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Interesses e eliminações: o concurso vestibular da 

Escola Superior de Educação Física de Florianópolis 

e a perspectiva de gênero

Intereses y exclusiones: el examen de ingreso a la Escuela Superior 

de Educación Física de Florianópolis y la perspectiva de género

 

Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina,

na Linha de Pesquisa Educação, História e Políticas

(Brasil)

Vanessa Bellani Lyra

va_lyra@yahoo.com.br

 

 

 

Resumo

          Inspirados no conceito de rito de instituição desenvolvido por Bourdieu (1998) apreendemos que o primeiro vestibular da Escola Superior de Educação Física de Florianópolis, realizado no ano de 1973, representou um limite arbitrário do qual, mais do que as exigências e o processo de sua passagem, nos é particularmente interessante seu entendimento como uma linha divisória, algo que finda e começa na convergência de um mesmo ponto. O que, de fato, buscamos analisar, foram os significados do que representou essa consagração das diferenças que carregaram em si o conjunto de “corpos instituídos” pela ESEF. Ainda que inevitavelmente diferentes pela própria natureza da condição humana, uma vez que investidos das pré-disposições exigidas para cruzar tal linha, os primeiros alunos parecem ter partido de uma situação de relativa igualdade de oportunidades, rumo à formação profissional. No decorrer do processo, apenas 50 candidatos seriam considerados aptos a adentrarem o curso e desfrutarem das possibilidades geradas pela formação oferecida. A dinâmica estabelecida determinava ainda que esse total de vagas fosse disponibilizado igualmente entre candidatos do sexo feminino e masculino, sob a principal justificativa da existência de modalidades esportivas desenvolvidas nas aulas, que não poderiam ser praticadas por ambos os sexos.
          Unitermos: Exame de seleção. Pré-disposições profissionais particulares. Distinções de gênero.

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 14 - Nº 131 - Abril de 2009

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    [...] para compreender como uma simples exigência de seleção profissional, imposta pela necessidade de escolher os mais aptos a ocupar um número limitado de postos especializados, pôde servir de pretexto - à religião tipicamente francesa - da classificação, é preciso situar a cultura escolar no universo social em que ela foi formada, isto é, nesse microcosmo protegido e fechado em si mesmo [...] (BOURDIEU, 1992, p. 159).

O corpo e o interesse por suas pré-disposições

    A temática dos exames de seleção suscita uma pluralidade de questões relativas à organização do sistema de ensino, sua lógica e finalidades, podendo ser estudada sob a ótica de diferentes apropriações teóricas. A complexidade que envolve esse campo de pesquisa foi alvo das reflexões de Bourdieu, já em 1970 em capítulo especial dentro de A Reprodução; sendo reiterada incisivamente em 1998, sob o título de “Os Ritos de Instituição”  1, inspirando, por sua vez, inúmeros outros estudos que o sucederam dos quais alguns deles, juntamente com os acima citados, conduzem as reflexões teóricas que compõem e norteiam as análises aqui desenvolvidas. Nesse sentido, a linha que possibilita tanto quanto consagra os destinos profissionais daqueles que adentraram os portões da Escola Superior de Educação Física de Florianópolis (ESEF) no ano de 1973 integralizando o ‘conjunto dos alunos’ é-nos particularmente interessante, sobretudo, no que diz respeito a seus aspectos e impactos sociais gerados a partir do poder de suas exigências e de suas promessas de um futuro profissional mediado pelas dimensões pedagógicas da ESEF.

    Presentes há tempos nos exércitos e nos conventos, os processos disciplinares são estudados por Foulcault (1987) numa tentativa de traçar uma “história correlativa da alma moderna e de um novo poder de julgar” (FOULCALT, 1987, p.23). Instrumento por excelência da disciplina2, o exame se define, segundo o autor como

    Um controle normalizante, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir. Estabelece sobre os indivíduos uma visibilidade através da qual eles são diferenciados e sancionados (FOULCAULT, 1987, p.154).

