Com quantos paus se faz uma canoa tradicional ribeirinha? ¿Con cuánta madera se construye una canoa tradicional ribereña? |
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*Mestando do Programa de pos graduação Stricto Senso da Universidade Castelo Branco - RJ Prof. da Rede Estadual e Municipal de Ensino do Estado do Pará ** Mestrando do Programa de Pós Graduação Stricto Senso da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR (Brasil) |
Evaldo Jose Ferreira Ribeiro Malato* Evaldo Jose Ferreira Ribeiro Jr** Dra. Vera Lúcia de Menezes Costa Dr. Manoel José Gomes Tubino (in memorian) |
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Resumo A Canoagem tradicional dos povos ribeirinhos do Estado do Pará, utilizada por estes milenarmente de maneira a suprir suas necessidades cotidianas diversas, tem desenvolvido-se bastante no aspecto esportivo e cultural. O presente estudo teve por objetivo verificar se a Canoagem tradicional pode ser considerada uma manifestação esportiva de identidade cultural do Estado do Pará. O tipo de estudo foi caracterizado como uma pesquisa descritiva qualitativa, que levantou as principais características de estrutura da canoagem tradicional e buscou o aprofundamento do conceito de identidade cultural, possibilitando a construção de quatro (4) referências extraídas de três grandes autores culturalistas: Stuart Hall (Construção Discursiva e Sentimento de Pertencimento); Benedict Anderson (Comunidades Imaginadas) e Eric Hobsbawm (Tradição Inventada). Unitermos: Canoagem tradicional. Identidade cultural. Culturalistas
Resumen El canotaje tradicional viene desarrollándose de forma sorprendente en el territorio brasileño, más específicamente en el interior del Estado de Pará, recibiendo atención en el ámbito deportivo y cultural. El presente estudio tuvo como objetivo verificar si el canotaje tradicional puede ser considerado una manifestación deportiva de identidad cultural de aquella región. El estudio fue caracterizado como una investigación descriptiva, cualitativa, que recopiló las principales características de la estructura del canotaje tradicional y buscó profundizar el concepto de identidad cultural, posibilitando la construcción de cuatro referencias extraídas de tres grandes autores culturalistas: Stuart Hall (Construcción Discursiva y Sentimiento de Pertenencia); Benedict Anderson (Comunidades Imaginadas) y Eric Hobsbawm (Tradición Inventada). Palabras clave: Canotaje tradicional. Identidad cultural. Culturalistas
Abstract The traditional canoeing for all riparian people from Pará state, used by them for thousands of years to overcome their daily necessities, has been developing a lot culturally and sportively speaking. The purpose of this research has been to verify if the traditional canoeing can also be considered a sportive and cultural manifestation from Pará state. This kind of research was set as a descriptive and qualitative research that looks for the main features of the traditional canoeing and also went deeper on the cultural identity concept, allowing the building of four (4) references extracted from three great culturalistic authors: Stuart Hall (Construção Discursiva e Sentimento de Pertencimento); Benedict Anderson (Comunidades Imaginadas) and Eric Hobsbawm (Tradição Inventada). Keywords: Traditional canoeing. Cultural identity. Culturalistic |
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http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 14 - Nº 141 - Febrero de 2010 |
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Desde o inicio da historia da humanidade o homem precisou deslocar-se por cima da água em determinados trechos, e logo então surgiram o que hoje podemos definir como: canoas, barcos, navios enfim, diversas são suas nomenclaturas de acordo com os mais variados protótipos e modelos que ate os dias de hoje foram e são criados para a mesma finalidade, a de transportar-se obre as águas.
E pesquisando sobre a história da canoagem tomamos conhecimento que os egípcios no séc. XV a.C. e mais tarde os astecas nos séculos III a IX d.C. usavam embarcações propulsionadas com pás que alguns historiadores alegam ser a origem das atuais canoas, muito embora, temos conhecimento que esta necessidade de locomoção sobre as águas tenha surgido desde a origem do próprio homem. Porém, a grande corrente doutrinária afirma que foi no século XVI o registro das atuais concepções de canoa e caiaques. Neste período historiadores registravam a utilização de canoas na América do Norte, utilizando madeira e peles, embarcações leves e rápidas, próprias para enfrentar os rios canadenses, repletos de corredeiras. Enquanto que a canoa era utilizada por indígenas no interior do continente, o caiaque era usado pelos esquimós para pescar e transportá-los entre dois pontos da costa. Esses caiaques eram formados por uma estrutura de madeira, revestida com pele de foca e calafetada com a gordura das articulações daqueles animais.
