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A complexidade pedagógica-antropológica 

da Educação Física. Diálogo com Platão

 

*Filósofo. Dr. em Educação. Prof. da Universidade de Passo Fundo, RS

Líder do grupo de pesquisa Transdisciplinaridade Paradigmática

**Docente no Programa de Pós-Graduação

Mestrado em Envelhecimento Humano, Universidade de Passo Fundo, RS

Líder grupo de estudos Educação e Corporeidade

André Baggio*

Péricles Saremba Vieira**

psvieira@upf.br

(Brasil)

 

 

 

Resumo

          Platão consegue resolver um dos grandes desafios da filosofia que pareciam inconciliáveis. O ser e o vir-a-ser; o eterno e o transitório; a repetição e a mutabilidade. Platão acomoda, assim, os princípios dos influenciadores de seu pensamento: Parmênides e Heráclito. Com o primeiro ele constrói o mundo do ser, do que é, das idéias, da alma, onde não há brecha lógica para as transformações, pois, o que (já) é não pode vir-a-ser. Com o segundo identifica o mundo terreno, do corpo, do vir-a-ser, do fogo que apaga e acende constantemente, do rio que corre e que a cada instante não é o mesmo, um mundo que se faz e se desfaz constantemente em oposição às essências, aos princípios do mundo das idéias onde habita a verdadeira realidade.

          Unitermos: Corpo. Alma. Mutabilidade. Essência. Educação

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 14 - Nº 136 - Septiembre de 2009

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    Nossa herança cultural tem fundamento mais forte a cultura grega, mais especificamente nas idéias de Platão e Aristóteles, formadores do pensamento cristão e de toda civilização chamada Ocidental. A vida na Grécia pode não ter sido o retrato desses pensadores, mas o que sobreviveu, para a formação de nossa cultura, foi o imaginário materializado nos seus escritos. Neste texto procuramos mostrar o pensamento de Platão não é unívoco e que, comumente, as citações desse autor aparecem fragmentadas, ao mesmo tempo em que mostram escondem aspectos dessa tradição.

    Platão (427-347) nasceu em Atenas e aos oitenta anos manteve sua produção filosófica e a docência na Academia. Discípulo de Sócrates, permaneceu fiel a ele até sua morte, mantendo-o como principal protagonista de seus escritos no gênero literário escolhido: diálogo. Seus primeiros escritos, juvenis, eram uma sistematização do pensamento de seu mestre, mas aos poucos vai construindo a sua autonomia e cria uma metafísica que em Sócrates somente aparecia de modo fragmentário.

    Para se entender a antropologia platônica é central conceber seu princípio filosófico central: a teoria dos dois mundos. A referência mais conhecida se encontra no diálogo A República (livro VII), no texto intitulado “A alegoria da caverna”. Um é o mundo das idéias, o mundo das coisas reais, verdadeiras, o mundo das essências, dos princípios, o mundo dos deuses e das almas. O outro é o mundo da matéria, das sombras, das cópias da realidade (mundo das idéias, das formas verdadeiras), o mundo efêmero.

    Aqui Platão consegue resolver um dos grandes desafios da filosofia que pareciam inconciliáveis. O ser e o vir-a-ser; o eterno e o transitório; a repetição e a mutabilidade. Platão acomoda, assim, os princípios dos dois grandes influenciadores de seu pensamento: Parmênides e Heráclito. Com o primeiro ele constrói o mundo do ser, do que é, das idéias, onde não há brecha lógica para as transformações, pois, o que (já) é não pode vir-a-ser. Com o segundo identifica o mundo terreno, do vir-a-ser, do fogo que apaga e acende constantemente, do rio que corre e que a cada instante não é o mesmo, um mundo que se faz e se desfaz constantemente em oposição às essências, aos princípios do mundo das idéias onde habita a verdadeira realidade.

    Além desses dois pensadores pré-socráticos, Pitágoras foi outro pensador da filosofia grega nascente nas colônias da Ásia Menor, em que Platão buscou subsídios para sua antropologia, especialmente com relação à teoria dos opostos e a crença na transmigração e imortalidade das almas.

