De carona com o futsal feminino: processos educativos de uma prática social De viaje con el futsal femenino: los procesos educativos de una práctica social |
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Professor da Rede Pública Estadual Paulista (SEE/SP) Membro da Sociedade de Pesquisa Qualitativa em Motricidade Humana (SPQMH/UFSCar) e do Núcleo de Estudos de Fenomenologia em Educação Física (NEFEF/UFSCar) Mestrando em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) |
Robson Amaral da Silva (Brasil) |
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Resumo Esse estudo teve por objetivo compreender quais os processos educativos desencadeados na prática social da preparação de uma equipe universitária de futsal feminino para a disputa de um torneio, tendo como perspectiva, participantes dessa equipe durante as viagens aos locais dos jogos. Os acontecimentos ocorridos durante as viagens foram anotados em diários de campo, e posteriormente houve a construção das seguintes categorias temáticas: A prática social e sua ocorrência; Objetivo da prática estudada; O que fazem; Sobre o que falam; Interações entre o grupo; Interações entre os diferentes grupos; O que se aprende. Foram identificados processos educativos relacionados a questões de ordem técnica e tática do futsal, união do grupo e insatisfação. Unitermos: Processos educativos. Futsal feminino. Viagens
Texto publicado nos Anais do “IV Colóquio de Pesquisa Qualitativa em Motricidade Humana”, evento acadêmico e científico organizado em parceria entre a Sociedade de Pesquisa Qualitativa em Motricidade Humana (SPQMH), a Coordenação do Curso de Educação Física (CCEF/UFSCar), o Departamento de Educação Física e Motricidade Humana (DEFMH/UFSCar), o Departamento de Esportes (DeEsp/SAC/UFSCar), a Coordenação do Curso de Especialização em Educação Física Escolar (CCEFE/UFSCar) e The Japan Karate Association (JKA-Brasil) realizado entre os dias 6 e 9 de outubro de 2009, na UFSCar |
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http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 14 - Nº 138 - Noviembre de 2009 |
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Introdução
Ao pesquisarmos práticas sociais e os processos educativos que delas são desencadeados devemos conviver com as pessoas, grupos e/ou comunidades com os quais estamos em contato, buscando “(...) um envolvimento pessoal, observando, perguntando e conversando” (OLIVEIRA; STOTZ, 2004, p.15). A nosso ver esse convívio deve se transformar em uma experiência, no sentido proposto por Larrosa Bondía (2002), significante e significativa para os envolvidos.
As práticas sociais orientam-se por mecanismos objetivos, subjetivos e intersubjetivos, solidários entre si. Nesse sentido, podemos entendê-las como momentos de diálogo entre “(...) pessoas, pessoas e comunidades nas quais se inserem, pessoas e grupos, grupos entre si, grupos e sociedade mais ampla, num contexto histórico de nação e, notadamente em nossos dias, de relações entre nações (...)” (SILVA et al., 2008, p.9) nas quais os mesmos constroem sua maneira de conceber e “ler o mundo” (FREIRE, 2006a e 2006b), para que a partir daí busquem sua transformação ou conformação.
A abordagem da realidade social nesse estudo se deu a partir da perspectiva de um coletivo socialmente “desqualificado” e “marginalizado”, ou seja, um grupo de jovens universitárias praticantes de futsal. Isto se torna relevante ao passo que passamos a compreender que as pessoas rotuladas por adjetivos como esses, “(...) são capazes de produzir conhecimento, são capazes de organizar e sistematizar pensamentos sobre a sociedade (...)” (VALLA, 1996, p.178).
Evidenciado o processo de marginalização, em muitos casos velado, do futsal feminino em nosso país, e reconhecido a preparação de uma equipe feminina desta modalidade para a disputa de um torneio como uma prática social possibilitadora de caminhos para mudança/emancipação, ou para manutenção/alienação das envolvidas, é que se justifica o interesse pelo desenvolvimento da pesquisa em questão. Além disso, partimos do entendimento de que devemos ouvir atentamente e considerar o que os grupos marginalizados têm a nos dizer quando pesquisamos em práticas sociais.
