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Histórias de exclusão nas aulas de Educação Física e Jogos

Estudantis da Semana da Pátria: considerações acerca 

do processo de construção de um objeto de pesquisa

Historias de exclusión en las clases de Educación Física y en los Juegos Estudiantiles de la Semana 

de la Patria: consideraciones acerca del proceso de construcción de un objeto de investigación

 

Universidade Federal do Paraná

Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná

(Brasil)

Juliano de Souza*

Liliane da Costa Freitag**

José Ronaldo Mendonça Fassheber**

julianoedf@yahoo.com.br

 

 

 

Resumo

          Histórias de exclusão nas aulas de Educação Física foram por nós encaradas como fazendo parte de um processo complexo, relacional e envolvente. A discussão que aqui suscitamos foi fundamentada em relatos de exclusão descritos no diário de um menino – uma construção idiossincrática baseada em nossas próprias experiências de exclusão na aula de Educação Física e no esporte. Certos da pluralidade de questões e fatores pertinentes ao entendimento dessas histórias serão apresentados neste artigo àquelas vivências de exclusão possibilitadas pela penetração da lógica e conjuntura do esporte competitivo no interior da Educação Física escolar.

          Unitermos: Histórias de exclusão. Educação Física escolar. JESP

 

Abstract

          Histories of exclusion in the classrooms of Physical Education were for us faced like making part of a complex process, relational and involving. The discussion what here we caused was based on reports of exclusion described in the diary of a boy – a construction idiosyncratic based on our experiences themselves of exclusion on the classroom of Physical Education and on the sport. Certain from the plurality of questions and relevant factors to the understanding of these histories, they will be presented in this article to those existences of exclusion made possible by the penetration of the logic and state of affairs of the competitive sport in the interior of the Physical Education school.

          Keywords: Histories of exclusion. Physical Education school. JESP

 

Resumen

          Historias de exclusión en las clases de Educación Física fueron pensadas por nosotros como parte de un proceso complejo, relacional y envolvente. La discusión que aquí suscitamos se basa en los informes de exclusión descrito en el diario un niño, una construcción idiosincrásica sobre la base de nuestras propias experiencias de exclusión en la clase de Educación Física y deportes. Es indudable la pluralidad de cuestiones y factores relevantes necesarios para la comprensión de estas historias, será presentado en este artículo las experiencias de exclusión posibles gracias a la penetración de la lógica y la coyuntura del deporte de competición dentro de la Educación Física escolar.

          Palabras clave: Historias de exclusión. Educación Física escolar. JESP

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 14 - Nº 138 - Noviembre de 2009

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O início de uma história...

    Quando decidimos estudar alguns processos de exclusão manifestos no interior da aula de Educação Física, nos deparamos com o seguinte questionamento: “Quem por acaso não tem uma história de exclusão para nos contar dessas aulas?”.

    De certo modo, se tratava de uma questão um tanto quanto especulativa, mas que afinal acabou nos sugerindo uma hipótese importante para o norteio de nosso trabalho. Nesse caminho, procuramos nos afastar daquelas tendências de orientação marxista que buscam explicar a exclusão a partir de uma posição central, estática e tomada isoladamente, isto é, a categoria de trabalho atrelada a uma determinada consciência de classe. Sendo assim e pelo contrário, nos preocupamos em relacionar histórias de exclusão com inúmeras variáveis interdependentes, a saber, gênero, habilidade, religião, classe social, etnia, raça, idade etc.

    Feito esse exercício preliminar e após um período de reflexão sobre o tema, chegamos a seguinte hipótese: a grande maioria dos/as alunos/as tem uma história de exclusão para nos relatar das aulas de Educação Física. Alguns indivíduos em menor proporção, outros com mais freqüência, mas enfim todos/as, salvo aqueles/aquelas que não são conscientes do processo, têm umas/algumas vivências de exclusão para nos contar.

    A auxiliar-nos durante essa leitura, destacamos primeiramente, a abordagem teórica estabelecidos/outsiders de Elias & Scotson (2000). Nessa obra, os autores desenvolvem o argumento de que o fator coesão grupal é o que potencialmente define a posição que os indivíduos ocupam em determinados grupos. Para eles, os incluídos são aqueles que comungam de uma característica humana aceita como superior. Por sua vez, os excluídos, forasteiros, outsiders são aqueles que se afastam e não comungam da suposta característica, sofrendo por isso com o estigma, o preconceito e a discriminação. Os pesquisadores colocam ainda, que essas posições possivelmente são transitórias, ou seja, alguém que foi/é outsider pode vir a se estabelecer e alguém que foi/é estabelecido pode vir a se tornar outsider, dependendo para isso da oscilação de poder.

    Em segundo lugar esteve a nos contribuir com essa leitura global do processo de exclusão e inclusão dos indivíduos, a dimensão foucaultiana do poder. Em sua produção acadêmica, dentre outros feitos, Michel Foucault relaciona o poder com a produção do discurso da normalidade/anormalidade. Para ele, a articulação bidirecional entre poder e saber ajudou a definir procedimentos, técnicas, táticas e manobras de exclusão, e inventivamente, a partir do século XVIII, também tratou de tecer estratégias e tessituras de inclusão. Com base na sua obra, podemos afirmar que ao poder não se cabe somente a função de excluir os indivíduos, mas, pelo contrário, comporta o projeto de incluí-los para melhor gerir e governar suas vidas, para esquadrinhá-los em “esquemas de docilidade-utilidade”. (FOUCAULT, 2000; 2004).

    Reservadas as particularidades de cada uma das referidas perspectivas, pudemos perceber que tanto Foucault quanto Elias & Scotson, nos fornecem um manancial teórico que possibilita pensar as facetas da exclusão e inclusão de forma envolvente, dinâmica e relacional na sociedade. Para tanto se faz importante notarmos que a temática do poder é introduzida nos trabalhos de ambos os teóricos, não em termos reificantes. E isso na medida em que Elias & Scotson destacam a flutuabilidade do poder nas relações insiders/outsiders, assim como na transição de uma posição para outra; e Foucault nos alerta para a positividade do poder, ou melhor, dos micro-poderes difusos e espalhados por todo corpo social.

