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A questão da diferença no quadro histórico da Educação Física

La cuestión de la diferencia en el contexto histórico de la Educación Física

 

Mestre em Educação (UFJF). Licenciado em Educação Física (UFJF)

Integrante do Núcleo de Estudos sobre Trabalho e Educação (UFJF)

Professor da rede pública municipal de ensino de Angra dos Reis, RJ

Leonardo Docena Pina

leodocena@yahoo.com.br

(Brasil)

 

 

 

Resumo

          O texto reflete sobre a forma como a forma educação física brasileira lidou com a questão da diferença ao longo da história, desde seu surgimento na escola, enquanto ginástica, até o momento contemporâneo, marcado pela influência das políticas neoliberais. O texto mostra que, no quadro histórico da educação física, com exceção do movimento crítico dos anos de 1980 e da pedagogia crítico-superadora, predominam as formulações que atendem aos interesses do bloco no poder e impedem uma plena valorização das diferenças humanas.

          Unitermos: Diferença. Educação Física. Pedagogia crítico-superadora

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 15 - Nº 143 - Abril de 2010

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    O presente texto busca refletir sobre o modo como a educação física vem tratando a problemática da diferença ao longo da história. Vale salientar que o objetivo não é realizar uma historiografia da educação física, mas apenas resgatar elementos que nos permitam evidenciar como seu pensamento pedagógico, suas políticas e suas práticas pedagógicas vêm tratando a questão das diferenças humanas no decorrer dos processos históricos.

    O entendimento defendido é o de que a educação física tem assimilado a preocupação com a formação humana demandada pelos diferentes projetos históricos do bloco no poder, delineando, em virtude disso, determinados tratamentos à temática da diferença. O texto reforça que não só as políticas educacionais sofrem influência do solo concreto no qual se inserem: a produção teórica da área e as práticas pedagógicas também são determinadas pelo modo como os seres humanos se organizam na sociedade para produzir sua existência.

Do paradigma da aptidão física à influência da crise no campo teórico: implicações para a questão da diferença

    O pensamento pedagógico, as políticas e as práticas pedagógicas que abordavam, na escola, as práticas corporais como jogo, esporte, dança e ginástica seguiram, até meados da década de 1980, uma mesma direção, delineando uma forma de se tratar as diferenças que atendia aos interesses e necessidades do projeto dominante.

    De acordo com Soares (2001) e Soares et al. (1992), os exercícios físicos na forma cultural de jogos, dança, equitação e ginástica surgiram, no âmbito da escola, na Europa do final do século XVIII e início do XIX, momento em que se formaram os sistemas nacionais de ensino característicos da sociedade em constituição e consolidação naquele período. No modo de produção da vida em formação nesse contexto, os exercícios físicos passaram a assumir um papel de fundamental importância, visto que o novo tipo de homem demandado pela burguesia deveria possuir um corpo saudável, forte, ágil e disciplinado, construído a partir da adoção de um novo modo de vida. Para contribuir à formação desse novo tipo de homem, a educação física, seja aquela estruturada dentro ou fora da instituição escolar, passou a constituir um dos mecanismos utilizados pelo bloco no poder para instrumentalizar a vontade, adequar e reorganizar gestos e atitudes necessários à obtenção da ordem. Em virtude disso, a educação física assimilou uma determinada forma de se compreender a questão da diferença, a qual está pautada na dicotomia normal versus anormal, fundamentada no referencial de normalidade.

    Essa forma de se compreender a diferença humana pode ser evidenciada pelo seguinte trecho votado, em 1918, no Congresso Internacional de Educação Física em Paris:

    1° - antes de serem submetidos à educação física todos os meninos e meninas serão examinados pelo médico-inspetor, que os classificará em normais e retardados; 2º - os meninos normais (ou por outra parte, os regulares físicos) serão confiados ao educador físico sob a vigilância efetiva do médico-inspetor; 3º - Entre os retardados, aqueles aos quais for recomendável um tratamento cinésico serão confiados ao médico especialista cinesioterapeuta. (AZEVEDO apud SOARES, 2001, p.130, grifos da autora).

