Futebol e música: um trato pedagógico Fútbol y música: un abordaje pedagógico Music and soccer |
|||
*Professor da Secretaria Estadual de Educação do Estado de Goiás-Brasil *Professor da Faculdade de Educação Física da Universidade Federal de Goiás e Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação Física da Universidade Federal de Santa Catarina |
Lazzaro Tuim* Ari Lazzarotti Filho** (Brasil) |
|
|
Resumo O presente trabalho realiza um estudo bibliográfico e um levantamento fonográfico, buscando estabelecer um diálogo entre a música brasileira e a educação física, na tentativa de re-significar tal manifestação artística, para tê-la como instrumento pedagógico, capaz de contribuir com a discussão em torno do que é conteúdo da educação física e como tratá-los na sala de aula, tendo o futebol como eixo condutor de uma proposta pedagógica que considere o estético e o sensível como formadores da consciência crítica. Unitermos: Futebol. Música. Estética
Resumen El presente trabajo comprende un estudio bibliográfico y una búsqueda fonográfica, buscando establecer un diálogo entre la música brasileña y la educación física, en la tentativa de re-significar tal manifestación artística, de tenerla como instrumento pedagógico, capaz a contribuir con el debate sobre cuál es el contenido de la educación física y como considerarlo en las clases, teniendo al fútbol como un eje que condutor de una propuesta pedagógica que considere a lo estético y lo sensible como formadores de la conciencia crítica. Palabras clave: Fútbol. Música. Estética.
Abstract This assignment makes a bibliographic study and a phonographic survey, trying stablish a connection between brazilian music and physical education to remean this kind of artistic manifestation, making an educational instrument able to cooperate with the discussion about the contet of physical education, having soccer as guide to an education, preposal that considers the aesthetic and the sensitive creators of critical conscience. Keywords: Soccer. Music. Aesthetic |
|||
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 14 - Nº 132 - Mayo de 2009 |
1 / 1
Introdução e justificativa
Assim como nos rituais, uma partida de futebol encontra-se repleta de experiências sonoras. As vaias e os hinos entoados pela torcida embalam o time em busca da vitória. O apito do juiz imprime a ordem. Técnicos com gestos e gritos, tentam organizar seus jogadores em torno de um sistema tático, como um maestro organiza os naipes de sua orquestra e o “Ooooolha o picoleéééééééé” disparado pelos vendedores ambulantes, lembra os aboios de um peão ao tocar uma boiada.
Temos outras experiências sonoras relacionadas ao futebol, como à música popular brasileira, seus cantores e compositores, que tem buscado no futebol, inspiração para o desenvolvimento de sua arte.
Para se ter uma idéia da potencialidade deste “casamento”, uma matéria publicada na revista Placar no ano de 1978, pelo jornalista Maurício Azêdo e reeditada em 2005 para a edição comemorativa dos 35 anos da mesma revista, revela que nos catálogos do Serviço de Defesa do Direito Autoral (SDDA), havia até aquele ano, cento e cinqüenta (150) músicas relacionadas ao futebol.
Algumas destas músicas podem nos auxiliar na compreensão histórica de nosso país, pois cantam e “contam” nossa história. Observemos o seguinte exemplo: Durante a realização da Copa do Mundo no México em 1970, o governo militar brasileiro, para estabelecer um clima de unidade nacional e prosperidade, indispensáveis naquele momento para concretizar seus objetivos políticos de legitimação de um sistema de governo ditatorial, utilizou em suas propagandas, os seguintes versos, “ de repente é aquela corrente pra frente, parece que todo o Brasil deu a mão, todos ligados na mesma emoção, tudo é um só coração. Pra frente Brasil, salve a seleção” contidos na marcha composta por Miguel Gustavo.
No entanto, em 1974, Chico Buarque compõe a música “Meu caro amigo”, trazendo os seguintes versos: “Aqui na terra andam jogando futebol, tem muito samba, muito choro e rock and roll, uns dias chovem e outros dias fazem sol, mas o que eu quero é dizer: Que a coisa aqui tá preta”.
A análise das letras destas músicas nos revela “olhares” diferenciados sobre a situação que o país atravessava em determinado período histórico, pois, em uma “... estamos todos unidos e pra frente...” e na outra “a coisa aqui está preta”. Tais composições, além de nos auxiliar em uma reflexão sobre a conjuntura política, daquele período, podem contribuir para a compreensão e de como o futebol foi e vem sendo utilizado na sociedade brasileira.
