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Corpo, cinema e esporte: visibilidades e sensibilidades

Cuerpo, cine y deporte: visibilidades y sensibilidades

 

Professor Assistente da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Doutorando vinculado ao PPGCOM/UFPE

(Brasil)

Allyson Carvalho de Araújo

allyssoncarvalho@hotmail.com

 

 

 

 

Resumo

          O texto dedica-se a refletir a condição do expectador do cinema partindo de duas considerações: a admissão da experiência corporal do sujeito apreciador como condição para o exercício da função especular junto ao mundo, bem como a admissão da conjuntura específica na apreciação cinematográfica como formas claras de modificação de sensibilidade. Utilizando-se de algumas produções cinematográficas que tematizam o esporte como recurso analógico para o debate, o texto também busca pensar sobre as formas de apropriação do esporte via sensibilidade corporal, e indica como a transformação da sensibilidade perceptiva em ambiente de cinema corrobora para a significação do esporte.

          Unitermos: Esporte. Cinema. Estética

 

Artigo apresentado na disciplina “Teoria do cinema”, junto ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFPE

 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 15 - Nº 145 - Junio de 2010

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1.     O corpo como condição perceptiva...

    O olhar do sujeito é investigação, mecanismo sensível e intrigante que se sacia pela estesia corporal e compreensão do que lhe cerca. A habilidade de visão possível a partir da estrutura ocular humana ratifica a capacidade de alcance do corpo para o horizonte que o circunda. Contudo, não basta a compreensão da captação de informação luminosa/ visual por meio das operações motoras, ópticas e químicas necessárias, ponderamos que exista um movimento de reciprocidade do olhar humano com o mundo, em sua concretude e representação.

    O argumento central que trataremos nestas próximas linhas versa sobre a disposição do corpo humano em envolver e sensibilizar-se com o mundo. Partindo da tese que toda relação do homem com o mundo é estesiológica (MERLEAU-PONTY, 1999), refletiremos a atualização deste pensamento para as condições do cinema, considerando as especificidades desta experiência.

    Considerando o cinema como linguagem que constrói uma representação que envolve o sujeito de forma particular, construindo noções de espaços e tempos, e deslocando a percepção da realidade do sujeito (AUMONT, 1995), argumentamos um favor do entrelaçamento sensível entre sujeito e objeto apontada da fenomenologia de Merleau-Ponty (2002). Este autor, ao refletir sobre a linguagem, já apontava a existência de um momento de entrelaçamento entre o sujeito e o objeto ao qual este se debruça. Usando o exemplo da leitura, Merleau-Ponty relata:

    A medida que sou cativado por um livro, não vejo mais as letras na página, não sei mais quando virei a página; através de todos esses sinais, de todas essas folhas, viso e atinjo sempre o mesmo acontecimento, a mesma aventura, aponto de não mais saber sob que ângulo, em qual perspectiva me foram oferecidos... (MERLEAU-PONTY, 2002, p. 31)

    Pensamos que, de modo semelhante, ocorre com o sujeito na sala escura. O agregamento de linguagens possíveis na construção fílmica envolve o sujeito, ofertando-o uma gama de elementos sedutores aos quais o espectador não consegue permanecer indiferente. O envolvimento aponta-o para a entrega erótica ao devir apresentado por feixes de luzes alocados em ambiente escuro.

    O “escuro” não é apenas a própria substância do devaneio (no sentido pré-hipnótico do termo); ele é também a cor do erotismo difuso; por sua condensação humana, por sua ausência de mundanismo (contrária à “aparência” cultural de toda sala de teatro), pela prostração das posturas (quantos espectadores, no cinema, se deixam escorregar na poltrona como uma cama, o casaco ou os pés jogados sobre o assento anterior), a sala de cinema (de tipo comum) é um lugar de disponibilidade. E é a disponibilidade (mais ainda que a paquera), a ociosidade dos corpos, que melhor define o erotismo moderno [...] É neste escuro urbano que se trabalha a liberdade do corpo; este trabalho invisível dos afetos possíveis emana de um verdadeiro casulo cinematográfico. (BARTHES, 1980, 122)

    Pelo escuro da sala, por sua ausência de mundanismo, pela prostração das posturas, a sala de cinema seria um local de disponibilidade. Quando vamos ao cinema, o fazemos a partir de um ócio, de uma disponibilidade, de uma desocupação, mas também pelo desejo e pela procura. A relação estabelecida através da visão permite o a entrega do sujeito em exploração ao mundo.