No Estado do Pará, Talvez um dos estados mais ricos hidrograficamente do Brasil. a canoagem desenvolve-se culturalmente de uma maneira bastante peculiar e especifica, aqui devido a rica vegetação (Floresta amazônica) e a grande variedade de madeiras de Lei, as canoas são construídas artesanalmente com técnicas repassadas milenarmente por nosso ancestrais. Diversos tipos e modelos são desenvolvidos de acordo com cada região onde elas são construídas, mais todas de madeiras e adequadas a suprirem suas necessidades cotidianas.
No dia 23 de Março de 2007, a nossa equipe de remadores da AECAVBEL Associação Ecológica de Canoagem e Vela de Belém realizou uma canoata de Belém (Pará) ao vilarejo de Caracará, localizado no município de Cachoeira do Arari, na mesorregião da Ilha do Marajó e microregião do Arari, localizada a 01º 00' 36" de latitude sul e 48º57'36" de longitude a Oeste de Greenwich (PORTAL AMAZÔNIA, 2009). Nosso principal objetivo era o compromisso de aliar o esporte – canoagem tradicional - a uma aventura ecológica e a um gesto de solidariedade social, pois nesta aventura doamos cerca de um mil e quinhentos livros didáticos para o acervo cultural da mini biblioteca da escola daquelas comunidades ribeirinha.
Caracará é um grande rio da ilha de Marajó, onde se encontram quatro comunidades ribeirinhas: São José, Santa Clara, Ribolada e Aracajú, próximas uma das outras e ligadas somente por vias de rios. Percebe-se que neste local o principal meio de transporte é a canoa tradicional, construída artesanalmente de uma maneira bastante peculiar e específica, com madeiras de lei devido à rica vegetação (floresta amazônica).
A Amazônia, denominada por muitos de o “pulmão do Mundo” por sua extensa riqueza de grandes vegetações, é irrigada por inúmeros e grandes rios, e às margens destes encontram-se nossas populações ribeirinhas que vivem do extrativismo local, como da pesca, da fauna e da flora.
Segundo diversas estatísticas, a Amazônia hoje representa o maior reservatório de água doce do mundo, na qual a quantidade de rios e afluentes é tão grande que difícil se torna a tarefa de enumerá-los e desbravá-los, por isso, o meio de transporte usual da região são as embarcações.
Por ocasião da nossa experiência, canoas de diversos tamanhos, tipos e modelos foram vistas ao longo da via fluvial, como se estivéssemos transitando em uma grande cidade apreciando a movimentação dos diversos tipos de veículos. Todos os moradores da localidade, ou grande parte deles, possui sua própria canoa ou casco, nome dado às canoas pelos ribeirinhos, que são utilizadas como meio de suprir as necessidades cotidianas. Desta forma, se dirigem às escolas, às igrejas, à visitação de amigos, aos jogos de futebol, às mercearias, fazendo uso deste meio de transporte como parte essencial de suas vidas. Trata-se de embarcações construídas de tronco de árvores e feitas artesanalmente por eles mesmos através de técnicas repassadas por seus ancestrais.
Assim, fica clara a observação de que a canoa tradicional é considerada, para eles, um meio de transporte de maior valia para o seu deslocamento.
Sabe-se que desde o inicio da humanidade os homens necessitaram criar formas de adaptação ao meio natural inventando instrumentos que possibilitassem a sua sobrevivência, e assim, tiveram que criar também o meio de se transportar sobre as águas. Surgiram então as canoas, já que em nossas florestas há uma grande riqueza em troncos de árvores. Até hoje essas canoas são utilizadas, sendo denominadas de canoas tradicionais, por ser uma tradição centenária, necessária e bastante comum às comunidades ribeirinhas. Tal artefato acabou por transformar-se também em poderoso mecanismo de prática esportiva entre os ribeirinhos, tornando-se instrumento de lazer ou competição.
Vimos assim, o homem fazendo valer sua capacidade de apropriar-se da realidade natural para garantir a sobrevivência no meio, e, por conseguinte, ainda tornar agradável a sua existência. Segundo Anderson (2008), as vidas humanas estão cheias dessas combinações entre acaso e necessidade.