Ao identificar e valorizar processos educativos em práticas sociais buscamos voltar “um olhar crítico ao estabelecido monopólio pedagógico de sistemas educacionais, que pretendem, muitas vezes, deter o único meio pedagógico capaz de educar” (SILVA et al., 2008, p.16).
Objetivo
O presente trabalho teve como objetivo compreender quais os processos educativos desencadeados na prática social da preparação de uma equipe universitária de futsal feminino para a disputa de um torneio, tendo como perspectiva, participantes dessa equipe durante as viagens aos locais dos jogos.
Procedimentos metodológicos
Em um dos treinos da equipe de futsal feminino colaboradora foram esclarecidos quais os objetivos, procedimentos a serem utilizados e no que consistia a participação das jovens durante o estudo. Esse diálogo inicial se realizou no intuito de garantir o aval do grupo para a consecução do trabalho, que posteriormente foi formalizado através do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, lido e assinado pelas mesmas.
Passado esse momento de elucidações relativas à pesquisa e de anuência do coletivo, iniciou-se o processo de observação durante quatro viagens realizadas a São Paulo para a disputa dos jogos referentes a Liga Universitária Paulista. Os acontecimentos ocorridos durante as viagens foram anotados em diários de campo-registro que segundo Falkembach (1987), consiste em um instrumento para registro de anotações, comentários e reflexões de fatos concretos, fenômenos sociais e relações verificadas, sendo a transcrição realizada durante a ocorrência dos eventos.
Os diários de campo-registro foram numerados em seqüência, sendo as unidades de significado identificadas e sublinhadas em cada um deles através de números arábicos entre parênteses, e de acordo com os objetivos estabelecidos para o estudo. Dessa forma, após a extração de um trecho integral retirado de um diário de campo-registro, temos entre parênteses a letra D, indicando a inicial da expressão “diário”; em seguida o número arábico do referido diário, separado por hífen, temos a numeração da unidade de significado que representa o trecho retirado do diário em questão. Após a identificação das unidades de significado houve a formação, por convergências, de categorias temáticas construídas a partir das unidades extraídas dos diários. O trabalho com categorias é apontado por Gomes (1994) como uma possibilidade metodológica para análise de dados em pesquisas de caráter qualitativo.
Referencial teórico
O esporte (futsal) e a participação feminina
O esporte é uma manifestação cultural construída ao longo dos tempos, e não uma criação do presente. Enquanto fenômeno social, o esporte apresenta um grande destaque e visibilidade em diversos contextos, sendo capaz de despertar nosso interesse, mobilizar paixões, evocar sentimentos, criar representações de corpo e saúde, enfim, convocar nossa imediata participação.
Como resultado de conceitos e práticas estruturadas no pensamento ocidental cujos sentidos e significados foram alterados não só no tempo, mas também no contexto onde se desenvolveram, o esporte possui história, e esta por sua vez é feita pela ação de diferentes homens e mulheres que a seu tempo realizaram ações que consolidaram estas vivências, influenciando de certa forma o que hoje conhecemos (GOELLNER, 2004).
A história oficial pouco se refere a determinadas formas de exercitação do corpo feminino, embora as mulheres há muito tempo protagonizem histórias no campo das práticas corporais e esportivas. O fato de não terem muita visibilidade quando comparadas aos homens, não significa afirmar que não tenham existido ou que estiveram à margem de determinadas atividades esportivas. Por certo que a inserção da mulher no mundo dos esportes não foi tarefa fácil, entretanto, vale ressaltar que não é recente sua atuação nesse sentido e que a história do esporte mundial se fez e ainda se faz também pela participação feminina (GOELLNER, 2004).
