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Da deficiência a eficiência: o portador de necessidades

especiais visto sob a luz da Psicologia Histórico-Cultural

De la deficiencia a la eficiencia: el portador de necesidades especiales 

visto bajo la mirada de la Psicología Histórico-Cultural

 

Mestre em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

Licenciado e Bacharel em Educação Física pela UFSCar

Professor efetivo de Educação Física da rede estadual de educação

do Estado de São Paulo, município de Araraquara

Gustavo Martins Piccolo

gupiccolo@yahoo.com.br

(Brasil)

 

 

 

Resumo

          O presente trabalho busca materializar um diálogo de possibilidades entre a Educação Física e a Psicologia Histórico-Cultural fundada por Vygotsky. Nele abordamos a concepção de Vygotsky sobre a defectologia, cuja estrutura potencializa a criação de mecanismos compensatórios no sentido da superação dialética da deficiência, além de destacar o espaço da Educação Física escolar, desde que mediados por objetivos libertários, como crucial para a prática de novas experimentações e apropriações culturais por parte dos portadores de necessidades especiais.

          Unitermos: Educação Física. Defectologia. Necessidades especiais.

 

Abstract

          This job aims to realize a dialogue between the possibilities and Physical Education and Historic-Cultural Psychology founded by Vygotsky. There approaching the concept of Vygotsky on defectologia, whose structure enhances the creation of compensatory mechanisms to overcome the dialectics of disability, in addition to highlight the area of Physical Education School, where mediated by libertarian goals wich as crucial to the practice of new experimentations and cultural appropriations by individuals with special needs.

          Keywords: Physical Education. Defectologia. Special needs.

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 13 - Nº 130 - Marzo de 2009

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Introdução

    Desde o advento da primeira Revolução Industrial inglesa e da Revolução Francesa termos como igualdade, oportunidade, fraternidade, liberdade, solidariedade, etc., passaram a se corporificar como elementos constituintes das mais diversas relações sociais cotidianas. Neste espaço, os portadores de necessidades especiais, antes vistos como criaturas malignas, indesejáveis ou dignas de caridade (ROSADAS, 1984) dentre outras imputações, também conquistaram um importante e significativo espaço no que se refere ao repensar sobre o próprio conceito de deficiência.

    Nesta conjuntura, o corpus social, alavancado por pressões políticas, sociais, ideológicas e culturais, forçadamente se viu obrigado a pensar em um projeto de inclusão para àqueles historicamente destituídos de direitos e deveres, dentre os quais se inserem os portadores de necessidades especiais. Seguindo este movimento ascendente se constroem as primeiras escolas dedicadas ao trabalho pedagógico da deficiência e, indo além, estabelecendo a obrigatoriedade de as escolas regulares aceitarem as crianças portadoras de necessidades especiais.

    A configuração deste novo espaço social repercutiu sobre a forma de inserção e das mais diversas relações sociais estabelecidas por todos os sujeitos do processo educativo sistematizado, dentre os quais se incluem o próprio currículo escolar considerado latu sensu, os diretores, professores, alunos e demais funcionários da escola. Logo, por mais que inicialmente a inclusão dos portadores de necessidades especiais nas escolas tenha se vestido com um aparato mais formal e legislativo do que prático, o simples pensar sobre a diferença, processo forjado pelo novo contexto histórico, já estabelece interessantes apontamentos para a compreensão mais geral do próprio ser humano em questão.

    Isto posto, este artigo pretende problematizar o entendimento e as possibilidades que a Educação Física, como componente curricular multidisciplinar, pode proporcionar aos alunos e alunas com necessidades educativas especiais olhados sob uma perspectiva da Psicologia Histórico cultural e ancorados nos pressupostos erigidos pelo materialismo histórico. Antes disso, passemos a dissertar brevemente sobre a própria constituição do ser humano.

Os fundamentos do materialismo histórico

    O pressuposto elementar de qualquer teoria que se intitule materialista, tal qual a Psicologia Histórico-Cultural, reside na consideração de que tudo pode ser explicado em termos da matéria. O homem é composto pela matéria, seja uma matéria de relações sociais, comunicativas, laboriosas, naturais. Sendo assim, para Engels (1976), a matéria é universal, existindo no tempo e no espaço e, sendo determinado por um complexo de múltiplas relações que está em constante movimento. De acordo com Politzer (s/d), é na apreensão deste movimento que se deposita o caráter revolucionário de grande parte das ações e atividades humanas, cabendo a nós, na medida em que adquirimos a propriedade tanto de se acomodar quanto de transformar o universo, direcionarmos teleologicamente os caminhos que queremos seguir.