Desta forma, constituída como uma prática esportiva de identidade cultural (TUBINO, TUBINO E GARRIDO, 2007) regional do Estado do Pará, a canoagem tradicional leva em consideração o que os grupos sociais ribeirinhos desenvolveram em suas atividades lúdicas utilizando os recursos disponíveis, a madeira e os rios da floresta, organizando a vida cotidiana como resposta às próprias necessidades. O espaço de lazer e o tempo livre, segundo Costa Neto (2005) passam a ser organizados e vividos por meio de práticas lúdicas que refletem as características básicas da ordem cultural daqueles grupos. Desenvolvê-las enquanto esportes com identidade cultural é cultuá-las pelo imaginário lúdico da comunidade, deixando fluir suas criatividades e invenções.
Existe aí também um sentido de gratuidade na adesão às formas esportivas o que faz com que aquela atividade, diz Pinto (1996), neste caso, a canoagem tradicional, encontre um fim em si mesma, fazendo com que a finalidade do jogo de remar pelos rios da Amazônia, seja determinada pelos desejos que movem as ações competitivas ou turísticas, ultrapassando a condição utilitária de transporte, interpenetrando ludicidade e desempenho.
O esporte, considerado como um fenômeno sociocultural importante no panorama de final de século XX e neste início do século XXI envolve a prática de atividades predominantemente físicas, que são permeadas por competições com finalidade recreativa ou profissional, ou ainda atividades físicas não competitivas, objetivando apenas o lazer. Trata-se de um fenômeno que traz grandes contribuições para a formação, o desenvolvimento e/ou aprimoramento físico, intelectual e psíquico de seus praticantes e espectadores, além de possibilitar a criação de uma identidade esportiva para a inclusão social. Enquanto uma ação social institucionalizada, pressupõe regras para sua aplicabilidade, traz indiscutível relevância nas relações interpessoais e até internacionais, garantindo renovadas dimensões sociais que vêm a provocar uma revisão conceitual em todos os campos do conhecimento inerentes à sua interdisciplinaridade (TUBINO, 1992).
Entre as modalidades esportivas existentes, a canoagem tradicional ribeirinha, um dos esportes da natureza, representa uma ação que pode aliar a simples prática do esporte às questões de cidadania e às ecológicas, trazendo a formação de uma consciência ambiental, trabalho este que pode ser desenvolvido pela educação, através de propostas nas quais o esporte seja apresentado de forma lúdica, educativa e contributiva para o processo de amadurecimento humano.
É neste contexto que se pode definir o esporte como uma ação coletiva, à qual os indivíduos ao participarem buscarão o ambiente como razão de ser de múltiplas atividades de lazer, afetivas e sociais, possibilitando o surgimento e o fortalecimento de culturas esportivas, com a promoção, a recuperação ou a manutenção da saúde.
Nesta perspectiva do esporte como dimensão constitutiva do lazer podemos compreendê-lo como um conjunto de ocupações as quais o indivíduo pode entregar-se de livre vontade, seja para divertir-se ou recrear-se, ou ainda para desenvolver sua formação e sua livre capacidade criadora, que não busca outra recompensa além da satisfação provocada pela própria atividade de lazer. Nesta dimensão de lazer, o esporte traz em seu bojo relações éticas diferenciadas daquelas contidas no trabalho sendo um espaço privilegiado de trocas culturais.
Entre estas modalidades de esporte, existem aquelas que possibilitam a interação do homem com o meio ambiente, levando-os à reflexão dos impactos da presença humana na natureza, constituindo a garantia de uma atitude pessoal com relação ao meio ambiente.
Neste sentido, a canoagem ribeirinha tem oportunidade de contribuir no resgate dos valores humanos, proporcionando sensibilidades já não mais tão vividas e apreciadas no cotidiano formando o elo entre o homem e si mesmo, favorecendo a união das partes de um homem fragmentado ao longo dos anos por suas próprias mãos.