    Combinando as técnicas da hierarquia que vigia com as da sanção que normaliza (FOUCAULT, 1987, p. 154), o exame se constitui numa tecnologia de poder que, no narrar de Roxana Kreimer (2000) deve ser entendido como um mecanismo de fabricação de uma “subjetividade celular”, onde o indivíduo é “processado, corrigido, classificado, normalizado ou excluído” (KREIMER, 2000, p.7). Nesse sentido, Kreimer inspirada no ideário foulcaultiano, afirma a presença de elementos velados/explícitos que fazem do exame, em todos os dispositivos de disciplina, “um processo altamente ritualizado” (KREIMER, 2000, p. 7).

    Bourdieu (1998), por sua vez, ao lançar-se ao estudo dos elementos recorrentes aos rituais sociais entendidos como ritos de instituição, revela que o efeito principal causado pelo rito é justamente o que passa, na maioria das vezes, completamente despercebido: “o rito consagra a diferença, ele a institui [...] e instituir é consagrar, ou seja, sancionar e santificar um estado de coisas, uma ordem estabelecida” (BOURDIEU, 1998, p. 98-99). Sendo assim, no rastro do autor, entendemos que a investidura dessa diferença exercida por esse processo “quase mágico” que se esforça por atribuir propriedades de natureza social como se fossem propriedades de natureza natural, mostra sua outra face ao exigir/criar/ ratificar uma identidade particular pretendida ao conjunto de alunos selecionados no exame de 1973. Nessa reflexão, diferença e identidade são lados opostos - tanto quanto complementares - de uma mesma moeda.

    Sob a mira de olhares atentos e interessados, fomentados pelas mais diversas expectativas que encerravam a criação do curso, a escolha do conjunto de alunos da Escola, em oposição ao seu complemento, ou seja, o conjunto de todos os outros, constituía-se, desta forma, como peça chave do projeto de legitimação e de tomada de um espaço no campo ao qual o Curso Superior se propôs a conquistar. Sendo assim, o conjunto de alunos eleitos deveria legitimar ao mesmo tempo em que ser a expressão - nas formas, nos valores, nos objetivos e nas finalidades - da identidade que a Escola esforçava-se por construir e outorgar a si mesma. Fazendo-se conhecer, sublinhando sua raridade e fazendo-a existir enquanto diferença social, conhecida e reconhecida tanto por si quanto por seus pares, a ESEF selecionava seus alunos baseada em altos graus de exigência, sobretudo técnicas como veremos mais a frente, sob a recompensa do status social que de sua glória emanava.

    Animados por esse olhar, entendemos que analisar as exigências de entrada no curso não nos permite ficar alheios ao fato de que estamos abordando um dos acontecimentos mais significativos ocorridos no campo da formação de professores de Educação Física na capital catarinense: a chegada de um curso em nível superior. Ainda que as organizações das formas de seleção se aproximem sobremaneira daquelas já apresentadas pelos cursos de formação que há tempos vigoravam no campo para a entrada de seus candidatos; não somente dialogamos com o ineditismo da formação em nível superior como e, sobretudo, com o valor simbólico que a raridade desta formação agregava aos portadores do diploma a que essa dava ensejo. É nessa mesma direção que Bourdieu (1998) nos alerta sobre a eficácia simbólica dos ritos de instituição, ou seja, “o poder que lhes é próprio de agir sobre o real ao agir sobre a representação do real” (BOURDIEU, 1998, p. 99). Se por um lado, a investidura exerce uma transformação efetiva na pessoa consagrada, modificando, sobretudo, a representação que os demais agentes dela possuem; por outro, desestabiliza e transforma a representação que a pessoa faz de si mesma, bem como as ações e pensamentos aos quais ela própria se condiciona a adotar para se adequar a tal representação.

    A reflexão sobre essa faceta da formação em particular, originada intencionalmente ou não, no seio do exame de seleção é impulsionada pelos estudos de Goffmann3 (1975) ao considerar o uso do termo representação a “toda atividade de um indivíduo que se passa num período caracterizado por sua presença contínua diante de um grupo particular de observadores e que tem sobre estes alguma influência” (GOFFMANN, 1975, p.29). Sendo assim, seria conveniente, em alguma medida, avançarmos no ideário do autor e denominarmos de fachada os ideais, conceitos, formas de pensamento e habilidades corporais que precisaram ser evidenciados e enaltecidos pelos candidatos, sob o preço da possibilidade de sua classificação ou desclassificação ao grupo dos alunos eleitos. Com um funcionamento regular e diante da principal finalidade de definir a situação para aqueles que observam a representação do ator; a fachada é entendida, portanto, como “o equipamento expressivo de tipo padronizado intencional ou inconscientemente empregado pelo indivíduo durante sua representação” (GOFFMANN, 1975, p. 29).

