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A violência no futebol a luz da teoria eliasiana

 

*Mestrando - Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG

Grupo de Estudos Esporte, Lazer e Sociedade

**Docente do Programa de Mestrado em Ciências Sociais Aplicadas

Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG

Grupo de Estudos Esporte, Lazer e Sociedade

***Docente do Programa de Mestrado em Ciências Sociais Aplicadas

Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG

Grupo de Estudos e Pesquisa na área da Infância e Adolescência

Alfredo Euclides Dias Netto*

aednetto@hotmail.com

Constantino Ribeiro de Oliveira Junior**

constantino@uepg.br

Solange Barbosa de Moraes Barros***

solangebarros@brturbo.com.br

(Brasil)

 

 

 

Resumo

          Durante muitos anos os eventos esportivos foram deixados de lado pelos cientistas sociais, no entanto, esporte/futebol desponta como um dos maiores fenômenos sociais da atualidade, envolvendo em seus eventos, públicos cada vez maiores os quais se deixam levar pelas emoções, gerando inúmeros atos de violência. Para entender esta violência provocada pelos torcedores que freqüentam os estádios de futebol busca-se estudos do sociólogo Norbert Elias sobre o esporte, e mais especificamente sobre o futebol como um objeto sociológico. Neste contexto busca-se esclarecer o significado de violência e seu reflexo no esporte/futebol, através de um estudo qualitativo, de cunho exploratório.

          Unitermos: Violência. Esporte. Futebol.

 

          Abstract: For many years the sports event were forgotten by social scientists; for the other hand the soccer sport let down like a grater social phenomenon at the present, it attracts hug crowds in its events, in which the take for emotions, creating countless violence’s acts. To understand this violence affronted by hooligan fans who attend the soccer stadiums. It searches the sociologist’s studies Norbert Elias about sport and more specific about the soccer like a sociologic object. In this context we look for elucidate the meaning violence and it’s reflect on the sport/soccer, through a qualitative study of explorative stamp.

          Keywords: Violence. Sport. Soccer

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 14 - Nº 132 - Mayo de 2009

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Introdução

    O presente artigo tem como objetivo confrontar os estudos (os pensamentos e idéias) de Norbert Elias com a realidade vista nos Estádios de Futebol. Para tal, utilizaremos como referência as obras de Elias, as quais nos auxiliarão a compreender a violência presente nos estádios de futebol na cidade Curitiba. Salienta-se que este texto encontra-se na fase exploratória1, numa fase considerada de ruptura2, na qual tenta-se uma aproximação entre as observações realizadas empiricamente com leituras de referências produzidas sobre o assunto. Elias e Dunning (1992) são uns dos primeiros estudiosos a verem o esporte como um objeto de estudo sociológico. Na obra “A Busca da Excitação”, os autores procuram mostrar que o esporte pode ser um dos meios de se observar à sociedade. Parte-se da observação de um fenômeno social significativo, para analisar formas mais abrangente de relacionamento e de comportamento social.

    Até então, a sociologia, segundo os autores acima citados, ocupou-se apenas dos aspectos “sérios” e “racionais” da vida, relegando aspectos como o divertimento, o prazer, o jogo, as emoções e as tendências irracionais ou inconscientes dos homens. No entanto, atentam ao fato de que o desporto, a guerra e as emoções possuem de certa forma, sobreposições significativas sob o aspecto social. Para eles “o desporto e a guerra envolvem formas de conflito que se encontram entrelaçadas, de maneira sutil, com formas de interdependência, de cooperação e com a formação do ‘nosso grupo’ e do ‘grupo deles’” (Elias; Dunning, 1992: 16).

    Para Elias e Dunning (1992), os desportos em geral são competições, confrontos, que envolvem forças físicas, sem finalidades militares. Sendo organizados a partir de regras que existem para diminuir os riscos de danos físicos, além de obrigar os adversários a terem determinados tipos de comportamentos.

    No entanto, o que nos chama a atenção é que este desporto acaba levando à assistência inúmeros torcedores. No caso do futebol, objeto deste estudo, esta assistência possui dezenas de milhares de torcedores, que em muitos casos acabam agindo de forma diversa às regras da pacífica convivência social. E neste ponto, Elias e Dunning (1992) trazem em seus estudos apontamentos do comportamento dos hooligans.3 Este estudo servirá de base para se levantar categorias que permitam visualizar esses comportamentos nas atuais Torcidas Organizadas de Futebol, neste caso na cidade de Curitiba, no Paraná.

    Outro aspecto a ser desenvolvido neste estudo é o levantamento de algumas categorias presentes e que embasam a teoria sociológica de Norbert Elias, neste ponto será abordado sua compreensão sobre a sociologia (teoria configuracional), a sociogênese e a psicogênese, o poder, o controle da violência e os outsiders, pois o entendimento e a relação dessas categorias com a violência gerada pelas Torcidas Organizadas será fundamental para o êxito deste estudo.

1.     Aproximação ao objeto “violência”

    Ao se buscar compreender como os policiais militares envolvidos no conflito entre as Torcidas Organizadas no jogo entre as equipes do Coritiba Foot Ball Club e do Clube Atlético Paranaense, o qual recebe a denominação de Atletiba, realizado em outubro de 1999 compreendem a violência proporcionada pelas Torcidas Organizadas de futebol, faz-se necessário entender o significado de violência, para posteriormente relacionar esta categoria ao esporte, mais especificamente ao futebol.

    Compreender violência não é uma tarefa fácil, tendo em vista não se tratar de uma categoria única e sim múltipla. Conforme expõe Wieviorka (1997: 5-41) ela “não é a mesma de um período a outro”, ou seja, ela sofre mutações com transcorrer do tempo. Isso exemplificado na obra de Norbert Elias, o qual analisa as mudanças nos padrões de comportamento da sociedade por meio de uma perspectiva de longa duração.

    Assim sendo, ao se analisar formas de violência empregadas em antigas civilizações, tem-se a clara sensação de barbárie, no entanto outras formas de violência existente na atualidade são aceitas como necessárias para o controle social.

    Nesse contexto, Wieviorka explora a idéia de uma nova era, a partir das décadas de 1960 e 1970, defendendo assim um novo paradigma de violência, principalmente se analisar na perspectiva de longa duração, em comparação com o século anterior. Nesse novo paradigma de violência, o autor acaba por retratar a violência política e o terrorismo de extrema esquerda surgidos nos anos 70 e 80, além da violência imposta pela extrema direita, a qual possui como foco a tomada do poder do Estado. Surgiam ainda neste período lutas de libertação nacional, as quais assumiam características de guerrilhas. Todavia, hoje um dos mais claros exemplos desta mudança da violência está nas identidades étnicas e religiosas dos protagonistas das ações violentas (Wieviorka, 1997: 6-7).

    Com as alterações nas concepções de violência no decorrer do tempo, Minayo expõe que “há violências toleradas e violências condenadas” (Minayo, 1994: 13), cabendo salientar que este fenômeno social está presente em todos os segmentos da sociedade. Exemplificado por Chesnais “[...] a própria violência é que se apresenta como um fenômeno pulverizado, atingindo a vida privada e a vida pública em todos os seus aspectos, os mais visíveis e os mais secretos” (Chesnais in Minayo, 2006: 13).

    Na tentativa de melhor entender essa categoria social, buscou-se o conceito da palavra violência, tendo o sociólogo Mauricio Murad (2007: 77) afirmado que

    A palavra violência etimologicamente provém do latim violentia – raiz semântica vis = força – e significa opressão, imposição de alguma coisa a outra pessoa ou a outras pessoas, por intermédio do emprego da força, qualquer que seja seu tipo, a sua substância, forma ou sentido: força dos poderes social, econômico, jurídico ou político, força física, força simbólica ou de qualquer outra natureza que se queira.

    Já a Organização Mundial da Saúde, no seu informe World Report on Violence and Health (2002), define violência como

    [...] o uso intencional de força física ou poder, em ameaça ou na prática, contra si próprio, outra pessoa, ou contra um grupo ou a comunidade que resulte ou tenha uma alta probabilidade em resultar em ferimento, morte, dano psicológico, desenvolvimento prejudicado ou privação.

    Em posse do conceito de violência optou-se em realizar uma revisão histórica dessa conduta para uma melhor compreensão deste objeto de pesquisa. Para Luna, o principal objetivo de uma revisão histórica “é a recuperação da evolução de um conceito, área, tema, etc. e a inserção dessa evolução dentro de um quadro de referência que explique os fatores determinantes e as implicações das mudanças” (Luna, 2002: 86), o que se encaixa perfeitamente com o presente estudo.