Para desfrutar desse espaço lúdico esportivo de lazer, os ribeirinhos produzem os próprios objetos de prazer, no caso, as canoas tradicionais, consideradas também como um meio de transporte de significativo valor para os seus deslocamentos. Cada um cuida e zela da sua canoa. As técnicas de como remá-las nem mesmo eles sabem dizer como aprenderam, pois desde cedo e pode-se dizer, desde quando nascem já praticam esta atividade e vão, por tradição, recebendo os conhecimentos da remada de seus antecessores, isto é, aprendendo uns com os outros.
Incomodados com a feitura de tal objeto e o que representa, mergulhamos junto à comunidade para melhor compreender o processo de construção das canoas, esse processo de como o homem se põe a criar, a transformar com dinamismo a matéria, exercitando o que Bachelard (1990) formulou: imaginação criadora e vontade. E foi assim que tivemos a oportunidade de conhecer o Sr. Messias dos Santos, vulgo Miçanga, que apresentando seu pai, o Sr. Nelson Dias dos Santos (2009), um autêntico caboclo amazônico, de 55 anos, informou ser este o grande construtor de canoas da localidade. Personagem reconhecida na comunidade por sua arte, Seu Nelson nos conta que desde doze anos de idade já trabalhava com seu pai nas construções de canoas tradicionais, e depois do falecimento de seu genitor continuou nessa profissão artesanal de onde tira seu sustento principal. Narra que sua maior dificuldade nos dias atuais está em encontrar as árvores ideais para as fabricações, pois com a exploração desordenada das matas elas estão cada vez mais devastadas, dificultando assim o exercício desta profissão.
“Hoje não é mais o caboclo morador da área que tira moderadamente proveitos da natureza para sua sobrevivência, e sim as grandes empresas que vem com seus mais variados maquinários devastando em alta escala nossas florestas em função de lucros e benefícios próprios e nós só ficamos vendo sem nada podermos fazer”, relata Seu Nelson quando aceita prosear sobre sua profissão. Sua denúncia sobre o extrativismo predador nos sensibiliza e nos aumenta o desejo de conhecer suas proezas. Humildemente, e com seu velho machado nas costas, ele nos leva a percorrer a floresta em busca de uma árvore para a construção de uma canoa, espécie que já se encontra em adiantado estado de extinção, já denunciado. Neste local decidimos registrar e catalogar todos os procedimentos técnicos dessa construção artesanal.
Seu Nelson, bastante sentido e magoado, nos conta que a maior destruição das matas, ocorre por parte de uma grande empresa, que nem sabe citar o nome, e que há cerca de mais ou menos uma década vem extraindo todos os diversos tipos de madeiras para a confecção de “dormentes”, peças denominadas pelos exploradores. Esses madeireiros se aproveitam dos próprios moradores locais que, ingenuamente, contribuem com a mão de obra mais barata para os devastadores. “É lamentável, além de estarem nos fazendo mal, ainda nos usam como verdadeiros escravos deles e os prejuízos que causam a nossa região são irreversíveis, até a nossa existência”, lamenta seu Nelson, que apesar de seu pouco estudo tem uma visão de águia e sente na pele as mudanças provocadas pelo capitalismo selvagem e a exploração desordenada de seu quintal, a sua Floresta.
Sr. Nelson concorda em nos mostrar todos os procedimentos de como se constrói uma canoa tradicional da Amazônia, então fomos apanhá-lo em sua casa nas primeiras horas da manhã e partimos rumo à floresta.
Depois de uma hora de caminharmos pela mata à procura de uma árvore ideal para a construção de uma canoa, deparamo-nos com uma árvore abatida no chão ao que o Sr. Nelson informa ao grupo ser uma árvore de sucupira, linda e frondosa, que, segundo ele, chega a mais ou menos uns cinqüenta metros de altura, ainda que as fontes teóricas a coloquem em torno de 16 a 18 metros, o que não descarta a hipótese de, naquela região exuberante, Sr. Nelson ter razão em sua avaliação. A sucupira fornece, segundo Lorenzi (2002), uma madeira dura usada na carpintaria e na construção civil. O poder medicinal dos óleos, bem como das tinturas extraídas de suas cascas, é utilizado pela farmacopéia brasileira (LORENZI & ABREU, 2002).