Melo (1998), ao realizar um estudo em torno da obra de Noel Rosa e as possibilidades de estudos da história de educação física e dos esportes, descreve que os cursos para formação de professores de educação física, vem utilizando para o ensino conceitos relacionados a evolução histórica dos esportes, fontes advindas quase que exclusivamente dos livros didáticos, que:
... são geralmente repetitivos e mecânicos, vinculam-se a uma dada visão de mundo e realidade dos autores. São fragmentados e arrolam quase que exclusivamente autores consagrados pela ‘academia’. Muitas vezes, através dos livros didáticos, valores e representações das elites são reverenciadas a cada dia pelos alunos. (p. 20)
O autor considera que fonte “ ... pode ser considerada como tudo o que se presta a contar a história, todos os vestígios que nos permitam ampliar a compreensão histórica”(p. 21), que por sua vez pode nos conduzir à múltiplas visões, ajudando-nos “ ... a impedir uma história entendida de forma unânime, monolítica” (p. 21).
É partindo deste pressuposto que a música nos aparece como uma fonte “preciosa” para o trabalho com a disciplina de educação física em sala de aula, e, gostaríamos de destacar que não pretendemos nos distanciar da especificidade da educação física, renegando aspectos técnico-táticos ao ensino dos esportes. Mesmo porque a própria música nos apresenta também possibilidades de trilhar por esse caminho.
Observando o título da música de Jackson do Pandeiro “Bola de pé em pé”, nos perguntamos: A ação de conduzir a bola de pé em pé, não seria a representação do elemento técnico do passe? Passe, que pode e deve ser trabalhado em uma aula de educação física, que tenha o futebol como conteúdo.
Aspectos metodológico
Para a concretização desta investigação realizamos um estudo bibliográfico em torno da educação física e do futebol, assim como um levantamento fonográfico, selecionando cem (100) músicas que citam o futebol.
As músicas foram organizadas, categorizadas e passaram por uma análise de seus conteúdos a fim de contribuir no processo de re-significação pedagógica, transformando-as em instrumentos pedagógicos, capaz de dialogar com outras disciplinas curriculares.
Cabe destacar que a princípio, o número de cem músicas, pode parecer um tanto quanto exagerado, ainda mais porque não chegamos a citar todas no decorrer do trabalho, porém acreditamos que este número seja de fundamental importância em estudos futuros, pois, se consolida como um arquivo capaz de ser revisitado a qualquer momento.
Precisamos nos atentar que uma parcela considerável das músicas, que nossos alunos tem contato, são veiculadas pelos meios de comunicação de massa, que age como formadores de opinião, cabendo a nós (educadores) ressignificá-las, na tentativa de tematizá-las em uma perspectiva crítica.
Como atingir tal objetivo, é uma das principais perguntas que este trabalho visa responder, ou seja: É possível ter a música como um instrumento pedagógico nas aulas de educação física para a formação de uma consciência crítica, a respeito dos esportes e por conseqüência da sociedade?
Música e Futebol
Antes de iniciarmos nossas análises sobre as músicas que citam o futebol, precisamos compreender que as possibilidades de inter-relação entre estes dois elementos, ultrapassam as composições destinadas a este esporte ou os hinos dos times, que escutamos por todos os cantos, sempre que um deles se torna campeão.
João Saldanha1, o João Sem Medo2, em entrevista cedida a Revista Playboy no ano de 1978 e reeditada em 2005, para a comemoração dos trinta anos da mesma revista, disse o seguinte, “O futebol é uma arte como a música. É como se fossem as sete notas, em cada país tocadas de maneira diferente” (p. 30).
