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Hercides José da Silva e a Educação Física 

catarinense: memórias do aluno, memórias do mestre

 

*Mestre em Educação. Doutoranda em Ciências do Movimento Humano

Pesquisadora do Núcleo de Estudos em História e Memória do Esporte e da Educação Física

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

**Doutora em Ciências do Desporto

Professora Adjunta da Escola de Educação Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Coordenadora do Núcleo de Estudos em História e Memória

do Esporte e da Educação Física, UFRGS

Vanessa Bellani Lyra*

Janice Zarpellon Mazo**

va_lyra@yahoo.com.br

(Brasil)

 

 

 

Resumo

          Florianópolis, capital do Estado de Santa Catarina, fins da década de 1940. Data deste momento histórico, a aproximação inicial do professor Hercides José da Silva, um dos primeiros licenciados na área no Estado de Santa Catarina, às práticas escolares de Educação Física. O estudo desta trajetória escolar, materializada em entrevista arquivada no Acervo de História Oral do Museu da Escola Catarinense, é integrante da pesquisa de mestrado intitulada Escola Superior de Educação Física de Florianópolis e o campo da formação de professores no estado catarinense: uma história, um olhar, uma identidade e busca contribuir, em seus limites, com dois aspectos que julga pertinente: se por um lado a análise das memórias de nosso ator é capaz de fornecer suas representações acerca das práticas escolares e profissionais da Educação Física catarinense, aproximando-nos do cenário que buscamos; por outro, almeja firmar a relevância e adequação do uso da História Oral às pesquisas na área da Educação Física.

          Unitermos: Memórias. História oral. Educação Física

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 14 - Nº 141 - Febrero de 2010

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    Uma primeira versão deste trabalho foi apresentada no IX Congresso Nacional de História Oral - Testemunhos e Conhecimento, na Universidade do Vale do Rio dos Sinos-UNISINOS, em abril de 2008.

Introdução

    A trajetória de vida do professor Hercides José da Silva atravessou a nossa de uma forma bastante curiosa. Como um dos primeiros profissionais licenciados na área da Educação Física a atuarem no Estado de Santa Catarina, nosso ator se encontra intimamente ligado à nossa pesquisa de mestrado intitulada Escola Superior de Educação Física de Florianópolis e o campo da formação de professores no estado catarinense: uma história, um olhar, uma identidade, defendida em fevereiro de 2009, no Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Federal de Santa Catarina. Fortemente atuante no quadro docente da referida Escola desde a sua criação, no ano de 1973, Hercides José da Silva viu nascer um dos mais importantes feitos que atingiram o campo da Educação Física em terras catarinenses: a criação e o reconhecimento de cursos superiores de formação de professores especializados. Deste modo, contar uma possível história da criação da Escola de Educação Física de Florianópolis não nos permitia ficar alheios às contribuições trazidas a este processo, por tão importante personalidade.

    No rastro de sua representatividade e importância, procuramos aproximarmos-nos de suas memórias por meio de uma entrevista.1 No entanto, no momento em questão (2008), nosso ator se encontrava muito adoentado, beirando os oitenta anos de uma vida apaixonada pelo ensino. Disputado de um lado, pelos perigos causados pelas inevitáveis emoções que emergiriam de suas memórias e, de outro, pelas dificuldades que lhe impunham limites de expressão, precisou resguardar-se no silêncio.

    Não por acaso, quando à procura de outras fontes relativas à pesquisa nas estantes do Museu da Escola Catarinense, fomos presenteados com um achado inesperado: no ano de 1996, professor Hercides havia concedido uma entrevista exclusiva ao projeto “Resgate da História e da Cultura Material da Escola Catarinense”. Tal entrevista, arquivada no Acervo de História Oral do referido museu, além de ser uma das grandes fontes que formam a base de nossa investigação, permitiu-nos, em alguma medida, novamente escutar a voz daquele mestre que hoje não nos fala mais. Nesse caminho, aventuramo-nos respeitosamente em um mergulho entre as memórias ora de sua infância ora de sua profissão e, de volta à superfície, vemos o quanto ambas são atravessadas significativamente por uma grande paixão e dedicação aos esportes e às práticas corporais de um modo amplo.