Mas o que merece registro aqui é a denúncia do Sr. Nelson sobre as destruições advindas do progresso. Com o desmatamento ilegal da floresta, são destruídos os habitats mais ricos e diversificados do mundo, espécies animais ficam sem condição de sobrevivência em prol do benefício da extração de matéria prima que possui alto valor comercial no mercado, as queimadas se instituem, a emissão de carbono aumenta na atmosfera interferindo no efeito estufa, no aquecimento global e nas mudanças climáticas. Os habitantes da floresta sujeitos a vivenciarem um processo de desertificação no seu habitat, perdem, ao longo do tempo, sua condição de sobrevivência, uma vez que seus alimentos e remédios retirados das plantas vão desaparecendo. A floresta, se destruída, não terá condições de se recuperar.
Nesta etapa da experiência vivenciada, causava admiração extremada a beleza e o encanto da madeira ideal para construções de canoas. Deparamos com mais uma frondosa árvore, e, em seguida seu Nelson prepara o terreno e começa a golpear a árvore com seu afiado machado, e após nada menos que a terceira machadada, ouve-se um grito: PARE!!!!!!!! O grupo não suportava mais ver aquela cena, que já significava grande crueldade. Ninguém ali queria presenciar, aquela árvore linda sendo derrubada, e resolvemos mudar imediatamente a estratégia de se presenciar a construção de uma canoa, já que não era desejo compartilhar com aquela agressão à natureza, uma vez que fazemos parte da AECAVEBEL (Associação Ecológica de Canoagem e Vela de Belém), que trabalha em prol da proteção do meio ambiente.
Encontra-se aqui um paradoxo: necessitamos de um artefato para deslocamento, que permita a recreação e o esporte no rio, mas que para a sua construção demanda que alguma coisa do ambiente seja destruída, sendo usada a potência da natureza em detrimento da realização de nosso desejo e necessidade. Nossa indignação tem, para seu apoio, a teoria do desenvolvimento sustentável que prescreve o desenvolvimento econômico e social com políticas de preservação ambiental, já que a deteriorização do ambiente está diretamente relacionada à pobreza e ao baixo nível de qualidade de vida, e esses ribeirinhos parecem estar conscientes dessa necessidade de preservação não só para si, mas para o equilíbrio da biosfera, o que alcança toda a humanidade.
O conceito de ecodesenvolvimento vem definir, segundo Neves (2009), o estilo de desenvolvimento adaptado às regiões do Terceiro Mundo e, consequentemente pode ser estendido aos povos ribeirinhos, pois, segundo a autora estes já detêm um tempo de relação com essa natureza em que vivem e, ao criticá-los devemos ajustar o nosso olhar do ponto de vista do habitante da região, procurando entender seu mundo, seus mitos e significados, compreendendo a lógica com que operam no seu meio. Oriundos de uma economia extrativista, é da terra que retiram seu sustento e sobrevivência. Almeida (1994) nos ensina que devemos compreendê-los a partir das limitações biofísicas do ambiente, mas com vistas ao crescimento moral da humanidade.
Mas o Sr. Nelson, diante da decisão de nosso grupo de não participar da extração, nos convida a adentrar mais à floresta onde ele já tinha uma árvore cortada para fazer uma canoa, já na fase da buliação (veremos mais adiante nas fases das construções das canoas).
No caminho por um longo rio, ele rema nos contando que entende as colocações de nosso grupo em preservar a floresta, mas questiona o que podia ser feito. Argumenta que se ele não tira a árvore, na qual garante o sustento da família, vêm os catadores de dormentes e a tiram, sem piedade, e sem pedir licença. Assim justifica sua reflexão, colocando-nos em situação de perplexidade com tendência a concordar com ele. Sugerimos então, que procurasse um órgão competente para registrar uma denúncia para o que ele volta a argumentar que mal tinha condições de ir até a cidade levar sua esposa ao médico, já que teria que remar umas cinco horas, quanto mais de registrar esse fato e, mais alarmante ainda, afirma que as autoridades têm conhecimento, mas, se beneficiam, se corrompem. Consideramos sábias suas colocações observando que, apesar de poucos conhecimentos sobre os feitos e fatos, a louvável sensibilidade de sua pequena condição diante do emaranhado de fatores que determinam a vida naquele lugar, mas suas carências e dificuldades ultrapassam seu poder de intervenção.