Damo (1999) ao estudar o regional e o nacional no futebol brasileiro, apresenta um texto de Gilberto Freire, presente no prefácio da 1ª edição do livro “O Negro no Futebol Brasileiro” de Mário Filho (1964), que traz o seguinte:
A capoeiragem e o samba, por exemplo, estão presente de tal forma no estilo de jogar do brasileiro que de um jogador um tanto álgido como Domingos, admirável em seu modo de jogar mas quase sem floreios – os floreios barrocos tão ao gosto do brasileiro – (...) Mas vá alguém estudar o fundo de Domingos ou a literatura de Machado que encontrará, decerto, nas raízes de cada um, dando-lhes autenticidade brasileira, um pouco se samba, um pouco de molecagem baiana e até um pouco de capoeiragem pernambucana ou malandragem carioca. Com esses resíduos é que o futebol brasileiro afastou-se do bem ordenado original britânico para se tornar a dança cheia de surpresas irracionais e de variações dionisíacas que é (...) (Freire, apud Damo, p. 89)
Damo, ao citar Freire faz-lhe uma crítica da qual achamos pertinente, pois, ao buscar uma autenticidade para o estilo de jogo do futebol brasileiro, levando em consideração características de algumas regiões em detrimento de outras, Freire, segundo Damo, estaria sendo excludente, superficial e politicamente tendencioso, para não dizer incorreto. Para Damo, o estilo de jogo do futebol brasileiro não poderia se reduzir a tais regiões, deixando de fora características do estilo paulista ou gaúcho, por exemplo.
Todavia, concordamos (com ressalvas) com Freire, ao dizer que nosso futebol apresenta características de molecagem e malandragem, visto que, por onde quer que ele se apresente, tem encantado milhares de pessoas, principalmente pela ousadia das jogadas, calcada em um exímio domínio técnico.
Voltemos nossa atenção especificamente para as músicas que utilizam elementos do futebol em suas composições. A primeira impressão que detivemos sobre tais músicas, caracteriza-se na possibilidade de determinar o futebol como o esporte número um e paixão nacional, em solo brasileiro.
Este aspecto se estabelece pela numerosa quantidade de músicas encontradas sobre o futebol em relação a outras modalidades esportivas, uma vez que em nossas buscas, encontramos apenas uma música que cita o basquete e outra que cita o handebol.
A idéia de termos o futebol como nosso esporte número um, via composições musicais é reforçada pela construção de identidade nacional através do futebol que podemos observar nas seguintes músicas, “No país do futebol eu nunca joguei bem” (Eu não sei mentir direito, O Rappa), “...Fomos cantando, o país do futebol, D’ Amazônia praia e sol” (Na pancada do ganzá, Antônio Nóbrega), “... No país do futebol o sol nasce para todos mas só brilha para poucos” (Brazuca, Gabriel Pensador), “Brasil está vazio na tarde de domingo, né? Olha o sambão, aqui é o país do futebol” (País do futebol, Elis Regina), “... Brasileiro é praia, futebol e badalação”(Feriado Nacional, Bruno e Marrone).
Nossa segunda impressão caracteriza-se pela potencialidade que este esporte atinge na música brasileira, uma vez que o encontramos, nos mais distintos estilos musicais (Rock, Sertanejo, Axé, Samba, Infantis, Rap, Chorinho, Emboladas, Repente, Frevo, Forró, Marchinha, dentre outros), o que nos reforça a condição de termos a música como instrumento pedagógico em um plano de aula de educação física, pois, independente da preferência musical de nossos alunos, o futebol estará sendo cantado, e a utilização de tais músicas em sala de aula poderá despertar via experimentação estética para um processo de sensibilização, que por sua vez poderá nos auxiliar nas discussões a cerca da compreensão deste esporte.
Identificamos nas letras das músicas duas formas que estas aparecem ao tratarem o futebol, uma direta e a outra indiretamente. Chamamos de relação direta quando a música apresenta o foco voltado para o futebol especificamente, tornando-se este o centro da composição, que desenvolve em torno de seus elementos. São jogadores e jogadas que foram reverenciados e transformados em músicas (Camisa 10 da Gávea e Filho Maravilha de Jorge Ben Jor), assim como grandes times e clássicos (Corinthians do meu coração de Toquinho e O Desafio FLA-FLU e Caju e Castanha). Temos ainda músicas que falam de materiais utilizados em um jogo e das posições dos jogadores em campo (A Bola de Toquinho, Zagueiro e Goleiro de Jorge Ben Jor) e aquelas que versam sobre o futebol de maneira generalizada (O Futebol de Chico Buarque e É uma partida de Futebol do Skank).
Enquanto as que se relacionam indiretamente com o futebol, são aquelas que as letras não estão centradas sobre seus elementos constituintes, mas que o utilizam para reforçar alguma idéia. Temos como exemplo de música que se relaciona indiretamente com o futebol, “Meu caro amigo.
