Hugo Lovisolo: admiração intelectual, amizade, percursos Hugo Lovisolo: admiración intelectural, amistad, recorridos |
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Doutor pela Universidade de Hannover Professor dos Programas de Pós-graduação em Educação e Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas Educação e Sociedade Contemporânea (CED/UFSC/CNPq). Pesquisador CNPq |
Alexandre Fernandez Vaz (Brasil) |
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Resumo O texto é uma homenagem a Hugo Lovisolo, intelectual latino-americano, cosmopolita, com forte presença nos estudos da educação e da sociedade brasileira, em especial, no que se refere ao escopo deste trabalho, da educação física e dos esportes. Reconhecendo a importância que a obra de Lovisolo teve e tem sobre minha própria trajetória, comento passagens daquela, arrematando meus comentários com uma discordância e valorizando o tipo de crítica que exerce o homenageado: sem medo, desobediente. Unitermos: Hugo Lovisolo. Educação Física Brasileira. Intelectuais |
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http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 14 - Nº 140 - Enero de 2010 |
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O presente texto foi publicado, com poucas diferenças, no livro Mediação entre as Ciências Sociais e a Educação Física: a contribuição do pensamento de Hugo Lovisolo – uma homenagem acadêmica, organizado por Votre, Morel Silva e Soares (2009).
Onze anos
Conheci Hugo Lovisolo em meados de 1998, em um congresso de Educação Física de países onde se fala a língua portuguesa. Eu vivia na Alemanha e, depois de alguns anos, buscava um evento no qual a produção acadêmica da Educação Física brasileira estivesse presente, uma vez que me preparava para voltar ao Brasil e assumir cargo de professor na Universidade Federal de Santa Catarina, onde até hoje trabalho.
Curiosamente, o evento aconteceu na Espanha, fato “justificado” porque, mais especificamente, tratava-se da capital das terras galhegas, La Coruña, e na região fala-se idioma que se supõe ser lusófono. Espantos à parte, fui apresentado a Lovisolo, não sem grande expectativa, por um amigo comum, Marco Paulo Stigger, que havia sido meu professor anos antes em um curso de especialização e que tive a feliz surpresa de rever naquele verão, ele vindo da Cidade do Porto, onde se encontrava preparando sua tese de doutorado, depois publicada no Brasil em dois importantes livros (Stigger, 2002; 2005). A fantasia que eu tinha da imagem, de Lovisolo, a quem nunca antes havia visto, em nada correspondia à realidade, mas logo ficou claro que à empatia intelectual somava-se a recordação que ele me trazia de meus tios portenhos.
Passei boa parte dos dias do congresso, um evento muito discreto, muito frágil academicamente, em conversas com aquele intelectual que me apresentara Stigger e que cujos textos eu já acompanhava havia tempos. Minha admiração apenas cresceu nas bonitas tardes à beira-mar, em contato com uma inteligência dificilmente comparável, uma lucidez aberta, criativa, respeitosa, freqüentemente emoldurada por um humor que dava forma à conversa que ia de Max Weber à gastronomia e ao futebol, da literatura argentina à Fenomenologia, das técnicas de pesquisa à Filosofia do Idealismo alemão.
Eu já conhecia os textos de Lovisolo sobre Educação Física e esportes desde 1994, quando fui surpreendido pela leitura de uma espécie de ensaio-laboratório publicado no periódico Contexto & Educação, da Unijuí. Tratava-se de A Educação Física como arte da mediação (Lovisolo, 1993), súmula de um conjunto de reflexões para um acerto de contas com seus alunos, um balanço de alguém que, vindo de outro campo, fazia das práticas da Educação Física e suas peripécias como área de conhecimento em consolidação um tema próprio. O texto também compõe o livro para o qual emprestou o título (Lovisolo, 1995a), onde outros importantes artigos que vim a conhecer em 1995 e 1996, como leitura de bordo, em meio a tantas mais concernentes à pesquisa doutoral que desenvolvia, dos primeiros meses em Göttingen e Hannover, na Alemanha, também estão presentes. De lá cito dois outros instigantes trabalhos, um deles referente a uma pesquisa de campo sobre a Educação e a Educação Física em escolas do Rio de Janeiro, em coautoria com dois pós-graduandos – um deles o meu querido amigo Antônio Jorge Gonçalves Soares –, outro uma resposta a um mantra repetido pelos vários degraus do “pensamento crítico” da Educação Física, a correlação necessária entre esporte e capitalismo.