Chegando ao local, lá estava sua árvore, tombada ao chão, e em estado de buliação como ele tinha nos falado, e já parecendo com o formato de uma canoa. Era uma árvore de pracuúba, segundo ele, uma das melhores para esta finalidade. Depois de buliá-la ele iria brocá-la com uma verruma, depois virar e limpar de trincha, ou seja, escavá-la, seguindo seus próprios palavreados caboclos. Ao final de tudo isso iria conseguir um búfalo emprestado de seu vizinho, trazê-lo ao local e arrastar a tora até a margem do rio que ficava aproximadamente a 1 km de onde estávamos. Para só então poder fazer os próximos procedimentos (queima e acabamento) no quintal de sua casa, em sua marcenaria.
E como todos os moradores de lugares encantados, Sr. Nelson trabalhava na demonstração da buliação da tora, no entalhamento do modelo da canoa, narrando alguns mistérios daquele lugar. Conta-nos que já era para esta canoa estar pronta, mas na verdade ele estava com receio de voltar àquele lugar sozinho, pois há alguns dias atrás ele estava trabalhando naquele lugar, naquela futura canoa, quando começou a ouvir vozes e ruídos vindos em sua direção, o que o fez abandonar tudo e sair correndo para margem onde havia amarrado sua canoa e remar pra casa. A natureza, com sua exuberância pressupõe um imaginário que envolve o povo ribeirinho, suas crenças e histórias mobilizam as ações.
Sr. Nelson seguiu nos contando suas historinhas, e, para nos deixar ainda mais em pânico, conta que no mês passado, ali mesmo, sua mulher havia sido picada por uma jararaca e nem imagina como conseguiu chegar com ela no município de Cachoeira do Arari, que fica a cerca de mais de cinco horas de remo. A partir daí nossa equipe, em perceptível estado de medo, resolveu terminar esta matéria em sua casa, tomando um bom cafezinho. Mesmo assim, no caminho, sua filha Maria que nos acompanhava, afirma ter avistado uma jararaca bem no meio do caminho, o que fez com que o quilômetro de distância que teríamos que atravessar se tornasse, de acordo com nossa imaginação, dez, e enquanto não chegávamos à beira do rio a tensão era total, adrenalina em alta.
Por fim chegamos à casa de nosso anfitrião e ele discorreu didaticamente sobre a construção da canoa: (a) primeiro passo: derrubada (escolher a árvore a ser sacrificada). Entrar na mata e olhar para aquela variada vegetação e denominá-las por seus tipos e espécies, para nós, já é uma tarefa muito difícil, mas Sr. Nelson conhece todos os tipos e qualidades de árvores ali existentes, distingue com facilidade cada uma e sabe denominá-las. Segundo ele na nossa região existem muitas espécies de arvores que podem servir pra construção de uma boa canoa, entre elas temos: sucupira, mandiogueira, burajuba, cupiuba, angelim, jutairana, pracuuba, curtiça, castanheira, morcequeiro, andiroba, juruba, guaruba, jasmim e outras mais que podem ter sido esquecidas. A idéia de sacrifício da árvore é própria do imaginário do sagrado de que algo deve ser transmutado em benefício de outra vida, outra utilidade, outra missão. Ela passa a servir com outra natureza. Isso se faz num gesto de extrema reverência a quem lhe nutre o cotidiano. (b) segundo passo: (lavrar, desgalhar, alinhar e descascar a madeira). Após a derrubada da árvore, que dura cerca de uma manhã inteira, o construtor trabalha no desgalhamento do tronco e alinhamento da peça escolhida para a fabricação da canoa, o que, confeccionada a golpes de machado deve durar dois a três dias.
Segundo passo: Lavrar (desgalhar, alinhar e descascar a madeira)
Trata-se de uma fase bem delicada, afirma Sr. Nelson, dizendo-nos que este alinhamento irá definir o modelo da mesma, e ele denomina esta fase como a “lavração da tora”. (c) terceiro passo: bulia (esculpir). Esta, segundo nosso informante, é a fase mais delicada de toda a construção, pois o construtor terá que esculpir a tora, entalhando-a com golpes de machado já nos moldes do modelo da canoa, como uma obra de arte. (d) quarto passo: brocação. Com um instrumento denominado por eles de verruma, eles irão brocar toda a extensão do casco, com a intenção de, quando forem escavá-los, não ultrapassar a espessura do mesmo. (e) quinto passo: cavação (escavação do tronco). Nesta fase o tronco é virado, e com instrumentos denominados trincha e ferro de cova, escava-se o tronco até os limites determinados pelo processo anterior, o das “brocadas”, que servirão de orientações ao limite a ser aprofundado no casco, não permitindo assim que o escultor ultrapasse e estrague ou deixe fragilizado o tronco para o fim a que se destina. (f) sexto passo: vareiar (queima do tronco até ele ficar mole). Depois do tronco já esculpido e escavado, vem agora o processo final, onde o tronco é preparado com tesouras para abri-los a seus limites, e em seguida colocado em baixo de um fogo, até o ponto da tora ficar bem mole para em seguida ser moldada dentro de seus limites, onde sua forma côncava vai ser definida.