    O Regimento Interno da ESEF, redigido já no ano de 1972, nos traz elementos que evidenciam os objetivos oficiais/ prescritos que pretendiam justificar a adoção do concurso vestibular para a seleção dos candidatos ao Curso Superior, bem como legitimar sua organização e funcionamento. Com o intuito aparentemente lógico e imerso em todos os tipos de neutralidades de “classificar os candidatos ao Curso de Graduação” (ESEF, Art. 30. Regimento Interno, 1972), o primeiro concurso vestibular da ESEF inicia suas atividades em 20 de março de 1973, sendo notícia de destaque nos principais jornais que circulavam na capital catarinense:

    Educação Física: UDESC dá início ao Vestibular: Um total de 161 estudantes está concorrendo as 50 vagas da Escola Superior de Educação Física da UDESC, cujos exames vestibulares foram iniciados ontem com a prova escrita de português. Houve apenas um caso de desistência. Hoje será realizada a prova de Conhecimentos Gerais - atualidades, História e Geografia do Brasil, Biologia, Física, História Natural e Química. (O ESTADO, 20/03/1973).

    Seguindo o rastro de muitos processos de acesso aos cursos de formação na área, não somente no Estado catarinense, mas, em cenário nacional de uma maneira ampla, o vestibular da ESEF dividia-se em duas partes distintas, opostas e ao mesmo tempo condicionadas. As provas teóricas, ou “intelectuais” como eram chamadas, foram as primeiras a serem realizadas e, segundo a opinião geral dos candidatos, não se constituíram em grandes obstáculos a serem suplantados, conforme já previa o Artigo 60 do Regimento Interno. De caráter classificatório e abrangendo os conhecimentos comuns às diversas configurações de educação referentes ao segundo grau e com o objetivo de “avaliar a formação recebida pelos candidatos e sua aptidão mental para os estudos superiores” (ESEF, Regimento Interno, Art. 60, 1973), tais provas teriam sido elaboradas de forma a não ultrapassar este nível de enredamento. Segundo esta mesma pesquisa de opinião, a prova de Português, cujas perguntas referiam-se ao texto “A saúde está nas pernas”, foi ainda considerada mais elevada em nível de complexidade que a prova de Conhecimentos Gerais (O Estado, 21/03/1973). Nossa reflexão é conduzida pela idéia de que ainda que esta primeira etapa faça parte integrante do arranjo burocrático que envolvia o processo do exame, sendo sua superação pré-requisito para o “sobreviver” no jogo, não estava, pois, em suas dimensões e significados, o centro tão simbólico quanto real do peso funcional da seleção. Nessa direção, tudo se passa como se o avançar do processo seletivo que conduzia aos poucos, a uma crescente em grau de dificuldade e especificidade, concorresse de tal forma a firmar tanto quanto afirmar sua identidade e seus mais importantes interesses.

    Aos candidatos que concluíram com êxito esta primeira etapa onde o “conhecimento intelectual” regia e reunia todas as atenções, iniciava-se a segunda fase do processo onde por sua vez, as exigências advindas das práticas esportivas dividiam a cena com o Exame Médico. Num clima de grande tensão que, de acordo com as análises de Foucault (1987) se constitui característica própria à natureza do exame ao nos remeter à sua lógica inaugural de deslocar o castigo infligido ao corpo do aluno ao castigo infligido em sua alma - os candidatos dirigiam-se a este segundo momento da seleção, imersos em receios e expectativas. A soberania desta fase sobre a precedente se mostrava evidente entre o grupo concorrente:

    A maioria [dos candidatos] acha que a verdadeira seleção começará hoje com o exame médico. Acreditam que nele muitos serão eliminados. Quanto às provas escritas, para a maioria não houve grandes problemas. A grande preocupação é com os testes práticos, principalmente a prova de 200 metros de natação (O ESTADO, 21/03/1973).