Na primeira semana de setembro de 1995 eu adquirira das mãos de Marco Stigger, na última vez que nos encontramos antes de La Coruña, em Vitória, Espírito Santo, durante o Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte, exemplares da Revista Movimento, e dentro de um deles havia, como era praxe da Revista naquela época e em anos posteriores, uma seção de “Polêmicas”. De fato, a verve polemista de Lovisolo aparecia ali sem alentos, na crítica radical às posições, ao modo como eram construídas e expostas, que as professoras Celi Taffarel e Micheli Escobar haviam professado sobre artigo de Adroaldo Gaya. Ali também se anunciava, em composição com os textos de 1993 e 1995, uma atenção especial – e especialmente ácida – que Lovisolo sempre dedicou à crítica de origem marxista no campo da Educação Física. Curiosamente, tomei parte de uma seção “Polêmicas” da Revista Movimento anos mais tarde (Vaz, 2001), a convite de Vicente Molina Neto. O tema era o ensino dos esportes na escola e aquele que fez uma síntese do debate, do qual participaram vários colegas da Educação Física, foi justamente Lovisolo (2002). Ele e Stigger (Stigger; Lovisolo, 2009) organizaram recentemente um livro com todos os textos que compuseram a discussão, com direito a um pós scriptum de cada um, com algumas páginas, como que a rever, esclarecer ou reafirmar questões daquele tempo.
Eu voltara ao Brasil durante uns poucos dias entre julho e agosto de 1997, para tomar parte do concurso público cuja aprovação me levou ao cargo de professor da UFSC. Um ano antes, portanto, de conhecer Lovisolo pessoalmente, adquiri aquele que é o segundo de seus livros-coletânea no campo da Educação Física, Estética, Esporte e Educação Física (Lovisolo, 1997a). Novamente se confirmavam aquelas impressões: textos ricos e arriscados, abertos a pensar novas questões, mesmo que em referência a temas mais antigos, e talvez por isso esquecidos, entre eles, a valorização do conhecimento como uma aventura, o gosto como categoria fundamental para orientar o processo educacional.
Logo depois do evento no norte da Espanha, comecei a manter uma correspondência mais ou menos freqüente com Lovisolo. Foi ele que me motivou a escrever um texto para um número temático sobre futebol da revista Motus Corporis, da qual era editor. Publiquei um artigo que resultava de uma pesquisa empreendida em arquivos alemães, sobre o movimento de crítica na Europa, em especial na Alemanha, sobre a realização da Copa do Mundo de 1978 na Argentina (Vaz, 1998). No mesmo contexto, traduzi um artigo panorâmico de Gunter Pilz (1999) sobre a Sociologia do Esporte na Alemanha para um número da revista Estudos Históricos, da Fundação Getúlio Vargas, que Lovisolo organizou como editor convidado. Para o mesmo número escrevi um dos meus textos mais importantes, Na constelação da destrutividade: o tema do esporte em Adorno e Horkheimer, que acabou publicado também em Motus Corporis (Vaz, 2000). Os comentários encorajadores de Lovisolo foram, naquele final de 1998, muito importantes para que eu levasse adiante minha reflexão sobre o tema, depois tornado parte importante de minha tese, defendida em 2002 (Vaz, 2004). O artigo da Motus Corporis, uma análise relativamente exaustiva do lugar do esporte na crítica à racionalidade instrumental empreendida por Horkheimer e Adorno, pertence a um bloco de trabalhos do qual também fazem parte um ensaio que escrevi a convite de Carmen Soares (Vaz, 1999a), além de minha comunicação em mesa no Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte, em Florianópolis, em 1999 (Vaz, 1999b). A Hugo e Carmen, por essas e por outras, sou muito agradecido.