Os anos de transição entre os séculos XIX e XX se tornam marcos expressivos para a participação feminina. Fruto de novas demandas sociais nas quais veiculavam ideais conservadores e revolucionários que promoviam tanto a legitimação quanto novas possibilidades culturais (GOELLNER, 2005), inspiradas nas transformações européias1 importadas como padrão de modernidade, observamos uma maior inserção feminina no contexto das práticas corporais e esportivas, e na vida social das cidades. Não obstante, as lutas feministas da época projetavam novas perspectivas para as mulheres brasileiras (GOELLNER, 2004 e 2005; MELO, 2007).
Ainda vale lembrar que aliada à expectativa de crescimento econômico, a educação do corpo é reconhecida como essencial ao projeto de desenvolvimento e fortalecimento nacional. As atividades físicas e esportivas passam a se popularizar a partir da intervenção dos médicos higienistas (baseados em princípios de mesmo nome, e também eugênicos) que, cientes da importância da educação do corpo para tal projeto, passam a estabelecer uma série de normas de condutas e comportamentos em nome de uma educação moral, física, sexual e social, condizentes com tal expectativa de sociedade a ser construída.
As atividades permitidas e desenvolvidas nas primeiras décadas do século XX eram voltadas para o fortalecimento do organismo da mulher, a fim de que ela pudesse enfrentar os desafios da maternidade (dada a sua natureza frágil), e gerar filhos sadios, que seriam os responsáveis pelo engrandecimento nacional frente ao cenário mundial. Porém essas ações eram bem definidas e restritivas, baseadas em estereótipos de mulher e homem, nada além da natureza de um e de outro.
Podemos apreender dessa forma que as relações estabelecidas entre as mulheres e as práticas esportivas e corporais, no recorte histórico aqui realizado, foram construídas a partir de tensões e enfrentamentos, decorrentes de processos de “acomodação” e “resistência” individuais2 e/ou de grupos de mulheres (e de homens também), o que levou a uma ampliação na participação feminina no campo esportivo e ao questionamento das características próprias de homens e mulheres.
No contexto do futsal muitos anos se passaram entre o seu surgimento em nosso país e uma efetiva inserção feminina. As primeiras incursões femininas aconteceram na década de 30, porém, somente a partir de 1983 o Conselho Nacional de Desportos (CND) aprova a prática do futsal feminino (LUCENA, 2001). O crescimento, a expansão e a organização dessa modalidade se deram com uma participação ínfima das mulheres nos processos formulativos.
Recentemente algumas conquistas femininas no futsal vêm sendo observadas. Em 2001, tivemos a formação e convocação da primeira seleção feminina de futsal para um amistoso contra a seleção paraguaia na cidade de Londrina (PR). No ano seguinte (2002), a realização do I Campeonato Brasileiro de Seleções, organizado pela Confederação Brasileira de Futebol de Salão (CBFS), marca a profissionalização dessa modalidade para as mulheres e, demonstra um interesse por parte da instituição em fomentar intercâmbios internacionais com a organização do I Campeonato Sul-Americano de Futsal (SANTANA; REIS, 2003) Até mesmo os campeonatos universitários disputados em âmbito nacional podem ser exemplos da expansão e consolidação do futsal feminino em nosso país.
O gênero procurando compreender e ser compreendido...
O termo gênero tem sido recorrente em diversas pesquisas, ensaios, resenhas, textos, enfim, em uma infinidade de materiais produzidos no campo acadêmico. Autores vinculados aos campos da Sociologia, História, Lazer, Educação, Educação Física e Esportes buscam apresentar novos olhares para questões postas por essas áreas, tendo como referência essa categoria analítica.
Os aportes teóricos são das mais diversas escolas filosóficas (marxista, estruturalista, pós-estruturalista, dentre outras), entretanto, concordando com Goellner (2004), é consenso afirmar que “gênero evidencia que masculino e feminino são construções sociais e históricas” (p.97). Sendo assim, observamos uma superação do entendimento exclusivamente sexista, portanto biológico, desta categoria analítica. Continuamos a considerar o sexo enquanto constituinte das identidades dos sujeitos (homens e mulheres), porém, passamos também a incorporar em nossas discussões aspectos sociais, históricos e culturais.