    Para um melhor entendimento desse fenômeno social conceituou-se paz e violência, para que se possam desvincular os significados antagônicos, salientando que os conceitos de paz e violência sofrem contínuo processo de mudança, assim como mudam o tipo e a natureza dos conflitos e o grau de visibilidade. Para Tidei (2002: 3), a paz pode ser entendida como:

    [...] a ausência de guerra, ou a conjunção de vários “Ds”, desenvolvimento, direitos humanos, democracia e desarmamento. A ausência de um deles resulta em fator de violência. Este conceito evoluiu seguindo a dinâmica dos conflitos e para caracterizar a paz é necessário definir a violência e suas diversas dimensões, entre as quais se destacam as violências: militar, cultural, estrutural, política, étnica, de gênero, a do Estado e a da sociedade do tipo anômico (sem normas).

    Muitos dos atos agressivos estão diretamente ligados aos fatores como cultura e política, ou pela ausência dos “Ds”, conforme propõe Tidei.

    Sendo assim, pode-se citar que “a violência está presente quando os seres humanos são persuadidos de tal modo que suas realizações efetivas, somáticas e mentais, ficam abaixo de suas realizações potenciais” (Galtung in Tidei, 2002: 3).

    Ballone e Ortolani (2007) defendem que a violência muitas vezes é resultado do que é conhecido como teoria da frustração, em que ao realizaram uma experiência frustrante, muitas pessoas tendem a gerar uma resposta agressiva, preferencialmente tendo por alvo quem gerou a frustração, ou um terceiro, que para o agressor indiretamente o frustrou. Essa teoria ajuda a compreender o que ocorre com alguns torcedores que se deslocam ao estádio para torcer pelo seu time, entretanto, em virtude de um resultado adverso da sua equipe, acabam se tornando agressivos. O alvo gerador da frustração foram os jogadores do time adversário, porém, como o torcedor não tem contato com estes atletas, extravasa sua frustração nos torcedores do time vencedor.

    Tem-se ainda que levar em consideração as frustrações que os indivíduos levam internalizadas em si para os estádios, pois muitos acabam extravasando no local do espetáculo, ou em suas adjacências, os sentimentos obtidos durante seu ambiente de trabalho, onde pode ter sido repreendido exageradamente pelo patrão, ou de seu ambiente familiar, em que pode ter tido sérias discussões com seus parentes, esposa ou filhos; além de outras frustrações, as quais podem ser adquiridas durante o jogo, como por exemplo, o ódio despertado pelo árbitro, que de certa forma pode ser compreendido com o de ter prejudicado seu time.

    Assim, pode-se verificar que as atitudes violentas das torcidas organizadas em eventos de futebol ocorrem pela busca do poder ou pela perda do controle, acabando os torcedores agindo contra outras pessoas ou grupos.

    Contudo, cabe ressaltar o que Reis (2007) aponta como fatores geradores de violência nos espetáculos de futebol

    [...] iremos também apresentar as causas de forma genérica: 

  1. o longo período que os estádios foram identificados como locais permissivos a atos violentos e ilegais – criando com isso uma falsa consciência de que a violência é parte legal específica para tratar o problema; 

  2. a ausência até pouco tempo de nenhuma normativa legal específica para tratar o problema; 

  3. a impunidade de transgressores; 

  4. as péssimas condições de segurança e conforto nos estádios brasileiros; 

  5. o uso abusivo de drogas lícitas e ilícitas; 6. a banalização da violência pelas emissoras de televisão etc.

    Diante dos conceitos de violência das diversas áreas de conhecimento será seguido o conceito de violência utilizado por Norbert Elias, o qual traz a interpretação de que violência é um problema gerado pela excitação que as pessoas sentem, o que pode alterar o seu autocontrole, decorrente das diversas emoções a que se submetem.4 Será seguida esta linha de pensamento por se entender que se relaciona diretamente com os objetivos deste estudo, e que este autor apresenta em suas obras categorias que apontam para os diversos conceitos citados; portanto, poderão sustentar teoricamente este estudo.

1.1.     Violência no esporte

    Ao trazer a violência para o mundo das atividades físicas, podemos citar os apontamentos de Elias e Dunning, os quais relatam a importância da sociologia do esporte. Na obra denominada “A Busca da Excitação”, os autores mostraram que o esporte pode ser um dos meios de se observar a sociedade. Parte-se da observação de um fenômeno social significativo, para analisar formas mais abrangentes de relacionamento e de comportamento social.

    Até então, conforme os autores supracitados, a sociologia ocupou-se apenas dos aspectos “sérios” e “racionais” da vida, relegando aspectos como o divertimento, o prazer, o jogo, as emoções e as tendências irracionais ou inconscientes dos homens. Entretanto, atentam ao fato de que o desporto, a guerra e as emoções possuem, de certa forma, sobreposições significativas sob o aspecto social. Para eles, “o desporto e a guerra envolvem formas de conflito que se encontram entrelaçadas, de maneira sutil, com formas de interdependência, de cooperação e com a formação do ‘nosso grupo’ e do ‘grupo deles’” (Elias; Dunning, 1992: 16).

    Para Elias e Dunning, os desportos, em geral, são competições, confrontos, que envolvem forças físicas, sem finalidades militares, sendo organizados a partir de regras que existem para diminuir os riscos de danos físicos, além de obrigar os adversários a terem determinados tipos de comportamentos.

    No entanto, o que nos chama a atenção é que esse desporto acaba levando à assistência inúmeros torcedores. No caso do futebol, objeto deste estudo, esta assistência possui dezenas de milhares de torcedores, que em muitos casos acabam agindo de forma diversa às regras da pacífica convivência social. E neste ponto, Elias e Dunning trazem em seus estudos apontamentos do comportamento dos hooligans. Este estudo servirá de base para se levantar categorias que permitam visualizar esses comportamentos nas atuais Torcidas Organizadas de Futebol, neste caso na cidade de Curitiba, no Paraná.

    Por meio da leitura de Elias e Dunning, vemos que toda a evolução civilizadora no esporte parte da Inglaterra, país que, para restringir a violência, criou regras sociais que exigem um autocontrole dos participantes, sejam eles jogadores ou torcedores, regras estas que foram exportadas para outros países.

    Todo e qualquer esporte é criado visando certo nível de competição, e nunca buscando a violência. Para o controle dos atletas, durante o jogo, foram criadas as regras para cada modalidade esportiva, porém esta competitividade faz com que manifestações violentas apareçam, inclusive entre os espectadores os quais muitas vezes se excedem em suas atitudes. Para Defrance (2001: 233), “dentre muitos fatores, o fator da rivalidade competitiva desencadeia de certa forma a violência dentre os espectadores”.

    Ao se levantarem questões sobre violência no âmbito esportivo, não pode ser citado apenas o futebol como incentivador a essa prática; como exemplo, dentre outras modalidades esportivas, o Boxe, esporte que sofreu grande evolução civilizadora em seu processo histórico, seria outra modalidade em que a violência seria enfatizada.

    Na Antiguidade, as lutas (que deram origem ao que hoje se denomina boxe) eram realizadas em forma de duelo, em que um dos participantes normalmente chegava à morte. Com o passar dos tempos foram criadas as primeiras formas de pugilato, sem regras bem definidas, as quais, mais tarde (século XIX), foram criadas e, juntamente com os equipamentos (luvas, protetores, etc.), tornaram-se obrigatórios (Elias; Dunnong, 1992). Essa evolução pode ser observada em muitas outras modalidades esportivas. Mudanças estas que buscam cada vez mais aumentar a competitividade, diminuindo as manifestações violentas.

    Apesar da violência estar presente na sociedade em todos os seus segmentos, no esporte esse padrão de comportamento vem ganhando maior ênfase na mídia, obtendo o mesmo nível de repercussão de fatos sociais como assaltos, homicídios, latrocínios, entre outros.

    A crescente ascensão da violência no esporte torna-se um desvio capaz de envolver multidões, extrapolando o recinto da competição e influenciando negativamente os espectadores. Levantamentos procedidos em países europeus constataram que a violência no esporte, hoje muito presente dentro e fora dos locais de competição, localiza-se mais entre uma juventude frustrada (confirmado pelo estudo de Elias, em que os hooligans eram formados predominantemente por jovens da classe média inglesa), predominantemente homens e operários, estimulados pela ingestão desenfreada de bebidas alcoólicas e de tóxicos (Capinussú, 1997: 11).