    Cabe aqui uma pequena observação. A filosofia grega se diferenciou de outras cultuas pela construção de uma linguagem e um modo de pensar em que primava o aspecto racional, onde as perguntas e respostas sobre todas as coisas devem permanecer em nível da razão. Quando se diz “todas as coisas” no mundo grego, diz-se de physis e isto se refere à totalidade de tudo o que é. Mas, temos que ter o cuidado de não identificar physis com “naturalismo” como se concebe contemporaneamente. “Pensando physis, o filósofo pré-socrático pensa o ser, e a partir da physis pode então aceder a uma compreensão da totalidade do real: do cosmos, dos deuses e das coisas particulares, do homem e da verdade, do movimento e da mudança, do animado e do inanimado, do comportamento humano e da sabedoria, da política e da justiça.” (BORNHEIM, 1985: 14)

    Assim, na cultura grega, a alma e os deuses são tão naturais como o corpo e as pedras. Podemos dizer de outro modo: aspectos somáticos e psíquicos são igualmente physis, ainda que para Platão possam ser realidades independentes.

    Em seu diálogo Fedro, Platão coloca que somos, em princípio, o que nossa alma possibilita, quer dizer, nós somos alma. Isso está diretamente relacionado a duas outras questões. A primeira refere-se na convivência da alma com os deuses. O que ela vai ser quando inserida em um humano está na dependência do maior número de verdades que ela viu quando tomou parte no cortejo de um deus. Quanto maior for o maior número de coisas vistas com os deuses maior a possibilidade de se tornar um homem amigo da verdade e livre de trabalhos, de penalidade. A segunda questão refere-se ao comportamento humano, da alma. Se ela for capaz de viver sempre na verdade com o tempo encontrar-se-á eternamente livre. Caso contrário, a alma vai decaindo e poderá vir habitar o corpo de um animal.

    Ainda no Fedro, Platão coloca que aquele se dedica à contemplação, quando vê a beleza aqui na terra e se lembra da verdadeira beleza junto aos deuses, sofre repreensão das pessoas de pouca consciência, de pouca memória do que já viram antes de habitar o corpo, e o considerem estar fora de si com aparência de louco, mas na verdade, para Platão, ele não está fora de si, ele está endeusado, “contemplando na luz resplandescente e pura, sem sinal algum deste que chamamos corpo e agora arrastamos como uma concha.” (245 c. – 252 b.)

    A antropologia basilar de nossa tradição grego-romana é a que estabelece a pré-existência da alma e sua imortalidade. Diz Platão:

    Partiremos do seguinte princípio: toda a alma é imortal, porque aquilo que se move a si mesmo é imortal [...] Sendo o princípio coisa que não se formou, deve ser também, evidentemente, coisa que não que não pode ser destruída [...] Uma vez posto que o que se move a si mesmo é imortal, ninguém poderá deixar de reconhecer que precisamente é essa a essência da alma. Todo corpo movido de fora é inanimado e tudo o que se move de dentro, por si mesmo é animado, de maneira que é esta a natureza da alma. (Fedro, 245 c-252 b.)

    Essa concepção forjou uma das pedagogias (teoria de como acontece o processo educativo) mais antigas, a maiêutica socrática, a teoria das reminiscências. (Mênon e Fedro) A maiêutica, como arte de educar, refuta idéias falsas para trazer à luz, para parir as verdades tais como elas são. As verdades são eternas tais como a alma, que já as contemplou antes de ter caído na prisão do corpo. “A alma participa do divino mais do que qualquer outra coisa corpórea. O divino é belo, sábio e bom”. (PLATÃO, 1983, p. 152) A maiêutica é a pedagogia da alma, onde o corpo aparece como obstáculo e como cárcere.

    Iniciados nos mistérios a que podemos chamar de divinos, nós os celebrávamos puros e livres, isentos das imperfeições que nos atingiram no curso ulterior do tempo. A integridade, a simplicidade, a imobilidade, a felicidade eram as aparições que a iniciação revelava ao nosso olhar no meio de uma pura e clara luz.

    A “teoria da reminiscência” aparece também no Mênon, onde Platão reafirma que não há nada que a alma não conheça, pois é “imortal; renasceu repetidas vezes na existência e contemplou todas as coisas existentes tanto na terra como no Hades”. (1983, p. 55) Em conseqüência Sócrates afirma para Mênon: “não há ensino, mas apenas reminiscências”. (1983, p. 56)

    Com essa metodologia Sócrates pretende mostrar a falsidade de algumas idéias aceitas como verdades, ao mesmo tempo em que evidencia o espírito e novos caminhos ao raciocínio, levando seus interlocutores a conhecerem a verdade que não pode ser ensinada, pois está dentro de cada um, na sua alma. O verdadeiro conhecimento não está no que alguém pode ensinar, mas no autoconhecimento. O que o “professor” pode fazer é ajudar ao “aluno” a trazer à luz as idéias que ele já possui, ajudá-lo a se conhecer melhor.

