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O corpo e o trabalho: reflexões sobre a ginástica 

laboral e sua necessidade no sistema produtivo atual

 

Professor da Rede Municipal de Ensino em Goiânia

Acadêmico do curso de especialização em Educação Física Escolar na

Escola Superior de Educação Física e Fisioterapia de Goiás (ESEFFEGO)

Guenther Carlos Feitosa de Almeida

guenther.carlos@gmail.com

(Brasil)

 

 

 

Resumo

          A modernidade e seus conceitos de sociedade, ciência, e corpo, fazem uma reviravolta nos mesmos conceitos vistos pela idade média. O corpo e seu lugar no atual processo produtivo foi o objeto de estudo deste trabalho. Analisamos o corpo sob a ótica de questões como o sagrado e o profano, a ciência, o sistema produtivo, o trabalho e o papel da ginástica neste processo. Para isso realizamos um estudo de revisão de literatura onde buscamos estudos sobre a modernidade, a ginástica e a forma de uso do corpo, nos trabalhos de Suassuna, Rodrigues, Soares e Le Breton. Olhar para a curiosa ascensão da ginástica laboral nas empresas e compreender o que está por trás do imaginário e do discurso da saúde e qualidade de vida do trabalhador.

          Unitermos: Corpo. Ginástica Laboral. Trabalho

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 14 - Nº 142 - Marzo de 2010

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Introdução

    O capital e suas formas de reestruturação e manutenção têm sido conhecidos desde seu surgimento na idade moderna, já são mais de três séculos de vigência deste modelo econômico.

    Para tanto o capital necessita reinventar seus mecanismos de dominação, seus métodos, suas aparências, com a finalidade de se manter. Dessa forma ele se vale da religião, da economia, da moral, e até da ginástica.

    O presente trabalho pretende então construir uma reflexão teórica sobre a visão de corpo presente na modernidade, e suas semelhanças com a visão de corpo defendida nas literaturas de ginástica laboral atuais, buscando relacionar a busca pelo corpo produtivo e a função da ginástica laboral nas empresas.

    Para isso nos amparamos nas reflexões sobre a modernidade e sua transição da idade média feita por Suassuna (2005), as contribuições de Le Breton (2006) sobre o controle político da corporeidade e em Soares (2001) para a compreensão do papel da ginástica desde sua origem como em seu desenvolvimento e uso na sociedade capitalista.

    Dessa forma o estudo se estruturou assim: primeiro trazemos um pouco das formas que o corpo vem assumindo ao longo da história discutindo o papel do corpo na idade média e na modernidade, após isto buscamos a relação do corpo e o sistema produtivo e da ginástica com o trabalho, por fim buscamos a compreensão do verdadeiro papel da ginástica laboral nas empresas atualmente.

O Corpo e a História

    Ao longo da história humana notamos que as concepções de corpo se modificam, pelo menos aparentemente, de acordo com as mudanças sociais, religiosas e de acordo com as revoluções.

    Utilizaremos o recorte do estudo do corpo a partir da idade média, haja vista que na idade moderna há uma tentativa de retomar idéias e concepções da idade clássica, e também por entendermos que grande parte dos tabus, conceitos e pré-conceitos e valores dados ao corpo atualmente, são resultados do embate das visões de corpo medievais com as visões de corpo modernas.

O Corpo na Idade Média

    O domínio da igreja na idade média era indiscutível, tanto nas questões religiosas, bem como nas questões econômicas e sociais. A grande influência da igreja atinge também o corpo, esta exerce dominação sobre a visão de santidade e profanação a respeito das questões relativas ao corpo. Sendo assim o corpo assume ao mesmo tempo funções santas e funções profanas, usos e costumes santos e também usos e costumes profanos.

    O homem neste período era visto de forma fragmentada e dualista, havia então, uma separação entre corpo e espírito, onde o corpo e as coisas referentes à ele era visto como inferior, o espírito e as coisas referentes a ele, normalmente ligadas à igreja, como superiores.

    Valendo-se desta idéia, o controle do corpo era feito pela natureza, Deus, o metafísico, o imaterial, o mito, um fenômeno que não poderia ser explicado pelo homem, apenas reproduzido e aceito em forma de dogma de verdade absoluta.