    Não obstante, outras modalidades esportivas podem ser citadas como possuidoras de focos de violência, como futsal, rugby, hóquei, entre outros, porém com um reflexo social menor, pois o futebol abrange grande quantidade de torcedores.

    Como cita Capinassu (1997: 37),

    A grande repercussão gira em cima do futebol, principalmente porque as atitudes violentas dos torcedores deste esporte, não se restringem às brigas esporádicas nas arquibancadas, e devido à rivalidade entre torcedores deste ou daquele clube, às vezes ligeiramente motivados por algumas cervejas, extravasa o estádio, sendo registrados diversas ocorrências de brigas, arrastões e depredações.

    Porém, essas ações muitas vezes têm como vítimas, pessoas que nada têm a ver com o futebol, estabelecimentos comerciais, telefones públicos, estações tubos (estações de parada de ônibus em forma tubular e fechada com vidros, típicos na cidade de Curitiba) e ônibus, como demonstram algumas reportagens que trazem exemplos da violência exercida pelas Torcidas Organizadas dos clubes da cidade de Curitiba-PR: a) “Torcedor do Coritiba é esfaqueado – EL, 22 anos, foi ferido durante uma briga em um bar próximo ao Estádio de Futebol Couto Pereira” (Kissner, 2001); b) “Inquérito apura violência de torcedores – torcedores do Atlético depredam posto de gasolina e ateiam fogo em uma borracharia no retorno do jogo em Irati” (Martins, 1998); c) “Selvageria no portão de desembarque – torcedores do Coritiba agridem jogadores no aeroporto após derrota pela série B do Campeonato Brasileiro” (Vicelli, 2006).

    De acordo com o exposto acima, a violência é algo presente na sociedade atual, e vem se desencadeando em vários seguimentos, inclusive no âmbito esportivo. Tendo em vista que o objeto deste estudo é a violência no futebol faz-se necessário um maior detalhamento nesta temática.

1.2.     Violência no futebol

    Estudos internacionais chamam a atenção para o fato de que a violência no futebol não pode ser desvinculada do contexto social, do tipo de inserção que as diferentes classes sociais têm na sociedade, dos padrões de socialização prevalentes dos valores e das normas em relação à agressividade e violência que predominam na sociedade, do grau de pacificação (monopólio da violência) existente, do padrão de relações dentro das comunidades e das identidades sociais que se desenvolvem (Dunning et al, 1992).

    Ao tratar do monopólio da violência, Defrance utiliza a obra de Norbert Elias, expondo que o monopólio da força (aplicabilidade da violência) pertence ao Estado, porém por motivos diversos vem ocorrendo uma disseminação da violência entre a população civil. Cita ainda que os militares tinham o dever de proteger o monopólio da violência de Estado (Defrance, 2001: 233).

    Ao relatar que o Estado, por meio dos militares, possui o que foi chamado de monopólio da violência, externa-se o fato constitucionalmente aplicado nos dias atuais, em que no Brasil o policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública devem ser garantidos, pela Polícia Militar, devendo esta utilizar da força necessária para reprimir qualquer fato que ponha em risco essa tranqüilidade, ou qualquer ato de violência praticada pela população civil. Quando se fala em força necessária, entende-se ser uma reação de força proporcional, aplicada pelo miliciano para conter uma agressão sofrida por si ou por outrem.

    Para maior compreensão sobre o comportamento de torcidas de futebol, têm-se estudos feitos a partir das atitudes dos hooligans, em que Elias e Dunning explicam que tais atos de violência têm como grande responsável o álcool. Cabe aqui ressaltar também as pesquisas de Bill Buford (1992), o qual em um de seus estudos acompanhou os hooligans ingleses por quatro anos, elaborando relatórios diários dos fatos ocorridos, sendo por ele destacado em praticamente todos os seus relatos, a ingestão exagerada de bebidas alcoólicas. Esta substância age de forma a facilitar a violência retirando as inibições, aumentando a sensação de camaradagem entre os membros do grupo, ajudando a diminuir o medo de se ferirem e de serem presos (Ballone; Ortolani, 2001).

    Estas substâncias que alteram o comportamento humano seriam um dos fatores que colocam a violência dentro dos estádios, com atos impulsivos e momentâneos, praticados principalmente pelas Torcidas Organizadas.

    No entanto, em seu estudo, Marsh mostra que a violência nos campos de futebol não é anárquica ou aleatória; ela tem ritual, segue normas e regras socialmente elaboradas, seguindo, em síntese, um padrão de ações violentas (Marsh et al, 1980:155). Buford em uma passagem pela cidade de Turim acompanhando os hooligans descreve a forma como os membros daquela torcida se reconhecia e se reunia antes de uma partida, mesmo que fora do seu país de origem:

    [...] tão logo um torcedor chegava, perambulava por ali, normalmente acompanhado por um amigo, berrando ou colidindo periodicamente com coisas ou juntando sua voz a uma canção. Em seguida, um companheiro era localizado e ambos se cumprimentavam. O cumprimento acontecia por meio de uma troca de ruídos sonoros e incompreensíveis. Pouco depois, eles localizavam outro companheiro (mais barulho) e outro (mais barulho), até finalmente haver gente o bastante – cinco, seis, por vezes dez – para formar um círculo. Então, como que respondendo a um brinde, todos eles bebiam de um enorme garrafão de cerveja das mais baratas ou de um enorme garrafão de vinho tinto dos mais baratos. [...] (Buford, 1992: 47-48).

    Ao trazer esses conhecimentos para a realidade da violência praticada por torcedores de futebol no Brasil, esses rituais podem ser observados antes dos grandes jogos, quando as Torcidas Organizadas reúnem-se em suas sedes e, gritando hinos e canções de ordens, deslocam-se para os locais dos jogos (estádios), onde continuam seus cantos, apreciando o “espetáculo”. Pimenta traz em seu estudo aspectos que permeiam as torcidas da cidade de São Paulo, relatando que em jogos sem relevância as atividades relativas ao jogo iniciam três dias antes do evento, e quando o jogo trata de um dos clássicos daquela cidade os preparativos iniciam uma semana antes, citando que “a execução das tarefas segue um roteiro pré-determinado que envolve diversas pessoas, responsáveis pelo espetáculo e performance das “Torcidas Organizadas” nos estádios [...]” (Pimenta, 1997: 100).

    Os rituais desses grupos levam a maioria dos indivíduos a ingerir bebidas alcoólicas e substâncias entorpecentes, além de praticarem durante os deslocamentos, atos ilícitos, buscando a auto-afirmação do grupo; atos estes comprovados pelos diversos Boletins de Ocorrências (BO) registrados pela Policia Militar.

    Como exemplo, pode-se citar dados levantados junto ao Sistema de Controle Operacional da Polícia Militar do Paraná (SISCOP/PMPR), os quais mostram que no dia do jogo de futebol, entre o Coritiba F. C. e o C. Atlético Paranaense, jogo considerado clássico da cidade de Curitiba, ocorrido no dia 17 de outubro de 1999, houve um aumento de 30% (trinta por cento) no índice de ocorrência, quando comparado com outros clássicos envolvendo as equipes da capital.

    Para se entender o processo de violência coletiva, é necessário levar em conta a identidade social dos participantes do evento. Entender a identidade social exige compreender o contexto social dessa identificação, as raízes sociais dessa identidade, as normas que norteiam o comportamento dos membros da comunidade.

    Para Dunning, no perfil dos hooligans britânicos, há um predomínio de adolescentes e jovens adultos da classe trabalhadora. Jovens estes que apresentam forte vínculo com seus bairros de origem, onde a identidade social é definida a partir de uma rígida separação entre quem é do grupo e quem não é. (Dunnind et al, 1992: 372).

    O que parece tornar a violência mais perigosa junto a estes jovens é que a definição da identidade social implica uma separação rígida entre eles e os outros. Essa diferenciação rígida é o primeiro passo para a desumanização do outro e para que o outro se transforme no inimigo. O inimigo ameaça sua própria integridade física, a mera presença dele sugere a impossibilidade de convivência. A separação entre “nós” e “eles” se transforma em “nós” versus “eles”.