    A teoria do conhecimento mais conhecida de Platão encontra-se em seu diálogo A República, no livro VII. Esse texto traduzido como “a alegoria da caverna”, ou “mito da caverna”, está em consonância com a “teoria das reminiscências”. Na “caverna” temos a resposta a pergunta: onde está o verdadeiro conhecimento?, ao passo que nas “reminiscências” encontramos uma proposta pedagógica, a aplicação da teoria, de como se possui o conhecimento. Observação: para Platão o real é a idéia. Para Platão o homem pode sobreviver em referência ao mundo material tendo somente a doxa (opinião) e téchne (técnica), mas para ascender ao verdadeiro, o mundo das idéias, ele precisa do conhecimento filosófico, com o qual o homem pode ter a épisthéme (verdadeiro conhecimento).

    Sócrates acreditava que a alma já possui todos os conhecimentos, mas, há de se observar, sua pedagogia pode ser aplicada independentemente de sua convicção na imortalidade da alma, o que a torna de relevância contemporânea. Para demonstrar seu convencimento, Sócrates inicia um diálogo com um escravo de Mênon. Em toda sua exemplificação Sócrates não parte das repostas já elaboradas. Seu princípio pedagógico é o de fazer perguntas para criar a dúvida que aguça nossa vocação pela lógica e, com isso, resolver o problema básico para que alguém aprenda algo: ele precisa querer aprender. Normalmente, o professor sabe o conteúdo de sua disciplina, mas nem sempre tem condição de fazer com que o aluno queira aprender, pois, ainda que possa parecer um contra-senso, nem sempre os estudantes desejam estudar e aprender. Sócrates pergunta a Mênon: “Despertando-lhe dúvidas... acaso lhe causamos prejuízo?” E ele mesmo responde: “Agora, porém, está em dúvida, sabe que não sabe e deseja muito saber!” (s.d., p. 59).

    Mas, na maturidade, Platão introduz configurações antropológicas mais “carnais”. Em um de seus últimos diálogos, o Timeu,1 ele apresenta a trilogia da alma: A primeira é a alma que continha o germe da imortalidade e, para que ela não se contaminasse com as paixões da mortalidade, foi colocada na cabeça humana, a alma racional, separada do restante do corpo por um corredor, o pescoço. A segunda é a alma mortal que por sua vez era subdividida em outras duas almas através de um outro ponto de separação, o diafragma.2 Na região superior ao diafragma, tórax, encontrava-se a parte melhor, por estar situada mais próxima da cabaça, onde o valor e a coragem residiam, “a fim de que, prestando ouvido atento à razão e em colaboração com ela, fizesse frente à legião das paixões”. (Timeu, 69 b-70 d.). Na região inferior ao diafragma, no abdômen, alojava-se outra classe de alma mortal “em que se achavam concentradas paixões inevitáveis e terríveis, o prazer em primeiro lugar, o mais poderoso engodo para o mal”. (idem) E temos de admitir, escreve Platão, “que os prazeres e as aflições demasiadamente fortes são a prior enfermidade para a alma”. (Timeu, 86 b-90 d.)

    Partindo dessa relação entre corpo e alma apresentada no Timeu, entre alma mortal e alma imortal, Platão esboça a teoria que se popularizaria na máxima latina atribuída a Juvenal3: “mens sana in corpore sano” (alma sã em corpo são). Nessa teoria da proporção Platão daria um status ao corpóreo inexistente em seus diálogos anteriores. Ele realça que o bom é formoso e o belo é proporcionado, mas, se compreendemos bem as coisas cotidianas em suas proporções, deixamos escapar as grandes e mais importantes. “Pelo que se refere à saúde e a enfermidade, às virtudes e aos vícios, nenhuma classe de proporções ou de desproporções é mais importante que a que existe entre a alma mesma e o corpo”. (Timeu, 86 b-90 d.) Se nessa união entre alma e corpo um dos dois for mais débil que o outro o humano não pode ser belo na integridade, mas, ao contrário, se ambos são fortes “encontramo-nos ante o espetáculo mais belo e mais amável de todos os que o homem pode contemplar”. (Idem) Quando a alma é mais forte que o corpo ela o enfraquece-o e o enche de enfermidades e quando o corpo é superior a alma, cresceu unido a uma inteligência raquítica, gera a pior de todas as enfermidades: a ignorância. (idem)