Outro passo dado pelo uso da categoria “gênero” foi a possibilidade de enfoque do caráter correlacional entre os sexos, superando a visão binária e excludente entre homens e mulheres. Nos dizeres de Scott (1995) “O termo ‘gênero’, além de um substituto para o termo mulheres, é também utilizado para sugerir que qualquer informação sobre as mulheres é necessariamente informação sobre os homens, que um implica o estudo do outro” (p.75).
A emergência da categoria gênero “desnaturaliza” o até então considerado “natural”, pois nos dizeres de Goellner (2004) desestabiliza:
(...) a noção da existência de um determinismo biológico cuja noção primeira afirma que homens e mulheres constroem-se masculinos e femininos pelas diferenças corporais e que essas diferenças justificam determinadas desigualdades, atribuem funções sociais, determinam papéis a ser desempenhados por um ou outro sexo (p.97).
Essas reflexões proporcionadas pela categoria gênero nos fazem pensar a respeito do cerceamento à participação feminina em algumas modalidades esportivas ocorrido durante anos.
Construção dos resultados
Durante o período de convivência com as jovens do futsal feminino, nas viagens preparatórias para a disputa de um torneio, pudemos construir as seguintes percepções:
A prática social e sua ocorrência
As viagens não possuíam um tempo fixo para o trajeto de ida e volta, pois dependiam de uma série de fatores (horários de saída, atrasos nas paradas para o lanche, no início dos jogos, dentre outros) que influenciavam, tanto a saída como o retorno à São Carlos. As viagens ocorriam aos domingos de acordo com a tabela do campeonato.
Objetivo da prática social estudada
Um dos objetivos da permanência do grupo era preparação da equipe para a disputa de um torneio, sendo as viagens aos locais de jogos, um destes momentos. Este objetivo é condizente com a visão de algumas atletas como podemos observar nos seguintes trechos extraídos dos diários de campo-registro:
Perguntei a Beth o que ela fez durante esta primeira parte da viagem, e ela me disse que estava pensando no jogo, mentalizando as jogadas que poderia fazer durante a partida, formas de antecipação (D2 - 10).
Mariana sabedora do trabalho que eu estava realizando para o curso de Mestrado, disse que para ela as viagens eram um dos momentos de preparação para os jogos que estávamos disputando. Segundo palavras dela:
- “Pelo menos para mim é!” (D4 - 19).
O deslocamento entre as duas cidades torna-se um momento de preparação para o jogo que está porvir. Porém, não podemos generalizar esta visão de Mariana e Beth para o restante do grupo. Tal afirmação fica evidente quando converso com Tatuí, e a mesma não compartilha com a visão apresentada pelas outras duas companheiras. Podemos observar isso no seguinte trecho:
A mesma me dissera que escolheu esta forma de passar o tempo da viagem sem o intuito de se preparar para o jogo que viria (D2 - 3).
Percebemos assim, que as jovens encaravam de maneira diferenciada as viagens, sendo que algumas acreditavam ser aquele um momento de preparação, outras não.
O que fazem
As atividades vivenciadas durante as viagens foram diversificadas, e variavam desde o estar só e dormindo, até o jogar vídeo-game. Os seguintes trechos são ilustrativos a esse respeito:
Mesmo assim, eu escutava algumas conversas na parte do fundo do ônibus. (D1 – 3)
(...) Carol e Tatá pouco conversavam durante a viagem, até a primeira parada em um posto na cidade de Jundiaí. (...) Tatuí optara por escutar música em seu aparelho de MP3, possuindo no mesmo uma gama enorme de variedade de estilos musicais (D2 - 2)
(...) Já Mariana e Sabrina seguiam em uma disputa de vídeo-game (D2 - 7, grifos nossos).
