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Quando as meninas jogam junto com os meninos: o 

campeonato intercalouros como palco das relações de gênero

Cuando las niñas juegan junto con los niños: el campeonato interescolar como contexto de las relaciones de género

When the girls play together with the boys: the championship intercalouros as stage of the relations of type

 

*Mestrando em Educação Física pela Universidade Federal do Paraná (UFPR)

Membro pesquisador do grupo de pesquisa em Educação Física, Saúde, Educação

e Cultura da Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná

**Doutorando em Enfermagem (Saúde Pública) pela Universidade de São Paulo (USP)

Membro pesquisador do grupo de pesquisa em Educação Física, Saúde, Educação

e Cultura da Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná

Juliano de Souza*

Silvano da Silva Coutinho**

julianoedf@yahoo.com.br

(Brasil)

 

 

 

Resumo

          Intercalouros é um campeonato de futebol de salão que vem sendo realizado anualmente pela Diretoria de Esportes (Diresp) da Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná desde o ano de 2003. Em suas primeiras edições, esse campeonato era realizado somente para homens, já que a demanda feminina se fazia pequena. Entretanto, a partir do ano de 2006 a Diresp pensou diferente e resolveu propor um campeonato onde as mulheres pudessem jogar junto com os homens. Para tanto, foi implementada a seguinte regra: cada equipe deveria manter, ao menos, uma menina jogando constantemente entre os titulares, sendo que essa só poderia ser substituída por outra colega de curso. É justamente esta alternativa encontrada pela Diresp que iremos problematizar neste artigo, visto que por intermédio dessa intervenção as relações de gênero foram trazidas ao cerne do debate estudantil na comunidade universitária local.

          Unitermos: Intercalouros. Etnografia. Gênero

 

Abstract

          Intercalouros is a championship of five-a-side football that is carried out annually by the Directorship of Sports (Diresp) of the State University of the Middle West of the Paraná from the year of 2003. In his first publications, this championship was carried out only for men, since the feminine demand was doing to itself girl. Meantime, from the year of 2006 to Diresp he thought differently and resolved to propose a championship where the women could play together with the men. For so much, the next rule was implemented: each team should maintain, at least, a girl if she played constantly between the holders, if she was that one might be substituted only by another colleague of course. It is just this alternative found by the Diresp what we will go problematizar in this article, since through this intervention the relations of type were brought to the duramen of the student discussion in the university local community.

          Keywords: Intercalouros. Ethnography. Type

 

Esse texto se trata de uma versão revisada da comunicação apresentada no Simpósio temático “Gênero e práticas corporais e esportivas”, proposto e viabilizado no Seminário Internacional Fazendo Gênero 8 realizado em agosto de 2008 na cidade de Florianópolis/SC

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 14 - Nº 139 - Diciembre de 2009

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Introdução

    Intercalouros é um campeonato de futebol de salão realizado anualmente pela Diretoria de Esportes (Diresp) da Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná/Guarapuava (Unicentro). Como o próprio nome do evento sugere, trata-se de um campeonato idealizado para integrar os calouros, ou seja, os alunos que recém-ingressaram na universidade.

    Cada curso da instituição pode inscrever até dois times para participar do Intercalouros, desde que pague uma taxa simbólica, a qual subsidia o custeio com a arbitragem. Os jogos são realizados sempre no primeiro semestre letivo e o sistema de disputa utilizado na competição é o olímpico. Isto é, formam-se chaves e se classificam os dois melhores de cada uma destas para as fases subseqüentes.

    Nosso primeiro contato com o Intercalouros foi em 2003, quando então ingressamos no curso de Educação Física da Unicentro. Acompanhamos alguns jogos, principalmente aqueles em que os calouros de Educação Física estavam em cena. Contudo, não de forma assídua, afinal o interesse que tínhamos por essa modalidade era secundário. Gostávamos mesmo de voleibol e xadrez.