    Há só um remédio contra essas duas enfermidades: não mover a alma sem o corpo nem o corpo sem a alma, a fim de que, defendendo-se mutuamente, conservem seu equilíbrio e sua saúde. Por conseguinte, o matemático ou o que se dedica por completo a qualquer outra atividade da inteligência deve tratar também de mover o corpo e fazer exercícios ginásticos; por sua vez, o que cultiva cuidadosamente seu corpo deve, em compensação, restituir à alma seus movimentos e dedicar-se à música e à filosofia, se quiser que o chamem merecidamente bom, ao tempo que belo. (Idem)

    Essa proposição harmônica entre alma e corpo, apresentada no Timeu, distingue-se da oposição entre eles expressa no Fédro, como já vimos, e no Fédon, onde aconselha: “se alguma vez quisermos conhecer puramente os seres em si, ser-nos-á necessário separar-nos dele (corpo) e encarar por intermédio da alma em si mesma os entes em si mesmos”. (66 d)

    Ainda no Timeu, Platão apresenta uma responsabilidade pedagógica em relação aos maus comportamentos. Afirma: “ninguém é mau porque o quer [...] Ninguém pode dispor-se ao mal deliberadamente...” (Idem) Os homens que agem mal são conseqüências do que aprenderam quando crianças, e a isso “mais se deve acusar os pais do que os filhos, mais os mestres que os discípulos”. (Idem) Nesse aspecto Platão indica um caminho pedagógico inverso à pratica indicada na maiêutica e responsabiliza, de um modo geral, a sociedade, a Polis, pela educação, pelo comportamento das crianças. Responsabiliza, de modo específico, os professores.

Notas

  1. Platão escreveu, principalmente, na forma de diálogos. A coleção desses escritos, considerados autênticos, e numa ordem provavelmente cronológica, são: Hípias (menor): trata do agir humano; Alcibíades (Primeiro): trata da doutrina socrática do autoconhecimento; Alcibíades (Segundo): trata do conhecimento; Apologia de Sócrates: relata o discurso de defesa de Sócrates no tribunal de Atenas; Eutífron: trata dos conceitos de piedade e impiedade; Críton: trata da justiça; Hípias (maior): discussão estética; Laques: trata da coragem; Lísis: trata da amizade/amor; Cármides: diálogo ético; Protágoras: trata do conceito e natureza da virtude; Górgias: trata do verdadeiro filósofo em oposição aos sofistas; Mênon: trata do ensino da virtude; Fédon: relata o julgamento e morte de Sócrates e trata da imortalidade da alma; Banquete: trata da origem, as diferentes manifestações e o significado do amor sensual; Fedro: trata da retórica e do amor sensual; Íon: trata de poesia; Menêxeno: elogio da morte no campo de batalha; Eutidemo: crítica aos sofistas; Crátilo: trata da natureza dos nomes; A República: aborda vários temas, mas todos subordinados à questão central da justiça; Parmênides: trata da ontologia. É neste diálogo que o jovem Sócrates, a personagem, defende a teoria das formas que é duramente criticada por Parmênides; Teeteto: trata exclusivamente da Teoria do Conhecimento; Sofista: diálogo de caráter ontológico, discute o problema da imagem, do falso e do não-ser; Político: trata do perfil do homem político; Filebo: versa sobre o bom e o belo e como o homem pode viver melhor; Timeu: trata da origem do universo; Crítias: Platão narra aqui mito de Atlântida através de Crítias (seu avô). É um diálogo inacabado; Leis: aborda vários temas da esfera política e jurídica. É o último (inacabado), mais longo e complexo diálogo de Platão; Epidômite; Cartas (dentre as quais, somente a de número 7 é considerada realmente autêntica). (Para ver mais sobre os pensadores citados: Wikipédia, a enciclopédia livre http://pt.wikipedia.org/)

  2. Etimologicamente é uma cerca que se estende de uma extremidade a outra como que separando um território.

  3. Décimo Júnio Juvenal, poeta romano conhecido por seus escritos em forma de Sátiras onde ridicularizava os costumes de sua época.

Referências

  • BORNHEIM, Gerd A. (org.) Os filósofos pré-socráticos. São Paulo: Cultrix, 1985.

  • PLATÃO. Diálogos – Mênon, Banquete, Fedro. Rio de Janeiro: Ediouro, 1983.

  • ______ Diálogos: Eutífron, Apologia de Sócrates, Críton, Fédon. São Paulo: Hemus, s.d.

  • ______ Timeu. Lisboa: Instituto Piaget, 2004.

  • ______ A República. Rio de Janeiro: Ediouro, s.d.

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