    Os estudos supracitados auxiliam para a reflexão e um melhor entendimento sobre os episódios de violência no futebol brasileiro e mais especificamente no futebol paranaense, pois assim pode-se verificar as categorias que nos permitiram iniciar os estudos, como as características dos torcedores que se envolvem nestas cenas de violência, bem como os aspectos de identidade social, as quais levam os indivíduos a se unirem a grupos (no Brasil as Torcidas Organizadas são exemplos desses grupos).

    Cardia expõe que grande parte das Torcidas Organizadas no Brasil é oriunda da periferia das cidades, sendo composta por adolescentes ou jovens adultos e apresentam subgrupos formados nos bairros de origem. Estes jovens que com freqüência estão mais ligados ao próprio grupo do que aos adultos das famílias, têm pouca supervisão dos pais que trabalham fora, e dependem mais do grupo para sobreviverem e para afirmar a sua auto-estima. O respeito que obtém da comunidade deriva mais do grupo e com freqüência da coragem e valentia que podem exibir como membros do grupo do que de seu desempenho escolar e profissional (Cárdia, s/d).

    Não se pode negar que a violência é uma realidade dentro do esporte em todo o mundo, o que se transforma em acontecimentos cada vez mais conflitantes com a normalidade para o convívio social. Essas ocorrências negativas fazem crescer a cobrança da sociedade com relação às autoridades, principalmente em dias de grandes jogos de futebol, momentos em que o número de atos ilícitos se multiplica, dentro e fora dos estádios.

    Relacionado às diferentes formas destes atos ilícitos, podemos citar o que Dunning escreveu a respeito dos confrontos envolvendo os hooligans:

    [...] podem tomar a forma de uma luta corpo a corpo apenas entre dois adeptos rivais ou entre centenas de fãs de cada lado. Por vezes usam-se armas – navalhas de ponta e mola e navalhas Stanley, que se dissimulam com facilidade, sendo as favoritas na fase atual – nos incidentes mais sérios. Os confrontos de hooligans do futebol podem também assumir a forma de lançamento pelo ar, usando-se como munições projéteis que se classificam desde artigos inofensivos, como amendoins, pedaços de casca de laranja, caroços de maças e copos de papel, até outros potencialmente mortais, como dardos, discos de metal, moedas, cadeiras partidas, tijolos, placas de cimento, esferas de rolamentos, fogos de artifício, bombas de fumo e, como aconteceu em uma ou duas ocasiões, garrafas de petróleo. (Dunning et al, 1992: 358).

    Observando essa citação pode-se verificar que os atos praticados pelos hooligans estão presentes, e são facilmente vistos, nos estádios e nas ruas, em dias de jogos envolvendo as principais equipes e torcidas do futebol brasileiro. E isso pode ser exemplificado por meio dos relatórios elaborados, após os eventos de futebol, pela Polícia Militar do Paraná, em que estão registradas ocorrências semelhantes às narradas por Elias e Dunning, referente aos torcedores ingleses, como por exemplo: vias de fato, rixa, arremesso de projéteis.

    Após verificar alguns pontos sobre a violência, relacionando-a ao esporte e ao futebol, buscar-se-á nos estudos de Norbert Elias – como dito anteriormente, autor central desta pesquisa – compreender algumas das categorias por ele trabalhadas relacionando-as com a violência das Torcidas Organizadas e com o possível entendimento que os policiais militares do Estado do Paraná possuem sobre a ação dessas Torcidas.

2.     Teoria eliasiana: uma possibilidade de compreensão do fenômeno da violência das torcidas organizadas

    O Esporte/futebol é um dos maiores fenômenos sociais do século passado, envolvendo durante os seus eventos um grande número de torcedores. Pode-se citar este crescimento também no futebol paranaense, sendo que no ano de 1970 chegou-se a ter um público de 26.933 pagantes (Machado; Chresrenzen, s/d: 269); na década seguinte, no campeonato paranaense de 1981, foi registrado público de 43.412 pagantes (Machado; Chresrenzen, s/d: 361), em 1990 este campeonato teve público de até 52.028 pagantes (Machado; Chresrenzen, s/d: 437). No entanto, durante muito tempo esse fenômeno foi desprezado pelas Ciências Sociais, pois não era visto como algo sério (Elias; Dunnig, 1992, p. 14-17). Um dos primeiros sociólogos a estudar o esporte e principalmente a violência que ocorre nas partidas de futebol foi o sociólogo Norbert Elias; isso após Eric Dunning, seu discípulo e colaborador, ter lhe despertado atenção a esta temática.

    Para que se possa entender o que Elias expõe acerca do assunto a ser tratado, faz-se necessário primeiramente entender como ele compreende a sociologia, e depois levantar algumas categorias importantes para a discussão e análise do objeto deste estudo.

    Marchi Jr. (2007) explica a forma que Elias entende o estudo da sociologia:

    Elias aborda de maneira crítica e vigorosa, aspectos de História, Política, Psicologia e Sociologia, repensando temas fundamentais como o indivíduo e o grupo. Versa, essencialmente, sobre os padrões mutáveis de interdependência relativo às relações de poder entre os homens em sociedade. No entendimento de sua abordagem, alguns pressupostos são colocados para uma reflexão crítica. O primeiro deles é o modo de alguns estudiosos tratarem a sociedade como objeto de estudo da Sociologia, não tendo, contudo, a sensibilidade de perceber que os problemas e a sociedade são formados por nós e pelos outros. Daí decorre o equívoco de visualizar o objeto distanciado do pesquisador, ou seja, o que está sendo estudado não faz parte da realidade de quem o estuda.

    Cabe ressaltar que para Elias o estudo sociológico difere do entendimento do modelo de senso comum, pelos quais aspectos como família, indústria e Estado são analisados independentes, de forma separada e em torno do “eu” (ego). Para Elias, todos os aspectos sociológicos apresentam interdependência com o indivíduo e entre si.

    A essa interdependência, em sua obra “Introdução à Sociologia”, Elias apresenta uma teoria configuracional ou teias de interdependência, na qual para se entender a sociedade é necessário entender que ela é “constituída por estruturas exteriores ao indivíduo, e que este indivíduo está rodeado e separado da sociedade por uma barreira invisível” (Elias, 1980: 19). Esta teoria configuracional se “refere à teia de relação de indivíduos interdependentes que se encontram ligados entre si a vários níveis e de diversas maneiras” (Elias; Dunnind, 1992: 25).

    Brandão, em sua obra “Os processos de civilização e o controle das emoções”, explica que para Elias o conceito da teoria configuracional, categoria central da teoria do processo de civilização, deve ser entendido sob os seguintes aspectos:

    Primeiro, que os seres humanos são interdependentes e somente podem ser entendidos como tais, já que suas vidas são desenvolvidas dentro de determinadas figurações sociais, sendo significativamente modelados (shaped) por essas figurações, as quais são construídas por eles e entre eles. Segundo, que essas figurações estão continuamente em fluxo, sofrendo trocas de diferentes ordens, algumas rápidas e efêmeras, outras lentas, porém, mais profundas. Terceiro que esses processos de trocas contínuas, ocorridos nas figurações, possuem dinâmicas próprias, dentro das quais os motivos e as intenções individuais fazem parte, mas as dinâmicas das figurações não podem ser reduzidas a esses motivos e a essas intenções isoladas (Brandão, 2007: 91).

    Nesse sentido, tem-se que essas configurações são orientadas por forças sociais tidas como forças compulsivas e, como tais, são de fato exercidas pelas, sobre e entre as pessoas.

    Diante da compreensão de Elias somente pode-se entender o que se passa na área esportiva levando em consideração o que acontece na sociedade, pois se a violência possui diferentes causas, ela é sem dúvida construída socialmente.

    Acerca do pensamento de Elias, cabe ainda ressaltar sua valorização ao que diz respeito à interdisciplinariedade no trabalho científico. Elias busca uma visão interdisciplinar para refletir sobre os fenômenos sociais. Heloísa Pontes enfatiza que “os temas propostos, as fontes utilizadas e os objetos analisados por Elias não só permitem como também exigem essa empreitada interdisciplinar” (Pontes, 1997: 20). Sendo um crítico aos cientistas que possuem uma visão estreita do trabalho científico, ou seja, aqueles pensadores que trabalham em apenas um ramo ou área do pensamento científico, não procurando ampliar seus trabalhos com outras áreas de conhecimento.

    Para melhor explicar a teoria Eliasiana, e relacioná-la a este estudo, buscar-se-á compreender algumas categorias abordadas na teoria de Elias, sobretudo seu entendimento em torno da psicogênese, da sociogênese, do poder, dos outsiders e do controle da violência.

