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O sagrado esporte e a profana droga

El sagrado deporte y la profana droga

 

*Mestre em Psicologia Social/UERJ. Licenciado em Educação Física/UERJ

Membro do Laboratório de Imaginário Social e Atividades Culturais e Lúdicas (LISACEL)

Docente do Governo do Estado do Rio de Janeiro

**Doutorando em Psicologia Social/UERJ

Mestre em Ciência da Motricidade Humana

Docente da UNISUAM e da Universidade Veiga de Almeida/RJ

Membro do LEEFEL (Laboratório de Estudos em Educação Física, Esporte e Lazer)

Rafael Nuernberg Lauer*

rafael_lauer@yahoo.com.br

Valdo Vieira**

valdovieira@gmail.com

(Brasil)

 

 

 

Resumo

          O presente artigo procura caracterizar o discurso e as ações de combate ao doping como expressões localizadas de um fenômeno mais amplo: o combate às drogas. Por meio do estudo da dinâmica simbólica do puro e do impuro elaborada por Douglas, buscamos evidenciar que a oposição entre os esportes e as drogas, muito mais do que determinada por qualidades intrínsecas, se fundamenta em qualidades simbolicamente impregnadas nestes fenômenos. Os esportes representam exemplarmente os valores sagrados da moral e da ética universais. As drogas, por sua vez, são impuras porque fazem “tremer” estas bases morais sobre as quais se firmou a nossa sociedade e, logo, a uma de suas mais lídimas expressões, o esporte.

          Unitermos: Esporte. Doping. Pureza. Impureza

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 14 - Nº 138 - Noviembre de 2009

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    “I’m clean”, respondeu o americano Michael Phelps, o maior campeão das olimpíadas modernas, ao ser questionado sobre a possibilidade de doping em uma entrevista coletiva realizada durante os jogos olímpicos de Pequim. A afirmativa, em linhas gerais, revela uma distinção entre um lado “puro”, em que se concentra o esporte, e um lado “impuro”, à que fica renegado o doping (ou seja, as drogas). Ao dizer “Estou limpo”, Phelps também nega estar “sujo”, dopado, drogado. Seu discurso expressa a crença de que uma atleta, para competir nos jogos olímpicos, deve ter seu corpo livre de contaminações. As drogas são assim consideradas substâncias impuras, que poluem aqueles com quem entra em contato, mesmo que indiretamente, de modo que um atleta contaminado contagia todo o ambiente olímpico; e por isso deve ser rechaçado.

    Em recente artigo da revista Piauí intitulado “Atletas, dopai-vos”, Harazin (2008, p. 34) nos lembra que: “as ratazanas do doping esportivo estão sempre à espreita de algo novo para sua clientela voraz”. O doping, mais uma vez, se associa à ideia de “impureza”. Aqueles que habitam seu submundo, as “ratazanas”, correm por entre as sombras atrás de alimentos para suas “crias”. Como ratos a espreita de comida, vagam pelo submundo atrás de novos métodos e substâncias capazes de nutrir o “voraz” apetite que demanda dos atletas do esporte de alto nível. Porém, ao contrário das verdadeiras ratazanas à que estamos acostumados, não vivem no esgoto a procura de restos e sobras, mas têm a sua disposição verdadeiros banquetes (ou coquetéis), fornecidos – extra-oficialmente, é claro - por laboratórios farmacêuticos devidamente regulamentados.1 Verdadeiras maravilhas da ciência moderna que, capazes de revolucionários avanços no âmbito da saúde, são também co-responsáveis por proezas olímpicas.

    As substâncias e métodos empregados nas práticas de doping não são considerados impuros em si, já que quando utilizados para fins considerados nobres possuem uma aprovação quase que unânime. Semelhante a comida de maneira geral, que de alimento sagrado passa a lixo quando sai da mesa e vai para a lixeira, as práticas de doping só adquirem conotação negativa, se tornando “sujas”, quando entram no “mercado negro”. A diferença é que, no caso do doping, o “lixo” não é aquilo que sobra ou que está estragado, mas produtos quase sempre dentro do prazo de validade e com padrão de qualidade garantido. Assim, a conotação negativa não advém do produto em si, mas das intenções de seu uso.