    Curiosamente não previstas no Regimento Interno, onde apenas poderíamos achar meros indícios de sua existência “a seleção de matérias e a modalidade de provas serão estabelecidas pelo Conselho Departamental” (ESEF, Regimento Interno, Art. 60, caput 1º, 1973), as “provas práticas” representavam o que parece ter se constituído na maior concentração de forças e interesses de todo o exame. Se antes de prosseguirmos cruzarmos, ainda que brevemente, pelos resultados gerais de cada prova em particular e do processo como um todo, encontramos um ponto de partida para alicerçar e alargar, em alguma medida, os rumos dessa nossa constatação.

    Em compasso com a opinião dos candidatos de que as provas intelectuais não constituíram elemento diferenciador no processo estava, pois, a proximidade das médias finais de cada grupo: se as mulheres finalizaram a prova de Português com uma média de 4,6 e a prova de Conhecimentos Gerais com 6,2; os homens as concluíram com uma média final de 4,7 e 6,04, respectivamente. No que tange os resultados das provas práticas, no entanto, duas considerações podem ser feitas. A primeira delas recai sobre as provas de Natação, Teste Desportivo e Atletismo, as quais ainda que bastante disputadas e consideradas difíceis, não apresentaram uma diferença muito significativa entre os resultados dos dois grupos. Nessa ordem, as mulheres concluíram as provas com uma média final de 7,09; 7,02 e 7,18; ao passo que os homens alcançaram respectivamente as médias 8,2; 7,89 e 7,11, caracterizando uma leve superioridade em seus êxitos em relação ao grupo feminino. Em contrapartida, a segunda consideração que nos é possível fazer é gerada a partir da análise dos resultados daquelas provas que se fizeram exclusivas aos grupos. A prova de Circuito, privilégio do grupo masculino, encerrou suas exigências com o melhor dos resultados possíveis: todos os candidatos alcançaram a nota 10,0 elevando consideravelmente a média geral dos homens. O mesmo não se deu, entretanto, com o seu equivalente feminino - o Teste Gimno-Rítmico - que, com poucas exceções, qualificou as candidatas em uma posição final cuja média ficou em torno de 7,2 (sete vírgula dois) pontos. Sendo assim, o grupo feminino classificava-se no exame com uma média geral de 6,45 (seis vírgula quarenta e cinco) pontos ao passo que o grupo masculino classificava-se com 7,36 (sete vírgula trinta e seis) pontos. Ao que parece, essa diferença que os separava privilegiando os homens governou a organização das matrículas no curso. Sobrepondo-se à neutralidade da ordem alfabética, as vinte e cinco primeiras matrículas foram destinadas ao grupo masculino e as vinte e cinco últimas e/ou seguintes, ao grupo feminino.

    De volta às provas práticas, temos que estas assumiam, assim como as primeiras, um caráter classificatório que além de produzir hierarquias entre os pares, instituía e demarcava distinções de gênero. Tais distinções se baseiam, numa primeira análise, na exigência legal contida no edital do concurso que previa o preenchimento de cinqüenta vagas no curso que deveriam ser ocupadas igualmente por candidatos de ambos os sexos. Essa configuração adotada pela organização da Escola foi alvo de muitos descontentamentos e protestos por parte dos candidatos que em grande medida sentiram-se prejudicados pela suposta “justiça formal” que envolvia o processo. Independentemente da soma de pontos obtida como resultado, o imperativo de entrarem na Escola o mesmo número de homens e mulheres se fazia categórico nas palavras do então diretor Érico Stratz Júnior:

    “Se não houvesse essa classificação seria criado um grande problema para a Escola na distribuição das aulas. Na Escola de Educação Física os alunos têm aulas práticas, onde são separados por sexo. Pois existem modalidades esportivas que não podem ser praticadas por ambos, como é o caso dos testes de força para os homens e os testes gimno-rítmicos para as mulheres” (O ESTADO, 21/03/1973).