Música e futebol. Um trato pedagógico
Avançando em nosso trabalho como um maestro de posse de sua batuta, avança sobre uma partitura, passamos uma discussão específica a cerca das possibilidades de intervenção com a música durante as aulas de educação física.
Para efetivarmos nosso exercício teórico da possibilidade da utilização da música nas aulas de Educação física realizamos um planejamento. Dividimos os conteúdos relacionados ao futebol, em quatro aspectos (técnico-tático, histórico, sócio-cultural e estéticos), sendo que nos três primeiros a música nos servirá como meio, possibilitando estruturarmos reflexões a cerca do futebol, em um movimento próximo do que Melo (2005) caracterizou como “educação pelo esporte a partir da arte”, enquanto que em relação ao aspecto estética, a música atuará como fim, próximo do que o autor chamou de “a utilização da arte,a partir do esporte, para uma educação para a arte”.
Aspectos técnico-táticos.
Optamos por iniciar por estes aspectos, por concordar com Assis (2001), que ao buscar uma re-significação para o ensino do esporte escolar, coloca-nos que tais conhecimentos não devem ser negados no ensino da educação física numa abordagem crítica, pois:
O que quero destacar neste ponto é que a correta prioridade ao significado e à alteração de sentido individual e coletivo numa perspectiva crítica de ensino dos esportes não pode deixar de fora a abordagem da técnica, como também das regras e das táticas ... Uma coisa é certa: esses conhecimentos não podem ser sonegados aos alunos ... Do contrário, a abordagem crítica fica a meio caminho, quase crítica ou semicrítica. ( p. 126)
Consideramos como elementos técnicos e táticos do futebol, aqueles que podemos observar dentro das linhas demarcatórias do campo, quando assistimos a um jogo, podendo ir desde as posições dos jogadores em campo, passando pelos fundamentos técnicos de um jogador. Segundo Frisselli & Mantovani (1999) no universo técnico do futebol há uma série de fundamentos indispensáveis para uma prática do jogo, e que são característicos do mesmo. Para o mesmo autor existem diversas classificações e nomenclaturas no que tange aos fundamentos do futebol, quais sejam:
Recepção / Domínio / Controle
Orientação e Condução
Drible e Finta
Marcar e Desmarcar
Passe
Chute / Lançamento / Cruzamento
Cabeceio
Goleiro
Para o início do trabalho optamos por desenvolver um elemento que tem sentido e significado para a criança, o objeto de desejo de toda e qualquer pessoa que se predispõe à prática do futebol. Referimos-nos à bola do futebol.
Na música, a bola tem surgido de diversas formas, encontramo-as “passeando” por diversos locais desde os gramados dos grandes estádios, passando pelas praias e terrenos baldios, até atingir as vidraças alheias. Em “A Bola” Toquinho, nos diz o seguinte:
pulo, pulo, pulo, vou de pé em pé. Da chuteira do menino na vidraça da mulher ... Corro, corro, corro, na praia de manhã, e quando eu balanço a rede é festa no Maracanã ... Rolo, rolo, rolo rápido e rasteiro, e sou muito maltratada pelo pés de peladeiro ... Salto,salto, salto com todo carinho, joguei com Rivelino, com Tostão e Jairzinho ... Corro, corro, corro do começo ao fim, depois que acaba o jogo, ninguém mais lembra de mim.
Em “Só se eu não for brasileiro nessa hora” de Morais Moreira, a bola assim como na música de Toquinho, irá encontrar com a vidraça de uma mulher, fato que nos serve como um ponto de interferência com nossos alunos. Num primeiro momento podendo nos conduzir ao desenvolvimento de um trabalho em torno do elemento técnico do passe e das finalizações.
Podemos refletir com os alunos, sobre a carência de espaços públicos destinados à prática esportiva, problema de maior reverberação nos grandes conglomerados urbanos.
Uma outra música que nos chamou a atenção fazendo referencia a bola, foi “Futebol no Inferno”, que narra a disputa de uma partida de futebol, realizada no inferno entre os times de Lampião e de Satanás. Escrito inicialmente na forma de literatura de cordel por José Soares, no ano de 1974, o texto foi musicado por Caju e Castanha e se transformou numa embolada.