A seguir, Lovisolo (2000a) publicou novo livro com textos sobre Educação Física, desta vez com forte enfoque na análise das questões da promoção da saúde. Lá se encontram várias reflexões interessantes, das quais eu destacaria três neste momento. A primeira é o que ele chama de Paisagem das tribos da Educação Física, título de um dos artigos-ensaios e segundo a qual o campo da Educação Física estaria dividido em duas margens e três tribos, uma delas trafegando pelo meio do rio. Águas em disputa, e a virtude do meio, mas não da média, predica Lovisolo. As duas outras idéias que emergem com muita força vêm dos textos sobre Comênio e sobre Spencer. Do primeiro, novamente, como em tantos outros escritos, o elogio ao bom senso, ao equilíbrio, na figura daquele educador que pensou no organismo e na saúde, algo que descobre importante por pensar sobre si, por praticar. Do segundo, o momento religioso que o movimento pela saúde atinge, o caráter de “missão”, algo que pode ser encontrado também, anos mais tarde, nas prescrições de Kenneth Cooper.
É preciso, nesse mesmo contexto, destacar várias intervenções públicas de Lovisolo sobre esses temas (e sobre tantos outros), muitas delas publicadas, onde ele se coloca contra a cultura do medo que muitas vezes se mostra aliada dos discursos pela promoção da saúde, em especial no que se refere à prevenção de doenças crônico-degenerativas. Advogando pelo equilíbrio e a favor da vida e da liberdade, Lovisolo sempre retoma o melhor da tradição iluminista: a valorização do conhecimento, do desejo, do diálogo público da ação, como assinala Hannah Arendt (1998), essa experiência-lugar onde é possível encontrar o outro e suas diferenças.
No ano seguinte, Lovisolo publicou, com Antonio Jorge Soares e Ronaldo Helal, A invenção do país do futebol: mídia, raça e idolatria (Lovisolo; Helal; Soares, 2001, com nova edição em 2007), esforço que reúne textos diversos escritos em vôo solo ou em parceria. Ali se encontra uma mais que interessante polêmica, antes publicada no volume que Lovisolo organizara da Estudos Históricos, e que foi desencadeada pela tese de Antônio Jorge Gonçalves Soares (1998), orientada por ele. Um artigo de Soares, uma réplica de Ronaldo Helal e César Gordon Júnior, com tréplica do próprio Soares, compõem essa seção do livro. A polêmica é relativamente conhecida, e diz respeito à recepção e interpretação das duas edições de O negro no futebol brasileiro, de Mario Rodrigues Filho (2003) pela nova historiografia do futebol brasileiro. Não há qualquer trabalho posterior importante sobre o tema que deixe de comentar o debate, entre eles, o singular livro de José Miguel Wisnik (2008). O volume ainda traz, ente outros, interessantes textos de Lovisolo, já antes publicados, como o a respeito do livro de Eduardo Galeano (1995) sobre futebol, onde a crítica à “ideologia da denúncia” volta a aparecer, e ainda o sobre Graciliano Ramos, em co-autoria com Soares.
Não há dúvidas sobre a importância de Lovisolo para a Educação Física, campo que ele, pelo menos até certo ponto, adotou como seu sem deixar de ser antropólogo e mantendo-se como um dos únicos dos quais se pode dizer que, nas publicações da área, escreve, de fato, ensaios. Inúmeros textos, muitas orientações, bancas, pesquisas, intervenções em debates públicos, Lovisolo tem sido também alguém a pensar e criticar a área disciplinar que luta para fazer parte do ainda magro banquete dos recursos da ciência e tecnologia. Exercendo o papel de um analista do presente e dos destinos da produção acadêmica da Educação Física, não raro com o faro afiado da crítica imperdoável – como deve ser, aliás – Lovisolo tem demarcado uma trajetória singular entre os da Educação Física (os “de dentro”, como disse certa vez).