    Sendo assim, transcritas naquelas folhas de papel, estão os desenhos e os contornos que o professor nos apresentou de sua própria vida, numa conservação integral de suas palavras e expressões. Nesse sentido, importa dizer que ainda que esforçando-nos por ser vigilantes e, portanto, “distantes” o mais que conseguíssemos, estaremos participando ativamente no processo de contar essa história. Afinal, são nossos olhos que lêem em silêncio aquelas linhas; são nossos lábios que proferem em alta voz aquelas palavras. De um simples documento temos agora uma fonte de pesquisa: a fonte oral.

    Neste texto, nossas impressões e julgamentos encontram-se indissociavelmente ligadas às memórias de nosso ator num movimento imanente à natureza da própria atividade de pesquisa.2 Apropriando-nos de suas memórias, estamos, portanto, interpretando-as; e, interpretar é também, compor. Ao nosso leitor, dotado, por sua vez, do mesmo grau de liberdade de relacionar-se, agora com nosso texto, caberá a construção de outra nova realidade, visualizada a partir de suas próprias lentes. Somente é nesse momento da leitura, que segundo Sarmento (1995), o texto etnográfico encontra seu fim: “o trabalho em que o leitor acrescenta interpretações às interpretações das interpretações” 3 ( p. 173).

    “Interpretando as interpretações” de nosso ator, este texto terá alcançado seu objetivo maior, na medida em que possibilitar dois pólos - em nada opostos - de reflexão. Primeiramente, a partir das memórias de infância do Prof. Hercides, procuramos reconstituir alguns elementos que caracterizavam as práticas escolares e não-escolares de Educação Física na Florianópolis dos anos de 1940. O destaque foi dado às brincadeiras, aos grupos, aos professores que marcaram sua trajetória escolar, aos uniformes utilizados e, principalmente, à sua atuação nesse espaço que culminou na opção por sua carreira. Ao mesmo tempo, suas memórias profissionais nos colocam diante do quadro das práticas e categorias docentes que figurava na cidade até o início da década de 1970; de suas impressões acerca das mudanças pedagógicas e comportamentais que ocorreram no ensino de Educação Física na capital catarinense nesse intervalo de quase vinte anos; de seu amor desordenado e sua crença no poder educativo das práticas escolares de Educação Física; do que acredita ser um verdadeiro professor; do que deseja aqueles que adentrarem ao campo posteriormente a si.

    Nesse caminho, integralizando nossas pretensões, o segundo pólo de reflexão centra-se sobre a relevância e adequação do uso da História Oral4 às pesquisas na área da Educação Física. A História Oral busca conhecer o passado através do depoimento de pessoas que o vivenciaram, recorrendo à memória do entrevistado para a reconstrução da realidade segundo as lembranças trazidas pelas pessoas selecionadas para a entrevista. Os estudos de memória são relevantes no trabalho com fontes orais, por que o objeto de estudo na pesquisa histórica é reconstruído por intermédio dos entrevistados.

    O estudo do passado, de uma ampla maneira, parece ainda ocupar um pequeno espaço no grande campo que prima por um declarado “presentismo” em suas análises. Importa destacarmos, contudo, que a pesquisa histórica sobre temas relacionados ao esporte e Educação Física brasileira é crescente nas últimas décadas. Alguns programas de pós-graduação em Educação Física, cursos de mestrado e doutorado, estão constituindo linhas de investigação orientadas para está área. Entretanto, se compararmos o desenvolvimento da pesquisa histórica em Educação Física com outras áreas do conhecimento, ou ainda com a produção científica de outros países percebe-se a necessidade de estimular estes estudos investigativos.

Memórias do Aluno

    A vida escolar de nosso professor foi concretizada, em sua maioria, no Grupo Escolar José Boiteux. Neste estabelecimento, concluiu os então chamados, primeiro e segundo grau: o curso primário, o Normal Regional além da Escola Técnica do Comércio. Dentro do universo escolar, é nas memórias destinadas às aulas de Educação Física que o professor encontra significado maior. Remontando à sua época de aluno o encantamento pela área que viria mais tarde tornar-se seu campo de atuação, tem na lembrança emocionada dos professores que o iniciaram nas práticas, o marco desta paixão.

