eugênico e sua orientação no Brasil”, o Dr. Jorge de Moraes registra as seguintes conclusões: 1º - A bem da saúde e desenvolvimento da raça, o 1º Congresso Brasileiro de Eugenia appella para a classe médica a fim de aprofundar a cultura nacional no que diz respeito às bases e orientações scientíficas da Educação Physica a começar pela escolha do methodo apropriado aos brasileiros e seu clima. (SOARES, 2004, p.119).

    As bases da construção histórica da Educação Física favoreceram aos interesses eugenistas. Afora o processo pedagógico, atentamos para o fato de que os métodos francês e sueco de ginástica, largamente difundidos no Brasil, foram eficazes para os ideais de corpo mecânico e disciplinado. A esportivização, por sua vez, abraçava a idéia de superioridade branca, apoiada na imagem helênica corporal mitologicamente ambicionada. “Deste modo, a história da disciplina Educação Física aponta para um distanciamento do corpo negro, na medida em que o corpo idealizado pela Educação Física partiu da imagem corporal dos gregos, portanto de um corpo branco”. (MATTOS, 2007, p. 11). Portanto, a Lei nº 10.639/03 obriga a problematização do termo raça no ambiente escolar. Indica que lidar com a palavra se torna especialmente relevante quando associamos o termo à complexidade dos seus significados e representações para “desconstruir” estereótipos e criarmos imagens positivas do grupo étnico.

    Consideramos oportuno nos referir à raça3 para denunciarmos o uso da palavra em seu sentido puramente biológico no escamoteamento dos debates e discursos quando o assunto são as diferenças culturais, os abismos sociais e as identidades étnico-raciais. Em outro ponto, queremos explicitar o ‘corpo’ numa perspectiva cultural e identitária para favorecer a compreensão de totalidade humana, subjetiva e criativa, percebendo a cultura corporal como afirmativa e produtora de sentidos. Esse perfil valida a busca da Educação Física de uma posição legítima que não seja a de subalternidade epistêmica e curricular. Esta constatação indica que a lei é impactante nos conteúdos da Educação Física por valorizar questões relevantes da nossa cultura local, a exemplo das manifestações da capoeira, o samba-de-roda e o maculelê, por estes comportarem elementos identitários que vão além de sua validade cênica. Por tais considerações, “essa corporeidade deveria refletir-se com alteridade na ação pedagógica numa cidade de maioria afrodescendente a exemplo da capital Salvador”, é o que diz Mattos, 2007, p 56, sustentando, entretanto, que “isto não ocorre”. Para esta autora: [... o que noto é uma aceitação deslocada de identidade voltada para o imaginário das presenças folclóricas e artísticas, em determinadas épocas do ano. (MATTOS, 2007, p. 56).

    A partir deste pensamento de Mattos, sustentamos que formular conceitos de cultura na escola sugere uma busca sobre construção identitária e um debate sobre relações sociais no plano das hegemonias. Assim, falar em identidade remete, também, aos contextos sócio-históricos e, no caso especial de Salvador, revela uma preocupação com as invisibilidades geradas pelo fator da hierarquização racial repercutidas no tempo presente em forma de desigualdades. Por este caminho, nos fererimos à cultura como prática de significação resultante das ações sociais do sujeito (HALL, 2007).

    Refletimos em Gramsci (1981, p. 37) quando este autor se reporta ao entrelaçamento entre “hegemonia” e sua materialização. Diz Gramsci que “[...] a relação pedagógica não pode ser limitada às relações especificamente escolásticas através das quais as novas gerações entram em contato com as antigas e absorvem as suas experiências e os seus valores historicamente necessários”. Este pensamento me instiga a perceber essa relação de hegemonia em outras esferas sociais, conforme o próprio Gramsci:

    Esta relação existe em toda a sociedade no seu conjunto e em todo indivíduo com relação aos outros indivíduos, bem como entre camadas intelectuais e não intelectuais, entre governantes, entre elites e seguidores, entre dirigentes e dirigidos, entre vanguardas e corpos de exército. (GRAMSCI, 1981, p. 37)

    Por estes aspectos reflexivos, observamos que a questão identitária contemporânea debruça-se sobre a problemática das desigualdades sociais da população negra. Compreendemos que essas constatações encontram ressonâncias no enfraquecimento dos critérios identitários favorecendo a prática das relações hierárquicas raciais e crença da mestiçagem como ideais de identidade nacional, cordial e valorativa. A esse respeito é preciso considerar o que sustenta Hall (2007, p. 91). O autor explicita as formas de atuação da cultura nacional, definindo-a como “[...] discurso, um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos”. Compreendemos, assim, que é preciso desconsiderar a dimensão de cultura nacional como unificada e ambígua entre passado e futuro, voltando o olhar para as identidades na dimensão de suas representações e deslocamentos.