2.1.     A psicogênese e a sociogênese na concepçao de Norbert Elias

    Aproximando-se da teoria de Elias, busca-se compreender os indivíduos, pertencentes às Torcidas Organizadas. Para tanto, tem-se que enaltecer que este autor apresenta dois processos envolvidos na construção da civilização; o primeiro embasado em estudos a respeito do processo de transformação do comportamento e das estruturas da personalidade, denominada “psicogênese”; e o segundo oriundo da formação do estado5, conhecido como “sociogênese”.

    Cabe aqui salientar que as discussões acerca da psicogênese estão intrinsecamente ligadas com a sociogênese, e que todas essas idéias, unidas, constituem a teoria dos processos de civilização de Elias, não podendo ser entendidas separadamente, pois exigem constante correspondência. No entanto, para uma abordagem didática na busca da compreensão desses conceitos, eles serão analisados independentemente.

    Por meio da psicogênese, advinda das idéias de Elias, observa-se que seu entendimento parte de um controle externo das emoções e dos sentimentos, pelos quais os indivíduos sofrem influência da sociedade a que pertencem, sejam por meio de regras, leis, costumes ou hábitos, alterando assim seu comportamento, passando a agir em conformidade com o que lhe foi imposto para que possa conviver e ser aceito naquela sociedade. Isso é observado nos dizeres do próprio Norbert Elias: “as pessoas em certas sociedades são obrigadas a reproduzir, uma vez ou outra, determinados padrões de conduta e cadeias funcionais especificas” (Elias, 1993: 239).

    Partindo da premissa da evolução do indivíduo em um processo civilizador, entende-se que Elias sustenta que essa alteração do comportamento individual tem por base alterações acontecidas na estrutura psicológica, que acabam por gerar transformações no meio social no qual convivem, e isso vem a ser a psicogênese.

    A preocupação de Elias era compreender o processo de civilização através da psicogênese e da sociogênese. Para ele psicogênese seria o desenvolvimento das estruturas da personalidade humana e as transformações de comportamentos. Dito de outra forma, a preocupação era compreender a passagem de coações externas para uma forma interna de controle. Ou seja, através do controle das emoções para a formação do superego. Neste processo, a escolha dos objetos de estudo de Elias chamou a atenção para a criação de um espaço não público para onde determinados comportamentos deveriam se retirar. A psicogênese privilegia o que foi chamado de microfenômenos (Oliveira Junior, 2003: 85).

    Desse modo, a psicogênese e a sociogênese estão diretamente ligadas, pois a sociogênese ocupa-se das mudanças sociais que de uma forma ou outra acabará influenciando e alterando as estruturas psicológicas dos indivíduos.

    Assim sendo, pode-se afirmar que a sociogênese está relacionada especificamente com o comportamento do indivíduo enquanto membro de uma sociedade, estando ele condicionado ao seguimento de regras, costumes ou hábitos atinentes a esta sociedade, caso contrário acaba por ser estigmatizado.

    A sociogênese apresenta-se como uma forma de contemplar “o desenvolvimento das estruturas sociais”. Para tanto, o processo de civilização é associado à criação do Estado moderno enquanto uma forma de compreensão das transformações sociais. A formação e consolidação do Estado são dados no sentido de uma monopolização de meios coercitivos para o controle, coordenação e integração do “conjunto de processos sociais”. Cabe lembrar que tanto a psicogênese quanto a sociogênese são vistas no longo prazo e num alto grau de interdependência entre ambas: “elas são aspectos interdependentes do mesmo desenvolvimento de longo prazo”. No entanto, o indivíduo em sua curta história passa através dos processos que a sociedade experimentou em sua longa duração (Oliveira Junior, 2003: 85).

    Diante da abordagem acima, entende-se que a psicogênese são todas as transformações individuais (principalmente psicológicas) oriundas do controle externo das emoções e dos sentimentos, ou ainda, decorrente do processo civilizador. No entanto, além de ser alterado pelo meio em que vive, o indivíduo acaba também por influenciar o meio social em que atua, modificando-o em longo prazo, o que se entende por sociogênese.

    Para um melhor entendimento desse controle das emoções Elias traz em sua obra considerações acerca do lazer que podem auxiliar na compreensão dessas categorias sociais. Primeiramente, cabe aqui esclarecer o que Elias e Dunning entendem como lazer. Para eles, o lazer corresponde a uma atividade de não trabalho, mas que ocupa apenas uma parte do tempo livre dos indivíduos, diferenciando, assim, o lazer do tempo livre: “Tempo livre, [...] é todo tempo liberto das ocupações de trabalho. Nas sociedades como as nossas só parte dele pode ser voltado às actividades de lazer” (Elias; Dunning, 1992: 107). Apresentam ainda, cinco esferas diferentes que englobam o tempo livre dos indivíduos, dentre os quais apenas na “categoria das actividades miméticas ou jogo” (Elias; Dunning, 1992: 110) é que incidem sobre atividades de lazer.

    Para melhor compreensão do que significa a categoria das atividades miméticas ou jogo, Elias e Dunning (192: 110), exemplificam atividades como

    [...] ida ao teatro ou a um concerto, às corridas ou ao cinema, à caçada, à pesca, jogar bridge, fazer montanhismo, apostar, dançar ou ver televisão. As actividades deste tipo são actividades de tempo livre que possuem o caracter de lazer, que se tome parte nelas como actor ou como espectador, desde que não participasse numa ocupação especializada através da qual se ganha a vida.

    Diante desses pontos tem-se que nem toda atividade de tempo livre é lazer, todavia, toda atividade de lazer está inserida no tempo livre.

    Interessa, ainda, os dizeres de Elias e Dunning acerca das restrições que os indivíduos sofrem, inclusive no decorrer de seu tempo livre. Porém, ao se referir ao lazer (mimético) eles apontam para uma atenuação dessas restrições, a qual levaria o indivíduo a uma excitação espontânea.

    [...] sob a forma de factos de lazer, em particular os da classe mimética, a nossa sociedade satisfaz a necessidade de experimentar em público a explosão de fortes emoções – um tipo de excitação que não perturba nem coloca em risco a relativa ordem da vida social, como sucede com as excitações do tipo sério (Elias; Dunning, 1992: 112).

    A estas excitações do tipo sério, a que o autor se refere, diz respeito a excitações que podem fugir do controle do indivíduo, podendo gerar atitudes agressivas ou não aceitas pela sociedade. Nesse contexto, Elias e Dunning mencionam a tensão como um fator relevante nas atividades de excitação mimética, ao se referir ao aumento de uma tensão, a qual pode aumentar o grau de excitação do indivíduo, auxiliando-o na formação de uma tensão agradável, a qual denomina como uma tensão positiva.

    Pode-ser verificar essas excitações e tensões presentes nos eventos de futebol, em que em atividade de lazer os torcedores acabam por diminuir suas restrições, agindo de forma diversa da vida fora daquele ambiente. Contudo, pode-se levantar a seguinte questão: Quais os fatores que levam os membros das Torcidas Organizadas a agirem de forma a ignorar totalmente as restrições impostas a eles pela sociedade e por ele mesmo (autocontrole)?

    Após ter a apropriação da compreensão de Elias acerca da sociogênese e psicogênese, para um melhor entendimento dos fatores geradores de violência, buscar-se-á uma melhor compreensão de poder, por entender ser esta categoria um dos pilares da violência em estádios de futebol.

2.2.     O significado do poder

    Como citado anteriormente, a violência gerada pelas Torcidas Organizadas, tem como uma de suas causas a busca pelo poder, dentro e fora dos estádios; diante deste fato faz-se necessário entender o significado dessa categoria social.

    Vários são os autores que estudaram o poder. Dentre eles, pode-se citar a importância de autores como Michel Foucault, Max Weber e Pierre Bourdieu. Em suas obras, vários tipos de poder podem surgir na sociedade, como o poder social, o poder econômico, o poder militar, o poder político, o poder simbólico, entre outros.

    No entanto, seguir-se á a compreensão de Norbert Elias, o qual conceitua poder como algo presente nas relações interdependentes. Para ele, as relações entre os indivíduos produzem dependências, e o grau de dependência define a quantidade de poder que um indivíduo possui em relação ao outro. Nesse contexto, quanto maior o nível de dependência, maior o grau de poder existente.

    [...] o poder é encarado por ELIAS como uma característica de todos os seres humanos. Este poder está vinculado à relação que o indivíduo estabelece com o outro. Enquanto houver um convívio, e este convívio representar valor, o indivíduo terá poder (Elias; Dunning, 1992: 89).