    A sujeira, como nos esclarece Douglas (1991), é um símbolo de impureza, de algo capaz de contaminar àquilo com o qual entra em contato. Sempre que a sujeira “toca” em algo, ou este algo se torna sujo ou a própria sujeira se purifica.2 Daí que a mesma mão suja que contamina a comida possa ser purificada pela água. Assim como uma água contaminada pode, ao invés de limpar, sujar. O fato é que o limpo e o sujo, o puro e o impuro não são sempre opostos absolutos, mas podem ser categorias relativas. Aquilo que é puro em relação a uma situação pode ser impuro em relação à outra e vice-versa.

    Na prática esportiva, por exemplo, o uso de determinadas substâncias consideradas dopantes é autorizado no caso de alguns atletas portadores de determinadas necessidades especiais e terminantemente proibido para todos os outros atletas. Já substâncias desconhecidas ou ainda não detectáveis pelos métodos antidoping são, na prática, “puras”, uma vez que o seu uso passa desapercebido e, portanto, está isento de sanções ou punições. Só a partir do momento em que puderem ser detectadas é que o uso destas substâncias se tornará “impuro”, podendo inclusive “sujar” e invalidar as conquistas do passado.

    Nesse sentido, a impureza, no que concerne ao doping, está muitas vezes associada à noção de segredo. Se um atleta, como nos revela a já citada afirmativa de Phelps, deve ser necessariamente “puro”, ele acaba sendo obrigado, no caso de estar se dopando, a ocultar a impureza de seus atos para dar-lhe a aparência inversa. O segredo possibilita assim a transmutação do impuro em puro. Mas, por outro lado, a revelação do segredo, como ocorreu recentemente com o próprio Phelps, que foi flagrado inalando maconha em uma festa com amigos, realiza o movimento contrário, transformando o puro em impuro.

    A quebra do segredo leva a condenação daquele que foi pego “jogando sujo”. No caso de Phelps, um pedido de desculpas ao “mundo” e a perda de um dos seus patrocinadores foram suficientes para redimi-lo, uma vez que o atleta não foi “desmascarado” durante nenhuma competição. Já no caso de um atleta que seja flagrado num exame antidoping realizado no decorrer de uma competição, a punição será muito mais severa, ainda que o resultado do exame só fique pronto depois do término da competição em questão.

    Este tipo de punição retroativa sugere que o julgamento daquilo que é bom ou mal está relacionado muito menos às circunstâncias materiais de um ato do que com os motivos e disposições do agente infrator. Não é porque o doping tenha sido higienicamente maléfico ou benéfico, ocasionando algum dano ou benefício à condição física de um atleta durante a competição, que ele deve ser punido, mas sim porque ele representa um estado espiritual de indignidade. Um atleta sob o efeito de substâncias dopantes é indigno de participar entre os “puros”, e por isso suas conquistas devem ser invalidadas e ele deve ser afastado ou banido do meio sacro-santo-esportivo.

    É claro que um campeão pode ter suas habilidades postas em dúvida, afinal, até que ponto sua vitória se deve principalmente a méritos próprios ou a benéficos proporcionados por uma substância proibida? Não podemos negar as evidências de que o uso de algumas substâncias proibidas corresponda a melhoras significativas no desempenho físico. Mas será possível creditar somente a elas os resultados de toda uma vida de sacrifícios e trabalho duro?

    É comum a ideia de que “muitos (atletas) submeteram-se a longos e cansativos treinamentos” enquanto “outros, porém, foram somente à farmácia”. No entanto, ao contrário desta primeira impressão, via de regra o uso de drogas não se dá no sentido de aliviar o fardo, mas sim no de possibilitar enfrentar um fardo ainda mais pesado. As substâncias dopantes não operam milagres. Sem muito sacrifício e dedicação, não se chega a ser um campeão. As drogas em geral são utilizadas para que os atletas suportem um nível de treinamento sobre-humano, que seria impossível de se alcançar sem a ajuda de recursos considerados moralmente duvidosos. O problema, nesse sentido, não se concentra no uso ou não de drogas, mas na interminável busca de superação, isto é, na constante tentativa de elevação do humano ao super-humano.