    Em 2004, conseguimos um estágio pela Diretoria de Esporte da Unicentro e fomos trabalhar no Ginásio do Cedeteg (Centro de Desenvolvimento Tecnológico e Educacional de Guarapuava – Campus Universitário da Unicentro) – a propósito, o local onde se disputavam os jogos do Intercalouros. Indubitavelmente, nosso envolvimento com esta competição se acentuou. Em algumas oportunidades fazíamos súmulas, em outras observávamos os lances duvidosos e, conforme o dia, até torcíamos por algum time em específico.

    No ano de 2005, novamente nos envolvemos com o Intercalouros. Vale ressaltar que naquele ano, algumas meninas de determinados cursos procuraram a Diresp alegando que queriam um campeonato Intercalouras. Visto que houve uma demanda feminina pode-se, naquela ocasião, realizar-se um campeonato paralelo para as mulheres. Quatro cursos apenas se inscreveram e daí o desenvolvimento de um torneio em chave única, todas contra todas. Quanto ao Intercalouros, esse continuava imponente com uma grande participação masculina.

    Mas o grande marco do Intercalouros foi exatamente no ano de 2006, quando a Diresp em função do crescente interesse feminino pelo futebol de salão na universidade, propôs um formato diferente para a realização do mesmo. Assim, foi implementada a seguinte regra: cada equipe masculina deveria apresentar ao menos uma menina jogando integralmente entre os titulares da equipe, sendo que essa só poderia ser substituída durante a partida, por outra colega de curso. Outro aspecto da regra proposta era que cada gol marcado pelas garotas valeria dois, o que por sua vez, acabou gerando uma discussão calorosa na comunidade universitária, onde alguns se posicionavam contra e outros a favor.

    Não podemos negar que a referida estratégia adotada pela Diresp se tratava de uma novidade, pois até aquele momento desconhecíamos tal iniciativa, ao menos no chamado esporte de competição. Assim, a singularidade com que esse evento se realizara, bem como a motivação pela área de pesquisa, nos levou a observar e registrar em um pequeno caderno de campo alguns dos comportamentos dos atores e atrizes sociais envolvidos na trama, isto é, jogadores e jogadoras, torcedores e torcedoras, organizadores e árbitros.

    Essa apreensão etnográfica novamente foi desenvolvida nas edições do Intercalouros de 2007 e 2008, a propósito, o qual se realizou segundo os moldes sugeridos e apresentados em 2006. Mais uma vez então, observamos e registramos no caderno de campo os comportamentos apresentados, as situações inusitadas e as nossas impressões pessoais. Ainda no Intercalouros 2007, desenvolvemos uma entrevista com 10 meninas e 10 meninos que estavam participando do campeonato. Essas entrevistas foram realizadas sob as condições e clímax gerado pela própria competição, ou seja, nos dias em que tinha rodada do Intercalouros. A pergunta direcionada aos/as entrevistados/as foi a seguinte: “O que você acha sobre a participação feminina no Intercalouros?”.

    A partir desse rico material etnográfico coletado nas edições do Intercalouros de 2006, 2007 e 2008 foi que estudamos e problematizamos as relações de gênero que se evidenciaram durante a realização da competição – orientada pela nova regra que a Diresp sugeriu. Dadas às limitações de espaço reservadas para um artigo, nos ateremos especificamente a algumas situações etnografadas na edição de 2007 do campeonato. Nosso objetivo, nesse sentido é colaborar com a discussão de gênero que vem sendo preconizada pelas atuais epistemologias da Educação Física.

Contribuições teórico-metodológicas

    As relações de gênero e suas interfaces com as práticas corporais e esportivas há algum tempo vem chamando a atenção dos/as pesquisadores/as da Educação Física. De acordo com Goellner (2001) esse interesse se evidencia com maior clareza a partir dos anos 1980. Dessa data em diante, a produção vem crescendo, o que possibilitou a referida área de estudo galgar e firmar seu espaço no atual quadro epistemológico da Educação Física.