Tenho a impressão de que esses anos na Educação Física e no estudos sobre o esporte obedecem a uma solução de continuidade com seu percurso anterior e paralelo, dedicado a outros temas e áreas de conhecimento. Uma leitura de seus trabalhos fora do campo da Educação Física mostra o mesmo interesse no debate e a verve analítica já conhecida. Resenhista renitente (entre outros, Lovisolo, 1999), esforço do maior valor intelectual, mas algo raro entre nós – seja porque a polêmica e a discordância são às vezes mal vistas em nosso ambiente tão corporativo, ou ainda porque a crítica é atividade demasiadamente exigente e vale poucos pontos no atletismo acadêmico –, Lovisolo freqüentemente mostra uma resistência a discursos que, lhe parece, fazem aproximar de forma perigosa a análise e a força heurística do que seria a luta, o desejo da concretização de ideais que, malgrado o fato de serem valorosos, são desejos coletivos, portanto, questões da disputa política. Daí dedicar-se, com a mesma força empregada para discutir trabalhos alheios (1997a, 1995b; Moura; Lovisolo, 2008), à crítica de certo “marxismo” da Educação Física (1995a) ou de, exageros à parte, propostas feministas (Lovisolo; Soares; Bartholo, 2006; Votre; Lovisolo, 2007).
Como já disse, tomei inicialmente conhecimento das pesquisas e trabalhos de Lovisolo por meio de seus textos sobre Educação Física, esportes e outras práticas corporais. Mas, depois disso, e mesmo antes de conhecê-lo pessoalmente, eu já havia me deparado com vários de seus artigos sobre outros temas, em especial, sobre a Educação brasileira, da problemática política da alfabetização aos legados de Anísio Teixeira e Paulo Freire, passando pela relação família e escola. Esta outra margem da irriquieta trajetória intelectual de Lovisolo é para lá de interessante.
Os textos de Lovisolo, bem como suas conferências e também a conversa informal com ele, mostram um intelectual engajado, de uma qualidade lamentavelmente em extinção. Não me refiro especificamente a um tipo partidário ou vinculado, por exemplo, ao que ele mesmo chama, talvez reduzindo muita coisa a um só epíteto, de “Marxismo romântico”. Estou falando de um intelectual preocupado com os problemas de ordem pública, e não apenas de um acadêmico que estivesse em busca de mais itens para rechear o currículo.
Chama muito a atenção a quantidade de temas bem abordados por Lovisolo, geralmente com intervenções curtas, às vezes muito curtas e nem por isso menores, como os textos para a revista de divulgação Ciência Hoje ou para publicações eletrônicas. Há também várias outras preocupações, como o ensino superior em alguns de seus desafios, as relações entre a graduação e a pós-graduação, a avaliação da produtividade acadêmica, as melhorias que se exige ao ensino universitário, em especial no que diz respeito a uma retomada ou encontro de um novo sentido, menos utilitário, mais vinculado às utopias formativas clássicas.
Desses seus textos, um dos que mais gosto é Sobre a legitimação da ciência na fronteira (Lovisolo, 2000b; 2000c), elogio a livro de Ramón y Carral, comprado por ele em um sebo em Buenos Aires. Ao comentário a respeito do livro e sobre o caráter lúdico da conquista do exemplar e da leitura propriamente dita, Lovisolo soma um exercício de imaginação a partir da leitura das anotações feitas no volume por um leitor anterior. Com isso, chega às dificuldades e à aventura da produção científica na periferia. Um outro é o sobre a visita de Albert Einsten à América do Sul (Lovisolo, 2000b, 2000c), demarcando as diferenças entre as estadias na Argentina e no Brasil. Se no país vizinho o impacto político foi singular, entre nós o ganho científico teria sido incomparável. Ambos fazem parte de um livro que sintetiza alguns anos de esforço acadêmico de Lovisolo, de certa forma um trabalho que não pára naquele documento, a produção da ciência (como antes a Educação, e posteriormente o Futebol, agora este e o baile, e simultaneamente todos esses temas, entre outros) no Brasil e na Argentina.
Uma concordância, entre muitas; uma ponderação
Ofereci um texto a Lovisolo (Vaz, 2003) que é correspondente à conferência que proferi na Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, em 2003, na Universidade Federal de Goiás. Julguei apropriada a modesta homenagem porque a abordagem reflexiva que eu fazia era em parte apoiada nas dele, mas também porque se tratava de Reunião da SBPC, sociedade com a qual Lovisolo manteve estreita relação, cujo tema central naquele ano foi o das fronteiras, ou seja, muito a ver com ele. Havia outro motivo. Mesmo sendo eu antinacionalista, fiz a dedicatória porque a conferência foi pronunciada em nove de julho, uma das datas nacionais da Argentina.