    Cabe aqui ressaltar a importância da formação do Estado, pois este é decisivo no processo civilizador, já que detém o controle dos meios de força e de impostos, e isso segundo Elias é determinante para a formação de uma força interna capaz de produzir desde formas refinadas de controle até o uso de força/violência para impor este controle, apresentando assim, como o sujeito social detentor de poder sobre os indivíduos.

2.3.     O controle da violência em Norbert Elias

    Entre as contribuições de Elias o estudo sobre o controle da violência, visto no Processo Civilizador, seria de grandiosa valia neste estudo; questão que o autor aponta como uma das principais preocupações da teoria do processo civilizador, um dos pilares da civilização.

    A preocupação de Elias com a categoria violência está evidenciada em suas obras, sendo este objeto de vários de seus estudos. No prefácio à obra A Busca da Excitação Eric Dunning, um dos principais colaboradores de Elias, ilustra bem o interesse de Elias sobre o tema violência.

    [...] Elias é um humanista que detesta a violência e que o seu interesse constante pelas relações entre violência e civilização não é só acadêmico ou intelectual. Para ser mais exato, surge pelo menos em parte, da sua experiência na Alemanha, na década de 1920 e inícios de 1930, do fato de sua mãe ter morrido em Auschwitz e do seu exílio, primeiro na França e mais tarde em Inglaterra. O que significa que o seu interesse sociológico pela violência – em todas as suas formas e manifestações – radica num profundo desejo de alargar o conhecimento sobre as suas raízes sociais e psicológicas, na esperança de que essa compreensão ajude as pessoas a conciliar suas vidas – os seus padrões de vida em comum – segundo formas que lhes permitam evitar toda espécie de tragédias violentas com que a humanidade tem sido particularmente afetada (Dunning, 1992: 20).

    Entretanto Elias, para elaborar seus estudos sobre o controle da violência, buscou subsídios em várias áreas de conhecimento, como na Filosofia, na Psicologia, na História e na Sociologia, utilizando-se de vários autores, sem, contudo, aderir a este ou àquele pensador. Norbert Elias tinha sua própria forma de pensar e se expressar.

    Refletindo a questão do controle da violência segundo a análise sociológica de Norbert Elias, verifica-se um modelo que privilegia a visão interdisciplinar dos processos sociais, além de valorizar a observação empírica dos fenômenos sociais sem se esquecer de situar os fatos numa perspectiva histórica, denominado pelo próprio autor como uma visão histórica de longa duração.

    Nesse contexto, pensando a violência numa perspectiva histórica de longa duração, pode-se dizer que a civilização procura cada vez mais controlar a violência física em função do interesse em pacificar as relações humanas. Todavia, esse movimento da civilização é um fenômeno não-planejado, casual, fruto de um processo que não se pode datar e muito menos prever um ponto final desse desenvolvimento das relações sociais, enfim, a teoria de Elias sugere que o processo civilizador é interminável.

    No decorrer dos tempos as sociedades foram construindo mecanismos de controle da violência. Sendo que é o Estado que detém o monopólio desse mecanismo de controle da violência (força física) e se serve dele tanto para promover a pacificação interna (manifestações de violência entre os membros do mesmo grupo), quanto para se proteger de outros Estados (que queiram invadir seu território).

    Esse monopólio da violência por parte do Estado é um mecanismo de controle da violência fundamental, pois garante a defesa dos indivíduos pertencentes ao grupo, assim como pacifica ou media as disputas internas. Este poder do Estado sobre os indivíduos gera um mecanismo de autocontrole das emoções e afetos humanos. Este autocontrole das emoções e afetos, segundo a percepção de Elias, é adquirido por meio do convívio social, da cultura e da educação. O autocontrole das emoções é o mecanismo interno, que age dentro do próprio indivíduo.

    Para melhor esclarecimento acerca deste autocontrole Brandão (2007) procura relacionar como o monopólio do uso da força física em uma sociedade pode provocar alterações nos padrões de comportamento dos indivíduos, que passam a ter que controlar as emoções.

    [...] a pacificação interna das sociedades faz com que seus indivíduos sejam “obrigados” a conviver pacificamente, transformando suas maneiras de agir. Ao terem essas maneiras observadas, e, também, ao observarem constantemente – pois estão numa situação de convívio social pacífico – o comportamento dos seus semelhantes está criando, não intencionalmente, o que Elias chama de controle social. A partir deste controle, o código de conduta, ou padrão de comportamento, das pessoas é alterado lentamente, aumentando a necessidade de vigiar o seu próprio comportamento e modelando sua conduta pelos controles mais elaborados e sutis. Essa necessidade em policiar o próprio comportamento é o controle das emoções, o qual se transforma, assumindo uma nova forma, em autocontrole, quando já está internalizado na pessoa (Brandão, 2007: 182-183).

    No extenso referencial de Elias, encontra-se, especialmente na obra A Sociedade de Corte, a importância de se controlar as emoções e afetos no interior de uma sociedade distinta, mais refinada, como a sociedade cortesã francesa à época de Luiz XIV. Nessa sociedade, de acordo com Elias, uma das regras de sobrevivência previa que os homens deviam “conhecer a fundo suas próprias paixões para poder, na verdade, encobri-las” (Elias, 1990: 143). Tendo como referência principal um manual de boas maneiras intitulado “De Civilitate Morum Puerilium”, escrito por Erasmo de Roterdam ainda no início do século XVI, Norbert Elias identifica um marco importante na história da humanidade em termos de controle dos comportamentos e emoções. Neste manual, há um conjunto de regras e normas que regulam o comportamento à mesa, o sono, a vida sexual etc., a fim de servir como um indicativo de refinamento e civilidade.

    No entanto, somente ao se olhar a história no aspecto de longa duração é que se consegue verificar a transformação do guerreiro, do indivíduo educado para a guerra em um indivíduo bem educado, preparado para a vida política, ou seja, um homem civilizado. Esta comparação é ilustrada por Elias: “Em comparação com épocas anteriores, a capacidade dos homens de dominarem as suas emoções relacionadas com a sua vivência da natureza, assim como a própria natureza, aumentou” (Elias, 1997: 21).

    Apesar desta evolução histórica em termos de civilidade, pode-se encontrar nas mais diversas sociedades ações ou atos de barbárie – e isso pode ser facilmente ilustrado ao se buscar o comportamento violento de alguns integrantes das Torcidas Organizadas. Como o próprio nome dado por Elias “Processo Civilizador”, a busca por essa civilização é um processo, e assim sendo, não se pode pensar que esse processo esteja acabado, pois conforme o próprio Elias trata-se de um processo sem fim, pois os indivíduos, membros das sociedades, vivem em constante processo de adaptação e mudança, sendo moldados de acordo com os preceitos e normas impostas pela sociedade (o que realça a teoria da psicogênese explicada no início deste capítulo). Analisando esses aspectos é que um dos principais exemplos desse fenômeno é o processo de transformação do nobre guerreiro em nobre cortesão. Brandão (2007: 183), conforme Elias, retrata:

    Enquanto na sociedade feudal o nível de controle das emoções era mais baixo, na sociedade de corte absolutista, esse controle se torna progressivamente mais rigoroso, visto que o seu nível de pacificação, quando comparado com o existente na sociedade de corte feudal, é maior. Ainda que muito baixo, o grau de pacificação interno da sociedade feudal permitiu um movimento inevitável, porém, lento e gradual, em direção a uma maior moderação das emoções.

    Cabe ressaltar que a violência e a civilização não se contrapõem. Pelo contrário, no processo de civilização encontra-se muita violência. Ao resgatar na história as disputas por territórios e espaços de poder (influência) promoveram diversas formas de violência, entretanto o que mais chama a atenção é a violência física, o combate buscando eliminação do “inimigo”. Isso pode ser exemplificado por meio das inúmeras tragédias, guerras, genocídios e atentados terroristas que marcaram o transcorrer da humanidade.

    Portanto, pode-se dizer que a violência é um fenômeno de manifestação da existência humana, presente em todos os períodos históricos, porém, de maneiras distintas. No entanto, consoante Elias, o Estado é o detentor da prerrogativa do controle do monopólio da violência física e da arrecadação de tributos, o que pode ser considerado como um importante indicador do desenvolvimento da organização dos grupos sociais. Só o representante do Estado, incumbido de promover a “ordem social”, tem o direito legal de usar a força física contra os indivíduos. O Estado, portanto, detém o monopólio da violência física e os indivíduos que não seguirem as disposições legais, ou seja, praticarem violência contra outros indivíduos serão punidos pelo próprio Estado.