    Nesse percurso histórico, os estudos de gênero em Educação Física têm se atentado para as construções sociais e culturais da masculinidade e da feminilidade; sobre as influências e reducionismos que as noções biológicas de homem e mulher exercem no uso que os indivíduos fazem de seus corpos; sobre as vivências que meninos e meninas constroem nos esportes e na Educação Física escolar; sobre a formação profissional e seu papel atenuador ou desmistificador dos tabus disseminados. Além disso, tais pesquisas também têm sugerido rumos, apontado soluções e indicado caminhos a partir de aportes nas chamadas “Ciências das Humanidades”.

    Em consonância com essas proposições indicadas e, para fins elucidativos, podemos mencionar os trabalhos de Romero (1990); Sousa (1994); Sousa e Altmann (1999); Goellner (2001); Altmann (2002); Saraiva (2002). É claro que essa bibliografia não se encerra aqui, e inúmeras outras pesquisas poderiam ser exemplificadas. Entretanto reservamos um mapeamento mais completo do estado da arte da discussão para oportunidades futuras.

    Segundo Luz Júnior (2003) os estudos de gênero em Educação Física no Brasil sofreram influência principalmente norte-americana (gender studies) e francesa (estudos feministas). Nesse propósito é importante destacarmos, por exemplo, as contribuições de Joan Scott (1992; 1995) para se pensar a sociedade generificada, ou ainda a freqüente alusão que os estudos de gênero fazem aos clássicos do chamado pós-estruturalismo francês, como Michel Foucault e Jacques Derrida. Vale mencionarmos também, as contribuições da perspectiva teórica dos estudos culturais (cultural studies), com destaque para Stuart Hall (2005) que problematiza questões de identidade, multiculturalismo, hibridismo e diásporas na contemporaneidade.

    Para os propósitos deste artigo nos atemos a teoria de gênero pós-estruturalista e pós-marxista. E isso porque essas vertentes deixam de observar e explicar a sociedade generificada e as relações de gênero pelo viés das diferenças biologicistas de sexo e economicistas de classe. (SCOTT, 1992; LOURO, 1997;). Ao contrário, os estudos que tem se desenvolvido sobre o amparo das contribuições pós-estruturalistas e pós-marxistas deslocam o debate para as construções discursivas e simbólicas presentes nas relações de gênero, bem como para a flutuabilidade do poder nessas relações.

    Procuramos ainda na chamada Antropologia Interpretativa de Clifford Geertz (1989) instrumentos teóricos compatíveis com a postura feminista pós-estruturalista que elegemos. Uma possível aproximação se possibilitou quando nos deparamos com a concepção não-estratigráfica de homem desenvolvida pelo antropólogo, ou seja, aquela que não considera o homem como tendo evoluído primeiro em termos biológicos, seguido pelo desenvolvimento psicológico, social e por fim o cultural. Para o autor, todos esses fatores interagem e são ingredientes essenciais na produção do mesmo homem. Assim, pensar as relações de gênero a partir da concepção não-estratigráfica de Geertz é estar atento para o fato de que as diferenças entre mulheres e homens não repousam em fatores biológicos, psicológicos, sociais, ou culturais tomados estáticos e isoladamente. As diferenças de fato existem e são produtos da imbricação de todos esses fatores. Com bem enfatiza Simone de Beauvoir (1949) não se nasce homem ou mulher, mas ambos tornam-se.

    Para o trabalho etnográfico também buscamos suporte em Geertz (1989), em específico, naquilo que o antropólogo chama de “descrição densa”, isto é, aquela prática etnográfica onde o pesquisador não apenas descreve o que vê, mas interpreta, procura entender e decifrar os significados. Para ilustrar isso, Geertz recorre ao exemplo clássico das “piscadelas”, em que alguns meninos piscam, porém com conotações diferentes que cabe ao pesquisador entender e revelar.