    E por que não falar também das novas tecnologias empregadas nos materiais esportivos e das diferentes condições financeiras à que os atletas de diferentes países têm acesso? Por que não limitar o uso de tecnologias e a quantidade de investimentos a ser empregada na preparação dos atletas? Por que não oferecer a todos as mesmas condições de treinamento? Ou será justo que uns tenham tudo do “bom e do melhor” e outros “corram descalços”? Não são apenas as substâncias ilícitas as responsáveis pela injustiça no esporte, mas também, e principalmente, as substâncias, equipamentos e métodos lícitos de treinamento à que só uns poucos têm acesso.

    E quanto às outras substâncias que não proporcionam aumento de rendimento? Porque um atleta deve ser afastado de sua profissão por utilizar substâncias como a maconha e a cocaína que não apresentam significativas melhoras de rendimento? Por que fazem mal a saúde? Esta mesma lógica não deveria valer para o álcool e o tabaco? Se um atleta profissional se encontra em uma situação em que precisa de ajuda, porque, em vez de ajudá-lo, puni-lo com o afastamento de sua profissão e assim contribuir para a sua marginalização quando, dizem os especialistas em toxicomania, ele precisaria ser tratado e reintegrado à sociedade?

    A lista de indagações que põem em xeque os argumentos antidoping é grande e poderia continuar se alongando. No entanto, mesmo contra todas estas incoerências, os argumentos antidoping continuam vigorando e suas práticas repressivas se tornam cada vez mais severas. Para se ter uma ideia geral, vale revisar o esclarecedor artigo de Tavares (2008), que versa a respeito dos argumentos que fundamentam a proibição do doping em termos de seu mérito lógico, dando ênfase à capacidade do discurso antidoping em fazer valer a proposição da imoralidade do doping.

    O objetivo de Tavares (2008) não é examinar os argumentos antidoping pelo caráter de sua veracidade, mas sim pela competência de serem auto-suficientes e necessários ao combate do uso de drogas no esporte. Nesse sentido, o autor destaca e examina o que ele entende serem os cinco principais argumentos antidoping, a saber: (1) o doping é potencialmente perigoso à saúde; (2) o doping melhora o desempenho esportivo; (3) o doping é uma ajuda artificial ao desempenho esportivo; (4) o doping desloca as competições esportivas das arenas para os laboratórios; (5) a prática de doping por parte de uns força outros a adotarem as mesmas práticas.

    O argumento do risco à saúde, segundo Tavares (2008, p.2), parece ser aquele que demonstra apresentar maior força e visibilidade. Com raízes no discurso médico, “um tipo de discurso de intervenção freqüentemente de ordem moral” que aparece quase sempre revestido e validado por um tom de cientificidade, este primeiro argumento parte do princípio de que as evidências técnicas em que se fundamenta legitima-o como regulador do comportamento individual e social.

    No entanto, apesar de reconhecer que o uso de algumas substâncias pode ser danoso à saúde, Tavares (2008) afirma que, na prática esportiva em si, quanto maiores são os níveis de exigência de rendimento, maiores são os riscos potenciais contra a saúde de seus praticantes. De modo que as atividades físicas envolvem riscos que aumentam proporcionalmente ao nível das exigências físicas envolvidas na atividade praticada. Assim, diante da quantidade de lesões, dores, torções e fraturas que vivenciam os atletas de alto nível, torna-se risível a ideia de que o doping precisa ser proibido simplesmente porque pode causar algum dano à saúde.

    Com relação à eficácia ou não das substâncias e procedimentos considerados doping, Tavares (2008) nos lembra que, tomando mais uma vez em conta a prática esportiva, o objetivo de todo treinamento esportivo de alto nível é tão somente a melhora do desempenho. Logo, se a busca constante da melhora do desempenho faz parte da própria natureza da competição esportiva, por que um artefato capaz de servir a este elemento central da prática esportiva seria por si mesmo, algo condenável? Quando colocada frente às conseqüências práticas do uso de outros elementos acessórios a prática esportiva, como o uso de equipamentos de última geração, a ideia de que o uso de drogas é moralmente errado apenas porque potencializa o desempenho torna-se insustentável.