Sexto passo: Vareiar (queima do tronco ate ele ficar mole)
E por fim (g) sétimo e último passo: acabamento. Esta é a fase em que colocados os bancos, a calafetagem dos furos feitos na fase da brocação e, por fim, a pintura onde cada um irar personalizar a seu modo. Segundo Sr. Nelson os preços da canoa pronta estão ligados à capacidade da mesma, ou seja, a capacidade para cada pessoa aumenta em 100 reais, melhor explicando, diz ele: canoa pra uma pessoa, 100 reais, pra duas, 200, pra três, 300 e assim sucessivamente.
Desse modo temos as nossas canoinhas prontas para as mais diversas finalidades, desde o suprimento das necessidades utilitárias cotidianas daquele povo ribeirinho como a seu próprio lazer. Nascida de um extrativismo original, ela se transformou pela mão e desejos humanos num objeto artesanal lúdico e de sobrevivência. Sabendo-se que apesar dela ter sido construída de um pau só, a antiga e primitiva ciência para a sua construção (que nos é repassada de gerações a gerações) constitui-se numa árdua e difícil tarefa, atribuídas somente a artesãos nativos e desenvolvidos dentro de seu próprio meio, a floresta.
Percebemos o quão ritualizado é cada um dos passos descritos. Não se trata apenas de construir um objeto por uma técnica, mas de criá-los em estado de reverência à matéria prima original: a natureza, a árvore que lhe distribui vida e se dá ao sacrifício para que continue a vivê-la no trabalho e no lazer. Portanto, a utilização das canoas tradicionais está inserida diretamente em nossas raízes culturais, uma vez que desde a história da humanidade o homem teve a necessidade de criar meios de se transportar sobre as águas e com isso usar sua criatividade na construção de vários tipos e modelos de canoas.
No momento, a nossa maior inquietação é trabalhar na esportivização da prática da canoagem tradicional mantendo os vínculos culturais que a ela se ligam. Torná-la uma modalidade esportiva reconhecida junto aos órgãos esportivos, mostrando que o esporte, depende do valor cultural que lhe é atribuído pelos diferentes segmentos sociais, passando a expressar significados e sentidos diferenciados na estruturação dos níveis de aspiração ao lazer. Para tal torna-se necessário conhecer o estímulo e as motivações culturais ambientais de amparo e desenvolvimento do esporte, as facilidades econômicas de sua prática, a qualidade de vida da população, os espaços disponíveis, o tempo livre para o lazer e o material esportivo disponível aos diferentes níveis sociais (Guimarães, 1996).
Em outro estudo, Malato (2009) busca compreender o significado da canoagem tradicional segundo quatro categorias: a construção discursiva de seus autores, o sentimento de pertencimento ao grupo de praticantes e à região, as comunidades imaginadas em torno da canoagem tradicional e a tradição inventada.
Em relação à construção discursiva, observou-se que as pessoas consultadas adotam um discurso comum ao grupo ribeirinho, quando se apropriam de um conjunto de práticas significantes estabelecendo identidades individuais e coletivas da figura do canoeiro.
Hall (2000, p. 51), tece comentários a respeito desses sentidos ao considerar que “as culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre a nação, sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades.”
Tratar a canoagem como construção discursiva é perceber que é possível identificar o sistema simbólico na figura do Sr. Nelson, que é repetido e validado no comportamento dos outros indivíduos da região. As representações e condutas adotadas naquele povo, ao fazer do ato de remar, de construir a canoa, de transformá-la de ferramenta a brinquedo em suas vidas, confere o conjunto de significações e representações culturais daquele grupo.