    Vislumbrada por esse viés teórico, a pesquisa “Histórias de Exclusão nas aulas de Educação Física”, foi desenvolvida na perspectiva de um processo com certo grau de complexidade e que envolve a totalidade dos indivíduos. Enfim, e a partir desses contornos pudemos nos atentar para a contínua circulação do poder durante as aulas, bem como para a inter-relação de categorias com potencial explicativo para essas histórias, quais sejam, gênero, habilidade, raça, etnia e outras já destacadas anteriormente.

    Algumas histórias de exclusão descritas na pesquisa evidenciaram-se nas seguintes situações: o aluno obeso ridicularizado ao jogar somente no gol durante uma partida de futebol; a menina que gostaria de jogar futebol com os meninos, mas não o faz porque não há receptividade por parte dos colegas; o/a menos habilidoso/a tocando poucas vezes na bola quando senão isolado do time; os/as alunos/as que são impossibilitados de participarem do JESP, devido o molde competitivo do evento e a cultura tecnicista predominante; sem falar das histórias do/a negro/a, do/a homossexual, do/a feio/a, do/a deficiente... que, de uma maneira ou outra, acabam por terem sua cultura corporal de movimento denegrida em mérito de uma posição central, estável e fixa, a saber, a do menino, branco, heterossexual, cristão, robusto, saudável, habilidoso e bonito.

    Sendo assim, constatamos que essas histórias de exclusão nas aulas de Educação Física se delineavam muito problemáticas, pois afinal estavam a agir e interferir diretamente no desenvolvimento corporal dos/as alunos/as. E isso pelo fato de que um indivíduo excluído geralmente se frustrava e acabava por rejeitar aquilo de mais concreto que podia apresentar “visualmente” para os/as demais colegas durante as aulas, isto é, seus corpos, seus gestos, seus desempenhos e seus estilos.

    Quanto à gênese dessas histórias de exclusão, acreditamos que ela remonta a própria história da Educação Física no Brasil, bem como a contextualização histórico-social mais ampla. Mais precisamente, defendemos que essas histórias de exclusão estão intimamente relacionadas às contingências e demandas históricas que situaram a prática e o desenvolvimento da Educação Física em nosso país. Melhor dizendo, cremos que uma explicação plausível para o processo de construção dessas histórias se possibilita quando relacionamo-las as tendências que caracterizaram e, muitas vezes, ainda norteiam a prática dessa disciplina, ou seja, as concepções higienista, militarista e tecnicista de Educação Física e corpo.

    Certos de que, outras questões e fatores podem ser resgatados para entender como se constroem essas histórias de exclusão, optamos, entretanto, e para os propósitos deste artigo, em apresentar e problematizar aquelas vivências de exclusão possibilitadas pela penetração da lógica e conjuntura do esporte competitivo no interior da Educação Física escolar.

Caminhos teórico-metodológicos

    Na oportunidade então de escrevermos sobre histórias de exclusão construídas nas aulas de Educação Física, nos sobreveio uma ávida surpresa: percebemos que a fronteira entre o que desejávamos pesquisar e o que havíamos vivenciado durante nossos anos de colégio não era tão distante.

    Diante do descoberto, passamos manhãs discutindo e conversando sobre a relação entre minha vida e o meu objeto de pesquisa, afinal a hipótese elaborada, o objetivo traçado e, até mesmo, os futuros resultados eram, em parte, também representações do meu ethos.

    Foi uma tarefa árdua e difícil, pois escrever sobre aquilo que de certa forma protagonizamos, por muitas vezes, causa-nos sentimentalismos e embaraços. Muito menos fácil, quando se tratam de lembranças, momentos e histórias, não tão agradáveis e que por ora mereceriam ser esquecidas, afinal, dizem respeito a nossas próprias vidas.

    Mas se por um lado, tal familiaridade gerou certa melancolia, por outro enriqueceu a análise, contribuiu para que o discurso fosse liberto de posições demagógicas e nos colocou diante da possibilidade de captar e capturar detalhes que outros, talvez não se atentassem em perceber. A partir de tais constatações, procuramos um encaminhamento teórico-metodológico que permeasse a familiaridade entre meu objeto de pesquisa e minha história de vida.

    Nesse sentido, o primeiro desafio consistiu no processo de criação de um personagem. Detalhes minuciosos de sua vida foram compostos através de uma biografia extensa. O nome escolhido para o garoto foi João Vieira Filho, vulgo Joãozinho. Filiação: João Vieira – mecânico de manutenção industrial; Ana Maria Cunha Vieira – professora de Ciências. Nasceu numa manhã chuvosa do dia 11 de fevereiro de 1989. Em 2003 – ano que resolveu relatar seu cotidiano em um diário - tinha 1,72 m. de altura, pesava 60 kg. e calçava 39. Essas são apenas algumas das informações identitárias do garoto, ressalvando que muitas outras foram enredadas naquele exercício de construção do personagem.

    O nosso intuito com relação à biografia do garoto era, por assim dizer, edificar bases sólidas para composição subseqüente de suas histórias de vida em seu diário. Daí a necessidade de criarmos um perfil psicológico para ele, sabermos sobre sua vida familiar, escolar, religiosa, sexual; questionarmos-nos sobre seus gostos e preferências. Perguntas como: Quais as manias deste menino, ou então, que coisas ele não gosta, foram cruciais na concretização desta etapa.