    Atenta-nos ao fato de que para a época, tais aulas atendiam pelo nome de “Gymnastica”, tendo a calistenia como expressão maior. O contato entre os alunos era muito restrito, não lembrando o professor de exercícios serem executados em duplas ou trios.5 Dentro da sala de aula, ainda que se lembre da utilização de carteiras duplas, o formato que vigorava na maior parte de sua trajetória era, pois, o individual.

    O ponto de destaque centra-se na disciplina que pairava na organização das aulas. Com suas posições bem demarcadas dentro da sala de aula, professor e aluno assumiam seus respectivos papéis de ensinar e aprender, num contexto onde, segundo ele, aprender “significava silêncio, disciplina, imobilidade”. Diante das insubordinações que, em tempos afloravam na classe, os alunos ficavam sujeitos a sanções disciplinares, regulamentadas e oficializadas na estrutura regimental da época. Amparados, portanto, pelos domínios legais, os castigos escolares se naturalizavam na ação pedagógica que norteou a formação inicial de nosso ator:

    Ah! Era comum [...] eu peguei o tempo da palmatória ainda, né, meio assim,,,meio...já era uma coisa que estava se extinguindo né, tanto quanto eu me lembro, mas ainda existia sim. De rezar em frente ao Santo, rezar ajoelhado, de castigo atrás da porta, de sentar entre as meninas [...] beliscões, puxões de orelha [...] além do que ainda, isso sobrava depois porque, sobrava um pouco mais depois porque ia um bilhetinho para casa [...] então ainda em casa a gente apanhava mais um pouquinho ainda, né.

    O castigo de “sentar entre as meninas” mereceu atenção especial em suas lembranças. Através da separação da turma onde, ora os meninos ocupavam a parte direita da sala e as meninas à esquerda; ora estas estavam posicionadas na parte da frente e aqueles, por sua vez, na parte de trás, a escola mais uma vez delimitava a ocupação dos espaços, adotando métodos como este que acreditava delineador das identidades desejadas. Tais ações punitivas estendiam-se às aulas de Educação Física na medida em que diante de infrações disciplinares, o aluno, segundo nosso ator, era obrigado a realizar movimentos como a flexão no solo e o canguru, característicos da época. Pede, no entanto, nossa atenção, ao fato de que suas lembranças, ainda que pareçam, não são marcadas por alguma espécie de ressentimento ou mágoa em relação à educação disciplinadora que recebera. Tem, contudo a “consciência Durkheimiana” de que a educação não pode ser concebida fora de seu tempo e lugar. Nesse caminho, entende que “[...] era a educação que cabia na época [...] fazer diferente daquilo é que era ruim.”

    A utilização dos uniformes cumprira para ele o mesmo papel de cunhar posições: ao mesmo tempo em que diferenciava meninos e meninas; auxiliava na função de igualar a todos na condição de aluno. Tanto quanto se lembra, somente a partir da quarta série passou a utilizar calça comprida. Até então, a “moda” permitia apenas a chamada “calça curta” que compunha o uniforme dos menores. Ambas deveriam ser brancas e vincadas, acompanhadas de um limpo sapato que para o momento, integralizava o uniforme escolar. Aos dias de “Física”, como aponta ser chamado às práticas da Gymnastica, cabia a utilização de um uniforme especial. Para o favorecimento dos movimentos, era determinado o uso de calção, muitas vezes feito a partir das calças que ficavam pequenas, assim como o da “camiseta de física”, que segundo ele, consistia numa malha sem mangas. Destaca que aos professores, por sua vez, cabia um uniforme específico. Em suas palavras, utilizavam-no “mais do que hoje, com mais freqüência do que hoje e com mais orgulho do que hoje.” Enquanto seus professores de sala de aula utilizavam frequentemente os guarda-pós; os professores de Educação Física utilizavam os tão distintos agasalhos. Sublinha que naquela época, a posse de um agasalho era algo raro, cabendo sua utilização somente a desportistas ou pessoas ligadas, de alguma forma, aos esportes.

