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A escola como criação do imaginário: uma ‘historia sem fim’

La escuela como construcción del imaginario: una “historia sin fin”

 

*Dtda. em Políticas Publicas e Formação Humana (PPFH/UERJ)

Ms. em Educação Física (UNICAMP)

**Dtda. em Educação (FEUFF)

Professora da Faculdade de Educação Física/UFG

(Brasil)

Profa. Dra. Cristina Borges de Oliveira*

cristinborges@bol.com.br

Profa. Dra. Rubia-Mar Nunes Pinto**

rubia-marp@bol.com.br

 

 

 

Resumo

          O texto apresenta uma abordagem que discute a crise da escola publica a partir da idéia de que a instituição escolar se constitui como criação do imaginário e objeto de investimento afetivo das sociedades modernas. Valendo-se das contribuições de Lilian do Vale e Ana Cavalieri, destaca-se o significado político da instituição escolar como instancia de invenção de homens livres, autônomos e capazes de construir um mundo regido pela ciência e afastado dos dogmas religiosos e da arbitrariedade dos governantes. Simultaneamente, tratamos a transformação da instituição escolar em ‘um dócil instrumento nas mãos daqueles que detêm poder e conhecimento’. Por fim, enfatizamos a instauração da pedagogia no tempo como dispositivo de conformação e dominação dos sujeitos da educação ao modelo burguês e capitalista.

          Unitermos: Crise da educacao. Escola publica. Pedagogia do tempo

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 14 - Nº 139 - Diciembre de 2009

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    A centralidade da escola como instância decisiva para a formação de cidadãos aptos a viverem em sociedades cada vez mais complexas e contraditórias é hoje incontestável na maioria dos países do mundo. A escola, tal qual conhecemos, representa o ideal (enraizado em projeto cultural e político,) desejado por Comenius já no século XVI, de ‘ensinar tudo a todos’. Durante a modernidade, o direito à escola – antes direito de uns poucos indivíduos privilegiados pela nascença ou pela fortuna – foi sendo estendido a uma massa crescente de pessoas e, atualmente é, senão uma realidade, pelo menos uma aspiração de quase todos os povos e indivíduos espalhados pelo mundo.

    A escola representa, de fato, um direito social reconhecido pela legislação da maioria dos países sendo que sua oferta, pública e gratuita, é vista como um grande avanço de nosso tempo. Mas, paradoxalmente, a escola é considerada igualmente como um dos grandes fracassos desta época chamada modernidade. A educação e a escola pública não vão bem, vivem em crise e não cumprem a promessa de formar o cidadão, é o que se comenta. Uma crise que é tema recorrente no cotidiano dos indivíduos, dos grupos e também no contexto dos estudos e pesquisas.

    Não é, portanto, uma novidade. Critica-se a qualidade da educação escolar, seus mecanismos seletivos que diminuem as oportunidades de acesso e permanência para grande parte das crianças, seu caráter excludente, a formação e atuação dos professores, as normas e regras disciplinarizantes, sua incapacidade de formar competências técnicas e profissionais. É como se vivêssemos um desencanto pela escola. É um desencanto ainda maior quando pensamos na educação e na escola públicas. Já se chegou mesmo a afirmar que o fracasso da educação pública é, na verdade, o seu sucesso. Ou seja, a escola publica ao oferecer educação de péssima qualidade é bem sucedida na manutenção das desigualdades, das hierarquias e das exclusões sociais.

    Mas dizer que a escola pública vai mal pode ser uma das maneiras pelas quais o conjunto social expressa o desejo de que ela pode estar melhor e que ela deve ser melhor. Ao criticar a escola pública, reafirmamos seus valores e defendemos projetos para sua transformação. Compreendemos e afirmamos que a escola pública é uma das mais caras invenções dos homens e que, antes de configurar-se materialmente, ela foi e continua sendo projetada, criada, imaginada. Por isso, as criticas que sobre ela recaem podem indicar ‘um importante sinal de vitalidade’ desta instituição. Significa que, na dimensão imaginária, a educação das novas gerações ainda é objeto de um investimento afetivo que nos anima e nos desafia, apesar de sua crise (VALLE, 1997).