    Seguindo nesse percurso, por volta de março de 2006 já tínhamos composto as histórias em seu diário. Tratava-se de um documento muito peculiar, fruto de uma idealização idiossincrática e de um proveitoso diálogo entre história, memória e literatura. Não fora obtido em nenhum arquivo público. Era proveniente de um arquivo pessoal – se assim podemos chamar nossa memória – e resultado de uma construção subjetiva e intencional; uma produção tão recente quanto o próprio texto monográfico que lá redigíamos.

    Em seu diário Joãozinho relatou muitos fatos e acontecimentos de seu cotidiano. Dado o recorte temático e os objetivos de nossa pesquisa, selecionamos e examinamos prioritariamente, naquela oportunidade, páginas do diário nas quais encontramos passagens, por nós denominadas de “Histórias de Exclusão nas aulas de Educação Física” (SOUZA, 2006). Tais histórias de exclusão era fruto de determinações múltiplas e plurais, na medida em que não se referiam unicamente ao sujeito dono do diário – Joãozinho –, mas ao invés, relacionavam-se dinâmica e constantemente com as histórias de exclusão vivenciadas por seus/suas colegas.

    Ao avançarmos em tal empreitada, uma primeira precaução nossa foi entender os significados e significâncias atribuídas à matéria-prima do trabalho, especificamente, mas não exclusivamente, dos/as historiadores/as, isto é, os documentos. Diante de tal demanda, iniciamos nossas proposições em conformidade com o pressuposto do historiador Jacques Le Goff (1994) de que toda fonte é uma construção subjetiva.

    Para sustentar esta tese, Le Goff procura apreciar os documentos enquanto constructos humanos que transcendem a polarização verdade/mentira. Em seguida, o autor complementa que tais documentos podem ser frutos de ações humanas tanto casuais quanto intencionais e, por isso, alguns são passíveis de serem verdades e outros passíveis de serem mentiras. Logo, “caberá ao historiador não fazer o papel de ingênuo”. (LE GOFF, 1994).

    Contudo, Le Goff ressalva que mesmo um documento sancionado enquanto mentira seria capaz de nos fornecer pistas e detalhes úteis. Neste caso, a respeito do sujeito que o produziu; sobre o que estava sentindo; sobre as circunstâncias que se encontrava na construção do documento e sobre a sociedade em que estava inserido. Daí a compreensão de que todo documento seria produto da subjetividade humana, com ricas informações a revelar e não devendo, por isso, ser desprezado de antemão.

    Assim e em consonância com tais direcionamentos, a criação de um personagem e, conseqüentemente, da documentação por ele construída, substituiu nossa ida formal a campo, o que, no entanto, não comprometeu a profundidade e nem ofuscou a riqueza da análise empreendida.

    Some-se ainda o fato de que quando formulávamos os objetivos daquela pesquisa, nos sobreveio o insight de que o trabalho de campo já havia sido realizado, tendo em vista as experiências sentidas, observadas, vivenciadas e que, ao logo dos anos, foram capturadas pela nossa sensibilidade.

    A referida pesquisa então, foi arquitetada a partir da nossa experiência de vida, enquanto pesquisador, ex-aluno da Educação Física escolar, graduando do curso de Educação Física, sujeito social inserido em contextos esportivos e de convívio com muitas crianças e adolescentes. Enfim: família, estágio curricular obrigatório, clube de xadrez, grupo de amigos, foram alguns dos principais contextos que, incondicionalmente, compuseram a trama na qual o personagem – João – se inseriu e foi concebido.

    O segundo ponto a destacar desse exercício de criação se deu logo após o contato com literaturas específicas e continha um caráter de descoberta: deparamos-nos com o fato de que tanto o menino quanto sua biografia, seu diário e suas histórias se tratavam de construções reais e, ao mesmo tempo, imaginadas. Isso significava não haver dissolução entre o real e o irreal, ou melhor, não haver separação entre o real e o representacional do real. Deste modo, acreditamos que o irreal não começa onde termina o real e vice-versa, mas vai além, transcende as fronteiras do pensado para o inusitado. Faz emergir como diria Peter Gay (1990, p. 174) “verdades soltas de um contexto de inverdades”.

    Assim, desse encaminhamento teórico nasceu João, que idealizado por um processo de criação intelectual, vivia e inclusive poderia morrer. Esse indivíduo se assentou subjetivamente em vivências, observações, sentimentos e emoções de um literato-pesquisador, sugerindo, por sua vez, que o irreal quando devidamente contextualizado mantém contato com a realidade, quando senão, contém fragmentos dela. Logo, entendemos que ao evocar nossas lembranças e brincar de transportá-las do universo real para o irreal, da história para a ficção e vice-versa, não entrávamos em descompasso com a verdade e com a busca do conhecimento.

    Para fundamentar essa posição, nos valemos das proposições de Roger Chartier (2002, p. 88), para quem “a realidade não deve mais ser pensada como uma referência objetiva, externa ao discurso, mas como constituída pela e na linguagem”. Pensarmos a partir desse autor, permitiu-nos tal amálgama – este devaneio entre fictício e real – pois as narrativas literárias, os poemas, o emprego das figuras de linguagem e outros métodos estilísticos, ao referirem-se e rebuscarem o que é ficcional condecoram também o que é real.

    Recorremos ainda ao pensamento de Hyden White, para quem “(...) só podemos conhecer o real comparando-o ou equiparando-o ao imaginável. (...) Não importa se o mundo é concebido como real ou imaginado; a maneira de dar-lhe um sentido é a mesma”. (WHITE, 2001, p.115). Vejamos a sustentabilidade de tal argumento:

    Para White, contistas, literatos e dramaturgos ao falarem de seus personagens e ao contarem as estórias deles (ou histórias?) não se dissociam da realidade social em que vivem/viveram; ao invés, e a psicanálise esta aí para provar, quando criam seus personagens e falam deles, estão de algum modo a falarem de si mesmos, dos outros, ou então, de fatos e acontecimentos passados. Pelo simples envolvimento com o cotidiano e pela influência de suas memórias – enquanto registro do que viveram e observaram – é impossível pensar que exerçam seus ofícios e escrevam, contando puramente e unicamente com invenções, fantasias e imaginações.