Este inusitado jogo apresenta características de uma partida oficial, com a presença árbitros (que eles chamam de juiz), locutores esportivos, jogadores reservas, dentre outros aspectos, no entanto, apresenta características oriundas do universo da cultura popular impregnada de exageros, como ter o campo medindo, “Mil metros de cumprimento por quinhentos de largura. A trave oitenta metros por setenta de altura”. E, nesta atmosfera de exageros, são dez as bolas que estão neste jogo com finalidade de deixar a defesa confusa.
A princípio a realização de um jogo tendo mais de uma bola, nos parece impraticável, porém a experiência adquirida na sala de aula tem demonstrado que em determinado casos a realização de um jogo com uma única bola, também se torna inviável.
Referimos a um jogo realizado com turma de séries iniciais e, ou com alunos que praticamente não tenham tido contato com um jogo de futebol e, portanto, apresentam um domínio tático próximo do “inexistente”. A realização de um jogo com este quadro, nos mostra que o esquema tático presente (se é que podemos chamar de esquema), se reduz ao acúmulo de todos os jogadores (com exceção dos goleiros) correndo em direção da bola, muito próximo de uma brincadeira de “Cu de Boi”.3
Se tomarmos o futebol como um jogo que pressupõe ataque e defesa, deveríamos nos orientar por um esquema tático, que considerasse estas características. Na tentativa, de despertarmos em nossos alunos uma consciência tática, que considere a necessidade de atacar e defender pensamos na possibilidade de utilizar mais de uma bola. Não chegamos ao número de dez bolas como na música, mas em adicionar duas bolas.
Desta forma, cada time terá uma bola para fazer o gol e uma outra bola de posse do outro time para defender o seu próprio gol, “obrigando” os jogadores a se organizar para atacar e defender, despertando uma noção tática, de ataque e defesa.
Aspectos históricos
A perspectiva de trabalho com músicas e futebol, em uma abordagem histórica se desdobra em duas vertentes. Uma que pode nos levar a compreensão de acontecimentos históricos referentes ao país e ao mundo, como o exemplo já citado a respeito da utilização da música pelo governo militar, e outra na compreensão do desenvolvimento histórico do próprio futebol.
Observe a música “Grande Coisa”, composta na forma de uma locução de um jogo de futebol, por Premê4 e Silvinho. Ela irá nos apresentar fatos e personagens ligados à história do Brasil.
Brasil com a bola! D. Pedro é o primeiro a pegar a pelota! Faz um passe curto para o aterro do Flamengo que devolve de calcanhar. Tem condição de jogo. Lança em profundidade para a Baía de Guanabara e a bola passa raspando a ponte Rio Niterói. Grande coisa Magno, inclusive esta ponte já tirou muito negro da jogada. Segue a partida, Salvador tem a posse de bola; sai transando bem, trata com intimidade a menina, ginga, faz finta e passa pelo Farol da Barra, da um chapéu em Maracanã, tropeçou, levanta tem noção absoluta do quique Salvador é uma festa pra galera !!! Toca certo para Pão de Açúcar que não mexe e deixa para a Basílica de Aparecida pegar na redonda, Aparecida chuta forte sem direção e a bola se perde pela linha de fundo. Comercial. Exija o melhor para seu toca-disco, exija, grande coisa, o novo disco do Preme, mais um lançamento Emi-Odeon. Intervalo. Segue o jogo, bola nos pés de Transamazônica que chuta longe muito longo. Quem acredita é Angra! Que vem pela direita em direção a pelota. – Só que com essa força viu. Eu já venho afirmando a um bom tempo que essa insistência pela direita não é bem o caminho! Segue. Ta certo você Yolando. Angra corre, corre mas quem alcança a bola é Itaipu que vem com muito mais energia, consegue o domínio lança para Brasília no centro do gramado, Brasília recolhe trata direitinho a menina, esconde, prende bem a bola, bola ou impressão minha mas a bola sumiu, o que é que acontece Yolando? – Eu acho que Brasília não ta com essa bola não. Realmente ela sumiu. E o juizão continua parado em cima do Corcovado de braços abertos. Não botando fé! Intervalo. E a bola reaparece na boca da pequena área do campo adversário e é GOL, GOOLLL!!!
A partir desta música, podemos discutir com os alunos, sobre questões relacionadas ao Brasil, cabendo destacar que uma abordagem puramente histórica, deve ser realizada pelo professor desta disciplina, o que não impede de traçarmos um plano de aula coletivo. Porém, a partir de uma análise macro da história podemos destacar pontos específicos relacionados à educação física. Veja o seguinte exemplo.