Algumas situações que etnografamos

    Quarta-feira – 23 de maio de 2007. Era por volta das 19 horas quando os primeiros times começaram a aparecer. Os árbitros como de costume já tinham chegado e estavam conferindo as redes e a condição da quadra para realização das partidas. Tinha chovido e passamos parte da tarde tendo que secar o chão do ginásio. Para aquela noite estavam marcados quatro jogos, sendo o primeiro para as 19 horas e 30 minutos.

    Cada confronto durava em média uma hora, contando o tempo de jogo (dois tempos de 20 minutos) e o intervalo de um jogo para o outro. Assim, a rodada acabaria lá por volta das 23 horas e tanto. Foi nessa oportunidade que resolvemos iniciar as entrevistas com os/as participantes do Intercalouros, conforme já tínhamos planejado. Entrevistamos durante essa rodada três meninos e uma menina, contemplando assim 20% da amostragem total delimitada.

    É importante abrirmos um parêntesis aqui, para comentar que muitos dos comportamentos e das atitudes generificadas que observamos e registramos se confirmou na própria fala dos/as entrevistados/as. Para os propósitos do estudo foi estabelecido um vínculo de interdependência entre as falas coletadas na entrevista e os comportamentos generificadas que visualizamos.

    Mas voltando a rodada do Intercalouros daquele dia, enfatizamos que o primeiro jogo programado para noite não aconteceu. A menina de um dos times não havia comparecido e o outro ganhara assim por W.O. Alguns meninos pediram permissão aos organizadores e em seguida ocuparam aquele espaço livre para baterem uma bolinha. Nesse meio tempo, aproveitamos para fazer nossa primeira abordagem da noite.

    Ao ser perguntado, sobre o que achava da participação feminina no Intercalouros, o rapaz (18 anos) respondeu: “Eu acho legal que dá (...) dá oportunidade das meninas jogarem, que se for pra montar só de menina não dá time. Então elas poderem jogar com os piás fica bem legal. Assim entrosa bastante às meninas com os piás”.

    Enquanto nosso entrevistado falava, percebemos que algumas meninas se juntaram aqueles garotos que estavam na quadra e começaram a jogar junto com eles. Aquilo parecia uma verdadeira festa e o que menos importava aparentemente era o gol. Uma das meninas caiu ao disputar uma jogada, mas se levantou sem demonstrar expressão incisiva de que sentia dor. Na seqüência saiu saltitando, e dando risadas como se nada tivesse acontecido.

    Importante evocar aqui os efeitos catárticos e miméticos do esporte, conforme sugeridos em Elias & Dunning (1992). Para os autores, quando os indivíduos se encontram nessas situações esportivas de lazer, lhes é permitido liberar uma espécie de excitação agradável, o que nos chamados momentos sérios da vida gerariam uma série de inconvenientes e embaraços.

    Ainda podemos perceber que os comportamentos de meninos e meninas enquanto jogavam conjuntamente vieram a reforçar o discurso do primeiro entrevistado. Tanto na fala do garoto quanto na situação que em seguida descrevemos, pode-se notar o papel que o esporte desempenha, sob algumas circunstâncias, como instrumento de socialização nas relações de gênero. E não foi apenas esse entrevistado que apontou isso, mas todos/as de certa forma se ativeram em algum momento de suas falas ao papel de socialização proporcionado pelo esporte e também pela própria estratégia adotada no Intercalouros.

    O segundo jogo da rodada ocorreu conforme tinha sido previsto. Os dois times compareceram no horário marcado e protagonizaram uma partida truncada, sem muitas polêmicas e discussões com a arbitragem. A torcida não era numerosa no ginásio, mas mesmo assim participava do jogo. Gritos e manifestações se apresentavam em vários sentidos: alguns homens achavam graça quando as meninas tocavam na bola, ou quando então um menino demonstrava dificuldade de tomar a bola delas e driblá-las. Os comentários mais ouvidos nesse sentido eram: “elas não sabem o que fazem com a bola (...) só com duas”, “perna de pau, tá jogando pior que as meninas”, “naquele time parece que só tem mulher jogando”. Por sua vez, as torcedoras em número bem menor não se posicionavam tão explicitamente e assistiam ao jogo com bastante concentração e recato.