    De igual forma, na compreensão de White, os pesquisadores – em especial, os seus congêneres da história – ao escreverem seus textos (ou estórias?), ao descreverem suas amostras (ou personagens?) e ao construírem suas pesquisas (ou enredos?) não se libertam por total, das vivências e observações interiorizadas e manifestas enquanto subjetividades. Isso significa, tal como entendido na abordagem do antropólogo norte-americano Clifford Geertz (1989), uma integração entre o “ethos” e a “visão de mundo”, já que “quanto mais refinado é o sentimento de alguém, tanto mais profundo é a compreensão desse alguém (...)”. (GEERTZ, 1989, p. 152). Nesse caso, o “ethos” do pesquisador é entendido como o estilo e caráter de sua vida, suas vivências e, por sua vez, a “visão de mundo” o quadro interpretativo da vida social resultante desse “ethos”.

    Sendo assim, as abordagens teóricas recorridas, com ênfase a textualidade pós-moderna de White, infere não haver distinção severa entre história e literatura, posto que a forma como os produtores culturais de cada uma das áreas lida com seus personagens e contextualiza-os em relação aos próprios objetos e enredos é similar e congruente.

    Acreditamos assim, que tanto o literato, quanto o pesquisador em seu metier fazem seus personagens agirem à medida que lhes dão historicidade. Parafraseando White (2001, p. 137), “há muitas histórias que poderiam passar por romance, e muitos romances que se poderiam passar por histórias”.

    Um terceiro e último aspecto a considerar diz respeito à relação entre a memória de um indivíduo e a subseqüente produção de documentos. Defendemos que a interação entre memória e documento é dinâmica e se constrói levando em conta os sentimentos, as emoções, enfim o ethos dos sujeitos que se incubem de produzir os documentos, quer conscientemente, quer acidentalmente.

    Quanto à compreensão de memória, acrescente-se que enquanto produção de conhecimento e fonte de pesquisa ela vem sendo abordada por diversas áreas do saber: Psicologia, Psicanálise, Sociologia, Antropologia, História, dentre outras. A memória histórica que nos interessa diretamente parte da leitura de Le Goff (1994) e seja escrita ou oral, é necessária à construção do conhecimento histórico e a produção de “documentos monumentos”. Quanto a esses, Michel Foucault considera:

    “(...) a história mudou sua posição acerca do documento: ela considera como sua tarefa primordial, não interpretá-lo, não determinar se diz a verdade nem qual é seu valor expressivo, mas sim trabalhá-lo no interior e elaborá-lo: ela o organiza, recorta, distribui, ordena e reparte em níveis, estabelece séries, distingue o que é pertinente do que não é, identifica elementos, define unidades, descreve relações”. “(...) em nossos dias, a história é o que transforma os documentos em monumentos”. (FOUCAULT, 2005, p. 07-08).

    Dessa nova apropriação histórica dos documentos narrada em Foucault, é que também nos valemos para construir o diário de João. As histórias ali relatadas, como já frisamos, foram produtos de uma intencionalidade: autobiografia, história de vida e observação de outras histórias de vida. Esse documento então – parte da nossa memória e observação – se configurou como um “constructo subjetivo” já que “toda fonte histórica derivada da percepção humana é subjetiva (...)”. (THOMPSON, 2002, p. 197).

    Além disso, como nos esclarece Le Goff (1994, p. 545) “não existe um documento objetivo, inócuo, primário”. E muito pelo contrário: todo documento é “o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, da história, da época, da sociedade que o produziram (...)” (ibidem, p. 547).

    Por sua vez, o diário evocado para subsidiar nossa pesquisa – essa fonte construída ou forjada – não fora exceção. É subjetivo, intencional e expressa uma visão de homem, mundo e sociedade. Também não é duvidoso, pois a própria burla, fraude, mentira, detectadas nos documentos através do exame minucioso do historiador dizem alguma coisa, isto é informam, como já dissemos anteriormente, sobre o seu contexto de produção, sobre os sujeitos envolvidos nessa tarefa e sobre a sociedade em que eles estavam inseridos. Em decorrência disso, o diário de Joãozinho – nosso documento – foi tratado como monumento, pois afinal, algo ele tinha a nos revelar e a nos denunciar.

    Por conseguinte, essas histórias assim “inventadas” e transferidas para o papel são como um arquivo, ou como um papel em um arquivo: confiáveis, válidas e fidedignas. Também seria destrucionismo de nossa parte, inventar histórias enquanto produto das fantasias próprias e distorções da realidade, ou seja, compactuando com métodos de pesquisa bastante duvidosos e questionáveis. Conforme Paul Thompson:

    Para cada um de nós, nosso modo de vida, nossa personalidade, nossa consciência, nosso conhecimento constroem-se diretamente com nossa experiência de vida passada. Nossas vidas são a acumulação de nossos passados pessoais, contínuos e indivisíveis. E seria meramente fantasioso sugerir que a história de vida típica pudesse ser em grande medida inventada. Uma invenção convincente exige um talento imaginativo muito excepcional. O historiador deve enfrentar esse tipo de testemunho direto não com uma fé cega, nem com um ceticismo arrogante, mas com uma compreensão dos processos sutis por meio dos quais todos nós percebemos, e recordamos o mundo a nossa volta e nosso papel dentro dele. Apenas com um espírito sensível é que podemos esperar apreender o máximo do que nos é relatado. (THOMPSON, 2002, p. 194-195)

    Fora com base nessas palavras cautelosas de Thompson, que encaramos as histórias de exclusão escritas e relatadas por Joãozinho em seu diário. Isso porque as referidas precauções sugeridas pelo historiador são categóricas e esclarecedoras quanto qual deve ser a tomada de posição diante dos testemunhos de vida e, consequentemente, das fontes.