    [...] o monopólio do uso da força física numa determinada sociedade, segundo Elias, provoca alterações nos padrões de comportamento dos indivíduos que compõe essa mesma sociedade, no que se refere ao controle das emoções (Brandão, 2007: 182).

    No contexto do controle da violência, pode-se expor que a sociedade e o indivíduo sofrem inúmeras influências, o que caracteriza a sociogênese e a psicogênese anteriormente analisadas. Assim sendo, Brandão (2007: 185) expõe, em sua obra, que o controle da violência pode se dar das seguintes maneiras:

    Como modificações da estrutura de personalidade dos indivíduos, o aumento no nível de controle dos impulsos individuais pode ser explicitado pelo controle exercido pelo Estado sobre o indivíduo, por suas leis, ou também pelo controle exercido por outros indivíduos dentro do convívio social, ou ainda, o controle exercido pelo próprio individuo sobre si mesmo, o chamado autocontrole.

    Diante do que foi visto sobre o controle da violência, e relacionando essa categoria com as atitudes de alguns membros das Torcidas Organizadas, questiona-se: Pode-se concluir que quando não se possui um Estado forte, que realmente detenha o monopólio do uso da força física, por meio, por exemplo, da Polícia Militar que é foco deste estudo, é que surgem indivíduos e/ou grupos (torcidas organizadas) que acabam por se utilizar da violência na busca pelo poder dentro e fora dos estádios de futebol? Além de alguns questionamentos que poderão auxiliar no entendimento que os policiais militares do Estado do Paraná possuem da violência ocasionada pelas torcidas organizadas de futebol, objetivo deste estudo: Os policiais militares possuem o discernimento para utilização do monopólio da violência? Sentem-se preparados para atuar como agentes estatais que atuam no controle desta violência?

    Compreendendo melhor os aspectos do controle da violência na teoria eliasiana, será levantada a seguir outra categoria da teoria deste autor que pode auxiliar na obtenção dos objetivos deste estudo. Tal categoria enfoca a relação dos estabelecidos e dos outsiders, relação esta na qual se procurará um aprofundamento no entendimento do comportamento violento das Torcidas Organizadas e se os policiais militares compreendem essa violência por este viés.

2.4.     Torcidas organizadas: estabelecidos ou outsiders?

    O desconforto causado na sociedade pelas atitudes violentas das Torcidas Organizadas de futebol é um fato que vem ocorrendo com relativa freqüência nos estádios paranaenses, principalmente no final da década de 90 e início do século XXI. Objeto de interesse nesta pesquisa, os conflitos entre torcedores são analisados em diversas situações, sob vários aspectos.

    Como anteriormente observado, as Torcidas Organizadas lutam pelo controle do poder. Poder este situado no local onde estão inseridas e esta luta é normalmente desenvolvida por meio da violência, verbal e física, contra seus oponentes, normalmente torcedores de equipes adversárias. Não obstante, pergunta-se: Como ocorre o processo que leva à geração de conflitos entre dois grupos, aparentemente semelhantes em suas características sociais gerais? Ou entre esses grupos e o Estado, representado pela Polícia Militar? Para compreender esse processo, além de suas aparentes causas superficiais, a leitura de Norbert Elias, em seu trabalho “Os Estabelecidos e os Outsiders”, pode amparar este ponto da pesquisa; isso por esta obra possuir um embasamento teórico que pode auxiliar na compreensão desse fenômeno.

    Sobre a obra “Os Estabelecidos e os Outsiders”, cabe ressaltar que Elias e Scotson investigam dois grupos de moradores de uma cidade, a qual recebeu o nome fictício de Winston Parva, que não possuem diferenças de nacionalidade, ascendência étnica ou cor da pele, nem tampouco de ocupação, renda ou nível educacional. O que difere os dois grupos é o tempo de residência no local, ou seja, um grupo encontra-se instalado na região há algumas gerações, enquanto que o outro é formado por recém-chegados; motivo suficiente para que o primeiro grupo não aceite o segundo. Esta configuração é também encontrada na relação entre as torcidas organizadas de clubes rivais.

    Apesar de algumas Torcidas Organizadas terem sido fundadas na segunda metade da década de 1970, passaram a se destacar a partir da década de 1990, por meio das suas organizações, e pela reconhecida presença em jogos de seus clubes. No entanto, em eventos envolvendo as principais equipes do futebol, a presença das torcidas passaram a caracterizar uma disputa pelo status de maior incentivadora de seus times.

    Apesar de torcerem por equipes distintas, a separação entre as torcidas e a busca pelo poder dentro e fora dos estádios sempre foi evidente. Tal fato é reconhecido quando se observa a disposição das torcidas nos estádios de seus clubes e suas condutas durante os jogos. As torcidas posicionam-se em locais pré-estabelecidos, uma afastada da outra. Salienta-se ainda que o local onde a Torcida Organizada da equipe mandante do jogo instala-se é claramente mais confortável e de melhor visibilidade com relação ao campo de jogo, do que o espaço onde a Torcida da equipe visitante aloca-se. Acontecimento semelhante é percebido na obra de Elias, quando o autor comenta sobre a área de Winston Parva onde residiam os outsiders:

    Os antigos residentes diziam que essa área não fora desenvolvida por Charles Wilson por ser pantanosa e infestada de ratos; e, como veremos, os “aldeões” continuaram a se referir a ela como “beco dos ratos”. Um entrevistado, membro do conselho municipal, lembrou-se de que os moradores ilustres da “aldeia” haviam protestado junto ao conselho contra o aproveitamento dessa área vizinha a suas terras (Elias; Scotson, 2000: 62).

    Percebe-se que a escolha de um bom espaço, tanto no Estádio, quanto em Winston Parva, caracteriza a detenção do poder e a discriminação a quem não pertence ao grupo estabelecido. Nesse contexto, torna-se natural a situação dos estabelecidos, de ocuparem os melhores lugares e não permitirem aos outsiders o mesmo direito.

    No entanto, a distância imposta entre as Torcidas Organizadas – e entre estas a Polícia Militar – não se limitam apenas ao espaço e ao convívio, havendo ainda, outras formas pelas quais os que se consideram estabelecidos mantêm os outsiders em seu lugar. No caso de Winston Parva, Elias cita entre as ações coercitivas a fofoca, xingamentos, a questão da anomia,6 e, sobretudo as formas de depreciação dos outsiders7. Nesse aspecto, pode-se citar a situação dos outsiders, que apesar de um grupo semelhante aos estabelecidos, são considerados por estes um grupo anômico, ou como retratado por Elias e Scotson, um grupo de sujos, imundos, que podem contaminar a porção boa dos bons humanos (os estabelecidos).

    Como exemplo de depreciação e xingamentos entre as Torcidas Organizadas pode-se citar os cânticos e músicas cantadas nos estádios de futebol, as quais possuem uma conotação de ofensa e provocação, com termos extremamente chulos.

    Um exemplo de música cantada pela torcida organizada Império Alviverde, retirada do cd de cânticos do Coritiba Foot Ball Club:

Aha, uhu

Atleticano vou comer seu [...]8

Aha, uhu

Atleticano vou comer seu [...]

Eu não sabia

Mais o que fazer

Mandei atleticano i pra casa se [...]

Aaaaaaa doutor eu não me engano

Filha da [...] é atleticano

Doutor eu não me engano

Filha da [...] é atleticano.

    Como exemplo de cântico ofensivo cantada pela torcida organizada Os Fanáticos, cântico ouvido e transcrito no jogo Atletiba, realizado no Estádio Joaquim Américo, em data de 29/06/2008:

Atirei o pau nos coxas
E mandei tomar no [...]
Coxarada filha da [...]
Chupa rola e da o [...]
Hey! Coxa! Vai tomar no [...]
A galera rubro-negra dá porrada bangu !!
A galera rubro-negra dá porrada bangu !!
Hey coxa vai toma no [...]
Furacão eooo! Atlético ôô!