    O tempo passava e, no ritmo de seu crescimento crescia, também, seu amor aos esportes, especialmente ao atletismo. Na década de 50, competindo em muitos campeonatos da cidade e mais tarde, na década de 60 ao participar dos primeiros Jogos Abertos de Santa Catarina representando Florianópolis no atletismo, sua opção pela área se consolidava. O jovem Hercides, que desde muito cedo se destacou por seu potencial físico e vontade na realização das atividades esportivas, iniciava, ainda que somente em seus sonhos, a construção de sua trajetória profissional. Destaca o quão presente é em suas lembranças a resistência inicial de sua família, particularmente de seu pai, diante de sua imensa paixão e dedicação ao atletismo. Com a justificativa de que tal dedicação atrapalharia o andamento de seus estudos que o levariam a sua tão sonhada formação em advocacia, seu pai controlava o tempo de treino e de estudos, favorecendo sensivelmente este em detrimento daquele. Nesse quadro, nos conta:

    [...] algumas vezes eu me lembro, e isso é até importante mencionar, que algumas vezes eu, vamos dizer assim, eu saía para estudar, aspas, mas era para treinar. Aí depois foi muito trabalho, Professor Barão, professor Amorim conseguiram convencer meu pai aos poucos, amoleceu um pouco, mas não de todo não, sabe [...]

    Em busca da realização de seus próprios sonhos, ainda que em alguma medida, frustrando os de seu pai, no ano de 1964 afastou-se do cargo público que exercia no oeste catarinense e, de volta à capital, iniciou o Curso Normal de Educação Física que inaugurava sua primeira turma. Segundo nosso ator, esse curso consistiu no “empurrão definitivo” para seu ingresso no campo. A imagem abaixo nos retrata seu diploma de Normalista em Educação Física.

Diploma de Normalista em Educação Física de Hercides José da Silva, 1964.

Fonte: Acervo particular da pesquisadora Vanessa Bellani Lyra

    Tecendo apenas elogios à sua estrutura e funcionamento, Hercides descreve o Curso Normal como um curso de formação humana, com carga-horária de mil e duzentas horas onde, segundo ele, seus objetivos mostravam-se muito claros:

    [...] ele preparava a gente para trabalhar, o objetivo básico dele era formar, era formar pessoal, formar mão- de – obra, vamos dizer né, para o magistério de primeiro grau, de primeira à quarta série, magistério de Educação Física de primeiro grau de primeira à quarta série [...] O nome era Curso Normal de Educação Física, ele era um curso especialmente, é porque antes desse, nos anos sessenta, havia um curso que eles chamavam de habilitação, né, aí era um curso de três meses. Tanto aquele curso quanto esse Normal era para suprir as necessidades do mercado.

    No ano seguinte (1965), sua “vocação” - como assim chamava sua predisposição e amor às práticas – o conduziu rumo ao Curso Superior, na cidade de Curitiba – PR, o qual era, na época, o curso superior mais próximo de Florianópolis. Ainda que suspensa, sua vaga de funcionário público estava garantida e, através dela, muita ajuda financeira recebeu para possibilitar sua formação. Sendo o paraninfo do Curso Normal o presente Secretário da Educação, este conseguiu com que nosso professor levasse em forma de bolsa de estudos, seu salário atual: “era uma coisa irrisória, mas ajudou muito” – destaca ele. Julga importante lembrar-nos de que antes mesmo do Curso Normal, ainda pelos ares do ano de 1961, rapidamente passou por uma breve experiência docente em séries primárias. Destaca que seu início no magistério se deu em sala de aula, ministrando aula de letras, durante seu período de estada no oeste catarinense. Fala-nos declaradamente de sua insatisfação em estar dentro da sala, uma vez que seu coração estava para além dela, nos pátios do colégio. Foi somente no ano de 1963 que iniciou definitivamente o magistério em Educação Física que, ao fim do mesmo ano, fora interrompido diante de sua volta à capital para iniciar o Curso Normal que o especializaria.

    A Licenciatura Plena em Educação Física abrangeu o período de três anos. Segundo ele, até o ano de 1987 todos os cursos superiores na área limitavam-se a esta configuração, sendo a partir deste, expandidos para quatro anos. Com o diploma em mãos, novos rumos, novas aspirações. Lembra-se claramente da sensação de volta à cidade que ainda não possuía nem mesmo aspirações de implantação de um curso superior. “Pensando um pouco mais alto”, como nos diz, recomeçou suas atividades no magistério direcionando-as unicamente ao ensino secundário, no Instituto Estadual de Educação e, posteriormente, na Escola Técnica Federal: sua formação encontrava-se, pois, muito à frente do campo que vigorava em Florianópolis.