Durante a construção da ponte Rio-Niteroi muitos foram os trabalhadores que morreram nas obras e a música “Grande Coisa” refere-se a estes trabalhadores de forma direta e específica, como sendo, negros. Por que não partir desta música e refletir com nossos alunos a respeito da situação do negro no futebol brasileiro, situação que levou jogadores negros a pintarem seus rostos de branco para poderem jogar.
Não compreendemos a história de forma estática e datada, sendo que a análise de seus acontecimentos possui reverberações na contemporaneidade. Em relação a própria situação do negro no futebol, devemos estar atentos a perpetuação da situação periférica vivida por eles que desde os primórdios da prática do futebol em solos brasileiro. Mesmo depois de termos um negro escolhido como o atleta do século5 (fato que em si não nos diz muita coisa) e de vermos outros negros se destacando pelos grandes clubes europeus, cabe realizarmos um levantamento com nossos alunos em torno da quantidade de negros que estão nas instâncias de poder e de comando do futebol (dirigentes, técnicos, empresários, dentre outros), afim de verificarmos se a situação de exclusão e discriminação não se perpetua.
Podemos levantar também, questões como o racismo, que tem atingido o futebol mundial, como as ofensas dirigidas ao jogador camaronês Samuel Etto.6
Aspectos sócio-culturais
Certa vez, José Lins do Rego disse que “O conhecimento do Brasil passa pelo futebol” (REGO apud MURAD, 1994. p.71). Com certeza este esporte tem nos ajudado a compreender um pouco mais deste país, revelando-nos costumes, crenças, contradições, dentre outras manifestações que formam uma cultura.
Uma das características imposta ao futebol atual enquanto espetáculo, está na sua necessidade como evento de massa, de permanentemente criar ídolos, mitos e heróis, para sua manutenção, pois, conforme destaca Helal (1997), a figura do ídolo é capaz de agrupar as representações distintas da coletividade.
Outros autores vão além, dizendo que “sem ídolos e craques ... não há futebol. Eles humanizam os campos e, mais que isso, são a representação da nossa comunidade, país, nação e povo, passados a limpo” (DA MATTA apud HELAL, 1997, p.76).
Encontramos nas músicas pesquisadas, referências aos jogadores como reis, anjos, ídolos e heróis capazes de envolver os torcedores em uma atmosfera delirante.
Observe os trechos das seguintes músicas. “Sacudindo a torcida ... depois de fazer uma jogada celestial em gol ... Foi um gol de anjo ... Fio maravilha nós gostamos de você” (Filho Maravilha, JORGE BEN JOR, grifus nossos). “E cada gol, cada toque, cada jogada. É um deleite para os apaixonados pelo esporte bretão” (Camisa 10 da Gávea, JORGE BEN JOR, grifus nossos). “...tem que ser ciumento e ganhar todas as divididas, e não deixar sobras pra ninguém. Tem que ser o rei e o dono da área” (Zagueiro, JORGE BEN JOR, grifus nossos). “Voa canarinho voa, mostra pra esse povo que és rei ... bola rolando e o mundo se encantando, com a galera delirando” (Voa canarinho, MEMECO E NONÔ, grifus nossos). “fogo na galera, delira a aplaudir, um anjo torto, barroco a sorrir ... Um deus nos estádios ... um bobo da corte um herói brasileiro” (Flecha Fulniô, WILSON FREIRE & ANTÔNIO NÓBREGA, grifus nossos).
São heróis e ídolos, que mitificados, demonstram uma trajetória gloriosa, pois comumente são garotos que vieram das classes mais baixas da sociedade e acumularam prestígio e fortuna, através do futebol, criando no imaginário popular a imagem de uma vida fácil e prazerosa, oferecendo assim,
...contornos mais nítidos aos sonhos de milhares de garotos ... para os quais o futebol, no Brasil, é um dos poucos caminhos vislumbrados para a fama e a fortuna, que sabem ser impossível na vida do trabalhador sem contudo ter que renunciar aos prazeres que ela oferece (GUEDES, 1995. p,38)
Podemos desenvolver com nossos alunos uma reflexão em torno das reais possibilidades de se tornar um jogador profissional de futebol e sobre as condições que esta profissão impõe, principalmente salarial.