    Nessa deliberação, torna-se evidente o entendimento de que as pessoas deveriam ser classificadas em normais e anormais de acordo com as normas estabelecidas nos exames médicos para a educação física. No Brasil, o pensamento pedagógico de autores como Fernando de Azevedo, a legislação educacional, além da utilização do Método Francês nas escolas são algumas expressões dessa forma de entender a questão da diferença.

    No campo do pensamento pedagógico, as formulações de Fernando de Azevedo são elucidativas expressões do pensamento médico-higienista, sobretudo a de vertente eugênica. Conforme explica Soares (2001), a educação física na escola é, para Fernando de Azevedo, uma questão médica e não pedagógica. O professor desempenharia apenas um papel secundário, de executar e fiscalizar as tarefas pensadas pelos médicos. Estes últimos deveriam ter presença garantida no espaço escolar; pois, dessa forma, seria possível conhecer o “perfeito estado fisiológico” das crianças. Vale salientar que esse “perfeito estado fisiológico” corresponde às características definidoras do aluno padrão, isto é, aquele que se enquadra nos moldes definidos como normais.

    Outra expressão dessa forma de se entender a questão da diferença pode ser evidenciada no campo político, mais especificamente, no das legislações. O artigo 27, letra b do Decreto nº 21.241 e o item 10 da Portaria nº 13, de 16 de fevereiro de 1938, do Ministério da Educação e da Saúde, estabelecem a proibição da matrícula nos estabelecimentos de ensino secundário de educandos “cujo estado patológico os impeçam permanentemente da freqüência às aulas de educação física” (CASTELLANI FILHO, 1999, p.99, grifos nossos).

    Nesse ponto, torna-se evidente que a classificação dos indivíduos em normais e anormais culmina na ação de proibir a participação na educação física dos educandos desviantes do padrão de normalidade, ou seja, dos ditos incapacitados.

    É importante destacar ainda que o campo das práticas pedagógicas também foi influenciado por essa forma de tratar as pessoas consideradas diferentes. Vale lembrar que em 1931, ano em que a educação física se tornou obrigatória nos “cursos secundários”, o denominado “método francês” foi estendido à rede escolar. Segundo Marinho (s.d., p. 89-90), o método francês define a educação física como “o conjunto de exercícios cuja prática racional e metódica é susceptível de fazer o homem atingir o mais alto grau de aperfeiçoamento físico compatível com sua natureza”. Esse método de ensino adotou uma “classificação racional em grupos de valor fisiológico sensivelmente equivalente” (MARINHO, s.d., p.96). De acordo com essa classificação, o “valor fisiológico” dos indivíduos deveria ser determinado por um minucioso exame médico, a ser levado em conta no início de cada ano escolar. No exame inicial de jovens e adolescentes, caberia ao médico decidir se o aluno poderia ser considerado normal e em condições de seguir o grau correspondente à sua idade. Os classificados como normais, aptos à realização das atividades, estariam prontos para freqüentar as chamadas “lições de educação física”, que em muito se assemelhavam às atividades que eram desenvolvidas no quartéis, tal como evidenciam as instruções do Método Francês sobre os “comandos” que deveriam ser dados aos alunos:

    Para fazer executar um movimento, o instrutor comanda – “Posição fundamental”, devendo este comando ser substituído, para as crianças, pela advertência: “Atenção!” Se o movimento exige uma posição de partida, o instrutor a indicará e comanda: “Posição!” Enuncia o exercício e ao comando: “Começar!” Todos executam o movimento prescrito. As posições de partida dos “assouplissements” assimétricos são, a princípio, tomadas à esquerda. Terminado o exercício nesta posição, o instrutor comanda: “Mudar!” Os alunos retornam à posição de partida à direita e executam novamente o exercício prescrito. Ao comando de “Cessar!” todo o movimento cessa sem precipitação e a posição de partida é retomada. A posição de partida só é deixada ao comando de “Posição fundamental”. No comando de “Descançar!”, os alunos permanecem no lugar sem serem obrigados a conservar a posição primitiva e a imobilidade (MARINHO, s.d., p. 110-111).