    A crise da escola é tão antiga quanto à própria instituição escolar, estando relacionada a todos os dilemas éticos e morais que os tempos modernos colocaram para humanidade. É também a crise de todos os projetos e expectativas inauguradas a partir da Revolução Burguesa (1789), momento em que a burguesia - classe social que então revolucionava o mundo prometendo inventar uma sociedade livre, fraterna e igualitária – compreendeu que para construir um mundo novo era necessário investir na formação de um novo homem. Por isso, é imprescindível refletir sobre os conteúdos desse nosso desencanto, questionando a validade e pertinência daquilo que comumente se diz sobre o esfacelamento ou fracasso do projeto escolar.

    Para entender o desencanto pela educação é preciso que compreendamos por que ela, igualmente, nos encanta. É neste sentido que propomos pensar a escola como invenção e como projeto de sujeitos sociais que, num dado momento de seu desenvolvimento, perceberam que podiam controlar seu próprio destino, criar leis e de organizar a vida societária sem os desmandos de reis e soberanos, sem a limitação dos dogmas religiosos. Seres humanos que, por volta do século XVII, descobriram-se sujeitos de sua própria vida e destino e capazes de transformar o mundo em que viviam. Naquele contexto, a escola foi uma conseqüência lógica da percepção que o futuro poderia ser planejado, portanto, preparado. Conforme Lílian do Valle (1997:15)

    A Escola pública é fruto, e é um dos primeiros instrumentos do projeto humano, quando este, enfim, se reconhece como tal: projeto de construção de uma nova sociedade, contra a força quietista dos dogmas; projeto de criação de um novo homem, para além (que não quer dizer contra) dos limites e exigências da Natureza; projeto de elaboração sistemática e cuidadosa de uma nova cultura, que se impõe sobre as ilusões do espontaneísmo. (Grifos nossos)

    Portanto, a escola pública é um produto social que, antes de se tornar material, foi imaginado como projeto antes que qualquer parede fosse erguida, antes que qualquer sujeito pudesse ser chamado professor ou aluno. Ver a escola como instituição imaginária não significa, entretanto, negar ou secundarizar sua materialidade (histórica, política, ideológica, legal), mas permite ampliar nossa compreensão sobre as expectativas e frustrações relacionadas ao projeto escolar. Afinal,

    [...] é como instituição imaginária que a Escola se edifica, em sua origem, como projeto político de uma sociedade; e é pela capacidade de permanente reconstrução de seu sentido imaginário que ela pôde [...] resistir ao tempo como instituição duravelmente enraizada na vida social.(VALLE,1997: 13)

    Foi no contexto da Filosofia das Luzes que, pode-se encontrar a origem imaginária da escola pública: foram os filósofos e os homens de ação iluministas que, no século XVIII, descobriram senhores do seu destino e, na sua batalha contra as trevas, valorizaram a educação como algo explicitamente político, ou seja, algo capaz de criar uma nova sociedade. O pensamento de filósofos iluministas como Condorcet, D’ Alembert, Condilac, Voltaire demonstram o lugar do desejo e do sonho desses homens por uma sociedade na qual o homem viveria longe das trevas, embalado pela capacidade racional individual de explicar o mundo e nele intervir sem a necessidade de se recorrer a qualquer autoridade (o rei ou o clero).

    A educação escolar foi o instrumento imaginado e, depois, criado com a função de formar homens livres da dominação da ignorância e da tirania de reis e dos dogmas religiosos preparando todos os indivíduos para o exercício igualitário dos direitos e deveres e fomentar o sentimento de fraternidade social. Esse o ideal que fundou a educação e a escola pública. Talvez seja este o ideal que habita nossos sonhos ainda que a ele tenham sido agregados novos desafios e novas necessidades sociais. É diante deste ideal é que faz sentido nos questionarmos sobre como, quando e porque a escola imaginária dos iluministas foi se tornando um instrumento de dominação e de controle de uns sobre os outros e transformando-se em instituição que contribui para criar e reforçar privilégios e distinções, mantendo desigualdades e injustiças sociais.