    Acabado esse jogo, abordamos dessa vez uma menina (19 anos), que por sinal estava prestes a entrar em campo. Observemos a opinião expressa a respeito do que ela estava pensando e sentindo sobre a participação das mulheres junto aos homens no Intercalouros:

    Olha, ao meu ver, assim, as meninas (...) é bom teja essa regra de que meninas podem participar, que devem participar, porque faz com que as meninas participem, se divirtam, dê risada, caiam. E o que eu vejo é muito preconceito por parte dos piás do próprio time que assim acham que menina não pode jogar; que menina do outro time joga melhor; esse tipo de coisa (...) nada que seja assim demais. É ser diferente, é ser (...) faz dar risada, leva bordoada, ver que os piás do outro time chegam em você, mas não chegam com violência, nem nada.

    Essa declaração corrobora ao pressuposto de que gênero se trata de uma categoria relacional, na medida em que tanto um sexo é pensado em relação ao outro, quanto ambos são aproximados a condições étnicas, raciais, de habilidade, de faixa-etária, dentre outras. (SOUSA e ALTMANN, 1999, p. 55). Com base nas palavras da entrevistada, podemos entrever uma inter-relação da categoria gênero com a de habilidade motora, o que também constatamos durante nossas observações durante o Intercalouros. Uma indicação disso pode ser exemplificada nas constantes substituições de uma menina por outra, fator esse, desencadeado quase sempre pela insatisfação dos meninos quanto às performances que elas apresentavam nos respectivos times.

    Quanto ao terceiro jogo, esse se iniciou por volta das 21 horas e 35 minutos. Em tal horário, geralmente o ginásio estava mais lotado e isso, provavelmente porque o momento das festas de quartas-feiras nas repúblicas ao redor do Cedeteg estava por se aproximar. Dessa forma, o Intercalouros era um ponto de encontro prévio, onde meninos e meninas, veteranos/as e calouros/as interagiam através da festa do esporte e se preparavam para entrar no clima da segunda festa da noite, aí vivenciada nas repúblicas, bares e botecos. No decorrer dessa partida, realizamos mais uma entrevista. Convidamos o entrevistado a se deslocar até a porta de entrada do ginásio, para que o barulho não comprometesse sua fala. Ao ser indagado sobre a participação das mulheres no Intercalouros ele (22 anos) respondeu:

    Olha, eu pra falar a verdade, eu acho que deveria ser separado por que tipo (...)sei lá (...) fica uma coisa meio perigosa, de medo de machucar as meninas (...). Eu acho que deveria ter um campeonato só pra menina. Intercalouros feminino e um masculino separado.

    Esse discurso elucida bem, o quanto que a concepção estereotipada e tradicional de feminilidade se faz presente e norteia muitas práticas corporais e esportivas. Se evocássemos a noção de habitus em Pierre Bourdieu (1990; 2002) poderíamos dizer que os esquemas de percepção e apreciação de práticas avistadas na fala do garoto estavam condicionados a um espaço social repleto de significações generificadas tradicionais, quando senão de visões estritamente biológica e sexista de mulheres e homens.

    Outro entrevistado (24 anos) também evidenciou em seu discurso, uma alusão ao estereótipo tradicional de mulher construído na sociedade. Vejamos o que ele respondeu quando perguntado sobre a impressão que lhe causava o fato das mulheres estarem competindo junto com os homens:

    Cara, eu acho muito jóia até porque veio dar um toque de beleza né (?); porque dentro do futebol, dentro do futebol já se pensa uma coisa machista e tal. Ficou muito jóia até porque as mulher tão jogando muitas vezes melhor do que nós mesmo, os homens.