    O referido trecho evidencia o fato de que, nas lições de ginástica, os alunos eram tratados de forma homogênea, com suas ações reduzidas à repetição de movimentos estereotipados. O resultado disso para a questão da diferença é claro: trata-se de uma tentativa de homogeneizar as diferenças, de modo que todos os alunos pudessem realizar os exercícios da mesma forma e com a mesma intensidade, em prol da disciplinarização do caráter e do corpo.

    Embora os alunos considerados incapazes tenham sido impedidos de participar com os ditos normais das referidas sessões, a seleção para compor as turmas de educação física não se reduzia ao critério da normalidade versus anormalidade. Entre os não-desviantes também deveria haver uma criteriosa seleção, de modo a obter turmas cada vez mais homogêneas.

    Conforme afirma Soares (2001), nessas tendências da educação física pautadas na concepção biológica, na abordagem positivista de ciência e no seu método de observação e comparação dos resultados, a seleção dos educandos para compor as turmas das diferentes séries para as sessões de educação física também deveria ser realizada a partir da utilização de critérios biológicos, tais como: “o critério de equivalência física resultante da idade, do coeficiente de robustez, do índice do perímetro toráxico e da conformação constitucional de cada um” (SOARES, 2001, p.132, grifos da autora).

    É importante salientar que a influência do projeto higienista, que configurou a forma de entender e lidar com a questão da diferença evidenciada no Congresso de 1918, não ocorreu por acaso em nosso país. A preocupação com os problemas resultantes do processo de industrialização impulsionou o interesse em situar a educação física como agente para fortificar e disciplinar o caráter e o corpo. Nesse período, a educação física não se configurava como campo de conhecimento. A produção relacionada às práticas corporais centrava-se na medicina e assumia o propósito de contribuir para a assepsia social e o fortalecimento da raça.

    Conforme explica Soares (2001), o ideário colocado em prática pela Higiene impôs uma disciplina que pretendia adequar o corpo ao trabalho fabril, tornando-o mais dócil e submisso sob a ótica do poder e, ao mesmo tempo, mais ágil, forte e robusto sob a ótica da produção como expressão do poder e da ordem. A disciplina a que se refere a autora constituía a educação higiênica do trabalhador. A educação física, para auxiliar essa formação humana demandada pelo bloco no poder, integrou as propostas pedagógicas em conformidade com o projeto higienista, expressando sua influência no pensamento pedagógico, nas leis e reformas educacionais, assim como nas práticas pedagógicas, os quais foram importantes instrumentos, ao lado de outras iniciativas, para fornecer às camadas urbanas a formação moral e física necessária ao modo de vida capitalista no país.

    Embora tenham sofrido modificações pontuais, as ideias do Congresso de Educação Física de 1918 mantiveram-se presentes ao longo do tempo, visto que as formulações do Decreto nº 69.450/71 significaram mais uma continuidade do que uma ruptura com as ideias vigentes até então. Isso porque o referido Decreto somente reforçou o paradigma biológico e o vínculo do pensamento pedagógico, das políticas e das práticas pedagógicas da educação física com o projeto dominante.

    A nova etapa da modernização conservadora presente nos anos pós-1964, momento em que o bloco no poder procurou assegurar a condição capitalista do país em um novo patamar, comprova o empenho para subordinar a educação física ao projeto dominante. A partir desse viés, o tratamento dispensado à questão da diferença não poderia ser outro: os princípios de seleção e discriminação dos educandos foram mantidos, ainda que em outras bases.