    Além do mais, o autor vem nos corroborar com o pressuposto de que o ethos do pesquisador açambarca e se dilui em sua própria pesquisa. Isso se confirma, ao considerarmos que sua história e experiência de vida – inscritas em sua memória – fazem parte da sua personalidade, de sua consciência e de seu conhecimento. Mais precisamente, isso nos conduz a sensação de que ninguém se despe por completo de seus valores, de seus sentimentos, de suas emoções e de suas vivências enquanto escreve.

JESP, histórias de exclusão e a lógica competitiva

    JESP, ou melhor, Jogos Estudantis da Semana da Pátria é uma competição esportiva realizada anualmente em Guarapuava/PR e envolve a comunidade escolar do município. Convém esclarecermos, que o JESP possibilita a participação tanto de escolas públicas quanto particulares, o que é perfeitamente entendido, já que a idéia principal seria promover a interação social através do esporte, movimentando e incluindo o maior número de alunos/as possíveis. Além disso, destina-se ao evento fazer a mediação entre o chamado esporte educacional e esporte de competição aqui em nossa cidade.

    O argumento que desenvolveremos neste tópico, está pautado nos relatos que Joãozinho fez em seu diário nos dias 08 de agosto, 21 de agosto, 1º de setembro e 05 de setembro de 2003. Em tais páginas, o garoto faz alusões a situações de exclusão vivenciadas pelos sujeitos nas aulas de Educação Física, e a propósito, por motivos pertinentes ao JESP.

    Vejamos o que o menino escreveu em seu diário no dia 08 de agosto de 2003: “Na aula de Ed. física de hoje o profº Paulo marcou os dias da seletiva para o JESP que iniciará em setembro. Ele começou a perguntar pra cada um qual esporte queria jogar e foi anotando o nome no seu caderno”.

    A partir dessa fala, podemos verificar que o espaço da aula de Educação Física, naquele dia, foi utilizado para tratar de assuntos reservados ao JESP e, mais especificamente, sobre o processo de seleção a ser promovido naquela escola. Entrevemos ainda, o caráter eliminatório proporcionado pela estruturação das competições esportivas escolares, o que, a nosso ver, corrobora para afirmação de um espaço desigual e excludente.

    É importante destacar que uma primeira característica desse ambiente de exclusão é que os/as alunos/as excluídos/as da participação do JESP, geralmente, acreditam que esse é um procedimento normal e que se justifica pelo fato de não se apresentarem em condições ideais para representar suas escolas. Além do mais, pelo que pudemos observar em nossa trajetória empírica, parece haver uma “reciclagem” anual de alunos/as que irão participar do JESP, ou senão um “reaproveitamento” dos anos anteriores. Isso pôde ser constatado em discursos como o que segue: “O ano que vem vocês estarão mais preparados/as e terão suas oportunidades de jogar”.

    Outro atributo inerente aos processos de exclusão resultantes da aproximação entre Educação Física e esportes é exatamente o fato da sociedade ainda não operar uma diferenciação precisa entre Educação Física e esporte. Nesse sentido, a dúvida mais freqüente que toma os indivíduos é de quem englobaria quem?

    Ao reportarmo-nos ao trabalho do historiador Ademir Gebara (2005) encontramos o seguinte esclarecimento para essa dúvida: “Os desportos, introduzidos no Brasil por diferentes formas, indústrias, ACMs, escolas superiores, grupos de imigrantes, viriam crescentemente compor o universo conceitual definido pelo termo “educação física”. (GEBARA, 2005, p. 21).

    Gebara, nos alerta para o fato de que o esporte em seu processo de ascensão na sociedade moderna se fez valer como ferramenta importante para compor-se um conceito renovado de Educação Física. A idéia que então se construía é de que a Educação Física era esporte.

    Estendendo elementos da análise bourdieusiana dos campos para essa discussão, podemos inferir que os habitus esportivos delimitado no campo das práticas esportivas vieram a imperar, em determinado momento e com uma demanda histórica específica, no espaço das aulas de Educação Física, que se tornaram, por assim dizer, esportivizadas. Isso significa que um campo não se fecha inteiramente para outro, e por isso, as lutas, as tensões, as estratégias e as disposições podem vir a coincidir, se estender e, até mesmo, se reinscrever de um campo a outro.

    Portanto, e independente de juízos de valores que façamos sobre a introjeção da lógica do rendimento esportivo na Educação Física escolar, o fato é que o esporte desenvolveu uma ligação histórica com a Educação Física e hoje, em maior ou menor proporção, faz parte da sua identidade, não devendo por isso, e conforme nosso entendimento, ser negado enquanto conteúdo dessas aulas nas escolas.

    Convém aqui compartilharmos, que ao propósito de nossa experiência acadêmica e profissional, havia uma época que pensávamos que uma saída interessante para proporcionar uma aula de Educação Física menos excludente para os/as alunos/as seria, simplesmente, abortar o esporte dessas aulas. Entretanto, hoje consideramos tal medida por demais reducionista e que por hora viria a denunciar nossa incompetência em lidar com esse elemento da cultura corporal de movimento e adequá-lo a uma proposta inclusiva para as aulas de Educação Física.

    Orientados por essas questões, encaramos, portanto, o esporte como um dos conteúdos da aula de Educação Física, o que imediatamente implica em não reconhecê-lo como sinônimo da Educação Física – único elemento caracterizador dessa área. Além do mais e como nos esclarece Vitor Marinho de Oliveira (1983, p. 77): “A colocação da Educação Física como sinônimo de esporte induz a concebê-la, essencialmente, como competição, e cria o recorde como o seu objetivo fundamental”. Aí reside um dos grandes perigos desencadeados pela falta de diferenciação conceitual e metodológica entre Educação Física e esporte, comprometendo os resultados daquilo que poderia ser integralmente benéfico e salutar para o desenvolvimento dessa disciplina na escola.