    Consideramos que tais deslocamentos e representações são provocados, também, pela globalização definida como “complexos processos e forças de mudanças”, (HALL, 2007). Dessa forma, diz o autor que a globalização distancia a sociedade da idéia clássica de sistema fixado, substituindo este conceito pelo dinamismo da vida social do tempo e do espaço. Relacionando este aspecto, Hall pergunta: “[...] onde está, pois, a necessidade de mais uma discussão sobre ‘identidade’?”, “Quem precisa dela?”. Para o autor, é preciso uma abordagem conceitual estratégica e posicional para identidade, fugindo do caráter relativamente estabelecido, comportado na semântica oficial do termo (HALL, 2007, p. 108). Ao mesmo tempo, reforça a necessidade de avaliarmos as identidades, porquanto construídas dentro e não fora do discurso. Conclui Hall (2007, p. 111-112) que “[...] identidade se aproxima do ‘ponto de encontro’”, o ponto de sutura. Por um lado, “[...] os discursos e as práticas que tentam nos interpelar, nos falar ou nos convocar, para que assumamos nossos lugares como sujeitos sociais de discursos particulares” e, por outro lado, “[...] os processos que produzem subjetividades, que nos constroem como sujeitos aos quais se pode falar”. Entendo que assim o autor destaca o processo de subjetivação ou identificação na relação entre sujeitos e as “práticas discursivas”, estas últimas traduzidas por Hall (2007, p. 105) como posição conceitual de “identidade”.

Qual é o lugar a Educação Física na difusão e aplicação da Lei nº 10.639/03?

    Para responder a esta pergunta, necessário se faz pontuar algumas passagens históricas que demarcam a Educação Física como componente curricular obrigatório no currículo da educação básica e seu campo de estudo, a cultura corporal ou a cultura do movimento humano.

    A instituição das Diretrizes Gerais para a Educação Física e o Desporto, em 1980, buscou primeiramente afirmar a obrigatoriedade da disciplina na escola, mantendo o prisma da fragmentação do homem em corpo e alma, reduzindo a prática à função ou necessidade biológica. O Conselho Federal de Educação, entretanto, deixou a cargo dos estados a reflexão sobre as diretrizes e os planos gerais, possibilitando a escola discussões sobre suas peculiaridades, a partir das funções e dos objetivos da Educação Física. As funções gerais (biológica, cinestésica e integradora ou sócio-educacional) praticamente definiram os objetivos da disciplina. Kunz (2004) lembra da importância de situarmos a Educação Física no “lócus social”. Para o autor, a Educação Física é “[...] uma prática influente na formação/condicionamento do sentido/significado do movimento humano, portanto a prática não deveria contribuir apenas para ‘formação/informação do sentido comparativo do movimento humano’”. (KUNZ, 2004, p. 165)

    Relacionando tais objetivos com a difusão da Lei nº 10.639/03 e a educação étnico-racial, sugerimos uma reflexão sobre a dimensão de educação como processo real por meio do qual se possam perceber as relações interacionais previamente estruturadas e afirmadas nas funções da escola. Compreendemos a educação como mediadora de um contexto social determinado, que relaciona e reflete seu tempo e contextos ou para se tornar um dos instrumentos de transformação social. Percebemos a práxis pedagógica como um lugar de reflexão sobre teoria e práticas sócio/educacionais mediadas pela cultura e pelo seu contexto sócio-histórico. Nesse sentido, pede-se uma postura pedagógica como “ação comunicativa” (KUNZ, 2004, apud HABERMAS, 2003) capaz de valorizar o sentido e os objetivos das ações. Se, na contemporaneidade, a grande luta da Educação visa ao enriquecimento da práxis na perspectiva da quebra de preconceitos e do respeito às origens, identidades e culturas, a grande tarefa, pois, da Educação Física, enquanto área de conhecimento é lutar para ser potencializada no processo. Isso se dará por meio de uma “[...] busca de solução para as antíteses reais nas tendências existentes no percurso epistemológico.” (SILVA, M., 2003, p. 140-141). Dentro dessa expectativa, a Educação Física deve valorizar-se crítica para contribuir com a realidade educacional do país, conforme discorre SILVA,M,2003:

    O resgate da cultura corporal do povo, de sua linguagem de movimentos, de sua potencialidade criadora, crítica e reflexiva aliada à construção da escola publica unitária para todos, é um dos problemas básicos da sociedade brasileira. (SILVA, M., 2003, p. 140-141).