    O Decreto nº 69.450/71 entende a educação física como a “atividade que por seus meios, processos e técnicas, desperta, desenvolve e aprimora forças físicas, morais, cívicas, psíquicas e sociais do educando” (BRASIL, 1971, Art. 1°). No que diz respeito aos objetivos, consta a afirmação de que a educação física se caracterizaria:

    I - No ensino primário, por atividades físicas de caráter recreativo, de preferência as que favoreçam a consolidação de hábitos higiênicos, o desenvolvimento corporal e mental harmônico, a melhoria da aptidão física, o despertar do espírito comunitário, da criatividade, do senso moral e cívico, além de outras que concorram para completar a formação integral da personalidade. II - No ensino médio, por atividades que contribuam para o aprimoramento e aproveitamento integrado de todas as potencialidades físicas, morais e psíquicas do indivíduo, possibilitando-lhe pelo emprego útil do tempo de lazer, uma perfeita sociabilidade, a conservação da saúde, o fortalecimento da vontade, a aquisição de novas habilidades, o estímulo às tendências de liderança e implantação de hábitos sadios. III - No nível superior, em prosseguimento à iniciada nos graus precedentes, por práticas, com predominância, de natureza desportiva, preferentemente as que conduzem à manutenção e aprimoramento da aptidão física, à conservação da saúde, à integração do estudante no “campus” universitário, à consolidação do sentimento comunitário e de nacionalidade (BRASIL, 1971, Art 3º).

    Como evidencia a lei, a educação física mantém-se centrada em atividades que deveriam contribuir para formar um determinado modo de vida, do qual faria parte a adoção de “hábitos higiênicos”, do “espírito comunitário”, da criatividade, do senso moral e cívico, dentre outras. No âmbito específico das práticas corporais, essas atividades teriam como referência a aptidão física, visto que o § 1º do Art. 3º a estabelece como “referência fundamental para orientar o planejamento, controle e avaliação da educação física” (BRASIL, 1971).

    O estabelecimento da aptidão física como referência para a educação física evidencia o tratamento dado a questão da diferença por esse documento. Seguindo a tendência de selecionar os educandos a partir de características físicas de cada indivíduo, o referido Decreto estabelece, em seu Artigo 5º, a composição das turmas: “50 alunos do mesmo sexo, preferencialmente selecionados por nível de aptidão física”.

    Outro trecho em que se torna evidente o tratamento dado à questão da diferença refere-se ao Artigo 6º, no qual se abre a possibilidade de impedir alguns alunos de participarem das atividades de educação física. Nesse Artigo, é facultada a prática de educação física aos alunos que, dentre outros, fossem maiores de trinta anos de idade ou estivessem fisicamente incapacitados. A ação de facultar a prática da educação física aos maiores de 30 anos de idade vincula-se à compreensão de que, a essa altura da vida, o indivíduo já estaria vinculado ao mercado de trabalho, cabendo aos empregadores tomar as providências para manutenção e/ou recuperação da aptidão física de seus funcionários e funcionárias. No que diz respeito ao ato de facultar a educação física aos fisicamente incapacitados, pode-se afirmar que tal ação confirma o entendimento de que, nesse Decreto, a educação física era justificada pela centralização exclusiva de sua ação pedagógica na atividade física, isenta da necessidade de ser pensada, refletida, teorizada.

    No campo das práticas pedagógicas, o Decreto n° 69.450/71 reforça a seleção e discriminação dos educandos, visto que a subordinação da educação física aos códigos, sentidos e valores do esporte de rendimento auxilia a configurar, na escola, um quadro de competição e rivalidade entre os alunos do qual nem todos podem sair vitoriosos. O princípio da meritocracia e o valor moral da “vitória a qualquer custo” se tornaram referências importantes naturalizadas nas práticas pedagógicas.

    As reflexões desenvolvidas até o momento nos permitem afirmar que a educação física, seja sob a forma predominante de ginástica, seja sob a forma predominante de esporte de rendimento, foi marcada pela seleção e discriminação de educandos, reproduzindo a dinâmica das relações capitalistas no campo escolar.

    Nesse ponto, torna-se possível direcionar as reflexões para a década de 1990, período no qual as mediações da recomposição capitalista do final do século XX impuseram suas marcas no tratamento dado pela educação física à questão da diferença.