    Enquanto na fala do entrevistado anterior pudemos visualizar a figura da mulher representada pela fragilidade, nas palavras transcritas acima, verificamos a presença de um estereótipo feminino associado à beleza. Tais estereótipos somados ainda àqueles que identificam os homens como “machões” “fortes” e “viris”, podem ser encarados como uma espécie de habitus incorporado nas sociedades que conhecemos. Assim, o esporte enquanto conteúdo “generificado” e “generificante” nos sugerem que as práticas esportivas tanto podem ser condicionadas pela lógica de tais estereótipos, quanto se apresentar como um espaço fértil para criação e revelação de outros.

    Quando realizamos essa última entrevista, o quarto jogo da rodada já estava por acabar. Fizemos nossas últimas anotações, fechamos o diário do campo e tomamos as últimas providências pertinentes e cabíveis a nossa função de estagiário, antes de irmos embora. E por esse dia foi só!

Considerações finais

    As relações de gênero que etnografamos no Intercalouros se demonstraram muito dinâmicas, reforçando mais uma vez que o esporte é um espaço propício para visualizarmos os habitus generificados da sociedade. Conforme verificamos, alguns enunciados confirmaram a presença de estereótipos tradicionais de feminilidade, que arraigados na visão masculina de mundo e esporte disseminam: “As mulheres deixam o jogo mais bonito” ou então, “Os homens devem ter cuidado com elas”.

    Quanto à estratégia adotada pela Diresp a fim de possibilitar a participação feminina no Intercalouros, percebemos a iniciativa com bastante receptividade entre calouros e calouras, embora as devidas exceções se fizessem presentes. A partir dos comportamentos e das falas dos atores e atrizes sociais, pudemos nos atentar ainda para os aspectos de socialização que o esporte muitas vezes possibilita e media nas vivências entre meninas e meninos. Assim o esporte sobre o viés das relações de gênero não se apresenta simplesmente como uma ferramenta de exclusão e uma prática associada à lógica da distinção social, mas também como um espaço onde as relações de gênero podem ser ampliadas e percebidas como positivas.

Referências

  • ALTMANN, H. Exclusão nos esportes sob um enfoque de gênero. Motus Corporis. Rio de Janeiro, v. 9, n. 1, pp. 9-20, 2002.

  • ELIAS N. & DUNNING, E. A busca da excitação. Lisboa: Difel, 1992.

  • BEAUVOIR, S. O segundo sexo: fatos e mitos. São Paulo: Círculo do livro, 1949.

  • BOURDIEU, P. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990.

  • BOURDIEU, P. A Dominação Masculina. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2002.

  • GEERTZ, C. Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.

  • GOELLNER, S. V. Gênero, Educação Física e Esportes. In: VOTRE, S. (org.). Imaginário e Representações Sociais em Educação Física, Esporte e Lazer, 2001, pp. 215-227.

  • HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. de Guacira Lopes Louro e Tomaz Tadeu da Silva. 10ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

  • LOURO, G. L. Gênero, Sexualidade e Educação: uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.

  • LUZ JÚNIOR, A. A. Educação Física e Gênero: olhares em cena. São Luis: Imprensa Universitária UFMA/CORSUP, 2003.

  • ROMERO, E. “Estereótipos femininos e masculinos e femininos em professores de Educação Física”. Tese de doutorado em psicologia escolar. São Paulo: USP, 1990.

  • SARAIVA, M. C. Por que investigar as questões de gênero no âmbito da Educação Física, Esporte e Lazer? Motrivivência, v.13, n. 19, pp. 79-85, 2002.

  • SCOTT, J. História das mulheres. In: BURKE, P. (org) A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Editora Unesp, 1992, pp. 63-95.

  • SCOTT, J. “Gênero: Uma categoria útil de análise histórica”. Educação e Realidade, v. 20, n. 2. Porto Alegre, jul./dez., pp. 71-99, 1995.

  • SOUSA, E. S. “Meninos, à marcha! Meninas, à sombra! A história da Educação Física em Belo Horizonte (1897-1994)”. Tese de doutorado em Educação. Campinas: Unicamp, 1994.

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