Uma situação interessante foi a do jogo “Qual é a música?”, que provocara uma pequena rivalidade entre o grupo durante a realização de tal atividade, e até envolvera pessoas de outras modalidades:
Em um dado momento, ainda no percurso de ida, uma das meninas (não me lembro quem foi) propõe a brincadeira do “Qual é a música?”. O grupo momentaneamente se dividiu, entre o lado esquerdo e o lado direito, para que pudéssemos iniciar o jogo. Ficou decidido que eu ficaria de árbitro e que falaria as palavras que deveriam estar nas músicas a serem cantadas pelas meninas. O tempo para conversas dentro do próprio grupo era de 40 segundos, caso o tempo terminasse e a equipe não cantasse nenhuma música que tivesse em seu conteúdo a palavra solicitada, passaria o direito de cantar para o outro time. A brincadeira se desenvolveu de maneira muito tranqüila, apesar da “rivalidade” entre os dois grupos. Algumas meninas do handebol resolveram brincar também e passaram a interagir mais com aquelas do futsal (D3 - 6).
Situações de jogo também eram repassadas durante as viagens. Isso proporciona uma mentalização do que deve ser feito, e ajuda na preparação das meninas. O seguinte trecho é elucidativo a esse respeito:
Mariana começou a desenhar as jogadas ensaiadas durante os treinos e explicar cada uma delas, fazendo uma espécie de revisão. As dúvidas de Sabrina eram sanadas na hora, e de maneira correta, de acordo com o que havíamos treinado (D3 - 5).
Sobre o que falam
Além de assuntos relacionados ao cotidiano pessoal, as jovens gostavam de conversar sobre paisagens, questões de ordem técnica e tática, aspirações acadêmicas, dentre outras:
Ouvi algumas meninas comentarem sobre as formas de atuar, jogadas e marcação. Discutiam sobre o treino realizado na quinta-feira e diziam estar motivadas a buscar os três pontos, ou seja, a vencer (D1 - 4).
A lembrança das jogadas, dos erros que cometemos, o que poderíamos ter realizado, foram assuntos evocados pelas meninas durante a trajeto de volta. A viagem tanto em sua ida como em sua volta, constitui-se em um tempo e espaço propícios para o diálogo sobre assuntos de ordem pessoal, mas também aqueles referentes ao desempenho do time (D1 - 8).
Junia e Julia conversavam em um tom mais alto, em relação à Mariana e Sabrina, além de se distraírem de maneira diferente das duas últimas. As primeiras preferiram conversar sobre “paqueras” que conheceram em espaços que freqüentam como festas (D 2 - 7).
Também falavam da vontade de estar em casa, pois em alguns momentos as viagens se tornavam muito cansativas:
(...) o que eu mais ouvia dentro do ônibus eram falas que diziam respeito da vontade que as pessoas tinham de chegar em casa, tomar um banho e dormir (D1 - 9).
Interações entre o grupo
Muitas vezes durante as viagens, tive a liberdade de conversar com elas sobre diversos assuntos. Essas iniciativas ficam claras nos seguintes trechos:
No retorno ao ônibus sentei com Carol e começamos a conversar (D4 – 16).
Quando retornamos ao ônibus chamei Tatá para uma conversa (...) (D3 - 3).
Em outras ocasiões eram elas que me procuravam para que pudéssemos conversar:
Sabrina era a que se encontrava mais animada dentre todas as meninas do futsal. Como estava sentada em um banco próximo ao meu, resolveu conversar comigo, perguntando:
- “Papito, como vamos marcar a equipe delas?”
Disse a ela:
- Ainda não sei Sá (como carinhosamente lhe chamava). “Estou pensando.” (D4 - 4).
Em determinados momentos o clima não era favorável, e algumas reclamações apareceram, dispersando a ideia de um grupo harmônico. A situação desfavorável a nossa classificação no torneio contribuiu para que fatos relativos à união do grupo fossem expostos:
O clima não era dos melhores, pois havíamos empatado o jogo com uma equipe considerada tecnicamente inferior a nossa. A obrigação de ganhar a próxima partida era algo que se fazia presente em nossa equipe (D4 - 9).
(...) algumas pessoas começaram a reclamar que o time estava desunido e que isto, estava atrapalhando a nossa equipe na busca de vitórias (D4 - 10).