    O processo de redemocratização do Brasil nos anos de 1980, resultado de uma crise de hegemonia da sociedade brasileira, possibilitou a construção de um efervescente período de denúncias, revelações e descobertas sobre o papel que vinha sendo atribuído à educação física. Com isso, foi aberto um período de buscas para se construir a autonomia pedagógica da área, frente a um quadro histórico de vinculação ao projeto do bloco no poder (BRACHT, 1989). Tal constatação foi um importante marco para delinear não só um grande inconformismo, mas, também, uma crise de legitimidade do paradigma que, por mais de um século, orientou a produção dirigida às práticas corporais, a definição de políticas e da legislação, bem como todo o trabalho realizado no âmbito escolar. Vale salientar que o quadro de referências que sustentou a produção teórica, as políticas e as práticas pedagógicas da educação física brasileira até a década de 1970 é denominado de paradigma da aptidão física e

    Apóia-se nos fundamentos sociológicos, filosóficos, antropológicos, psicológicos e, enfaticamente, nos biológicos para educar o homem forte, ágil, apto, empreendedor, que disputa uma situação privilegiada na sociedade competitiva de livre concorrência: a capitalista. Procura, através da educação, adaptar o homem à sociedade, alienando-o de sua condição de sujeito histórico, capaz de interferir na transformação da mesma. Recorre à filosofia liberal para a formação do caráter do indivíduo, valorizando a obediência, o respeito às normas e à hierarquia. Apóia-se na pedagogia tradicional influenciada pela tendência biologicista para adestrá-lo (SOARES et. al., 1992, p.36).

    As críticas ao paradigma da aptidão física nos anos de 1980 constituíram um momento de inflexão na área. O delineamento primário da educação física enquanto área de conhecimento e a crise de legitimidade que se abateu sobre o regime ditatorial possibilitaram o engajamento de uma incipiente produção teórica para a constituição de um novo paradigma, processo que vislumbrou outras possibilidades de se tratar a questão da diferença. Contudo, a imaturidade acadêmica da área nesse período gerou apenas indicações para uma nova forma de se tratar a questão da diferença na educação física.

    Na década de 1990, a possibilidade de tratar a questão da diferença em uma perspectiva de mudança é ampliada pelas formulações produzidas por um grupo que se autodenominou de Coletivo de Autores. Importante marco para a educação escolar, a publicação do livro Metodologia do Ensino de Educação Física, pelo Coletivo de Autores (SOARES et al.,1992), apresentou a pedagogia crítico-superadora, que se sustenta na pedagogia histórico crítica (SAVIANI, 2005).

    O paradigma no qual se pauta a perspectiva de educação física apresentada por Soares et al. (1992) é o da reflexão crítica sobre a cultura corporal. Antagônica ao paradigma da aptidão física, essa tendência entende a educação física como a prática pedagógica que, no âmbito escolar, tematiza formas de atividades expressivas corporais que configuram uma área de conhecimento denominada de cultura corporal. Essa abordagem metodológica, além de definir a educação física em outras bases, filosófica, ético-política, pedagógica, articulou-a com a função social da escola no que havia de mais avançado: a formação do indivíduo enquanto sujeito histórico, visando a uma transformação social compromissada com os interesses e necessidades da classe trabalhadora.

    No paradigma da reflexão crítica sobre a cultura corporal, os conteúdos a serem trabalhados pela educação física devem ser tematizados a fim de “formar o cidadão crítico e consciente da realidade social em que vive, para poder nela intervir na direção dos interesses de classe” (SOARES et al., 1992, p. 36). A tematização proposta nessa perspectiva abrange a compreensão das relações de interdependência que os diferentes conteúdos da cultura corporal, tais como jogo, esporte, dança, ginástica têm com os grandes problemas sóciopolíticos atuais, como “ecologia, papéis sexuais, saúde pública, relações de trabalho, preconceitos sociais, raciais, da deficiência, da velhice, distribuição do solo urbano, distribuição de renda, dívida externa e outros” (SOARES et al., 1992, p. 62-63).