Citando Woodward, apud Serra (2002, P. 57), “a representação inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos, posicionando-nos como sujeito”.
Ora, não só a postura do Sr. Nelson como ainda o comportamento de sua filha, bem como de todo o povo ribeirinho, denota o “vestir” de significados à prática da canoagem, quando se construiu todo um “modo de ser”, desde o ato da construção da canoa até o de remar.
No que tange ao sentimento de pertencimento, Malato (2009) percebeu que os praticantes se sentem imersos na representação criada, fazendo uso de termos comuns a eles desde os que enumeram a construção da canoa até o palavreado usado, desde o manejo do remo até o comportamento diante da inevitável derrubada de uma árvore, deixando claro o sentido de apropriação aos hábitos criados no imaginário canoístico. Esse pertencimento, no dizer de Hall (2000), faz constituir um sentimento entre eles que tomam para si símbolos, hábitos e linguagens, próprios deles mesmos, absorvidos como identidades, um corpo de pessoas que se consideram membros pertencentes com exclusividade àquele grupo.
Assim por dizer, o sentimento de pertencimento do grupo ribeirinho traz ao ato da canoagem uma prática própria, vivenciada e transformada em cultura local.
Em relação às comunidades imaginadas, observou que apesar de não existir, formalmente estabelecido, um rol de comportamentos sociais a serem seguidos pelos praticantes da canoagem, estes demonstram no respeito à natureza, no ritual da construção das canoas, no manejo destas e no ato de ensinar aos seus descendentes toda a vivência que permeia suas vidas, pré-existe o modelo imaginado de comportamento padrão.
Anderson (1989, P. 14), considera nação imaginada atos semelhantes a estes, já que: “nem mesmo os membros das menores nações jamais conhecerão a maioria de seus compatriotas, nem os encontrarão, nem sequer ouvirão falar deles, embora na mente de cada um esteja viva a imagem de sua comunhão”.
Vemos a canoagem imbuída de elementos que a fazem constituir-se em comunidade, o que exemplificamos com o sentimento de companheirismo e de pertencimento existente entre os ribeirinhos.
Finalmente no que tange à tradição inventada, Hobsbawm (1997) observa que o que caracteriza as tradições é a invariabilidade, ou seja, a referência em relação ao passado depende de práticas fixas e repetitivas.
A canoagem é praticada pela comunidade ribeirinha como um costume tradicional que se mantém por vários anos, devendo ser inserida em uma perspectiva de cultura ao expressar o respeito às entidades da floresta, o perpetuar dos passos para a construção da canoa, identificando a prática como cultura nacional. Em tempos de pós-modernidade, alta tecnologia e potentes barcos a motor, só uma força de tradição cultural mantém a prática da canoagem entre ribeirinhos.
Desse modo parece justo e urgente organizar recursos para fomentar a institucionalização da canoagem tradicional, uma forma de promover o desenvolvimento do esporte e dos habitantes do lugar.
Os ribeirinhos inventaram suas tradições, formaram seus pertencimentos, pois com a necessidade de criar e de instituir suas criações esportivas, vão imaginando e construindo outros mundos para além daquele que lhes é familiar, o do simples transporte para uma prática esportiva. É dentro desse contexto da criação humana que os praticantes de esportes nos rios amazonenses foram construindo suas ações na direção da vivência de algo novo, isto é, uma modalidade esportiva que ainda necessita de reconhecimento de sua identidade. Num enfoque de uma prática esportiva cidadã, de identidade cultural regional, de inclusão social, numa perspectiva de emancipação dos povos e comunidades ribeirinhas da Amazônia, buscamos o reconhecimento da canoagem tradicional como prática esportiva de identidade cultural. Neste sentido vários desafios precisam ser superados, ações institucionais e governamentais aperfeiçoadas e empreendidas, e este artigo pretendeu colaborar para que tal aconteça a partir do cotidiano daqueles que desfrutam da atividade.
Referências
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ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras. 2008.
BACHELARD, Gaston. A terra e os devaneios da vontade. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
CACHOEIRA DO ARARI, município do Pará. In Cidades. Disponível em http://portalamazonia.globo.com/pscript/amazoniadeaaz/artigoAZ.php?idAz=579. Acesso em 21 de agosto de 2009.
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digital · Año 14 · N° 141 | Buenos Aires,
Febrero de 2010 |