    É a sala escura, este ambiente diferenciado, que sedia as impressões do cinema que promove também uma modificação na experiência do olhar. A disponibilidade dos corpos visíveis na paisagem, os planos que sugerem o foco de atenção de meu olhar e a mixagem da seqüência de imagens, dando a idéia de movimento, ao som são exemplos que alterações nas formas de ver o mundo.

    Walter Benjamin analisou demoradamente a maneira como a fragmentação do campo visual, provocada pela modernização, contribuiu para moldar uma nova experiência da visão no decorrer no século XIX [...] As experiências sobre os fenômenos de persistência retiniana traçam o caminho para uma nova concepção de visão. Dado que cores e imagens podem continuar sendo percebidas pelo olho mesmo que qualquer referência exterior já tenha desaparecido, deve-se concluir que o corpo tem a capacidade fisiológica para produzir fenômenos que não têm correspondente no mundo material. (SUQUET, 2008, p. 513)

    Não contando unicamente com os elementos do mundo material é a experiência corporal que é alterada. Não sendo somente a textura do mundo concreto que realiza no corpo a experiência no sujeito, consideramos que esta última pode também ser constituída pela sensibilidade a fenômenos construídos artificialmente pelos feixes de luzes, mesmo que como representação do real, tal como o caso do cinema.

    A associação do som à imagem, comum ao mundo concreto, por exemplo, é potencializado na situação de cinema, causando inclusive uma ambigüidade na percepção do sujeito, conforme fala Merleau-Ponty.

    A ambigüidade da experiência é tal que o ritmo auditivo faz imagens cinematográficas se fundirem e dá lugar a uma percepção de movimento, quando sem apoio auditivo a mesma sucessão de imagens seria muito lenta para provocar o movimento estroboscópico. Os sons modificam as imagens consecutivas das cores: um som mais intenso as intensifica, a interrupção do som faz vacilar, um som baixo torna o azul mais escuro ou mais profundo. A hipótese de constância, que cada estímulo atribui uma e apenas uma sensação, é tanto menos verificada quanto mais nos aproximamos da percepção natural. (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 307)

    Tanto no mundo concreto quanto na experiência com a representação do cinema a relação apreciativa pode-nos proporcionar estranheza, outras vezes, bem querer, alegria, comoção, curiosidade, afeto... Modificam-se as formas de acesso ao longo do tempo, mas, de certo que, o olhar nos proporciona, sempre, novas formas de observar o que é demasiado visto, e assim (re)conhecer o mundo para novamente se encantar.

    A compreensão, neste momento, indica a ação de olhar como um ato eminentemente humano que parte da intencionalidade do sujeito ao focar sua atenção em algo que o sensibiliza. Desse modo,

    Ver um objeto é ou possuí-lo à margem do campo visual e poder fixá-lo, ou então corresponder efetivamente a essa solicitação, fixando-o. Quando eu o fixo, ancoro-me nele, mas esta parada do olhar é apenas uma modalidade de seu movimento: contínuo no interior de um objeto a exploração que, há pouco, sobrevoa-os a todos, com um único movimento fecho a paisagem e abro o objeto. [...] Ver é entrar em um universo de seres que se mostram, e eles não se mostrariam se não pudessem estar escondidos dos outros ou atrás de mim. Em outros termos: olhar é vir habitá-lo e dali apreender todas as coisas segundo a face que elas voltam para ele. Mas na medida em que também às vejo, elas permanecem moradas abertas ao meu olhar e, situado virtualmente nelas, percebo sob diferentes ângulos o objeto central de minha visão atual. (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 104-105)

    A intenção de olhar que pensamos, como elemento que nos faz habitar o mundo, não é aquele que analisa formas e medidas qualitativamente, tratando de cores e geometrias para convencer-se do conhecimento do objeto como projetou Descartes (BOSI, 1999). O entendimento do olhar aqui tratado procura considerá-lo como uma atitude intencional de conhecimento, um ato de busca instigado por nossas propensões e afinidades.