Memórias do Mestre

    Fruto de uma pedagogia tradicionalista, visível em suas formas de classificação e em seus marcos de referência 6 professor Hercides vê o início de sua atuação profissional no início dos anos setenta, marcado por aquilo que chamou “conflito de pedagogias”. Segundo ele, o tecnicismo era a perspectiva pedagógica mais presente em suas aulas, no entanto, dividindo espaço, ao mesmo tempo, com a pedagogia tradicional e os ares da pedagogia nova. Lembrando-se de sua pouca liberdade em planejar e avaliar suas aulas, nos diz:

    [...] então naquela época a gente praticamente era executor do programa, executor de uma metodologia, executor até mesmo de uma ideologia [...] A gente seguia alguns métodos por exemplo, por exemplo até no começo era muito comum se trabalhar com determinados métodos, os chamados métodos tradicionais, convencionais: o método francês, método natural austríaco, método natural de Herbert, a calistenia [...] Então, ao se trabalhar usando essas metodologias, havia que se seguir os pressupostos dessas mesmas metodologias, então não se tinha como fugir do óbvio [...] 7

    Diferentemente de outros setores da educação, onde encontramos, para a época, relatos de um controle explícito dos conteúdos e práticas a serem ministrados, nosso ator enfatiza que embora admita a existência de uma pedagogia imposta verticalmente, “uma coisa meio de cima para baixo”, nunca houve a presença de algum fiscal do governo regendo suas atitudes profissionais. De acordo com suas idéias, o programa era espontaneamente seguido pelos professores de Educação Física por uma atitude de comodidade, onde “[...] era mais prático seguir a norma, seguir o ditame da época, seguir a regra, seguir o método.” 8

    Apesar da constante falta de materiais e inadequadas instalações físicas para a execução das aulas, nosso ator aponta uma adesão muito grande por parte dos alunos às práticas propostas: “se vibrava mais com a Educação Física” – diz. Como justificativa para tal aceitação e valorização da disciplina no espaço escolar, pontua o crescente estímulo que recebera os esportes nesse momento histórico, sendo inserido de forma intensa nos currículos escolares.9 Aponta a preferência de alunos e professores pela prática do basquetebol, handebol, voleibol, futebol além do atletismo. Este último, segundo ele, diferentemente das outras modalidades, somente poderia ser vivenciado em suas dimensões iniciais, sem caráter performativo ou competitivo em virtude da falta de recursos materiais e físicos. Enfatiza a utilização de uniformes especiais por seus alunos para a prática de Educação Física. Segundo ele, o aluno que não se apresentasse devidamente uniformizado nas aulas, teria vetada sua participação. A cobrança deveria ser feita diariamente e, caso o professor fizesse “vista grossa” à falta do uniforme, este, por sua vez, seria advertido.

    Ingressando no magistério superior no ano de 1972 na cidade de Joinville10 e posteriormente, nas Universidades Federal e Estadual de Santa Catarina11 um novo campo de atuação lhe abria as portas. Conta-nos que neste nível de ensino, os primeiros professores de Florianópolis divergiam consideravelmente em suas perspectivas, metodologias e objetivos para com a Educação Física, ainda que houvesse um clima de mútuo de amizade e companheirismo. A imagem abaixo nos retrata um dos momentos de atuação do Prof. Hercides ao ministrar aulas no curso de graduação em Licenciatura em Educação Física, na Universidade Federal de Santa Catarina. Na imagem, o referido professor encontra-se de pé, ao centro, vestindo agasalho de cor escura.

Aula no curso de graduação em Licenciatura em Educação Física, na Universidade Federal de Santa Catarina, década de 1970. 

Fonte: Setor de “Obras Raras” da Biblioteca Central da Universidade Federal de Santa Catarina.

    Lembra-se com orgulho – especialmente no caso da Universidade Estadual – das dificuldades de instalação enfrentadas pelos alunos das primeiras turmas durante sua formação:

    [...] as primeiras turmas de graduados que se formaram aqui nesta escola, fizeram natação aonde, na piscina ao ar livre ou aqui na praia aqui em baixo, ou na piscina da marinha ou da AABB, né. As duas primeiras turmas não tinham ginásio coberto pro basquete, pro handebol, pro voleibol [...]