    Acontece, entretanto, que tal argumento parece estar baseado em alguma derivação do conceito de fair play,3 para o qual o aumento da performance a todo custo parece ser ofensivo a uma ética fundamental do esporte. Nesse ponto, observa-se claramente a grande contradição de uma atividade que, caracterizada por uma busca constante de superação, se vê externamente (moralmente) limitada em seus meios de alcançar tal superação.

    No que diz respeito à ideia de que o doping é uma ajuda artificial e, portanto, condenável, Tavares (2008) indaga que, sob este ponto de vista, os implementos utilizados para o desenvolvimento das condições físicas necessárias ao progresso atlético também seriam artificiais. Pois, de acordo com o critério da “des-natureza”, há de se convir que se torna quase impossível separar e justificar a legitimidade do uso ou não dos suplementos, das vitaminas, dos esteróides anabólicos, da testosterona ou mesmo das próprias práticas “anti-naturais” do treinamento esportivo, como a hipertrofia provocada por exercícios contra a resistência.

    Com efeito, diante da questão da artificialidade, se faz necessário perguntar se não há apenas uma série de implementos à prática esportiva que são artificialmente desenvolvidos para ampliarem as potencialidades do gesto esportivo humano, como, também, se muitos dos próprios gestos esportivos não são, eles mesmos, artificiais? Afinal, não é artificial o que é próprio do fazer humano? Ou seja, tudo aquilo que é produzido pelo homem e que não é capaz por si mesmo de se auto reproduzir?

    O quarto argumento, que defende que o desenvolvimento de substâncias dopantes acaba por deslocar as competições esportivas dos estádios para os laboratórios de farmacologia, perde credibilidade diante da constatação de que não há deslocamento das competições para os laboratórios de fisiologia, para os centros de treinamento ou de tecnologia que também são destinados a melhora da performance esportiva. Ou será que as pesquisas desenvolvidas nesses laboratórios são menos válidas do que as dos laboratórios de farmacologia?

    Ainda sob a perspectiva da competitividade deslocada, Tavares (2008) lembra que as competições internacionais, na medida em que os países ricos possuem recursos materiais e tecnológicos muito superiores, inclusive no que diz respeito a produção de drogas cada vez mais eficientes e não detectáveis pelos exames antidoping, acabam por ser fortemente injustas. O que levanta a pergunta: será que a liberação do uso do doping possibilitaria a utilização de todo o potencial tecnológico por parte dos países ricos e assim aumentaria ainda mais as diferenças? Ou será que este potencial já não é amplamente utilizado4 e simplesmente mascarado pelo dilema ético e legal que vigora atualmente?

    Por fim, Tavares (2008) lembra que, se é possível afirmar que o uso de doping é imoral porque força aqueles que não querem a usá-lo, também é possível afirmar que o nível de treinamento sobre-humano hoje requerido também é imoral no sentido de não dar outra opção para aqueles atletas que desejam chegar ao alto nível, senão treinar no mesmo nível que ele imagina ou sabe que os outros estão treinando. E, como não poderíamos deixar de acrescentar, é justamente esta exigência de um supertreinamento uma das principais motivações ao uso de substâncias e métodos de doping.

    Parece, portanto, que os argumentos lógicos elaborados com o intuito de fundamentar a proibição do doping não são suficientes para legitimar ou fomentar o combate ao uso de drogas no esporte. O fato é que as explicações lógicas, por si mesmas, não são capazes de justificar uma adesão à causa do combate às drogas no esporte. Tal movimento de oposição exige que o corpo social se sinta de alguma forma ameaçado pelas forças encarnadas nas drogas. Para compreendermos estas “forças mobilizadoras” e os significados que sustentam o imaginário do combate ao doping acreditamos ser necessário voltarmos à resposta de Phelps, dando uma maior ênfase à relação entre o “limpo” e o “sujo”, o “puro” e o “impuro”.