    Talvez analisar atos de violência entre Torcidas Organizadas seja complicado, mesmo considerando que se está acostumado a presenciar brigas entre torcidas de times rivais. Todavia, esse caso deixa-nos traçar alguns paralelos com as escritas eliasianas. Em “Os Estabelecidos e os Outsiders”, Norbert Elias, ao descrever o cotidiano de Winston Parva, relata:

    Não havia diferenças de nacionalidade, ascendência étnica, “cor” ou “raça” entre os residentes das duas áreas, e eles tampouco diferiam quanto ao seu tipo de ocupação, sua renda e ser nível educacional – em suma, quanto a sua classe social. As duas eram áreas de trabalhadores. A única diferença entre elas era a que já foi mencionada: um grupo compunha-se de antigos residentes, instalados na região havia duas ou três gerações, e o outro era formado por recém-chegados (Elias; Scotson, 2000: 21).

    Restringindo-se ao interior dos estádios, as torcidas analisadas neste trabalho possuem entre si características semelhantes às existentes entre os grupos estudados por Elias. Os dois grupos são formados por jovens de mesmo nível sócio-econômico e intelectual, residentes basicamente em bairros de periferia. As diferenças entre os componentes dos grupos são desconsideráveis, porém entre os grupos, um parâmetro é diferenciador: o domínio do estádio do clube no qual a Torcida Organizada pertence. Esta diferença torna no Estádio Joaquim Américo9, Os Fanáticos o grupo estabelecido, que considera a torcida Império Alviverde como outsiders e no Estádio Major Antonio Couto Pereira,10 a Império Alviverde o grupo estabelecido, e que considera Os Fanáticos como outsiders.

    Em Winston Parva, como nas torcidas organizadas a exclusão e/ou a agressão se deve ao medo de que o grupo outsider venha a ter o domínio do poder, deixando os estabelecidos diminuídos em seu território. Essa relação, conforme Elias torna-se normal nestes grupos, ficando difícil acharem-se os culpados:

    Podemos ficar tentados em pôr a culpa pelas tensões entre os residentes antigos e novos no outro lado. Na verdade, no estado atual de nossas técnicas sociais, essas tensões eram o concomitante normal de um processo durante o qual dois grupos antes independentes tornam-se interdependentes. Se considerarmos a configuração resultante da recém-criada interdependência, na condição de vizinhos e membros de uma mesma comunidade, de grupos que eram estranhos entre si, poderemos ver como teria sido difícil evitar as tensões. [...] Em regra, tais comunidades temem que os novatos não se adaptem às suas normas e crenças; esperam que eles se submetam às suas formas de controle social e demonstrem, de modo geral, a disposição de “se enquadrar (Elias; Scotson, 2000: 64).

    O grupo estabelecido enxerga o outsider como alguém que vem a atrapalhar ou incomodar a ordem já estabelecida do local e que é incapaz de merecer os mesmos direitos e a consideração do primeiro. Este pensamento é reforçado pelo forte poder de coesão e controle exercido por um grupo estabelecido, que induz seus indivíduos a não abrirem espaço para a relação com pessoas que não façam parte desse grupo. Essa discriminação é resultado de uma cultura que é formada arbitrariamente e que responde aos interesses de poder de quem está no comando dos grupos. Dessa forma, mantém-se garantido o domínio das ações em determinado espaço de convivência.

    Assim, pode-se relacionar a torcida organizada da equipe mandante do jogo com a torcida adversária ou com a Polícia Militar, representante estatal, detentora do monopólio da violência, no sentido de a torcida organizada estar em seu território, ou seja, estão estabelecidos, enquanto a torcida adversária ou a Polícia Militar seriam para eles os outsiders, podendo então, questionar a legitimidade desta representante do monopólio da violência em agir no território dos estabelecidos.

    No entanto, outra maneira de ver essa relação seria observar a ação dos policiais militares em relação à violência propiciada pelos membros das Torcidas Organizadas. Pode-se verificar que a Polícia Militar, representante estatal e detentora do monopólio da violência, pode ser considerada como os estabelecidos e os torcedores violentos são vistos por eles como outsiders.

    Com a apropriação da teoria de Elias a seguir, será desenvolvida a pesquisa empírica do objeto deste estudo para a elaboração da discussão e análise dos dados com a teoria apresentada neste capítulo.

3.     Considerações finais

    Procuramos trazer à tona alguns pontos como: o entendimento do esporte e do futebol como objeto de estudo das ciências sociais; a necessidade de regras sociais e de comportamento no esporte, tanto para os atletas quanto para o público assistente; as características dos torcedores de futebol (hooligans) que se envolvem em atos de violência. Pontos estes tidos como primordiais ao entendimento do significado da violência, e seu estreito relacionamento com o esporte, mais especificamente com o futebol, isto por meio de um referencial teórico, o qual teve por base Norbert Elias. Autor no qual buscamos entendimento sobre alguns pontos primordiais para o entendimento da violência das torcidas organizadas de futebol, como conceito configuracional, a sociogênese e a psicogênese, o poder, o controle da violência e os outsiders.

    Falar em considerações finais, de certa forma, não corresponde a esta realidade, pois este assunto esta longe de um fim, pois ficou claro que para conclusão de nosso estudo teremos que aprofundar questões como a identidade social, através dos grupos, como estes se formam e como vêem os outros grupos, que teremos que verificar qual a percepção que os órgãos de segurança, no caso a Polícia Militar, têm desses grupos e das atitudes violentas que estes propiciam. Cabendo enaltecer Norbert Elias o qual aproximou-se dos esportes, vendo-o como um objeto de estudo das ciências sociais, procurando nos mostrar o quão é importante ver o esporte pelo aspecto sociológico, já que esta relacionado com a formação da sociedade.

    Ao observar o que Elias e Dunning nos trazem sobre a atitude dos hooligans, seus atos e costumes, podemos, facilmente, visualizá-los nas atitudes dos torcedores dos principais clubes de futebol do Brasil, como rituais em dias de jogos (reunião na sede das torcidas, deslocamento em grupo pelas vias publicas ao local do jogo, cânticos de hinos); atos de violência entre grupos rivais, com ocorrências de vias de fato, rixas, depredações e arremesso de projeteis.

    Estes fatos nos leva a inúmeras indagações como:

  • Se estas ocorrências proporcionadas por torcedores existiam na Inglaterra e foi controlada pelas autoridades, porque no Brasil estes acontecimentos são contínuos, e as autoridades, que detém o monopólio da violência, não conseguem minimizar esta problemática?

  • Quem se pode considerar como outsiders: as Torcidas Organizadas ou o Poder Estatal?

  • Os membros das Torcidas Organizadas e os representantes estatais possuem o conhecimento do limite do descontrole controlado a que se refere Elias?

  • Como diminuir a violência nos estádios de futebol se esta relaciona-se com os aspectos sociais da população?

Notas

  1. Este estudo faz parte de um trabalho de dissertação em construção a ser apresentado no Programa de Mestrado em Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Estadual de Ponta Grossa.

  2. Esta fase é apresentada na obra de QUIVY, R.; CAMPENHOUDT, L. V. Manual de investigação em ciências sociais. Lisboa: Gradiva, 1992.

  3. Grupo de torcedores da Inglaterra, conhecido mundialmente pela agressividade e violência nos espetáculos de futebol.

  4. A este respeito cf. ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,1993.

  5. BRANDÃO, Carlos da Fonseca (2007) define Estado, segundo Weber, como “uma relação de dominação de homens sobre homens, apoiada no meio da coação legitima”, a qual só subsiste quando “as pessoas dominadas têm que se submeter à autoridade invocada pelas que dominam”, ou seja, o Estado é “uma associação que pretende o monopólio do uso legitimo da violência”, e não pode ser definido de outra forma (WEBER, 1999 e 1974), in BRANDÃO, Carlos da Fonseca Os processos de civilização e o controle das emoções. Bauru, SP: Edusc, 2007. p. 180.

  6. Para Elias a anomia refere-se a um estado de ausência, de falta de regras e de ordem, de não estrutura; um declínio do comportamento social do indivíduo. Termo utilizado para estigmatizar os outsiders. Ver a respeito in ELIAS, N.; SCOTSON, J. L. Os Estabelecidos e os Outsiders: sociologia das relações de poder a partir de um pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000. p. 190-193.

  7. O termo Outsider foi utilizado para denominar um grupo de pessoas que não são aceitos por outro grupo de pessoas, os Estabelecidos, em um determinado local.

  8. Supressões feitas pelo autor.

  9. Estádio particular do Clube Atlético Paranaense, situado no bairro Água Verde, em Curitiba – PR.

  10. Estádio particular do Coritiba Futebol clube, situado no Bairro Alto da Glória, em Curitiba – PR.

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