    A propósito e em conformidade com nossa experiência de vida, pudemos verificar que algumas aulas de Educação Física, tal como ministradas no município de Guarapuava, ainda confundem seus objetivos com os preconizados pelo esporte competitivo: são alunos/as treinando nas aulas para o JESP, comparando entre si os rendimentos; são professores/as organizando seletivas, marcando horários de treinamento e estabelecendo competição pessoal com colegas de profissão de outras escolas, e os exemplos se estendem.

    Essa visão que vem se edificando na realidade guarapuavana foi claramente explicitada pela opinião de um professor de Educação Física do município, o qual escrevera um artigo no Jornal local Esquema-Oeste no ano de 1980. Nesse artigo, o profissional teceu uma crítica ao esporte olímpico e ao esporte viabilizado em nossa cidade. Em seguida, defendeu algumas idéias para explicar esse patamar ruim, dentre as quais que:

    “A Educação Física nas escolas, nos colégios e nas faculdades é muito carente; por mais que o professor se esforce e o jovem tenha boa vontade, jamais conseguirá ele produzir alunos atletas usando somente as 3 aulas de Educação Física semanais autorizadas pela lei.” (ABBAS, 1980, p. 08).

    Contudo, vale ressalvarmos que o professor José Augusto Abbas comungava de um ponto de vista estabelecido na década de 1980. Um período de Ditadura Militar, quando o governo recentemente acabara de divulgar um “modelo piramidal”, que visava à formação de atletas aptos/as a representar o país nas principais competições esportivas do mundo, e de que a Educação Física escolar, por sua vez, deveria ser a base. De acordo com Paulo Ghiraldelli Júnior:

    O sustentáculo ideológico desta concepção é a própria ideologia disseminada pela tecnoburocracia militar e civil que chegou ao poder em março de 1964. A ideologia do “desenvolvimento com segurança”, produzida e divulgada na Escola Superior de Guerra - ESG-, deu o tom principal para a idéia de uma tecnização da Educação e da Educação Física, no sentido de uma racionalização despolitizadora (...), capaz de aumentar o rendimento educacional do país e na área de Educação Física, promover o desporto representativo capaz de trazer medalhas olímpicas para o país. (GHIRALDELLI, 1989, p. 30).

    Ghiraldelli nos fala da tendência competitivista da Educação Física, a qual ganhou força especificamente no período da Ditadura Militar (1964-1985), e objetivava descobrir talentos a qualquer custo, os quais na concepção do regime militarista, contribuiriam para elevação do Brasil a uma potência olímpica.

    Nesse modelo, a ênfase no desempenho e na performance corporal era de tal magnitude, que foram implantadas turmas de treinamento na escola compatível com o grau de aperfeiçoamento do/a aluno/a em determinada/s modalidade/s. Em São Paulo, por exemplo, essa medida estava prevista na resolução de 18-2-1971. Conforme o autor:

    Por essa resolução na verdade, o Governo, criou dois tipos distintos de Educação Física na rede escolar. Uma Educação Física destinada às elites, ou seja, aos alunos que possuíam algum conhecimento prévio de determinado desporto e que deveriam integrar as “Turmas de Treinamento”. Outra Educação Física destinada àquilo que com o passar dos anos, ficou conhecido como “rebotalho” que eram os alunos não-iniciados desportivamente e que continuavam nas “turmas normais de ginástica”. (ibidem, p. 44).

    Sendo assim, podemos inferir que um dos efeitos provocados pela Educação Física competitivista seria proporcionar a recorrência e afirmação do individualismo e rivalidade no momento das aulas, já que os menos habilidosos potencialmente se tornavam mais expostos à descriminação e eram preteridos em benefício dos talentos.

    Passada a Ditadura Militar, essas medidas e procedimentos próprios do competitivismo ainda imperam em algumas aulas de Educação Física. Guardadas as devidas particularidades de cada momento histórico, pudemos perceber nesse breve passeio que fizemos pelas fontes que o esporte de rendimento estabeleceu um vínculo hegemônico nas aulas de Educação Física. Isso se verificou na cidade de Guarapuava, por exemplo, quando observamos os preparativos para o JESP, para os Jogos Colegiais do estado (JOCOP’S) e outras competições afins.

    Dando continuidade a descrição do dia 08 de agosto, quando seu professor de Educação Física comunicou sobre a seletiva para o JESP, a qual seria realizada na escola, Joãozinho destaca:

    (...) Ele começou a perguntar pra cada um qual esporte queria jogar e foi anotando o nome em seu caderno. Quando chegou na minha vez eu disse que queria jogar basquete. Meus colegas de sala brincaram, mas também com essa altura não poderia querer jogar outra coisa. Ele foi perguntando um por um. Alguns ele nem precisava perguntar pois já sabia que jogavam bem volêi, futebol. Alguns diziam que queriam jogar, outros respondiam que não e outros ainda que queriam jogar alguma coisa, mas não sabiam jogar tão bem quanto os outros. (...)

    Esse trecho é bastante elucidativo e nos conduz a suspeitar do quanto alguns alunos e alunas se frustram em épocas de JESP. Também evidencia que nesse período os/as alunos/as tornam-se os principais atores do processo, criando as mais variadas expectativas: ser escolhido/a ser titular, ser campeão/ã, ser homenageado/a em caso de vitória. JESP se apresenta aos alunos e alunas como possibilidade de um “lugar ao sol” e já a primeira grande vitória a ser conquistada, nesse sentido, é tornar-se representante de sua escola na referida competição.