    Diante da obrigatoriedade da Lei nº 10.639/03 e a conseqüente tarefa de analisar as possibilidades teórico-metodológicas para a educação física, consideramos relevante pontuar algumas mudanças neste campo do saber e que merecem recorte na década de 70, tempo de mudanças mais concretas na formação de profissionais da área. Segundo Kunz, 2004 p 129-130, a fase foi marcada pela [...] substituição dos profissionais militares e ex-atletas na escola, dando lugar aos formados pelas escolas de Educação Física”. Entretanto, a nova disposição não acabou com as influências militares, “[...] especialmente na visão de muitos diretores de escolas. Pode-se observar isso quando os profissionais da Educação Física são convocados a disciplinar o aluno pelo condicionamento físico.” (KUNZ, 2004, p. 129-130)

    Dessa forma, percebo que a Educação Física tem, em relação à Lei nº 10.639/03, o desafio de desempenhar entre os diversos papéis e especificidades, o de superar o solipsismo, visando a educação emancipatória. Nota-se, na atual produção do conhecimento em Educação Física, o contraponto do pensamento educacional dominante que isola a cultura do poder. Entendo que esse isolamento, conforme Giroux, (1978, p. 75) “[...] despolitizou a cultura, transformando-a em objeto de veneração”. “Mas, especificamente, não há tentativa, nessa visão, de entender a cultura como princípios de vida, experienciados e compartilhados, característicos de diferentes grupos e classes, e oriundos de relações desiguais de poder e de campos de luta”. (GIROUX, 1978, p. 75)

    Discorrer sobre significados, conceitos e representações da Educação Física obriga-nos a refletir sobre seu objeto e sua localização como área do conhecimento. Em 1999, Valter Bracht publicou Educação Física e Ciência: cenas de um casamento (in) feliz4, onde discorre sobre o percurso epistemológico da Educação Física. Para o autor “[...] a Educação Física não é uma ciência e tampouco a ambição de tornar-se ciência resolve os problemas das crises de identidade da área”. Ao afirmar ser estéril a discussão sobre ciência e não ciência, Bracht (1999) nos convida a refletir sobre ideologias embutidas no consenso sobre ciência. “A chamada Educação Física atual é filha da modernidade”. Isso significa que [...] ela surge num quadro social em que a racionalidade científica se afirma como forma correta de ler a realidade, em que o Estado burguês se afirma como forma legítima de organização do poder e a economia capitalista, baseada na indústria, emerge e se consolida. (BRACHT, 1999, p. 28)

    Dessa forma, reitera o autor que a Educação Física permanece influenciada pelo pensamento científico no qual vale o seguinte princípio: “[...] exercitar cientificamente o corpo, ou exercitar o corpo de acordo com o conhecimento científico a respeito” (BRACHT, 1999, p. 28). E se não é ciência, embora as ciências por meio de seus métodos a auxiliem enquanto área de conhecimento, então o que vem a ser Educação Física? Bracht (1999, p. 28) pondera que a “Educação Física está interessada nas explicações, compreensões e interpretações sobre objetivações culturais do movimento humano fornecidas pela ciência, com objetivo de fundamentar sua prática”. Já, Oliveira (2004, p. 34) defende que o percurso histórico de área confere à Educação Física identificações com ciências humanas e sociais, embora permaneça carente de afirmação científica. Concluindo, pensamos que identificada com as ciências humanas e sociais, a Educação Física assume uma postura pedagógico-social que lhe confere dignidade insuperável, apesar de, nessa ótica, carecer daquelas “certezas científicas”. Castellani Filho (1998, p. 54) manifesta preocupação em definir cultura corporal para, depois, discorrer sobre a ação pedagógica da Educação Física:

    Trocando em miúdos, o que queremos dizer é o seguinte: integrante da cultura do homem e da mulher brasileiros, a cultura corporal constitui-se como uma totalidade formada pela interação de distintas práticas sociais, tais como a dança, o jogo, a ginástica, o esporte que, por sua vez, materializam-se, ganham forma, através das práticas corporais. Enquanto práticas sociais refletem a atividade produtiva humana de buscar respostas às suas necessidades. Compete, assim, à Educação Física, dar tratamento pedagógico aos temas da cultura corporal, reconhecendo-os como dotados de significado e sentido porquanto construídos historicamente. (CASTELLANI FILHO, 1998, p. 54).

    Concluimos que a Educação Física, embora esteja incluída como área de Saúde, associa-se também às ciências humanas e às ciências da educação na medida em que sua multiplicidade de ação quer seja na saúde, quer seja na educação, assume a dimensão pedagógica.

Corpo, movimento humano e cultura: campos de estudos da Educação Física, emergências na formação de professores    

    Neste instante em que se debate a representatividade da Educação Física face ao advento da Lei 10.639/03, torna-se primordial esclarecer historicamente o percurso de corpo e cultura no contexto de sociedade brasileira para compreender a importância desta área do conhecimento no estudo das relações étnico-raciais.

    Foucault (1987), analisando a trajetória do corpo como objeto e alvo do poder, a partir do século XVII, revela pontos de uma reflexão que continua atual. Diz Focault que a visão cartesiana estruturou o corpo em duas fatias, a anátomo-metafísica e o técnico-político, com fins de controlar e corrigir as operações corporais: “Dois registros bem distintos, pois se tratava ora de submissão e utilização, ora de funcionamento e de explicação: corpo útil, corpo inteligível” (FOUCAULT, 1987, p. 126)

    É oportuno observar também o ponto de vista de Silva. M. (2003). Esta autora ao investigar as idéias de corpo e sociedade no século XIX, por meio do estudo de três teses da Escola de Medicina do Rio de Janeiro, ressaltou a definição médica para o corpo e que traduzia a idéia de que a origem da Educação Física no Brasil, inscrita pelos intelectuais da época, comportava a ideologia do controle do corpo social e coletivo. Isso porque [...] o conceito corporal pretendido pela categoria médica ambicionava pelo discurso da saúde o controle do corpo individual e coletivo, através do seu governo e organização. E este foi o papel designado para a Educação Física escolar. (SILVA, M., 2003, p. 105)

    A autora analisou as ligações do discurso médico do século XIX com a Educação Física e percebeu, nas três teses, que as idéias de controle social assumiram características de criação cultural da época. Conclui que, “[...] as manifestações da cultura corporal dos negros e das classes pobres foram expropriadas pela historiografia objetivamente para abrandar o escravismo”. Em prol de

    [...] uma historiografia que vendia a idéia de um escravismo brando, de um negro amorfo, para ‘demonstrar’ que a História do Brasil se desenvolveu sem conflitos; sem oprimidos e opressores, com diferenças naturais e não econômicas e sociais. (SILVA, M., 2003, p. 122)

    Por esse ângulo, afirmamos que os ideais de cordialidade e mito de democracia racial foram estabelecidos nos pensamentos acadêmicos e repercutidos culturalmente nas instituições de ensino e políticas públicas. Desta forma percebemos que as representações de corpo negro e corpo indígena comportadas na escola e na educação física seguem ideologias dominantes que historicamente segregaram saberes destas culturas.

    Com esta suspeição deixamos evidente que o estudo das relações étnico-raciais na educação física deve conduzir a uma reflexão sobre corpo e poder e desvelar até que ponto estas relações influenciaram na produção de estereótipos racistas. Defendemos também que corpo, movimento e cultura como campos de estudos da educação física são temáticas que, potencializadas dentro e fora da escola, podem colaborar para o reconhecimento das desigualdades sociais, culturais e educacionais produzidas pelo fenômeno do racismo, assim como estancar seus efeitos que são contemporâneos.