    Esse trecho evidencia que a pedagogia crítico-superadora se compromete com o descortinamento das diferentes formas de preconceito produzidas ou aprofundadas pelo capitalismo. Além de se comprometer com a reflexão crítica sobre os problemas sociais contemporâneos, essa pedagogia ainda valoriza a liberdade de expressão de movimentos e defende a reflexão sobre valores, como: “solidariedade substituindo individualismo, cooperação confrontando a disputa, distribuição em confronto com apropriação” (SOARES et al., 1992, p.40), ações que se contrapõem àquelas vinculadas ao paradigma da aptidão física. Outra preocupação demonstrada pelo Coletivo de Autores que abre a possibilidade de se pensar a questão das diferenças em um novo patamar diz respeito à necessidade de se romper com a predominância do sentimento de competição e rivalidade na escola:

    Na escola, é preciso resgatar os valores que privilegiam o coletivo sobre o individual, [que] defendem o compromisso da solidariedade e respeito humano, a compreensão de que jogo se faz “a dois”, e de que é diferente jogar “com” o companheiro e jogar “contra” o adversário”. (SOARES et al., 1992, p.71).

    Embora não tenha sido formulada a partir da preocupação com a questão da diferença, a pedagogia crítico-superadora permitiu à educação física pensar essa temática a partir do sentido histórico da luta de classes, abrindo a possibilidade de visualizar a valorização das diferenças em uma perspectiva de mudanças. Evidência disso é o fato de que essa pedagogia, articulada aos interesses da classe trabalhadora, criou possibilidades para a participação ativa de todos os educandos nas aulas, além de contribuir para a superação dos preconceitos e para a tomada de consciência da condição de sujeitos históricos, por parte dos educandos.

    Sob o ponto de vista da pedagogia crítico-superadora, por exemplo, não faz sentido facultar a presença nas aulas de educação física a determinados educandos, nem separar indivíduos por sexo, por condicionamento físico, sobretudo porque tal perspectiva fora pensada como parte integrante do currículo ampliado, que tem como eixo, “a constatação, a interpretação, a compreensão e a explicação da realidade social complexa e contraditória” (SOARES et al., 1992, p.28). Nessa concepção de currículo, o objeto de cada disciplina é questionado e colocado em destaque no que diz respeito à função social de cada um dos componentes curriculares. Busca-se situar a contribuição particular de cada disciplina para a explicação da realidade social e natural, no nível do pensamento/reflexão dos educandos, visto que os diferentes conhecimentos – matemático, geográfico, artístico, histórico, lingüístico, biológico, etc. – expressam particularmente uma determinada dimensão da realidade e não sua totalidade (SOARES et al.,1992). Além disso, sob a ótica dessa perspectiva, nenhuma disciplina se legitima no currículo de forma isolada, pois a visão de totalidade dos educandos vai sendo construída à medida que estes realizam uma síntese, em seus pensamentos, da contribuição das diferentes áreas do conhecimento para a explicação da realidade. Dessa forma, cada disciplina legitima-se ou torna-se relevante quando a presença de seu objeto de estudo é fundamental para a reflexão pedagógica dos educandos e a sua ausência compromete a perspectiva de totalidade dessa reflexão (SOARES et al., 1992). Tais reflexões nos permitem afirmar que a pedagogia crítico-superadora abriu a possibilidade de defender a ideia de que todos os educandos, independentemente de suas diferenças, devem participar das aulas de educação física, já que a ausência dos indivíduos pode representar a impossibilidade destes compreenderem o real em sua totalidade.

    Mas, apesar de a pedagogia crítico-superadora representar uma oposição antagônica ao paradigma da aptidão física, não se pode esquecer que a crise de paradigma na educação física ocorreu em um contexto de crise econômica do capitalismo, que instaurou a crise no campo teórico.1

    Conforme salienta Nozaki (2004), a crítica epistemológica na educação física nasce a partir de transformações sociais e políticas do cenário brasileiro dos anos de 1980, mas vai se consolidando ao mesmo tempo em que ela vai sendo redimensionada, na década de 1990, para um debate permeado pela crise dos referenciais teóricos. Dessa forma, a produção científica da educação física da década de 1990 foi mediada pelo abandono da perspectiva de concretização histórica do socialismo, junto ao colapso do Estado de centralismo burocrático e a crise teórica instaurada (NOZAKI, 2004). Portanto, se, por um lado, a década de 1990 constitui o momento no qual a educação física se afirma como área de conhecimento e a produção teórica do campo confirma os limites da biologização; por outro lado, constitui o momento no qual predomina a proliferação da cultura pós-moderna como parte do esforço para se evitar que a crise econômica capitalista fosse convertida em uma crise política de proporções mais amplas.