    Ainda é possível entrever dessa fala do garoto, aspectos avaliativos e cogitativos à interferência dos espaços sociais na construção das marcas identitárias dos sujeitos. Deste modo, percebemos que o fato de um participante ser mais alto que outro pode lhe predispor a ser escolhido ou se disponibilizar para jogar o basquete ou o vôlei, já que nesses esportes a altura é um diferencial importante para a vitória. Ser alto pode também ser entendido e funcionar como um estigma, acarretando aos indivíduos a sensação de anormalidade e desvio de sua corporalidade aos padrões sociais de altura, bem como a outros marcadores físicos e corporais.

    Dando continuidade a exposição, introduzimos o relato de Joãozinho do dia 21 de setembro. Nessa oportunidade o menino esclarece sobre a seletiva de basquetebol realizada na escola, com vistas de eleger os aptos a compor o time prestes a participar do JESP:

    Na hora da seletiva estávamos em 20 piás e só dez iriam ser escolhidos. Os outros, meu professor falou que iriam poder jogar em outra oportunidade ou no ano que vem. O professor fez uns testes de corrida, depois pediu pra formar filas pra arremessar e depois dividiu 4 times pra jogarem entre si. Uma hora eu olhei pra ele e percebi que anotava tudo o que via sem eu caderno. Depois disso, o profº disse que já tinha observado e escolhido os 10 e que seria difícil pra ele dizer pro restante ir embora. Pensei puxa, eu devo ser um desses. Mas pelo contrário, fui escolhido e poderei representar a escola. Devo de ser reserva mas isso pouco importa.

    De acordo com o relato observamos mais uma processo de exclusão evidenciado junto aos preparativos para o JESP. Contudo, isso não se concretizava desta vez na aula de Educação Física, mas durante as seletivas para o JESP, que são realizadas geralmente no período do contra turno escolar.

    A propósito, as características da seletiva, descritas do ponto de vista do garoto (de 20 sobram 10, testes físicos e motores, observação da técnica individual de cada concorrente) podem ser entendidas perante o conceito de exame, apresentado por Foucault em Vigiar e punir (2000). O autor nos esclarece que:

    O exame combina as técnicas da hierarquia que vigia e as da sansão que normaliza. É um controle normalmente, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir. Estabelece sobre os indivíduos uma visibilidade através da qual eles são diferenciados e sancionados. É por isso que, em todos os dispositivos da disciplina, o exame é altamente ritualizado. Nele vêm-se reunir a cerimônia do poder e a forma da experiência, a demonstração da força e o estabelecimento da verdade. (FOUCAULT, 2000, p. 154).

    Para Foucault, o exame é imprescindível na tarefa de hierarquizar os sujeitos, bem como, normalizá-los, ou seja, adequá-los ao modelo comum. É por isso, anterior ao ato de classificar e simultâneo aos atos de medir e comparar. Assim, quando examinamos e medimos as capacidades e qualidades de alguém, logo tratamos de compará-lo a outrem. Isso concretiza um processo dinâmico que nos permite escolher aquilo que nos agrada e aquilo que se aproxima do chamado modelo normativo, ideal e verdadeiro.

    O exame, portanto, fora à ferramenta eficaz que o professor de Educação Física utilizara durante a seletiva para escolher a equipe que representaria a escola no basquete. Conforme os registros de Joãozinho, o professor escolhera os melhores alunos, e para felicidade de João ele acabara se enquadrando no pequeno rol dos eleitos. Essa era, no entanto, a primeira dificuldade a ser superada, haja vista que João ainda teria que se destacar entre os demais a fim de pleitear uma vaga no time titular.

    A visão de João quanto ao comportamento dos garotos eliminados da seletiva, foi assim descrita: “Quando estávamos indo embora, vi alguns comentários dos que não haviam sido escolhidos. Diziam que o professor só me escolheu porque sou alto e que na verdade eles eram melhores que eu. Pouco importa isso”.

    Nessa fala pode ser vislumbrada a ambigüidade dos sentimentos preconizados pelo esporte de formato competitivo. Isso significa que enquanto João e os demais selecionados sentiam-se felizes, o restante do grupo que fora eliminado amargurava um sentimento de frustração. Por sua vez, a atitude dos colegas eliminados em relação a Joãozinho pode ser entendida como uma fofoca do tipo depreciativa. Segundo Elias & Scotson (2000), a fofoca depreciativa é aquela onde os indivíduos enfatizam através de seus comentários preconceituosos as características ruins da porção menor. Em contrapartida, a fofoca elogiosa é aquela que os indivíduos se utilizam para firmar e enaltecer as qualidades e positividades do grupo de que fazem parte, ou seja, para afirmar e fortalecer o seu próprio grupo.

    A fofoca depreciativa nas vozes dos/as excluídos/as, surge então, como arma poderosa para que esses possam justificar possíveis ausências e segregações. Ao recorrer a esse tipo de fofoca o grupo eliminado da seletiva estava criando para si um motivo para explicar o fato de não haverem sido escolhidos. Assim, a altura de João – o bode expiatório da trama - surgia, nessa circunstância, como uma marca relevante para justificar a impotência dos excluídos. Essa linha de raciocínio possivelmente era menos dolorosa: eles não haviam sido eliminados da oportunidade de jogar basquete no JESP, porque eram ruins. Ao contrário, era João que havia sido escolhido por ser alto.

    Encerrado os preparativos, chegara a tão aguardada semana do JESP, assim relatada por Joãozinho em 1º de setembro:

    Hoje tivemos um jogo que definiria o time classificado em nossa chave para seguir no torneio do JESP. Sábado era pra termos nosso primeiro jogo contra o colégio MAHATMA GANDHI, mas ganhamos como diz meu professor de W.U.O, o time não apareceu pra jogar. Como a nossa chave era de 3 times e só se classificaria o 1º colocado, tínhamos que ganhar o jogo do colégio Visconde de qualquer jeito. Como já esperava comecei o jogo no banco. Começamos perdendo, e meu professor logo me colocou na quadra e disse para ficar no meio do garrafão, que passariam a bola pra mim, aí como sou mais alto era só fazer a cesta. Eu comecei errar muitas bolas e meu professor gritou que eu estava pipocando. Em seguida me tirou do time. Acabamos perdendo do mesmo jeito, o outro time era bem mais forte. Tomamos uma lavada.