    Se seguirmos em sua explicação, arriscamo-nos a ver na sutileza de suas entrelinhas algo que parecia operar como uma previsão. Se o espaço aos homens estava por certo, garantido e legitimado por si próprios, aquele destinado às mulheres deveria ao que se mostra estar protegido, resguardado e, sobretudo, assegurado:

    “[...] Se acontecesse de passar 45 alunos do sexo masculino, ficaríamos com apenas 5 do sexo feminino. Nessas condições, não nos seria possível dar as aulas pois o número ideal de alunos é de 20 a 25. Essa foi a única solução que achamos para equilibrar as aulas” (O ESTADO, 21/03/1973).

    É interessante o quanto sua fala nos instiga ao exercício de agregar outros ângulos de interpretação ao processo em análise. Quando pensamos numa situação como a descrita pelo Prof. Érico, certamente inviável e pouco produtiva em muitos sentidos educativos e, sobretudo, sociais, torna-se bastante coerente e justificada não só a medida de definir as vagas do curso por sexo, como também, a elaboração de provas distintas. Se considerássemos que nenhuma dessas determinações fizesse parte do processo, ou seja, se as provas práticas fossem baseadas nas modalidades esportivas que se faziam iguais e ao mesmo tempo, as cinqüenta vagas da Escola fossem indistintamente destinadas aos candidatos aprovados; é bastante provável que a grande maioria dos professores formados pela ESEF fosse homens, dadas as suas condições naturais de melhor resposta das valências físicas como, por exemplo, a força ou a explosão muscular, em relação às mulheres. Um confronto direto nesse caso, representaria a provável ausência de mulheres na Escola o que, certamente não iria ao encontro dos interesses e objetivos tanto institucionais quanto do próprio campo que se legitimava. Sendo assim, é possível considerarmos, em alguma medida, que a organização do exame de seleção da Escola proporcionou tanto quanto colaborou com o engendramento do campo da formação de professores de Educação Física no Estado catarinense, possibilitando a representatividade de ambos os sexos na esfera maior de formação. Desse modo, identidades profissionais diferenciadas e posteriormente, diferenciadoras estavam entre os principais interesses que envolviam o projeto da Escola.

Construindo identidades profissionais diferenciadas e diferenciadoras

    De acordo com Bourdieu (2005, p. 17), a divisão entre os sexos parece estar incorporada na ordem das coisas: ao mesmo tempo em que está presente no estado objetivado nas coisas e em todo o mundo social (na casa, nas ruas, nas instituições); está também presente no estado incorporado nos corpos e nos habitus dos agentes, operando como sistemas de esquemas de percepção, de pensamento e de ação. Nesse sentido, selecionar os homens e mulheres aptos a integralizar o conjunto de alunos da ESEF significava privilegiar características particulares inscritas em seus corpos, estas mesmas preexistentes ao exame ou num amplo sentido, existentes para além dele. Sublinhando certas diferenças e ofuscando certas semelhanças, o vestibular de 1973 se constituía, assim, na primeira instância prática da organização da Escola a se interessar e a se responsabilizar pelo forjar das identidades profissionais pretendidas. O trabalho de torná-los aptos, produtivos e ajustados – cada qual ao seu destino (LOURO, 2000, p.90) estava na dependência de uma seleção rigorosa e afinada com os objetivos institucionais. Nesse sentido, ao analisarmos o conteúdo das provas práticas que compunham o exame vestibular de 1973, torna-se possível apontarmos alguns indícios das características que deveriam ser trazidas pelos candidatos ante a linha divisória e que, num movimento duplo de adequação ou rejeição, poderiam significar a passagem ou não ao grupo instituído. Passemos então, a elas.