Em momento anterior (Vaz, 1999c), reconheço a inspiração que seu ensaio-laboratório (Lovisolo, 1993) me oferecera. Deste, no entanto, pondero uma posição lá expressa. Gostaria de retomar parte dos argumentos de ambos os textos para recolocar o debate com ele. Começo pelo último.
Trata-se de algo que escrevi porque também eu queria fazer uma espécie de acerto de contas com alunos para os quais havia lecionado como professor substituto da UFSC, antes de mudar-me para a Alemanha. Fazendo uma composição entre as expressões educadores físicos (Lovisolo, 1995a) e médicos-feiticeiros (Miller, 1985), eu falava daqueles que podem ser
(...) de alguma maneira (...) responsáveis pelos rituais que as diversas épocas e contextos impõem ao corpo, sejam, entre outros, a busca de “beleza”, (...) de status via saúde corporal ou resultados esportivos. Seriam eles, entre outros, os técnicos desportivos, os professores de academia de ginástica, e mais recentemente os personal trainers. Considero, em princípio, todas essas formas de atuação legítimas, ainda que criticáveis sob vários aspectos. Chamo a atenção apenas para a possível desvalorização do trabalho na escola em comparação com essas atividades. (Vaz, 1999c, p. 17).
Segue abaixo o trecho seguinte, onde pondero a posição de Lovisolo.
De um outro ponto de vista o educador físico aproxima-se da figura do bricoleur, trazendo para si a responsabilidade de organizar, a partir de conhecimentos de diferentes campos do saber – que iriam desde a fisiologia até a filosofia, passando pelas “ciências da educação” – um programa de atividades. Neste sentido, seja na escola, no clube ou na empresa, a figura do professor de educação física aproximar-se-ia muito mais do médico ou do engenheiro do que do físico ou do matemático, por exemplo. Diferentemente do professor de educação física, os últimos tenderiam a reproduzir em suas atividades de ensino, o mesmo conteúdo que aprenderam nos respectivos períodos de formação. De outra forma, o educador físico seria “[...] formado, fundamentalmente, para combinar conhecimentos, técnicas e tecnologias para alcançar objetivos sociais. A combinação, o produto intelectual de sua atividade, se expressa geralmente num programa, de treinamento, de educação corporal ou de lazer entre outros.” (Lovisolo, 1995a, p. 20).
Não seria a educação física, neste sentido, um espaço de veiculação de conhecimentos, mas o locus de execução de um programa de atividades (Lovisolo, 1995a, p. 21).
Talvez seja o caso de sermos um pouco teimosos e procurarmos uma identidade para educação física e para os professores estudantes da área que se radique na construção sistemática de uma disciplina escolar, ainda que não de uma ciência. O professor da disciplina educação física teria outra imagem, que não necessariamente seria concorrente com a do bricoleur. Ao que parece muitos profissionais de educação física tem dificuldades em assumirem o papel de mediadores de conhecimento no contexto escolar, ou seja, aquilo que seria, possivelmente, sua tarefa essencial e legitimadora.
Ora, se a escola deve destinar-se, antes de qualquer coisa, à tarefa de socializar e criticar o conhecimento sistematizado ao longo da história – embora haja quem pense o contrário –, e se há, de fato, uma cultura corporal, não há outra tarefa mais primordial para o professor de educação física, que a de ser mediador entre este conhecimento e os alunos. Isso, repito, se houver um conhecimento a ser veiculado na Educação Física. (Vaz, 1999c, p. 17-18).
Em minha discordância, sigo com o mesmo posicionamento. Parece-me que ainda é melhor orientação pensar a Educação Física como disciplina do conhecimento, talvez em duplo sentido de seu aprendizado: a combinação entre técnica e mímesis, entre um certo senso prático, como sugere Pierre Bourdieu e o desenvolve, no sentido aqui exposto, Gunter Gebauer, conforme procurei apontar em outra ocasião (Vaz, 2001). Mantenho a ponderação.