    Partes do corpo eram santificadas, como a cabeça, pois esta é quem comanda o corpo, assim como Deus comanda seus filhos, essa é capaz de produzir inteligência e pensamentos elevados, em direção a Deus, as demais partes servem a esta elevação divinal, e de forma nenhuma podiam servir aos próprios gostos do corpo e seus prazeres. “[...] referenciais religiosos: a hierarquia entre as partes ”nobres” do corpo e as partes ”julgadas indignas”, o pudor orientado para o que agrada a Deus.” (Corbin 2008, p. 09)

    Dessa forma vários tabus e concepções foram construídas e até cristalizadas a respeito do corpo e seu uso. O sexo usado para fins de reprodução humana, através do corpo era santificado e abençoado por Deus, porém o uso do corpo e do sexo para fins de prazer somente, era lascívia, luxúria, pecado abominável, dessa forma também eram visto as genitálias e as zonas erógenas, impuras e profanas, santificadas apenas no momento da reprodução. O sagrado segundo Rodrigues (1983, p. 25)” é o ser proibido que não pode ser violado, do qual não podemos nos aproximar, porque ele não pode ser tocado.”

    Assim, quando o corpo era utilizado para as questões relativas á Deus, à produção e engrandecimento do espírito, era santo, e quando ele era utilizado para as questões materiais os “prazeres carnais”, o estudo, a arte, ele era profano e deveria ser tratado como tal, negando, purgando, purificando e santificando-o. A relação corpo natureza era vista com o domínio da natureza sobre o corpo.

O Corpo na Idade Moderna

    A modernidade impulsionada pelas revoluções industrial e francesa, surge com outros paradigmas de sociedade, Deus, ciência e corpo. Neste momento acontece uma total inversão de poder, a igreja se enfraqueceria deixando de ser a detentora das verdades absolutas sobre o homem sobre Deus e sobre a sociedade, passando a ser questionada por cientistas e filósofos, que por sua vez trazem as verdades para o campo das ciências, assim estas eram obtidas a partir da comprovação científica.

    Na idade moderna, principalmente no período da revolução industrial e francesa, há um novo olhar sobre o corpo, uma valorização muitas vezes aparente uma indissociação de corpo e mente, corpo e espírito, há também uma busca pelo renascimento de alguns conceitos de corpo da idade clássica, decorrentes do pensamento de Descartes.

    A modernidade então chega com a premissa de uma mudança na visão de corpo, este era antes visto como profano ou só com o intuito de produzir coisas espirituais e superiores, agora é estudado em sua forma material, dissecado, analisado em formas humanas e não como anteriormente divinas e angelicais.

    “Caracterizado na modernidade por meio de aspectos biológicos, o corpo é parte do conteúdo estudado por uma ciência secularizada que assume os pressupostos do dualismo cartesiano, [...]” (Suassuna, 2005, p.30).

    Esta é a nova visão que o corpo assume na modernidade, sai do determinismo divino e imaterial, para o determinismo biológico. A busca moderna então seria pelo controle da natureza pelo homem Suassuna (2005).

O corpo e o sistema produtivo

    Na modernidade com o resgate da noção de corpo como máquina, gera o que Le Breton (2003 apud Suassuna 2005 p. 26) classifica como o despojamento do valor do corpo, este é encarado como um “invólucro mecânico” passível de separação entre corpo e subjetividade, corpo espírito, ou então essência e aparência.

    Dessa forma o corpo assume então uma face possível de ser quantificado, mensurado, educado para então se otimizado para a produção. O sistema capitalista em ascensão neste período, enxerga nestes conceitos a possibilidade de melhorar os lucros por meio do aumento da força do trabalhador. È neste momento que a ginástica assume um papel primordial na vida dos trabalhadores e das fábricas.

    “O corpo perde aí seus velhos encantos para um novo regime de imagens: aquelas que privilegiam as leis da física hidráulica, a lei dos líquidos e dos choques, a força do sopro do vento, o sistema das engrenagens ou das alavancas”. (Corbin 2008, p.08)

    Educar por meio da ginástica o corpo dos trabalhadores, aperfeiçoar o funcionamento das máquinas humanas que são os trabalhadores, dando-as uma boa “lubrificação” e “manutenção”, com a finalidade destes produzirem mais foi então a grande busca dos patrões nas fábricas.