    Antes de tudo, é preciso questionar o pensamento utópico que considera que o conhecimento racional é uma espécie de farol com capacidade para iluminar a ação e o pensamento de homens e levá-los a privilegiar o bem comum. O filosofo Jean Jacques Rousseau foi um dos primeiros a desconfiar do otimismo da Luzes oferecendo outro quadro sobre as possibilidades oferecidas pelo conhecimento racional que, então entusiasmava. Um dos importantes temas de reflexão que encontramos neste filósofo consiste na “extraordinária agudeza com que percebe que o saber, longe de se constituir em valor absoluto, pode legitimar, e legitimou ao longo da história, a dominação, o egoísmo, a vaidade” (VALLE, 1997: 88).

    Depois, é preciso considerar que a educação sempre foi um campo perpassado por lutas e tensões, atravessado por múltiplos e, muitas vezes, antagônicos interesses. Associada à formação de homens livres para a vida em sociedades livres e igualitárias, a educação escolar pressupõe a possibilidade do exercício cidadão dos direitos (civis, sociais, políticos). Ou seja, a educação é um dos direitos do homem, outro campo igualmente permeado por disputas e conflitos condizentes com sociedades divididas em classes sociais. O sonho dos revolucionários franceses de uma sociedade de direitos foi se tornando o projeto de hegemonia de uma classe social (a burguesia), o que acabou por transformar também o Estado em um dispositivo do seu poder. O direito à educação foi, sem dúvida, duramente afetado por estas mudanças.

    As transformações do Estado e suas nefastas conseqüências para a existência material e simbólica da escola pública é um dos percursos que contribuem para a compreensão da transformação do sonho iluminista de uma escola que a todos oferecesse ilustração em uma escola pública que parece um dócil instrumento nas mãos daqueles que detêm poder e conhecimento. Em outras palavras, a transformação da escola imaginária acompanha e, de certa forma, é conseqüência da transformação do Estado operada quando a burguesia, de classe revolucionaria, tornou-se classe dominante.

    No processo dessa transformação é surgiu e se desenvolveu a necessidade de uma pedagogia do tempo como uma estratégia de formação humana potencialmente útil para a conformação do modo de vida burguês e capitalista. Controlado pelo Estado, o tempo foi se tornando um dispositivo ampliado e poderoso de intervenção concreta na vida dos indivíduos já que a criação de um tempo comum para todos dissolve, em uma mesma esfera, os ritmos individuais. É este o papel essencial da pedagogia do tempo: inserir todos no tempo capitalista, o tempo da produção, que passa a regular todos os outros tempos da vida. Assim, o tempo coletivo funciona como mecanismo de ocultação e destruição das diferenças homogeneizando pensamento e ações, tornando todos um só.

    O ideal da igualdade entre os homens – um dos pilares da Revolução Francesa – se concretiza, por esta via, na dissolução das diferenças e na transformação da singularidade em universalidade. E o tempo escolar é um dos dispositivo mais eficazes para o alcance deste estado de coisas prestando-se, como poucas dimensões, às tarefas de controle e dominação tão típicas da instituição escolar. Conforme Ana Cavaliere (2004: 97),

    Poucas instituições sociais lidam com o tempo de maneira concomitantemente tão arbitrária e tão minuciosa quanto a escola. Tudo nela se refere à regulação do tempo. Tudo nela controla e é controlado pelo tempo. Horários, períodos, calendários, planejamentos, prazos, grupos etários, enfim, a administração do tempo compõe o cerne da vida escolar tal como ela se expandiu e triunfou. O bom cumprimento das prescrições relativas ao tempo constitui em si mesmo grande parte do sucesso escolar de um aluno.