    A implicação da crise capitalista na forma de se entender a questão da diferença na educação física se resume ao fato de que essa temática passou a ser pensada a partir de enunciados e propostas que se articulam sob um eixo que minimiza ou não evidencia os determinantes das problemáticas em questão. Portanto, apesar do crescente debate protagonizado sobretudo pela abordagem crítico-superadora, predominou na área a tendência influenciada pela crise no campo teórico. Essa tendência manifestou-se, no pensamento pedagógico, através da rejeição das categorias do marxismo, na política, através da formulação dos PCNs e, nas práticas pedagógicas, através da influência sofrida pelo pensamento e pela política.

    A partir da década de 1990, o Brasil vai sendo marcado por ajustes estruturais efetivados através de reformas para a gerência da crise da economia capitalista. Seguindo a tendência de reformas no campo educacional brasileiro, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) da educação física evidenciam a tentativa de reordenar esse componente curricular no sentido de superar o paradigma da aptidão física por uma pedagogia que se mantenha atrelada ao projeto de formação humana demandado pelo bloco no poder. Dessa forma, esse documento sintetiza o movimento de produção teórica fruto da crise de paradigma da educação física: trata-se de uma produção crítica, se comparada ao período anterior, mas que, direcionada pela crise no campo teórico, rejeitou os fundamentos da dialética marxista, que sustentavam o paradigma da reflexão crítica sobre a cultura corporal. Assim, a educação física brasileira, enquanto parte integrante da educação escolar do país, assimilou o projeto neoliberal de sociedade e de educação, vinculando-se ao projeto de Educação para Todos.2 No que diz respeito à temática da diferença, os PCNs da educação física também assimilam a tendência evidenciada pelo movimento geral da Educação Especial da década de 1990,3 apresentando explicações pouco úteis para pensar a questão da diferença em um projeto alternativo de sociedade, de educação e de educação física, tendo em vista que incorpora os fundamentos centrais do paradigma da inclusão, os quais, segundo Pina (2009), não visam a superação do capitalismo.4

Considerações finais

    Em síntese, pode-se afirmar que, no pensamento pedagógico, nas políticas e nas práticas pedagógicas da educação física, predominava, até a década de 1970, o chamado paradigma da aptidão física, que subordinava a educação física e a questão da diferença aos ditames do bloco no poder. Ao longo da década de 1980, mediante a crise de hegemonia na sociedade brasileira, o paradigma da aptidão física entrou em crise a partir das crescentes interpretações críticas sobre a relação da educação física com a sociedade. Os enunciados surgidos na década de 1980 delinearam o surgimento de novas tendências da educação física, a exemplo da pedagogia crítico-superadora, que abriu a possibilidade de se pensar a temática da diferença em uma perspectiva de mudança. Contudo, na década de 1990, a recomposição capitalista do final do século XX afetou de modo especial a educação física, produzindo não só a debandada de intelectuais marxistas, como também a incorporação de teses pós-modernas na produção da área. Portanto, pode-se afirmar que, no quadro histórico da educação física, com exceção do movimento crítico dos anos de 1980 e da pedagogia crítico-superadora, predominam as formulações que atendem aos interesses do bloco no poder e impedem uma plena valorização das diferenças humanas.