Ginástica e trabalho

    O emergente sistema produtivo da modernidade, o capitalismo, tem como motor principal o lucro, é este que movimenta e alimenta o sistema. A lógica deste sistema apresenta uma “democratização do poder”, antes nas mãos dos nobres e da igreja, agora ele está nas mãos de que for capaz de produzir mais. Esta força produtiva iniciou-se neste sistema nas mãos dos burgueses de onde nunca saiu, e ao longo do tempo vêm se cristalizando em forma de classes sociais, dos que detêm a produção econômica e o poder político e dos que não detêm nada e vendem sua força corporal para os burgueses donos do comércio, das fábricas, etc.

    O objetivo do sistema capitalista é manter esta lógica que o renova e o mantém em vigor, como afirma Cury (1985) apud Jesus (1989):

    “Neste modo de produção capitalista as relações sociais se dão dentro de um contexto de dominação e de direção, isto é, hegemônico. Do antagonismo entre as classes, uma delas emerge como dominante, procurando manter o domínio e a direção sobre o conjunto da sociedade através do consenso. Assim, a classe dominante para se manter como tal, necessita permanentemente reproduzir as condições que possibilitam a dominação.”

    Dentro desta lógica do capitalismo, surge a partir do século XIX na Europa a afirmação de um projeto de educação corporal, com métodos e princípios que tinham como princípio controlar o corpo disciplinar, formar homens mais maleáveis flexíveis e adaptados para a produção.

    “O movimento ginástico europeu foi, portanto, um primeiro esboço deste esforço e o lugar de onde partiram as teorias da hoje denominada Educação Física no ocidente, balizou o pensamento moderno em torno das práticas corporais que se construíram fora do mundo do trabalho, trazendo a idéia de saúde, vigor, energia e moral colocadas à sua aplicação.” (soares, 1997, p.10)

    A ginástica agora sistematizada pela ciência e pela técnica, rompe então com seu núcleo primordial que era caracterizada dentro dos campos do divertimento, passa a reelaborar e disseminar novos usos do corpo, ou seja, o adestramento do homem para as novas exigências do capital, com o desenvolvimento da moral, do caráter, da virtude e da aptidão física pra o trabalho.

    A ginástica neste período passa então a servir como instrumento e potencializadora do processo de hegemonia do capital. A pretensão era clara construir um padrão de homem, forte disciplinado e dócil ao capital.

    O corpo saudável então é a busca do sistema, a máquina bem cuidada e regulada e quantificada para impulsionar os avanços do sistema, e impulsionar os lucros.

O grande mistério da Ginástica Laboral

    A ginástica laboral ou ginástica de pausa, como era chamada tem registros de prática ao final do século XIX e início do século XX. A primeira obra encontrada sobre ginástica laboral foi o livro intitulado “Ginástica de Pausa”, editado na Polônia em 1925 (Lima, 2005).

    Lima define a ginástica laboral da seguinte forma:

    A ginástica laboral, [...], pode ser conceituada como um conjunto de práticas físicas, elaboradas a partir da atividade profissional exercida durante o expediente, que visa compensar as estruturas mais utilizadas no trabalho e ativar as que não são requeridas, relaxando-as tonificando-as.” (LIMA, 2005, p.7).

    Atualmente é intensa em todo mundo a prática da ginástica laboral, seja nas fábricas, empresas ou repartições públicas, e o seu discurso se legitima através do mito da qualidade de vida relacionada à atividade física e saúde, e também ao comprovado aumento da produtividade do trabalhador, consequentemente o aumento do lucro das empresas.

    Dessa forma o capitalismo se apropria do uso dos corpos dos trabalhadores, impondo então uma nova subjetividade ao uso do corpo. Como afirma Le Breton:

    “Toda a ordem política vai de encontro à ordem corporal. A analise leva à critica do sistema político identificado com o capitalismo que impõe a dominação moral e material sobre os usos sociais do corpo e favorece a alienação.” (2006, p.79)

    As posturas os gestos são de certa forma reguladas, a subjetividade de movimento do sujeito não é aceita, mas sim movimentos standartizados, que são saudáveis para todos os trabalhadores, com a finalidade e maximizar a produção com o discurso de saúde, como mesmo afirma Lima:

    “A ginástica laboral é um meio de valorizar e incentivar a prática de atividades físicas como instrumento de promoção da saúde e do desempenho profissional. Assim, a partir da diminuição do sedentarismo, do controle do estresse e da melhoria da qualidade de vida, o aumento da performance profissional, pessoal e social ocorrerá naturalmente. [...] O objetivo da ginástica laboral é promover adaptações fisiológicas, físicas e psíquicas, por meio de exercícios dirigidos e adequados ao ambiente de trabalho. [...] podemos dizer que a ginástica laboral melhora a flexibilidade e a mobilidade articular; previne a fadiga muscular; elimina os vícios posturais; promove a socialização; aumenta a disposição e o ânimo para o trabalho; promove o auto conhecimento do corpo e a coordenação motora; diminui o absenteísmo e a busca ambulatorial; melhora a produtividade individual e do grupo (devido aos resultados dos itens anteriores)” (2005, p. 13)

    Os objetivos da ginástica laboral parecem ser claros e determinados, bem como o motivo da sua inserção massificada nas empresas e nas fábricas, o propósito é claro de conformação corporal para o melhor rendimento das máquinas, quero dizer dos trabalhadores.

    Não queremos aqui desqualificar as pesquisas científicas realizadas a respeito dos benefícios fisiológicos dos alongamentos, dos relaxamentos, enfim da ginástica laboral, porém a analise deve ser feita de modo a buscar as reais motivações da prática desta no cotidiano das empresas e das fábricas, e mais o que estas têm feito para flexibilizar a carga horária de trabalho, ser mais honestas nos salários, enfim promover a qualidade de vida do trabalhador.

Considerações finais

    Buscamos por meio de este estudo compreender os reais motivos da presença da ginástica laboral no mundo do trabalho atual, as reais intenções deste grande afã, chamada também de ginástica de pausa.

    A modernidade questionou os conceitos de corpo medievais, trazendo novos paradigmas de interpretação, estudo, e valoração do corpo. A modernidade trouxe entre outros o conceito de corpo máquina, o corpo passível de quantificação, o corpo que controla sua natureza, que produz suas técnicas.

    Vimos que se valendo disto, o sistema emergente se apropria destes valores, e todo o corpo máquina como necessário para a produção e a reprodução do sistema.

    Analisamos que esta forma de dominação do corpo por parte do sistema, se apresenta entre outras formas por meio da ginástica laboral, esta está inserida nas linhas de produção, nas empresas, nas repartições públicas, com o discurso de promoção da saúde e da qualidade de vida, também vimos que esta promove o melhor rendimento do funcionário proporcionando aos patrões maiores lucros.

    Longe de este trabalho desqualificar os estudos científicos, fisiológicos, pois é sabido dos benefícios da ginástica laboral para o bom funcionamento das articulações, músculos, etc. Porém, torna-se de igual forma difícil, aceitá-la como salvadora da pátria, promotora da saúde e da qualidade de vida do trabalhador, escondendo seu real interesse e o real interesse dos patrões na ginástica laboral.

    Torna-se necessário dizer que as finalidades da ginástica laboral parecem estar em função da conformação do corpo para o trabalho, o modelamento e a otimização do corpo para a produção para o conseqüente aumento do lucro.

    Faz-se necessário dizer que conceitos como qualidade de vida e saúde são podem ser mais amplos que a ginástica laboral e que a atividade física, e que não parecem ser garantidos com 20 a 30 minutos diários de alongamento e relaxamento.

Referências bibliográficas

  • CORBIN, A., COURTINE, J-J, VIGARELO, G. História do Corpo. Vol1. Petrópolis, RJ. Vozes, 2008.

  • LE BRETON, D. A Sociologia do Corpo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006.

  • LIMA, V de. Ginástica Laboral: Atividade Física no Ambiente de Trabalho. São Paulo: Phorte, 2005.

  • RODRIGUES, J.C. Tabu do Corpo. 3ª Edição. Rio de Janeiro: Achimé, 1983.

  • SOARES, C.L. Educação Física: Raízes Européias e Brasil. Campinas: Autores Associados, 2001.

  • _______________. Imagens do Corpo “Educando”: Um Olhar Sobre a Ginástica no Século XIX. Pesquisa Histórica em Educação Física, v. 02. Vitória: CEFD/UFES, 1997, p. 05-20.

  • SUASSUNA, D., BARROS, J., AZEVEDO, A., SAMPAIO, J. A relação Corpo-Natureza na Modernidade. In Sociedade e Estado, Brasília, v.20, n.1, jan/abril. 2005.

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