    Podemos comparar a escola e indústria quanto aos usos e à importância do tempo. Ambas, são fenômenos correlatos do mesmo mundo moderno e capitalista. Em ambas, o controle do tempo é central, porém, nas linhas de produção industrial os tempos e as ações que nele se realizam resultam num produto tangível, a mercadoria concreta. O que dizer do tempo da escola e do produto dele resultante, o sujeito educado? Nada mais subjetivo e impreciso, pois a escola é “[...] o reino do simbólico, das interpretações, dos julgamentos. Nela, a incorporação do controle do tempo se orienta pelo estabelecimento de relações que são arbitrárias em sua essência e que produzem bens intangíveis”, segue dizendo Cavaliere (2004: 98)

    Na escola, a pedagogia do tempo impõe uma lógica seqüencial na organização do tempo. Cada ação tem a hora certa de acontecer, tudo é previsto e inserido em seqüências predeterminadas, desde a entrada na escola até a hora da saída, desde o primeiro até o último ano. Nada é simultâneo e inesperado. A simultaneidade poderia instaurar outra lógica, provocar a interpenetração de várias ações sem tanta previsão, sem tanta rigidez, sem tanta seqüência. A organização seqüencial do tempo escolar já foi criticada e questionada, já surgiram propostas de usos do tempo que respeitassem os ritmos psicológicos, biológicos, culturais dos estudantes e dos professores.

    A escola, contudo, resiste a mudanças, inclusive, porque o projeto de racionalização e controle do tempo faz parte da constituição da concepção moderna de infância como tempo de estudar. Para identificar e educar a infância é preciso controlar as ‘idades’, registrar o tempo no próprio indivíduo. E a partir daí, segregar idades, isolar faixas etárias, definir períodos ou fases de desenvolvimento e aprendizagem dos estudantes são elementos generalizados pela escola. Para Cavaliere (2004: 99), no entanto,

    A organização do tempo escolar ultrapassa as questões de ensino e aprendizagem dos conteúdos escolares, isto é, a instrução escolar propriamente dita, e condiciona um espectro muito mais amplo da vida das crianças e adolescentes. Os deslocamentos, a alimentação, o sono, o lazer, a convivência familiar orbitam a organização temporal da jornada escolar.

    Depois de mencionar a escola como instituição imaginária de seus precursores e pensar a sua transformação em instrumento ideológico que produz e preserva a sociedade capitalista com todos os seus males, a proposta destas reflexões é que não desistamos da escola! Ou melhor, não abandonemos o sonho que criou a escola como projeto de sociedade. Especialmente no momento em que, em crise, tudo parece se esfacelar diante ante nossos olhos atônitos: a sociedade, o Estado, a teoria, a esquerda, o poder criador do homem e da sociedade e, como não poderia deixar de ser, também a escola pública.

    Em nossa interpretação, o fracasso do ideal iluminista não pode significar que 'nada ficou no lugar', como diz a canção popular. A noção de imaginário é, neste sentido, essencial para percebermos a necessidade de continuarmos investindo na escola pública na medida em que, parafraseando Valle (1997: 156) “[...] a educação é o projeto de criação do mundo humano, pela criação do homem que o habita. A educação é forçada [...] a imaginar o mundo e o homem [...]”.

    Em tempos em que a simples menção do publico já suscita as mais acirradas polêmicas e críticas, a defesa da escola pública é a defesa da escola como lugar onde, necessariamente, habita o sonho. E, neste sentido, ela é sempre uma instituição imaginária. Imaginária porque fruto de criação da sociedade e produzida, também, no interior de uma relação de investimento de afetos contra a qual, muitas vezes, nos forçamos a ver apenas a funcionalidade. Para finalizar, sublinhamos a necessidade de continuarmos a imaginar a escola pública, a criá-la continuamente em nossos sonhos e desejos. Sonhemos, sem perder os pés do chão! A história não tem fim!

Referências bibliográficas

  • CAVALIERE, A. A escola do tempo. In: Revista de Antropologia e Imagem. Rio de Janeiro/RJ: EdUERJ, 2004, no 19, pp. 96-99.

  • VALLE, L. A escola imaginária. Rio de Janeiro/RJ: DP&A Editora, 1997.

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