Interações entre os diferentes grupos
Nas viagens tínhamos a companhia de diversas modalidades esportivas, dependendo da tabela de cada time. Isso possibilitava a interação com as mais diferentes pessoas, que nem sempre pertenciam ao futsal feminino:
Em um dado momento da viagem, Mauro vai para a parte da frente do micro-ônibus com sua câmera digital e começa a fotografar as pessoas (D2 - 16).
Junia e Julia optaram por sentar na parte do fundo onde se concentrava a equipe de futsal masculino. (D2 - 11).
Assim que se iniciou a viagem de volta, foi proposta pelos meninos uma apresentação de todos e todas que se encontravam no micro-ônibus. Seria uma espécie de eleição do “Padrinho e Madrinha” do futsal UFSCar. As pessoas deveriam ir à parte da frente do ônibus, no corredor, para que todos e todas pudessem observar quem estava falando e, escutar o que estava falando. Algumas informações eram “obrigatórias” serem ditas, tais como: nome, curso (se era graduação ou pós-graduação), idade, cor preferida, time favorito, uma palavra que fosse significativa naquele momento e por último, o estado civil. (D2 - 12) (...) Um isopor com gelo e muitas cervejas dentro satisfazia a vontade daqueles e daquelas que gostavam de beber e desejam comemorar senão o resultado, o encontro entre as duas equipes de futsal da UFSCar (D2 - 13).
A brincadeira se desenvolveu de maneira muito tranqüila, apesar da “rivalidade” entre os dois grupos. Algumas meninas do handebol resolveram brincar também e passaram a interagir mais com aquelas do futsal (D3 - 6).
Nem sempre as interações entre os grupos não eram tranquilas, como podemos observar nos seguintes trechos do diário:
Outras pediram para que ele parasse de fazer aquilo, pois já estava incomodando. O atleta ainda tira mais algumas fotos antes de atender ao pedido das pessoas incomodadas. (D2 - 17)
O grupo que se encontrava sentado na parte do fundo inicia uma cantoria que também incomoda boa parte dos/as viajantes. Músicas com refrões repetitivos e melodia nada agradável eram cada vez mais freqüentes. Tatuí diz a Mauro:
- “Ah não! Para com esta música”.
Mauro lhe responde:
- “Não é culpa minha!” (D2 - 18).
Até mesmo as pessoas que já participaram da equipe vão prestigiar os jogos, o que nos demonstra uma boa relação entre as ex-jogadoras e as atuais:
Antes do início do jogo, pudemos reencontrar duas pessoas, muito especiais, que tinham passado pela equipe e foram prestigiar o nosso jogo (D1 - 6) (...) Retornei sentado ao lado de Ana Paula, e falávamos da felicidade de encontrar duas de nossas amigas em São Paulo prestigiando um jogo (D1 - 7).
O que se aprende
No que se refere às aprendizagens ficou claro que elas se deram nas mais diferentes formas de interação, seja dentro do próprio grupo do futsal feminino, seja com as outras modalidades. O aprender a compartilhar sentimentos e alimentos, ser solidário em momentos difíceis são aspectos que permearam as viagens. Isso fica claro nos seguintes trechos:
Compartilhava com Tatá naquele momento, minha expectativa e ansiedade. (D3 - 4) (...) Deveria ser solidário as meninas e prestar todo o apoio necessário para motivá-las (D3 - 8).
O ato de dividir o que compramos ou os pais mandam para nós é uma prática comum entre o grupo durante as viagens (D4 - 14).
Algumas vezes, as aprendizagens não estão relacionadas a valores ou sentimentos. Ficam restritas a questões de ordem técnica e tática da equipe, e partem das próprias atletas:
Mariana começou a desenhar as jogadas ensaiadas durante os treinos e explicar cada uma delas, fazendo uma espécie de revisão. As dúvidas de Sabrina eram sanadas na hora, e de maneira correta, de acordo com o que havíamos treinado (D3 - 5).
Considerações
As viagens do futsal feminino, enquanto um dos momentos de preparação para a disputa de um torneio se mostraram um tempo/espaço potencialmente marcado por interações significativas para as participantes.