    Barthes (1980) fala da imagem fílmica como sendo um logro perfeito (engano proposital) que leva o espectador ao mundo de fantasia, que possibilita ao espectador uma sensação de hipnose, ou seja, a imagem seduz e prende de maneira tão cativante o público, que o distancia da vida cotidiana. Como logro perfeito, o que nos sensibiliza na apreciação fílmica afirma-se como conhecimento, como proprietário de sua verdade, para o apreciador.

    Buscamos refletir a situação de cinema do ponto de vista do espectador do cinema, pensando as formas como ele se relaciona com a representação fílmica, bem como refletir como o sujeito significa o que lhe é apresentado. Acreditamos que

    A comunicação contemporânea mostra a relação intrínseca entre a experiência e os modos de significação, revelando, ao mesmo tempo, o caráter sócio-histórico e a dimensão poética – formadora e estruturadora – de nossa própria percepção do mundo sensível, posto que esse “mundo” com que nos deparamos em nossas vidas revela-se um ambiente continuamente transformado por nossa atuação mesma. (VALVERDE, 2007, p. 242)

    Entre a experiência do cinema e a significação da representação elencamos para como objeto de debate o esporte, especialmente a sua representação fílmica em diálogo com a situação com a apreciação. Neste sentido nos deteremos a refletir sobre esta manifestação das práticas corporais a partir da produção Norte-americana de 198, sob a direção de Hugh Hudson, intitulado “Carruagens de fogo” que será utilizado como recurso análogo para pensar as modificações na percepção em situação de cinema, bem como as aplicando para a significação do esporte.

2.     O cinema e a percepção: representações que significam

    Gostaríamos de tratar a percepção a partir das considerações do filósofo francês Maurice Merleau-Ponty. Não aleatoriamente, a escolha se dá pelo investimento apurado do autor ao tratar de questões centrais na filosofia do século XX destacando questões da existência, do corpo, da sensibilidade e da percepção. No pensamento de Merleau-Ponty (1999) a percepção é direta, pois em seu pensamento, na percepção já existe a significação. O argumento é que algo só existe para o sujeito se passar a fazer parte do seu mundo vida, se for experimentado, e, por agregar-se ao seu mundo, resgatar experiências anteriores para significar o novo. Outra face do pensamento de Merleau-Ponty (IDEM) é que toda relação do homem com o mundo é estesiológica, ou seja, se dá por meio do corpo, dos sentidos, por meio da estesia. E por ultimo, gostaríamos de dar relevo a mais um argumento deste mesmo autor, ao apontar a comunicabilidade dos sentidos como regra para a percepção do mundo, o que ele denomina de sinestesia.

    Partindo dessas três teses do filósofo francês inquieta-nos saber se estas podem ser atualizadas para a situação do cinema. As modificações perceptivas que derivam da Modernidade estão no escopo do debate acadêmico na teoria do cinema, sobretudo os de abordagem estética. Benjamin (1994) em suas considerações a partir do aparelho técnico presente no cinema já afirmava que

     O filme serve para exercitar o homem nas novas percepções e reações exigidas por um aparelho técnico cujo papel cresce cada vez mais em sua vida cotidiana. Fazer do gigantesco aparelho técnico de nosso tempo o objeto das inervações humanas – é essa a tarefa histórica cuja realização dá ao cinema o seu verdadeiro sentido. (BENJAMIN, 1994, p. 174)

    Outros autores como Aumont (1995), Barthes (1980), Baecque (2008) expões suas impressões sobre o espectador de cinema. As posições apostam nas diferenças que a situação de cinema propõe ao espectador, sugere-se uma aproximação com um estado hipnótico (BARTHES, 1980) e/ou um estado de submotricidade e superpercepção (BENVENISTE, 1983).

    Em nosso olhar a ênfase que, nos debates da apreciação cinematográfica, desdobram-se no tema da visão e da audição, longe de ser inapropriada, não abre possibilidade de pensar o corpo do expectador como unidade perceptiva. A postura acadêmica, ao analisar o espectador de cinema a partir de sua imobilidade e de seu silêncio, postula um expectador passivo e não dialoga como uma compreensão ampliada de movimento, de intenção e forma de se relacionar com o mundo. Segundo Merleau-Ponty,

    A visão e o movimento são maneiras específicas de nos relacionarmos a objetos, e, se através de todas essas experiências exprime-se uma função única, trata-se do movimento de existência, que não suprime a diversidade radical dos conteúdos porque ele os liga, não os colocando todos sob a dominação de um “eu penso”, mas orientando-os para a unidade intersensorial de um “mundo”. (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 192)