Notas

  1. A crise no campo teórico (CHAUÍ, 2001; FRIGOTTO, 2001) é uma expressão ideológica do reordenamento capitalista do final do século XX, o qual instaurou o pós-modernismo como modo de vida a ser seguido pelo conjunto da sociedade. Conforme explica Jameson (2006), o pós-modernismo é um sintoma das mudanças estruturais mais profundas ocorridas na sociedade capitalista e em sua cultura como um todo. O autor explica que essas mudanças, decorrentes da tentativa do bloco no poder de gerenciar a crise capitalista, têm dado uma “nova” configuração às relações sociais contemporâneas, colocando em crise todos os referenciais teóricos pré-existentes, visto que suas categorias analíticas não têm conseguido apreender a materialidade das determinações e das mediações constitutivas no interior de uma nova sociabilidade do capital.

  2. Uma análise da relação entre o neoliberalismo e a implantação de políticas educacionais na América Latina e no Caribe na década de 1990 foi realizada por Melo (2003). A autora comprova que o programa de Educação para Todos, implantado em nosso país durante o período mencionado, constitui-se como o projeto neoliberal de sociedade e de educação. Sobre a influência do projeto neoliberal de sociedade e educação na delimitação das políticas de educação especial no Brasil, pode-se recorrer ao estudo de Romero (2006).

  3. Sobre a influência do projeto neoliberal de sociedade e educação na delimitação das políticas de educação especial no Brasil, pode-se recorrer ao estudo de Romero (2006).

  4. Uma análise crítica do paradigma da inclusão, assim como sua difusão na produção teórica da educação física, foi realizada por Pina (2009). Sem desconsiderar os avanços promovidos pela inclusão social, o autor demonstra os vínculos entre esse paradigma e a realidade social concreta. Assim, situa a inclusão social como uma concepção de mundo orientada para prática que, ancorada nas condições materiais da sociedade, empurra os seres humanos para ações que reforçam o capitalismo.

Referências

  • BRACHT, Valter. Educação física: a busca da autonomia pedagógica. Revista da Educação Física, Maringá, vol. 1, n.0, p. 28-33, 1989.

  • BRASIL. Decreto no. 69.450, de 01 de novembro de 1971. Ministério da Educação e Cultura. Departamento da Educação Física e Desportos. Diário Oficial, Brasília, 3 nov. 1971.

  • CASTELLANI FILHO, Lino. A educação física no sistema educacional brasileiro. Percurso, paradoxos e perspectivas. Tese (Doutorado em Educação). Campinas: Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, 1999.

  • CHAUÍ, Marilena. Escritos sobre a universidade. São Paulo: Editora UNESP, 2001.

  • FRIGOTTO, Gaudêncio. A nova e a velha faces da crise do capital e o labirinto dos referenciais teóricos. In: FRIGOTTO, Gaudêncio; CIAVATTA, Maria (orgs.). Teoria e educação no labirinto do capital. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2001.

  • JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. 2. ed. São Paulo: Ática, 2006.

  • MARINHO, Inezil Penna. Sistemas e métodos de educação física. 6. ed. São Paulo: Papel livros, (s.d.).

  • MELO, Adriana Almeida Sales. A mundialização da educação. O projeto neoliberal de sociedade e de educação no Brasil e na Venezuela. Tese (Doutorado em Educação). Campinas: Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, 2003.

  • NOZAKI, Hajime Tackeuchi. Educação física e o reordenamento do mundo do trabalho: mediações da regulamentação da profissão. Tese (Doutorado em Educação). Niterói: Faculdade de Educação, Universidade Federal Fluminense, 2004.

  • PINA, Leonardo Docena. As ilusões do paradigma da inclusão na produção teórica da educação física. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2009.

  • ROMERO, Ana Paula Hameriski. Análise da política pública brasileira para a educação especial na década de 1990: configuração do atendimento e atuação do terceiro setor. Dissertação (Mestrado em Educação). Maringá: Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Maringá, 2006.

  • SAVIANI, Dermeval. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 9. ed. Campinas: Autores Associados, 2005.

  • SOARES, Carmen Lúcia. Educação Física: raízes européias e Brasil. 2. ed. Campinas: Autores Associados, 2001.

  • SOARES, Carmen Lúcia, et al. Metodologia do ensino de educação física. São Paulo: Cortez, 1992.

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