    Segundo Douglas (1991, p.49) a comparação entre os comportamentos a respeito da impureza em várias partes do mundo, permite considerar que, quanto mais nos aprofundamos nas ideias de impureza, “mais óbvio se torna que estamos estudando sistemas simbólicos”. Para a autora, existem duas notáveis diferenças entre as ideias contemporâneas de profanação e aquelas das culturas tidas como “primitivas”. A primeira diferença é relativa ao fato de que a atual necessidade de se evitar a impureza é considerada uma questão de higiene ou estética que não se relaciona com a religião. A segunda diferença leva em conta que o conhecimento de organismos patogênicos, dominando a atual noção de impureza, transformou de tal modo a forma de pensar em impureza que torna difícil não associá-la a um contexto de patogenicidade.

    No entanto, Douglas (1991) acredita que, se formos capazes de analisar as bases do ato de evitar a impureza antes de sua transformação pela bacteriologia, ou seja, de abstrair patogenia e higiene de nossa noção de impureza, voltaremos à velha definição de impureza como um tópico inoportuno. Nela, a impureza nunca é um acontecimento único, isolado, mas uma contravenção de uma ordem, de um conjunto de relações ordenadas, de um sistema. Na medida em que o estabelecimento de uma ordem implica na rejeição de elementos inapropriados, a impureza surge como um subproduto de uma classificação sistemática de coisas.

    A ideia de impureza, portanto, só pode ser compreendida enquanto imersa no campo do simbolismo, sendo suja toda anomalia encontrada em um sistema ordenado. O comportamento de poluição é uma reação que condena os objetos ou ideias que confundam ou contradigam as classificações tidas por ideais. De modo que as regras de impureza exigem um processo de separação por meio da qual algumas coisas e pessoas estarão sujeitas a restrições e outras não. Tais restrições pretendem proteger o sagrado contra a profanação e o profano contra a intrusão do divino.

    Acontece que não existe um espaço sagrado ou profano por excelência, pois que o sagrado e o profano são sempre um a condição de existência do outro. Existe, sim, a tentativa de separá-los, que é fundamental a tentativa de ordenar o mundo. Como disse Eliade (1992), a primeira definição que se pode dar ao sagrado é que ele se opõe ao profano, se mostrando como qualquer coisa absolutamente diferente do profano. É a partir desta diferenciação que o sagrado funda o mundo. Porque o mundo profano é homogêneo e indiferenciável, mas o sagrado opera uma ruptura, uma quebra, estabelecendo porções de espaço qualitativamente diferentes. O sagrado cria um ponto de referência, um centro que permite a orientação no que antes era uma extensão homogenia e infinita.

    Nesse sentido, a impureza é uma anomalia que ameaça a posição de “firme fundamento” que o sagrado representa na sustentação de um sistema simbólico. Algo ou alguém impuro não pode comungar com o sagrado sob o risco de destruição da própria ordem. Quando isto ocorre, é preciso que seja prontamente realizado um ritual de purificação, que pode ser caracterizado por um simples lavar das mãos ou mesmo pelo sacrifício de um “bode expiatório”. Caso este ritual não seja realizado, o sagrado é desacreditado e perde sua eficiência. Pois tudo o que é sagrado, sob o risco de se tornar impuro diante do menor contato com a impureza, deve ser protegido contra a profanação.

    Toda impureza, enquanto anomalia, justifica uma rejeição, de modo que alguém impuro está sujeito à acusação e à execração, carregando consigo um rótulo que pode levá-lo ao exílio ou a morte. Assim também, um atleta flagrado num exame antidoping ameaça a pureza do esporte e, por isso mesmo, além de ser afastado ou mesmo banido do meio esportivo, acaba sempre estigmatizado.

    Nesse sentido, ao afirmar que está “limpo”, Phelps está também afirmando que o esporte é um espaço sagrado em nossa cultura e que, por isso mesmo, deve ser protegido contra a poluição do doping. A prática esportiva exige que os atletas estejam “limpos”, porque um atleta “sujo” pelo uso de drogas profana o sacrossanto território do esporte. Daí que, em casos de contaminação, o responsável por tal profanação deve ser julgado e punido por um tribunal, servindo de exemplo (bode expiatório) para todos.