    A partir desta consideração, não é indicado trabalhar sob a lógica da oposição entre sentidos, já que estes operam articuladamente em função da percepção do mundo. Se suas especificidades estão claras para fins de análise, sua segregação torna-se falácia no processo de apropriação do mundo pelo homem. Ocorre que, pela lógica científica de enquadrar e provocar distinções operativas entre seus objetos de análise, os sentidos foram entendidos classicamente como unidades estanques com finalidades distintas quando, na verdade, “a percepção sinestésica é a regra, e, se não percebemos isso é porque o saber científico desloca a experiência e porque desaprendemos a ver, a ouvir e, em geral, para deduzir de nossa organização corporal e do mundo tal como o concebe o físico aquilo que devemos ver, ouvir e sentir (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 308).

    Para o cinema essas considerações não fogem a regra, a constatação da impossibilidade de isolamento das minhas capacidades perceptivas para fins de compreensão do objeto confirmam o entrelaçamento entre os elementos sonoros e visuais, por exemplo.

    É bastante conhecido um acompanhamento sonoro, ele modifica o teor do próprio espetáculo. Quando assisto à projeção de um filme dublado em francês, não somente constato o desacordo entre fala e imagem, mas repentinamente me parece que ali se diz outra coisa, e, enquanto a sala e meus ouvidos são preenchidos pelo texto dublado, para mim ele não tem existência nem mesmo auditiva, e só tenho ouvidos para esta outra fala sem ruídos que vem da tela. Quando subitamente uma pane deixa sem voz o personagem, que continua a gesticular na tela, não é apenas o sentido do discurso que de repente me escapa: o espetáculo também é alterado. (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 315)

    Se é fato que os elementos percebidos no ambiente alteram, em sua comunicabilidade, a percepção do mundo, devemos considerar também que alguns dos sentidos do corpo humano não são requisitados em sua inteireza no que tange à significação do que é representado. O olfato, o tato, o paladar estão em permanente ação, mas este não conseguem alcançar a significação do que está representado pelo cinema por sua via perceptiva, mas reelaboram conjuntamente com a visão e audição um significado para o representado num duplo movimento de saber-se percebendo uma realidade que precede a representação, mas que significa o representado com a intensidade que a hiper-estimulação o propõe.

    Esta constatação parte das considerações de Metz (1980, p. 56) ao compreender que “o significante no cinema é perceptivo”. Este mesmo autor esclarece sua postura a partir da explicação do saber do sujeito, em suas palavras

    No cinema, o saber do sujeito toma uma forma bem precisa sem a qual nenhum filme seria possível. Este saber é duplo (mas se perfaz um só): eu sei que percebo um imaginário (e é por isto que estas bizarrias, mesmo que extremas, não me perturbam seriamente), e eu sei que sou eu quem o percebe. Este segundo saber se desdobra por sua vez: eu sei que eu percebo realmente, que meus órgãos e sentidos são fisicamente atingidos, que não estou fantasiando, que a quarta parede da sala (a tela) é verdadeiramente diferente das outras três, que há frente a ela um projetor (não sou eu portanto que projeta, ao menos não sozinho) - , e eu sei igualmente que sou eu quem percebe tudo isso, que esta material percebido –imaginário vem se depositar em mim como que sobre uma segunda tela, que é em mim que ele vem cortejar e se compor numa seqüência, que sou eu portanto, eu mesmo, o lugar onde este imaginário realmente percebido acede ao simbólico e instaurando-se como significante de um certo tipo de atividade social institucionalizada dita “cinema”. (METZ, 1980, p. 62)

    Torna-se claro a necessidade de refletir sobre a percepção no cinema para então falar da significação possível na representação cinematográfica. Se trabalharmos na concepção de que a percepção é direta, coadunando com o pensamento de Merleau-Ponty, optamos pela afirmação que o que me é representado no cinema já tem significação para mim, mesmo que esta percepção venha atrelada à consciência de que o que percebo é uma possibilidade representativa do que significo.

    Significando o que me estesia, no cinema atualizo minhas impressões ao passo que confronto minhas convicções da existência com representações formuladas para saberem-se representação, apontando para novas formas de perceber o que o real me expõe.