Uma pesquisa desenvolvida pelo Departamento de Registro e Transferência da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), no ano de 1998, nos revela que ser um jogador profissional não é sinônimo de riqueza, conforme destaca a mídia, que muito tem contribuído no processo de mitificação dos jogadores, pois,
...52,9% dos jogadores profissionais recebiam quantias inferiores a um salário mínimo; 30,5% de um a dois salários; 7,9% de dois a cinco; 2,7% de cinco a dez; 1,8% de 10 a 20; e 4,3%, recebiam o equivalente a mais de 20 salários mínimos (Folha de São Paulo, Esporte, 14/02/1998 apud CARRARO, 2000.p,104)
Não nos colocamos contra o ato de sonhar, pois acreditamos estar contido no sonho a esperança e talvez a única possibilidade de ascensão , no entanto, concordamos com o trecho de um samba enredo composta para o desfile da Mocidade Independente de Padre Miguel no ano de 1992, que nos diz, “Sonhar não custa nada, o meu sonho é tão real... transformar o sonho em realidade, ...é sonhar com o pé no chão”. (Sonhar não custa nada, PAULINHO DA MOCIDADE, DICO DA VIOLA & MOLEQUE SILVEIRA)
Aspectos estéticos
Até este momento a música tem nos servido quase que exclusivamente como meio, como ponto de partida para se discutir algo relacionada ao futebol. É preciso que as possibilidades de utilização da música como instrumento pedagógico, nos re-direcione a própria música.
Visamos com esta possibilidade de trabalho, estabelecer um diálogo com um processo de apreciação musical, colocando a própria música no centro do debate, e contribuindo com o desenvolvimento estético de nossos alunos e de nós mesmo.
Concordando com Freire (1996), que não temos como dissociar estética e ética, e que a busca por uma educação crítica permeia esta análise. Freire (1996), referindo-se aos saberes necessários à prática educativa, escreve que “A necessária promoção da ingenuidade à criticidade não pode ou não deve ser feita à distância de uma rigorosa formação ética ao lado sempre da estética. Decência e boniteza de mãos dadas”. (p. 36).
Ao trazer os mais variados estilos musicais conforme encontrado, acreditamos estar contribuindo com o desenvolvimento estético e ético de nossos alunos, ao levantar pontos a serem discutidos, como o mercado fonográfico e os sistemas de radiodifusão no Brasil, a pirataria, a massificação de valores e costumes, dentre outros, desencadeando assim para um processo de educação estética, capaz de desvincular (mesmo que momentaneamente) com os padrões pré-estabelecidos e dominantes de gosto, impostos pela indústria cultural.
Vislumbramos uma possibilidade de intervenção nesta linha de trabalho, através da obra dos músicos Caju e Castanha, que no ano de 2006, lançaram o disco “Embolando no Futebol”, em que todas as músicas estão relacionadas ao futebol. Convidar nossos alunos a conhecer o estilo musical destes músicos, pode ser um caminho para discutirmos questões literárias (via cordel), geo-política (o nordestino e sua migração), estéticas (a métrica da rima e os instrumentos da embolada), rítmicas, dentre outras.
Podemos desenvolver um trabalho, no qual, os alunos a partir dos conteúdos trabalhados em sala de aula, venham a escrever um cordel, ritmá-lo e, ou encená-lo. Para a viabilização deste trabalho, podemos contar com a participação dos professores de outras disciplinas, fomentando um trabalho de planejamento coletivo.
Outra possibilidade de trabalho com a música e o futebol que se coloca, está na implementação de uma estação de rádio na escola, que por sua vez, pode nos direcionar às diversas possibilidades de estudos estéticos que vão desde conhecimento sobre a história do rádio e sua popularização, as rádios novelas, a criação de vinhetas, rádios piratas e comunitárias, até a elaboração de um programa de rádio com músicas que tenham o futebol como tema e fazendo uma campanha de busca de novas músicas que tratem o futebol.
Considerações finais
Salientamos que uma partida de futebol em si, pode apresentar momentos de profundo teor estético, como o movimento acrobático de uma bicicleta ou as coreografias que os jogadores realizam durante a comemoração de um gol, que podem se tornar tema a serem estudados em sala de aula.