    Para que, nesse sentido, sua função própria de seleção e classificação se efetivasse diante do universo de candidatos, as provas práticas constituíram-se na instância certificadora, por excelência, dos méritos corporais pautados nas diferenças de gênero. Elaboradas a partir de conteúdos diferenciados, tais provas apresentavam-se aos dois grupos de candidatos com a seguinte configuração: as mulheres seriam submetidas aos testes de Natação (200m), Desportivo, Atletismo (corrida de 50 e 200m; salto em altura e salto em distância) e Gimno-Ritmico; ao passo que os homens, para além dos dois primeiros que permaneceram iguais, diferenciavam-se nos testes de Atletismo (corrida de 75 e 400m, salto em altura e salto em distância) e de Aptidão Física (Circuito). É interessante destacarmos que nesse momento, para além da realização das provas de Atletismo, Aptidão Física (circuito) e teste Gimno-Rítmico, a então Escola de Educação Física não possuía instalações próprias que comportassem a dimensão física das demais modalidades esportivas envolvidas no exame. Por esse motivo, a prova de Natação ocorrera na piscina da Escola de Aprendizes Marinheiros e os testes Desportivos, nos pátios do Instituto Estadual de Educação (O ESTADO, 21/03/1973).

    É nessa direção em que entendemos que os corpos femininos que se pretendiam alunos da ESEF deveriam apresentar-se ante a linha divisória com características que os colocavam em um espaço complexo, oscilando entre a força dos músculos e a leveza da alma. Da força necessária para o cumprimento das provas de Atletismo e Natação passava-se à doçura e à beleza da plasticidade exigida pelas provas rítmicas num movimento contínuo que afirma e nega ao mesmo tempo, características que há tempos foram remetidas a uma possível essência feminina. Para além da oposição de posições entre homens e mulheres, entendemos que a ESEF operava sob um princípio de masculinidade que se fazia presente em grande parte de suas dimensões inclusive no exame de seleção e que subordinava, em alguma medida, ambas as identidades profissionais que ela se esforçava por produzir. No entanto, esse vôo que as levava próximo aos corpos masculinos, permitido tanto quanto exigido às candidatas, encontrava seu porto seguro, seu repouso e suas certezas nas garantias emanadas pelos territórios seguros, marcados pelas exigências exclusivamente femininas do processo. Era, portanto, necessário apropriar-se desse universo de masculinidade com o corpo e a alma imersos em feminilidade.

    Aos homens, uma posição mais definida era posta em evidência. Diante de tantos testes que punham à prova sua força e aptidão físicas, não nos resta dúvidas de que seus corpos deveriam carregar marcas atléticas, capazes de superar tamanhas exigências de desempenho (performance) a que foram submetidos. Ser, sobretudo, apto aos esportes de uma maneira geral e, ao atletismo de modo particular, era condição primordial para se lograr êxito nesta etapa que se definia ao definir o que parecia ser o momento de maior peso do processo.

    Um tanto distante do que ocorria às mulheres, as exigências de entrada que a ESEF impunha aos homens expressavam tanto quanto ratificavam seu papel social: de acordo com os ditames da seleção, os corpos masculinos deveriam negar ou ofuscar qualquer traço de sensibilidade e/ou fraqueza que os aproximasse, em alguma medida, do universo feminino. Força física, vigor, explosão e resistência muscular eram características que, impostas aos corpos masculinos à porta de entrada da ESEF, para além de selecionar os mais aptos cumpria a função de legitimá-los em suas identidades “naturalmente” masculinas. Evidenciando-se pelo fato de que dispensa qualquer tipo de justificação (BOURDIEU, 2005, p.18), a ordem masculina que imperava objetivada nas diversas dimensões da Escola selecionava os candidatos ao Curso Superior, reconhecendo, legitimando e, sobretudo, instituindo diferenças e/ou identidades.

Notas

  1. “Os Ritos de Instituição” compõe o Capítulo 2 da obra “A economia das trocas lingüísticas: o que falar quer dizer”, escrita em 1998.

  2. Numa perspectiva foulcaultiana, disciplina corresponde “aos métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade” (FOULCAULT, 1987, p.118).

  3. A apropriação dos conceitos de representação e fachada desenvolvidos por Erwing Goffmann em sua obra Representações do eu na vida cotidiana, de 1975, foi feita com extrema cautela. Ainda que seu ideário se aproxime bastante ao da base teórica que sustenta a edificação de nossa pesquisa, alguns pontos substanciais de convergência entre elas nos fazem questionar seu uso nesse momento, ainda que o julguemos oportuno.

Fontes históricas e referências bibliográficas

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