Em meu texto para a Reunião da SBPC, escrevi o seguinte, e nada acrescento, a não ser o reforço de que entre a intervenção e a pesquisa há, sim, uma distância que deve ser mantida, pelo menos em termos do que é a área acadêmica e a prática pedagógica na escola. Distância que não significa ausência de relações, mas manutenção da integridade e do valor de cada prática.
Talvez por ceticismo, continuo pensando que a multivocalidade do corpo e de suas expressões – inclusive seus movimentos e as respectivas estratégias de educação - dificulta a constituição de uma problemática teórica própria. Ou, por outra, corremos o risco de alargar nossas dificuldades, o que talvez, paradoxalmente, não seja tão ruim assim. É nesse campo que se coloca a possibilidade de um “desprendimento” de algumas sub-áreas ou abordagens investigativas, como a Biomecânica, por exemplo, que poderia, talvez, tornar-se ela mesma uma área, com sua várias problemáticas próprias. Não encontrando lugar na Física – ciência básica – nem nas engenharias ou Educação Física/Ciências do Esporte – áreas de aplicação –, ou, ainda, encontrando lugar em todas elas, poderia autonomizar-se. Não seria novidade, uma vez que processo semelhante aconteceu e acontece com a Psicanálise em relação à Psicologia.
O apelo à constituição de uma ciência pode ser apenas vontade de poder, algo que se amplia no reforço da auto-estima dos que “fazem” a Educação Física. O apelo é similar ao da regulamentação da profissão, com o qual tem grande parentesco. Nesse quadro, aproximo-me de Hugo Lovisolo, que cito, de um texto que me parece muito instigante:
Quando não conseguimos dialogar dentro do mosaico que somos, então, criamos uma instância superior e mágica que nos permita dizer: eis aí nosso objetivo, nossa unidade, nosso pertencimento. Na prática, podemos continuar fazendo o mesmo porque o guarda-chuva da ciência da motricidade ou da cinesiologia aparenta uma unidade que não temos e, talvez, nem tenhamos nunca. (...) Proporia, então, abandonar os guarda-chuvas pouco protetores, aceitar o mosaico e tentar estabelecer diálogos. A tarefa não será possível enquanto os utilitaristas e mecanicistas pensarem que os normativistas e compreensivistas são delirantes e, estes, que aqueles são meras peças funcionais de um mundo que não entendem” (LOVISOLO, 1998, p. 20).
Inclino-me a pensar que a unidade não é possível, mas que isso não é um mal. Podemos “querer menos”, e talvez aprender a lidar, no campo da pesquisa, com instrumentos que nem sempre de antemão dominamos. É também um ônus a ser pago por uma formação que é muito mais do campo da intervenção. (Vaz, 2003, p. 169-170).
À guisa de arremate
Este texto foi escrito como um reconhecimento de que minha trajetória está, modestamente e com todas as enormes diferenças no que se refere ao alcance intelectual, imbricada com a de Lovisolo. Percurso de quem se vê como aluno e se reconhece como admirador, que nessa década e meia de contato com seu trabalho, muitos ganhos auferiu. É possível que Hugo não saiba da dívida intelectual e da estima pessoal que tenho por ele. Pois bem, está dito.
Um último comentário sobre esse intelectual latino-americano, cosmopolita. Há pouco tempo, depois de uma defesa de tese de um orientando meu do qual tomou parte (Bassani, 2008), Lovisolo voltou a polemizar com a Escola de Frankfurt. Parece-me que suas resistências se destinam mais a uma maneira de se reproduzir um conjunto de lugares-comuns a respeito dos frankfurtianos, do que propriamente às Obras propriamente ditas, com as quais tem pouca familiaridade. Pois bem, Lovisolo exerce, segundo penso, um tipo de crítica que Adorno (1997) considerou a única que pode ser chamada como tal, aquela que pode ser “destruidora”, mas que jamais pode ser obediente.
Sul da Ilha de Santa Catarina, fevereiro de 2009, janeiro de 2010.
Referências
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