Acreditamos que o trabalho com a música na educação física não se esgota nas possibilidades apresentadas no decorrer deste estudo, sendo que outros autores têm se debruçado em torno de estudos que associam a educação física e as artes, no entanto, esta discussão se apresenta como a ponta de um iceberg a ser transposto, capaz de gerar um canal de diálogo entre alunos e experiências sensíveis, cabendo a nós realizarmos uma leitura crítica deste material a fim de nos direcionarmos rumo a uma educação física que compreenda o ensino dos esportes em toda a sua dimensão: técnica-tática, sócio-cultural, histórica e estética e que considere esta última como um importante aspecto na formação do humano.
Notas
Jornalista esportivo que foi técnico da seleção brasileira de futebol classificando-a para a Copa do Mundo de 1970, mas que foi substituído por Zagalo durante a competição pelo fato de segundo ele, não ter aceitado a imposição do então Presidente da República de convocar o jogador Dario, que era ídolo do presidente, porém, há boatos de que sua ligação com o partido comunista tenha influenciado.
Apelido dado a Saldanha por Nelson Rodrigues.
Brincadeira de futebol, que tem apenas um goleiro, que solta a bola no meio de dezenas de jogadores e estes individualmente tentam marcar o gol.
Premê é a forma como foi comumente chamado o grupo paulista Premeditando o Breque, composto por: Claus Peterson, Mario Manga, Marcelo Galbeti e Wandi Doratiotto.
Referimos à Edson Arantes do Nascimento, mais conhecido como Pelé.
O jogador camaronês Samuel Etto, atualmente no time espanhol do Barcelona, tem sido alvo de constantes ataques racistas proveniente de torcidas rivais que tem se referido a ele como “macaco”.
Bibliografia
ASSIS DE OLIVEIRA, Sávio. A Reinvenção do esporte: possibilidades da prática pedagógica. Campinas : Autores Associados, chancela editorial CBCE, 2001.
AZÊDO, Maurício. “Jogando por música” In: Revista Placar, As Grandes reportagens edição nº 03, ano 35, maio de 2005.
CARRARO, Paulo César R. “Ronaldinho: ídolo esportivo ou mercadoria global?” In CARRARO, Paulo César R. (org) Futebol : Paixão e Política. Rio de janeiro, DP&A, 2000.
DAMO, Arlei Santos, Ah! Eu sou gaúcho! O nacional e o regional no futebol brasileiro in: Estudos Históricos: Esporte e Lazer, vol. 13, nº 23,Rio de Janeiro, 1999.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
FRISSELLI, Ariobaldo e MANTOVANI, Marcelo. Futebol: Teoria e Prática. São Paulo. Phorte. 1999.
GALEANO, Eduardo. Futebol ao sol e à sombra. 3ª ed, Porto Alegre: L&PM, 2004.
GUEDES, Simoni Lahud. “O salvador da pátria: Considerações em torno da imagem do jogador Romário na Copa do Mundo de 1994”. In: Brasil: Futebol tetracampeão do mundo. Rio de Janeiro: UERJ, Departamento Cultural, 1995.
HELAL, Ronaldo. Passes e impasses: futebol e cultura de massa no Brasil. Petrópolis. Vozes, 1997.
MELO, Victor de Andrade de. Arte popular e novas possibilidades de estudo da história da educação física e do esporte in: Revista Brasileira de Ciências do Esporte, volume 19, nº 2. Santa Catarina-SC. NEPEF/UFSC, 1998.
______. Esporte e Arte. http://www.lazer.eefd.ufrj.br/producoes/esporte_arte_ministério. Acessado em 15 de dezembro de 2005.
MURAD, Maurício. “Corpo, magia e alienação. O negro no futebol brasileiro: por uma interpretação sociológica do corpo como representação social” In: Futebol: 100 anos de paixão brasileira. Rio de Janeiro: UERJ, Departamento Cultural, 1994.
RIVOIRO, Luiz. As 30 melhores entrevistas de Playboy: agosto1975-agosto 2005. São Paulo, Editora Abril. 2005.
http://www.letras.terra.com.br. Acessado em 10 de novembro de 2005, 18 de dezembro de 2005, 07 de fevereiro de 2006 e 18 de fevereiro de 2006.
Outros artigos em Portugués
revista
digital · Año 14 · N° 132 | Buenos Aires,
Mayo de 2009 |