    A partir desse relato é possível visualizarmos algumas características que compõem o esporte competitivo, a saber: preocupação com a performance e com os resultados, cálculos em demasia, cobrança e xingamentos mútuos entre os indivíduos, preconceitos e estigmas diluídos nas ações e relações de interdependências evidenciadas entre técnico/a e atletas. Outros atributos do chamado esporte de competição são reiterados por João Paulo Subirá Medina. De acordo com autor, o esporte competitivo tal como praticado hoje estimula:

    (...) o doping, a violência, a mentira, a aparência, o individualismo, a alienação ou o nacionalismo exacerbado, provocando seqüelas ou traumatismos físicos e emocionais em seus praticantes, afastando-os de seu bem estar físico, mental e social e sedimentando uma determinada visão e um determinado modelo de educação e cultura próprios de nosso tempo. (MEDINA, 2005, p. 145).

    As características supracitadas permitem-nos afirmar que o esporte de formato competitivo está intimamente relacionado com histórias de exclusão. Como diz Bourdieu (1983, p. 142), não se pode negar que “o campo das práticas esportivas também é um lugar de lutas”; e acrescemos – um espaço onde os indivíduos são continuamente excluídos seja na esfera do rendimento ou da participação. Assim, tendo em vista que o esporte é um dos conteúdos da aula de Educação Física, não é de estranharmos que algumas histórias de exclusão nessas aulas sejam produtos da influência do campo esportivo. No caso de Guarapuava, isso significa que o JESP e o processo competitivo a ele inerente têm impacto decisivo sobre a construção dos processos de exclusão nas aulas de Educação Física escolar.

    Após aproximadamente um mês de JESP, o evento chegava ao fim. Joãozinho termina suas referências dizendo: “Nas aulas de hoje foram bem poucos alunos. As meninas da minha sala iam fazer final no volêi e os piás do salão decidiam o 3º lugar. A professora de história adiantou a aula de ed. física para irmos embora mais cedo. (05 de setembro)”.

    Esse relato descreve o que de praxe acontece na grande maioria das escolas do município de Guarapuava. Na semana de JESP não tem aula de Educação Física, pois os/as professores/as estão envolvidos/as nas competições. Por sua vez, os/as alunos/as que não participam do evento são dispensados das atividades. Nesse período alguns/as diretores/as solicitam estagiários de Educação Física para substituir os/as professores/as que estão participando do JESP. Vivenciamos essa situação em nosso estágio de Educação Física com uma turma de 5ª série do ensino fundamental. A professora de Educação Física foi “cuidar” dos/as demais alunos/as no JESP, e nós assumimos suas aulas.

    Em semanas de JESP, portanto, os alunos e alunas que não vão competir – e vale ressalvarmos que é a grande maioria – são esquecidos/as e deixados/as de lado. Por sua vez, esses indivíduos entendem essa atitude como normal e provavelmente já têm incorporado às regras desse evento em sua segunda natureza, isto é, internalizando as condições a que são submetidos sobre a forma de habitus.

    A guisa de fechamento, vale apontar que o corpo das passagens narradas por Joãozinho e evocadas para subsidiar essa discussão, nos remete àquilo que Freire (2005), chamou de “ilusão do gesto”. Pela “ilusão do gesto” os indivíduos são excluídos da aula de Educação Física, do esporte e de qualquer outra atividade em que o movimento seja o enfoque principal. A “ilusão do gesto” é o que é produzido e consumido na preparação para o JESP e na semana do JESP, confirmando, mais uma vez, a lógica performática demandada no universo esportivo e a subseqüente penetração dela no âmbito escolar.

    Queremos reiterar também, nosso anseio por uma outra história nas aulas de Educação Física e, por sua vez, na sociedade envolvente. Para tanto, acreditamos na importância de valorizarmos as diferenças estabelecidas entre os indivíduos, o que certamente contribui para amenizar as formas de violência que se constrói e se apresenta nas aulas de Educação Física sob o rótulo do que chamamos histórias de exclusão.

    Sobre a valorização das diferenças, se faz necessário frisarmos que esta é uma das conquistas galgadas pelo pensamento pós-moderno. O fato, é que o relato pós-moderno respondeu a acusação da diferença transformando-a numa afirmação. E isso por reconhecer a heterogeneidade e a diversidade como positivas. Nos Estudos Feministas pós-estruturalistas, por exemplo, isso é entendido como não apenas reconhecer, mas valorizar positivamente as diferenças entre homens e mulheres. (LOURO, 1997).

    Em termos de pesquisa, isso significa que todos os indivíduos são importantes, ou seja, têm o direito de ter seus sentimentos evocados; suas reivindicações, ao menos, problematizadas; suas culturas respeitadas; suas falas, seus gestos, seus habitus, seus corpos, valorizados como formas de identificação histórica, política, cultural, social e afetiva. Como bem destaca Harvey (1996, p. 52): “A idéia de que todos os grupos têm o direito de falar por si mesmos, com sua própria voz, e de ter essa voz como autêntica e legítima, é essencial para o pluralismo pós-moderno”.

    Na aula de Educação Física, valorizar as diferenças se trata de um exercício que possibilita um passo importante para desconstruir histórias de exclusão, edificar novas propostas e estratégias de ensino, proporcionar aos indivíduos a oportunidade de vivenciar sua própria cultura corporal, sem dar importância à repetição de gestos prontos e se voltar para o culto de estereótipos. Essa, entretanto, é uma outra história. Alguém ousaria terminar de contá-la?

Referências

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  • FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2004.

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  • LE GOFF, J. História e memória. Trad. Bernardo Leitão (et al.). 3 ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1994.

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