    Segundo ele, vencer estes obstáculos iniciais da consolidação do campo na capital catarinense é um grande exemplo do que ele chama de “gana, vocação, comprometimento”, tanto individual como social. Emociona-se facilmente ao lamentar a ausência desses valores nas gerações que adentram mais recentemente os cursos de formação de professores:

    [...] alguns jovens... a gente percebe que não está aqui para fazer a Educação Física, ele está aqui para fazer qualquer coisa, menos Educação Física, e isso me dá um, isso me dá um, entende, uma certa tristeza na medida em que eu acho uma perda de tempo para um jovem seja aqui ou em qualquer coisa que o jovem esteja fazendo e que ele não esteja identificado[...] ninguém é obrigado a ficar aqui, isso aqui é para quem gosta, para quem quer, para quem acredita[...]

Considerações finais

    Assim, a entrevista é encaminhada ao seu final e junto com ela, esta pesquisa. O querido Professor Hercides, mestre de muitas gerações de professores de Educação Física, por meio de sua trajetória de vida, possibilitou-nos lançarmos um olhar sob o cenário profissional que figurava na capital catarinense nas décadas de quarenta a setenta. Suas memórias de aluno bem como suas memórias de mestre, recontaram-nos uma parte importante da história de nossa formação profissional, certamente inédita e desconhecida para muitos profissionais que hoje transitam pelo campo.12 Por outro lado, suas memórias, materializadas na entrevista que originou estas páginas, aproximaram-nos daquilo que Melo (1996) afirma ser aa grande contribuição que os estudos na área da Educação Física podem receber da História Oral: “ampliar o espectro de estudos e a multiplicidade de compreensões na História da Educação Física brasileira” (p. 5).

    A utilização das dimensões teórico-metodológicas da História Oral na pesquisa em Educação Física e Esporte é uma tendência mais recente do final da década de 80.13 Todavia, espera-se e trabalha-se para o alargamento deste espaço inovador de pesquisa na área, venha a contribuir para o desenvolvimento deste campo de conhecimento.

Notas

  1. "As entrevistas temáticas são aquelas que versam especificamente sobre a participação do entrevistado no tema escolhido como objeto principal, enquanto as de história de vida têm como centro de interesse o próprio indivíduo na história, incluindo sua trajetória desde a infância até o momento em que fala, passando pelos diversos acontecimentos e conjunturas que presenciou, vivenciou ou de que se inteirou" (ALBERTI, 1984, p.19). Dentro dessa classificação, nosso estudo encontra-se respaldado pela segunda.

  2. Inspirados em Chartier (1991), entendemos o conceito de apropriação: “A apropriação, a nosso ver, visa uma história social dos usos e das interpretações, referidas a suas determinações fundamentais e inscritas nas práticas específicas que a produzem. Assim, voltar a atenção para as condições e os processos que, muito concretamente sustentam as operações de produção do sentido (na relação de leitura, mas em tantos outros também) é reconhecer, contra a antiga história intelectual, que nem as inteligências nem as idéias são desencarnadas, e, contra os pensamentos do universal, que as categorias dadas como invariantes, sejam elas filosóficas ou fenomenológicas, devem ser construídas na descontinuidade das trajetórias históricas” (p.180).

  3. “No momento em que lê, o leitor – qualquer leitor – acrescenta as suas observações ao que lhe é dado ‘ver’, pontua com os seus comentários o que carecia de uma pausa ou de um prolongamento, preenche com a sua imaginação os hiatos ou as elipses que o texto não soube preencher, recalca o que é espúrio, remete para outros desenvolvimentos o que apenas foi balbuciado, adere ou rejeita o que, finalmente, lhe é sugerido” (SARMENTO, 2003, p. 173).

  4. De acordo com Thompson (1992), "Ela (história oral) trata de vidas individuais - e todas as vidas são interessantes.

  5. E baseia-se na fala, e não na habilidadeda escrita, muito mais exigente e restritiva [...] A história é apresentada por meio das palavras [...] Elas insuflam vida na história (p. 41)."