    A experiência apreciativa do cinema é elemento decisivo na minha forma de significar o que se apresenta ao meu mundo vida. Seja pela forma específica da linguagem fílmica que reorganiza minha percepção, seja pela via que propõe uma significação já atrelada ao enredo da obra (seu roteiro e sua montagem), a proposição fílmica dar-nos uma situação donde se atrela a significação a sua conjuntura.

    O que chamamos “nossa experiência” é, pois, indissociável desta ação de significar pela qual lhe atribuímos sentido, obedecendo, portanto, a sua dinâmica circular. De fato, qualquer experiência singular é automaticamente conduzida ao campo constituído pelas experiências prévias, mas só se acrescenta efetivamente ao repertório típico desse campo se desvia da redundância e escapa ao estereótipo grupal, de modo a remover uma real transformação do “sujeito” que a vivencia. (VALVERDE, 2OO7, p. 240)

    O que se encontra no cerne do debate nos estudos de recepção e/ou em alguns debates estéticos da comunicação é a categoria da experiência articulada com as transformações técnicas que não cessam de processar-se. E é neste sentido que Valverde (2007, p. 242) insiste na argumentação de que “a comunicação contemporânea mostra a relação intrínseca entre a experiência e os modos de significação, revelando, ao mesmo tempo, o caráter sócio-histórico e a dimensão poética – formadora e estruturadora de nossa própria percepção do mundo sensível”.

    Estas considerações são base para pensar as transformações estético-perceptivas pelas quais passaram os espectadores de cinema ao confrontar suas formas de significação do mundo real com as possibilidades representativas no cinema. Para nós, evidencia-se a conformação da percepção direta do elemento representado pelo cinema, bem como a clareza de que esta percepção se dá por meio da relação estesiológica, que reverbera por todos os sentidos, mesmo admitindo a maior liberdade perceptiva da visão e audição.

    As exposições feitas até o presente momento buscam sentido na aplicação a um objeto. Buscaremos a partir de então utilizar como recurso analógico uma produção cinematográfica que faz representação do esporte para angariar argumento sobre as modificações da percepção não só no cinema, mas suas conseqüências para a significação do objeto foco, o esporte. O mecanismo do cinema é privilegiado para pensar essas significações pois

    As relações entre o visível e o invisível, a interação entre o dado imediato e suas significações tornam-se mais imbricadas. A sucessão de imagens criada pela montagem produz relações novas a todo instante e somos sempre levados a estabelecer ligações propriamente não existentes na tela. A montagem sugere, nós deduzimos. As significações se engrenam menos pela força de isolamento, mais por força de contextualizações para as quais o cinema possui uma liberdade invejável. (XAVIER, 1997, p. 367)

    As considerações expostas não devem ser consideradas como uma análise fílmica, no sentido restrito do termo, mas antes como a apresentação de pensamentos fugazes a partir da apreciação do mesmo, ou antes, como apreciação estética comentada, assumindo-nos no papel de apreciadores.

3.     Cinema e esporte: a significação da representação

    Em Carruagens de Fogo, longa metragem produzida nos Estados Unidos, em 1981, sob a direção de Hugh Hudson, apresenta-se a narrativa de dois atletas britânicos que competem entre si nas Olimpíadas de Verão de 1924. As diferenças que marcam os competidores são explicitadas por questões sociais e/ou religiosas, polarizando de um lado um missionário devoto que corre em nome de Deus e de outro um estudante judeu que corre para ser famoso e escapar de preconceitos. No que tange as questões competitivas que convergem ao esporte, o dilema entre o amadorismo e o profissionalismo que acompanha toda a narrativa do filme reproduz a estrutura capitalista de emergência produtivista na especialização de papeis que, no esporte é reconhecido na racionalização e cientificização do treinamento. A significação do esporte tangencia a partir da narrativa da produção a construção de um ideal virtuoso onde

    O esporte é um dos principais vetores da idéia de um progresso linear e infinito, cuja concepção de natureza é fortemente vinculada à produtividade e à tecnificação. As metáforas maquinais em relação ao corpo, tão típicas da modernidade, não são figuras de linguagem inocentes. (VAZ, 2000, p.75)

    O esporte ocupa importante lugar na película, representando inclusive um esgarçamento da compreensão sobre esporte na época representada para adquirir contornos modernos. O atletismo, e mais especificamente as corridas rasas são enfocadas como metáfora de um corpo produtivo. Em verdade, a busca pela sistematização de treinamento (racionalização e cientificização) caminhava atrelada ao projeto de esquadrinhamento do rendimento corporal, potencializando o espelhamento e adequando-se na produção capitalista enquanto ordem social vigente.