    Segundo Douglas (1991), existem várias formas de lidar com a impureza. De forma negativa é possível ignorá-la, não percebê-la ou, percebendo-a, condená-la. Já de forma positiva podemos simplesmente confrontá-las e tentar criar um novo padrão de realidade onde elas tenham um lugar. No caso do doping esportivo, é possível observar que a posição predominante é a de negação, de condenação. Mas é necessário reconhecer que a negação do doping é também um ato positivo, uma vez que confronta-o e reserva-lhe um espaço, ainda que seja na área de “esgoto”, local no qual toda impureza deve ser jogada e pelo qual é levada para o subterrâneo, longe do espaço sagrado.

    Todo e qualquer sistema de classificações dá origem a anomalias, assim como toda e qualquer cultura também apresenta meios de lidar com eventos ambíguos ou anômalos. Dentre estes meios, Douglas (1991) destaca os seguintes: (1) a ambigüidade é frequentemente reduzida pela decisão entre uma ou outra interpretação; (2) uma anomalia pode ser fisicamente controlada; (3) a evitação de coisas anômalas confirma e reforça as definições às quais elas não se ajustam; (4) a atribuição de perigo coloca um assunto acima de possíveis discussões, reforçando a conformidade; (5) símbolos ambíguos podem ser utilizados para enriquecer um significado ou para chamar a atenção a outros níveis de existência.

    Ao aproximarmos estes meios da proibição do doping esportivo, podemos observá-los em ação na seguinte ordem: (1) O uso do doping é terminantemente proibido, não havendo espaço para discussões; (2) os exames antidoping eliminam as anomalias sociais identificando-as e excluindo-as; (3) a reprovação absoluta do doping reafirma a pureza do esporte; (4) a afirmação enfática dos riscos do doping faz da proibição assunto hegemonicamente não aberto a contestações; (5) a presença do doping no esporte demonstra que a “tentação” é grande e que “o caminho é longo e a porta estreita” (o que leva muitos a se “perderem”)5, mas que a superação é heróica e a vitória gloriosa.

    Constata-se assim que um sistema simbólico se constitui no esporte valorizando uma prática sã, sem doping, bem como uma imagem de pureza do atleta. Tudo aquilo que pode macular ou obscurecer esta pureza deve ser combatido. O que pode ser constatado no artigo 7 da 26º reunião da Conferência Geral da UNESCO, realizada em 1991:

    El deporte de alto nivel y el practicado por todos deberán ser protegidos contra cualquier desviación. Las serias amenazas para sus valores morales, su imagen y su prestigio que representan ciertos fenómenos como la violencia, el dopaje y los excesos comerciales deforman su naturaleza misma y alteran su función educativa y sanitaria (UNESCO, 2003, p. 9).

    Nesse sentido, podemos afirmar que o doping esportivo é um paradigma da sociedade contemporânea, na qual o combate ao doping é a expressão localizada de um fenômeno mais amplo. O esporte representa exemplarmente os valores sagrados da moral e da ética universais. As drogas, por sua vez, são impuras porque fazem “tremer” estas bases morais sobre as quais se firmou a nossa sociedade e, logo, a uma de suas mais lídimas expressões, o esporte. Como reconhece a recomendação número 5 da II Conferência Internacional de Ministros y Altos Funcionários Encargados de la Educación Física y el Deporte (MINEPS II, 1988), intitulada “Luta contra o doping”: o doping no esporte é parte do problema geral do consumo ilícito de drogas na sociedade. Pois, se o objetivo da Convenção Internacional contra o Doping no Esporte realizada pela Unesco em 2005 foi o de “promover a prevenção e o combate do doping no esporte, com vista à sua erradicação” (art. 1, p.5), é porque este objetivo não é exclusivo ao âmbito esportivo, mas provém de uma questão maior, também manifesta no esporte.