    Pensamos que é preciso avançar na discussão sobre a Lei Nº 10.639/03, dimensionando a tensão entre sua aplicabilidade e suas propostas, pois entendemos que “desconstruir” conceitos, reparar culturas e combater preconceitos demandam uma luta política vigorosa que precisa ser exercitada na escola em forma de interesse comum e interdisciplinar. Tal decisão se edificará também por meio de um processo amplo de negociação política, envolvendo a escola, a comunidade e a sociedade. Diante desta compreensão, atentamos para alguns desafios propostos pela Lei 10.639/03, especialmente no ensino da Educação Física e na formação de professores da área.

    É preciso suscitar corpo e movimento como criadores de sentidos e significados. Afirmamos que sentidos e identificações de corpo e movimento sofreram forjamentos históricos que precisam ser problematizados num país onde é grave a desigualdade social e racial. Entendemos que tais forjamentos foram baseados nas ideologias de branqueamento, salientadas na cor da pele e no ideal de corpo e aparência, resultando na dificuldade que temos em corporificar valores identitários e estéticos de matriz étnico-racial negra e indígena e apropriá-los como civilizatórios. Observamos que é preciso considerar corpo no contexto de sociedade como elemento que não se resume à biologia, fisiologia ou mecanicidade de movimentos, e, sim, como dotado de identificações culturais e étnico-raciais.

    Importa academicamente e culturalmente compreender a configuração da corporalidade brasileira e baiana na matriz cultural africana e desta forma, propiciar discussões mais aprofundadas sobre a ligação entre corpo, ancestralidade, educação e cultura. Importa também, num plano teórico-metodológico interdisciplinar fazer com que estas considerações repercutam de forma mais efetiva na escola. Justificamos este último desejo como uma sugestão para que o estudo da cultura corporal na escola básica e na formação de professores se torne significativo e contribua para fazer avançar a Lei nº 10.639/03.

    É preciso superar a visão pedagógica conteudista, predominantemente “branquela”5 ·, buscando visibilizar as manifestações que afirmam mais fortemente a cultura afro-brasileira e indígena, a exemplo da capoeira, maculelê e samba-de-roda. Isso decorre da percepção de que a Educação Física encontra em seu percurso histórico dificuldades para associar o seu objeto de investigação à questão étnico-racial.

    Não tratamos apenas de defender mais conteúdos nas aulas de Educação Física ligados a cultura afro-brasileira ou indígena. Defendemos que estes conteúdos ressignificados ou não, sejam abordados de forma a contextualizar e legitimar sua validade civilizatória.

    Sugere este trabalho observar o estado de ‘interculturalidade crítica’6 na prática da Educação Física como forma de enfrentar os desafios de implementação da lei 10.639/03 na medida em que podem estas estratégias tornar equânimes os valores das manifestações da cultura corporal na escola.

    Por fim, não conceber como de interesses apenas cordiais as dificuldades encontradas para a afirmação da Lei nº 10.639/03 nas escolas. Do contrario, afirmamos que os entraves estão ligados às repercussões que essas culturas, negra e indígena, têm na sociedade, sendo que a escola, apesar de ser um núcleo social poderoso, apenas legitima tais respostas. Historicamente, esse processo de legitimação obedeceu às hegemonias e fenômenos que edificaram as diferenças desiguais no campo social, econômico e cultural atingindo especialmente as populações negras e indígenas.

Notas

  1. Trata-se da pesquisa “A Cultura Corporal e a Lei nº 10.639/03: um estudo sobre os impactos da lei no ensino da Educação Física nas escolas de Salvador, finalizada em 2008, na Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia, sob a orientação da Profª Drª. Maria Cecília de Paula Silva.

  2. Refere-se ao processo composto por metolodogia, abordagens e ideologias implantado no Brasil tendo como bases referenciais eurocêntricos no campo da Educação e que influenciaram na formação de professores no Brasil.

  3. Complexidade existente nas relações entre negros e brancos no Brasil. Não se refere, de forma alguma, ao conceito biológico de raças humanas usado em contextos de dominação.

  4. Nesta obra, Valter Bracht questiona se a Educação Física é de fato,uma ciência, quando é ciência, ou, se já podemos afirmar tratar-se apenas de uma disciplina científica, insuficiente de rigores na definição de objeto, método e linguagem próprios.

  5. Branquela: termo superlativo do vocabulário popular, utilizado, aqui, para traduzir uma predominância indisfarçável de cor; metáfora, não tem sentido pejorativo.

  6. Refiro-me conceitualmente a dimensão de pós-colonialidade do termo em contraposição a domínios hegemônicos.

Referências

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