    Ao olhar de espectador sensível as cenas que representam o esporte remontam a um imaginário maquinal. Planos longos e seqüenciais para retratar o treinamento, a ritual competitivo demarcada com cenas em câmera lenta e pela sonoridade que foi incorporada às grandes competições pela sua progressividade.

    A centralidade da narrativa é identificada no evento das VIII Olimpíadas da Era Moderna, sob a presidência do Barão de Coubertin, e os momentos que a precedia. A produção remonta a quebra da invencibilidade norte-americana em uma das provas mais populares do esporte Moderno, os 100 metros rasos, quando trás para a tela do cinema a vitória do inglês Harold Abrahams naquele evento esportivo.

    Na competição final, a velocidade da prova dos 100 metros está mais próxima da realidade, seguida de ausência de sonoridade, denotando um silencio interno ou falta de ar que simulam o esforço sacrificado e recompensando do atleta vencedor. Os planos se fecham com enfoque no campeão e todos os outros elementos da paisagem competitiva dão espaço a glorificação do virtuosismo físico. A tomada sugere que a competição já é desnecessária quando se apresenta o campeão, e a montagem garante a lógica produtivista. Foca-se o vencedor, esquece-se do contexto que o formou em cena, mas para o expectador é improvável anular o significado da vitória representada que não seja pela paisagem completa do cenário que o antecedeu. Merleau-Ponty (1999) considera isso como sendo uma consideração do que não lhe é apresentado prontamente sob condições específicas do cinema ao delinear seus focos de cena, contrariamente a visão cotidiana que repouse seu olhar em pontos da paisagem sem negar-lhe os demais elementos que ocorrem.

    Quando, em um filme, a câmera se dirige a um objeto e aproxima-se dele para apresentá-lo a nós em primeiro lugar plano, podemos muito bem lembrar-nos de que se trata do cinzeiro ou da mão do personagem, nós não o identificamos efetivamente. Isso ocorre porque a tela não tem horizontes. Na visão, ao contrário, apoio meu olhar em um fragmento da paisagem, ele se anima e se desdobra, os outros objetos recuam para a margem e adormecem, mas não deixam de estar ali. (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 104)

    Ainda com o foco na vitória, a montagem retoma da cena da prova em velocidade reduzida, mesclada a uma seqüência de planos da comemoração evidenciam uma narrativa que revitaliza o prazer da vitória e/ou a glória do esforço. O maquinário para a produção desta cena que remonta um acontecimento real de 1924 já nos anos 80 do mesmo século é a atualização do que a aparelhagem cinematográfica pode fazer para potencializar o ideal de produtivo do esporte moderno.

    Já na década de 30, o emblemático documentário Olympia de Leni Riefenstahl, lançado em 1938, remetendo ao XI Jogos Olímpicos de 1936, muitas das técnicas do cinema que foram admiradas e recorrentes durantes décadas já estavam presentes. Instrumentais técnicos que mais tarde tornariam-se os padrões industriais para o setor, naquele momento era destacável, tais como alguns ângulos incomuns de câmera, técnicas de edição avançadas, close-ups extremos entre outras coisas. O investimento para captar registrar o espetáculo dos corpos olímpicos transfomou o estádio em um estúdio de cinema.

    O estádio foi transformado num gigantesco estúdio cinematográfico. Ela [Leni] escreveu, produziu e montou seu Olympia com recursos extraordinários: 23 operadores de câmera, trilhos para acompanhar em vôos e travellings os atletas em corridas e saltos, teleobjetivas gigantes, gruas, 4 câmeras de diversos formatos [...] (NAZARO apud MELO, 2006, P. 92)

    Segundo Melo (2006), o filme longe de tratar somente de esporte, mesmo que emblematicamente deste, desvelava o imaginário nazista e, por exaltação à visibilidade do esporte, realçava a exaltação da beleza, perfeição e vigor, dentre outros.