    Diante destas considerações, a pergunta que nos parece ser a mais razoável é: como o esporte (também ele “vítima” das drogas) pode ser capaz de preveni-las e combatê-las? Se o esporte não é páreo para as drogas nem mesmo dentro de seus próprios domínios, como pretende “vencê-las” fora? A resposta a estas perguntas parece não estar no esporte em si, mas na hierarquia simbólica que o coloca em oposição direta às drogas. Enquanto representante do sagrado na simbólica social, o esporte é um instrumento de purificação social que, por meio das suas funções educativa e sanitária, é capaz de “purificar” as “impurezas” – na qual se incluem as drogas - e assim esterilizar o meio social de possíveis ameaças à sua saúde.

    Tal perspectiva permite compreender o fato de que o esporte, mesmo sendo um meio de prevenção e combate às drogas, pode ser ele mesmo contaminado pela presença e pelo uso de drogas. Afinal, não é apenas o puro quem pode agir sobre o impuro; o sagrado também pode ser contaminado pelo profano. O não quer dizer que o sagrado, em sua essência, deixa de ser puro. Assim como um tecido branco não deixa de ser branco quando sujo, o sagrado, quando profanado, pode ser limpo e restituir sua brancura. É claro que certas máculas acabam por marcar profundamente, deixando verdadeiras manchas indissociáveis do tecido. No entanto, a grande maioria delas se resolve com um simples ritual de purificação, como podemos constatar nas punições e nos castigos aplicados à atletas descuidados.

    Parece, portanto, que é nesta simbólica do esporte que encontramos as fundamentações e justificativas que dão a este fenômeno a fama de grande instrumento de prevenção e combate às drogas. Muito mais do que as qualidades intrínsecas à prática esportiva propriamente dita, são as qualidades simbolicamente vinculadas que garantem ao esporte o status redentor de que ele está impregnado.

Notas

  1. Pouco antes da abertura dos Jogos Olímpicos em Pequim, inspetores do governo chinês visitaram 257 empresas produtoras de anabolizantes e hormônios peptídicos, além de 2.739 atacadistas e 340 mil varejistas. As investigações levaram à suspensão da produção de 30 empresas e à cassação de licença de 25 outras firmas distribuidoras de substâncias que podem ser aproveitadas para doping. Além disso, as autoridades chinesas tomaram medidas contra 318 sites que divulgavam informações sobre a venda de anabolizantes e hormônios peptídicos.

  2. O que podemos tirar daqui é que o isolamento do esporte e de seus praticantes do contato com as drogas é uma questão essencial para a manutenção da “natureza” de ambos, pois, caso não sejam preservados à parte, dar-se-á início a um processo de profanização do esporte assim como, por outro lado, de naturalização das drogas.

  3. Tavares (2008) afirma que, de forma bastante genérica, o fair play pode ser compreendido como uma atitude de prática esportiva moralmente boa.

  4. Se pensarmos que as substâncias e métodos utilizados nas práticas de doping são oriundos de pesquisas de última geração, que recebem enormes quantidades de recursos e são realizadas por empresas com tecnologia de ponta, torna-se questionável a suposição de que a liberação do doping representaria um grande salto no sentido de potencializar seus efeitos e aumentar ainda mais a distância entre os países ricos e pobres.

  5. Como aparece em um site da Internet: “o grande volume de dinheiro gerado pelos patrocinadores e os atrativos louro$ para os vencedores estão tentando os atletas a tomarem a via mais curta para o topo. É aí que entram as drogas” (grifo meu, Revista Eletrônica de Química, s.d.).

Referências bibliográficas

  • DOUGLAS, M. Pureza e Perigo. Ensaio sobre as noções de Poluição e Tabu. Lisboa: Edições 70, 1991.

  • ELIADE, M. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

  • UNESCO. Convenção internacional contra o doping no esporte. Paris, 2005.

  • UNESCO. Mesa redonda de ministros y principales responsables de la educación física y el deporte. Paris, 2003.

  • UNESCO. Segunda conferencia internacional de ministros y altos funcionários encargados de la educación física y el deporte – MINEPS II. Moscou, 1988.

  • Revista Brasileira de Química. Disponível em: www.qmc.ufsc.br/qmcweb/artigos/doping.html. Acesso em: 12 mar 2008.

  • TAVARES, O. Doping: argumentos em discussão. Movimento, v 8, n.1, p. 41-55, 2002.

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