Com relação às aprendizagens, ficou evidente nos momentos de convivência com o grupo que, tão importante quanto aprender a se posicionar na quadra ou executar uma determinada jogada foi aprender a compartilhar sentimentos e valores na construção de relações no próprio grupo. Essas interações não se deram de maneira homogênea e coesa, pois devemos ter em mente a diversidade presente no coletivo. Apesar de serem todas mulheres, há uma pluralidade no que se refere à idade, classe social, etnia, religião, dentre outros referenciais de mundo.
A insatisfação de algumas atletas, que veio à tona com os empates e a possível desclassificação da equipe, pode ser compreendida em outra perspectiva. A vontade de construir um grupo unido, que respeitando as diferentes maneiras de ser e estar no grupo, respeite também as relações existentes entre elas próprias.
Nesse sentido identificamos processos educativos que contribuíram para o desenvolvimento pessoal e social das jovens e que estavam relacionados a questões de ordem técnica e tática (saber se posicionar em quadra, marcar a equipe adversária), união do grupo (dividir sentimentos em relação ao grupo, compartilhar alimentos, estar bem com as demais atletas e ex-atletas), e insatisfação (não estar contente com o desempenho da equipe na competição, com a duração das viagens).
O olhar para esse grupo tem se mostrado revelador, e a solicitude em estar ali, sempre interessado e aberto para aprender e ensinar, foi um dos principais pilares para que pudesse compreender a realidade ali presente, a partir da perspectiva das jovens do futsal feminino.
Com isso aprendemos que ao apreender o que se passa com um grupo marginalizado, pois o futsal feminino carrega todo um estigma de homossexualismo, de excentricidade, do diferente, passamos a questionar a nossa própria visão de mundo, os nossos referenciais e pré-conceitos. Questionamentos esses que buscam superar alguns entendimentos acerca dessa modalidade esportiva no sentido de se pensar uma maior participação das mulheres no futsal, e em outras modalidades. Não acredito em uma inserção pautada nos mesmos valores e ideais difundidos pelos esportes de alto rendimento e baseados em pressupostos do sistema-mundo masculino, que acabam por reproduzir tudo que aí está (dopping, violência, vitória a qualquer custo, competições separadas entre homens e mulheres) e pouco avançam neste debate.
Notas
Para um entendimento das transformações nos estilos de vida da burguesia, além das referências circunstanciais feitas à questão da emancipação feminina no contexto europeu e que influenciaram os modos de vida em nossa sociedade ver Hobsbawn (1988), principalmente os capítulos VII e VIII, respectivamente.
Um exemplo do que estou falando é relatado por Goellner e Fraga (2004) que analisam o silêncio com relação aos corpos femininos hipertrofiados tais como o de Sandwina, conhecida por vencer homens em concursos de força física. Tal fato questiona o discurso das diferenças naturais como demarcadoras de talentos e funções.
Referências
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FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 34a ed. São Paulo: Paz e Terra, 2006a.
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GOELLNER, Silvana V.; FRAGA, Alex B. A inominável Sandwina e as obreiras da vida: silêncios e incentivos nas obras inaugurais de Fernando de Azevedo. Revista Brasileira de Ciências do Esporte. Campinas, v.25, n.2, p.71-84, 2004.
GOELLNER, Silvana V. Gênero. In: GOMES, Christianne L. (org.) Dicionário crítico do lazer. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. p.97-100.
______. Mulher e esporte no Brasil: entre incentivos e interdições elas fazem história. Pensar a prática. Goiânia, v.8, n.1, p.85-100, 2005.
GOMES, Romeu. A análise de dados na pesquisa qualitativa. In: MINAYO, M.C.S. (Org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes, 1994. p.67-80.
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SANTANA, Wilton C. de; REIS, Heloisa H. B. dos. Futsal feminino: perfil e implicações pedagógicas. Revista Brasileira de Ciência e Movimento. Brasília, v. 11, n. 4, p. 45-50, 2003.
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