    A consideração base não só para esta produção, mas quase todos os filmes que enfocam o esporte como centro de sua narrativa é a necessidade de espetacularizar o rendimento corpóreo e assim inaugurar uma produção de sentido que atrela linearmente o esporte ao sacrifício, produtividade e vigor. Talvez sejam essas as características que fazem o espectador de cinema a se filiar às produções cinematográficas que tratam de esporte, a sensibilização pelo espetáculo corpóreo, como se a projeção na tela tivesse também o poder de projetar no espectador um sentimento de pertencimento ao que glorifica-se na vitória e/ou no enredo do sacrifício em busca dela.

4.     Considerações possíveis

    A proposição inicial deste texto na intenção de refletir a condição do expectador do cinema partindo das idéias da condição corporal do sujeito apreciador como condição para o exercício da função especular junto ao mundo e da admissão da conjuntura específica na apreciação cinematográfica como formas claras de modificação de sensibilidade, nos projeta para um local de fala eminentemente teórico e até então pouco aplicado aos objetos de nosso interesse.

    De toda forma, as opções de pensamento nos apontam para a significação direta já na percepção no representado da projeção fílmica. Afirma-se que ao significar o representado, mesmo concebendo que sua apresentação já opera distinções de minha experiência vivida, é o diferencial da posição de expectador de cinema. No que tange ao esporte, observa-se que significá-lo sempre partir de um enredo que hiper-valoriza o espetáculo do corpo enquanto sacrifício e louvor a vitória, atualizando o lema olímpico: Citius, Altius, Fortius.

    Ora o cinema – como imagem em movimento que exclui e inclui, potencializa o olho humano, que educa os sentidos para a experiência moderna, como afirma Benjamin – não poderia prescindir do movimento corporal como um dos seus privilegiados temas [...] à potencialização do corpo corresponde a potencialização da imagem. (VAZ, apud MELO, 2007, p. 84)

    É o que se pode chamar de hiper-estimulação do corpo pelo corpo. O corpo representado espetacularmente no seu sacrifício da produtividade competitiva do esporte potencializa a sensibilidade do corpo do espectador que projeta sua identificação com a narrativa quase sempre gloriosa do atleta em ação. Estesia-se o sujeito com o vibrar de corpos e afirma-se a condição de percepção sinestésica do corpo. Pode-se especular que, para o apreciador de narrativas cinematográficas com ênfase em eventos esportivos, constitui-se uma recursividade na sensibilização do corpo do espectador uma vez que este se filia à espetacularização do corpo do atleta representado e por fim, reifica-se a compreensão do esporte moderno.

Referencial bibliográfico

  • AUMONT, Jacques. A estética do Filme. Campinas: Papirus, 1995.

  • BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. IN: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.

  • BAECQUE, Antonie de. O corpo no cinema. In: COURTINE, Jean-Jacques & VIGARELLO, Georges (Orgs). História do corpo: as mutações do olhar: o século XX. Petrópolis: Vozes, 2008.

  • BARTHES, Roland. Saindo do Cinema. In: METZ, Christian. et al. Psicanálise e cinema. São Paulo: Global Editora. 1980.

  • BENVENISTE, Emile. História/Discurso (Notas sobre dois voyeurismos). IN: Xavier, Ismael (Org.). A experiência no cinema: antologia Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilme, 1983.

  • MELO, Victor Andrade de. Cinema e esporte: diálogos. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2006.

  • MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins fontes, 1999.

  • ___________. A prosa do mundo. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.

  • METZ, Christian. O imaginário significante. IN: METZ, Christian. Et al. Psicanálise e cinema. São Paulo: Editora Global, 1980.

  • SUQUET, Annie. O corpo dançante: um laboratório da percepção. In: COURTINE, Jean-Jacques & VIGARELLO, Georges (Orgs). História do corpo: as mutações do olhar: o século XX. Petrópolis: Vozes, 2008.

  • VALVERDE, Monclar. Estética da comunicação – Sentido, forma e valor nas cenas da cultura. Salvador: Quarteto, 2007.

  • VAZ, Alexandre Fernandes. Da Modernidade em Walter Benjamim: crítica, esporte e escrituras pós-históricas das práticas corporais. Educar. Curitiba. n. 16, p. 61-79. 2000. Editora da UFPR.

  • XAVIER, Ismael. Cinema: revelação e engano. IN: NOVAES, Adauto. O olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

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