  6. “Gymnastica”, então sinônimo de aulas de Educação Física e, portanto, representante singular das práticas higiênicas, fundamentava-se “na crença de suas possibilidades de transformar os corpos das crianças representados como raquíticos, débeis e fracos em desejados corpos sadios, belos, robustos e fortes” (VAGO, 2002, p. 219) “A medicina encontrou na escola mais um espaço para se apropriar dos corpos” (p.180) – enfatiza o autor. As crianças precisavam ter seus corpos desinfetados, limpos, saneados, lapidados, refinados, longe dos vícios e próximo das sensibilidades.

  7. Ver BERNSTEIN, B. Clase y pedagogias visibles y invisibles. In: GIMENO SACRISTAN, J. e PEREZ GOMEZ, A. La ensenanza: su teoria y su practica. Madrid : Akal ,1989, p. 54-72.

  8. Os teóricos do tecnicismo se baseavam na crença de que a escola para ser eficaz deveria adotar a lógica do modelo empresarial. O modelo proposto pregava a necessidade da especialização de funções e a sua aplicação na educação fez do professor mero executor do que era planejado pelos especialistas” (ARANHA, 1997, p.156).

  9. Fontes históricas, como esta entrevista, por exemplo, parece-nos indicar o quanto a Educação Física serviu de instrumento propagador da dominação ideológica militar, por meio de características como acriticidade e utilitarismo.

  10. Principalmente a partir da Copa do Mundo de Futebol de 1970, onde o Brasil consagrou-se tricampeão mundial, o governo militar desenvolveu uma política para a Educação Física que GHIRALDELLI (1988, p. 59) classificou como competitivista. Os militares acreditavam que o esporte deveria ser aprendido na escola, e que lá seria formada a base da pirâmide em cujo topo estariam os nossos campeões. Como parte dessa política de formação de campeões os melhores atletas tinham prioridade na concessão de bolsas de estudos.

  11. Joinville foi a primeira cidade catarinense a abrigar um curso superior na área.

  12. Neste momento, o curso superior de Educação Física da UDESC era institucionalizado na Escola Superior de Educação Física, hoje Centro de Ciências do Esporte e da Saúde – CEFID.

  13. Alguns trabalhos publicados foram os de: Castellani Fº, Lino. Educação Física no Brasil: a história que não se conta. 1988.

Referências

  • ALBERTI, V. História Oral: a experiência do CPDOC. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1989.

  • CHARTIER, R. O Mundo Como Representação. In: Estudos Avançados 11 (5), 1991.

  • SARMENTO, M.J. O Estudo de caso etnográfico em Educação. In: ZAGO, N. et al. Itinerários de Pesquisa: perspectivas qualitativas em Sociologia da Educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p137 – 179.

  • THOMPSON, P. A voz do passado - História Oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

  • VAGO, T.M. Cultura escolar e cultivo de corpos: Educação Physica e Gymnastica como práticas constitutivas dos corpos de crianças no ensino público primário de Belo Horizonte (1906-1920). Bragança Paulista: EDUSF, 2002.

  • LOURO, G. L. Corpo, Escola e Identidade. In: Educação e Realidade 25(2): 59-76, jul/dez 2000.

  • BERNSTEIN, B. Clase y pedagogias visibles y invisibles. In: GIMENO SACRISTAN, J. e PEREZ GOMEZ, A. La ensenanza: su teoria y su practica. Madrid : Akal ,1989, p. 54-72.

  • ARANHA, M.L.A. Historia da educação. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Moderna, 1996.

  • GHIRALDELLI JÚNIOR, P. Educação Física Progressista. São Paulo: Loyola, 1988.

  • FARIA JUNIOR, Alfredo Gomes de. Modelo alternativo para a educação física brasileira. In: COSTA, L.P. Desporto Comunitário e de Massa. Rio de Janeiro: Palestra, 1981.

  • FIGUEROA, Peter. Equality, Multiculturalism, Antiracism and Physical Education in the National Curriculum. In: EVANS, John . Equality, Education e Physical Education. London: Falmer Press, 1993.

  • MEIHY, José Carlos Sebe. Manual de história oral. São Paulo: Loyola, 1996.

  • MELO, V.A. Escola Nacional de Educação Física e Desportos: uma possível história. Campinas:UNICAMP, 1996. Dissertação (Mestrado em Educação Física).

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