    Para Engels (1976), a concepção materialista dialética se apóia essencialmente na idéia de que tudo está em movimento, inclusive o repouso é visto como um estado não de inércia, mas, sim, de transformações cujo balanço tende para o equilíbrio. Ainda em Engels (1976), foram três os grandes descobrimentos na ciência moderna que permitiram a construção desta concepção filosófica, política e social, quais sejam: a) o prenunciar teoria celular e dos átomos, b) o princípio da transformação da energia e, c) o mais importante sob um aspecto organizativo e estrutural, o advento da teoria evolucionista de Darwin, que para Engels (1976), longe de se remeter a uma linha evolutiva e linear, estava carregada de movimentos contraditórios, dialéticos e transformativos. Apenas a partir de então, pôde-se perceber que a natureza física se move em constantes caminhos progressivos e involutivos, o que serviu de base para a justificação teórica da epistemologia dialética.

    Por conseguinte, a dialética, enquanto ciência de caráter geral e universal, concebe toda a história natural e humana como estando em constante modificação/transformação, seja pelas mãos humanas, ou por forças e acontecimentos naturais.

    Um dos pólos constituintes do pensamento dialético reside na explicação dos fenômenos humanos a partir de suas contradições imanentes e relações inter-conectivas. Por isso, para Lênin (1979), em qualquer fenômeno existem tendências contraditórias e antagônicas que apesar de aparentemente se excluírem, quando consideradas em um complexo, se manifestam sob uma forma essencialmente dialógica. Neste ínterim é que se devem situar as análises sociológicas. Vygotsky (1991; 1993) exemplifica esta assertiva quando demonstra o comportamento das moléculas de oxigênio e hidrogênio em separado como potencializadores do fogo, já quando juntas, transformadas em água, podem ser utilizadas para seu abrandamento.

    No materialismo histórico e dialético, que não devem ser encarados como sinônimos, a destruição do velho deve sempre corresponder ao surgimento do novo, ou seja, a negação de sua negação, no qual o novo supera por um processo de incorporação dialética o velho, tornando-se mais complexo e abrangente, cujo desenvolvimento transformará está tese em uma nova síntese e antítese.

    A negação é o movimento natural do que tende a se transformar, logo, é inevitável para o desenvolvimento humano. Aliás, se olharmos para nossa história com um viés um tanto quanto antropológico, perceberemos que o surgimento do próprio homem corresponde a uma negação e inserção mais ampla na natureza da qual se criou. Como negação simultaneamente adjudicada pelo enraizamento ao solo da história o homem se desenvolveu a partir das relações que estabeleceu com outros homens, por isso, para Marx (1987), grosso modo, podemos considerar o homem como síntese de suas relações sociais.

    É deste pressuposto que parte Vygotsky (1995) ao construir a arquitetura da Psicologia Histórico-Cultural, destacando a importância assumida pela sociedade e cultura na formação e transformação do gênero humano. Assim, de acordo com o referido autor (1987), o homem não apenas se transforma quando modifica teleologicamente a natureza, mas também quando participa e interfere no conjunto das relações sociais da qual faz parte.

    Em consonância a estes pressupostos, Vygotsky (1995) critica toda tentativa de atomização da ciência em campos opostos, partindo da gênese dialética do movimento entre o social e o natural. Destarte, natureza e sociedade não são vistas pelo autor como estando em estado de oposição formal, sendo que o homem deve ser visto como composto por ambos os fatores, tanto sociais, como naturais, sem hierarquização de um sobre outro, todavia, Vygotsky (1995) atribui um papel determinante aos fatores sociais e culturais se comparados aos estabelecidos pelas leis da natureza. Nisto reside à unidade dialética do homem, a qual se expressa também em termos da linguagem e do pensamento, da aprendizagem e do desenvolvimento e da zona de desenvolvimento atual e proximal.

    Para Vygotsky (1987), o ser humano, como totalidade de relações sociais, necessita se apropriar das conquistas historicamente engendradas pelos seus antepassados para que possa se humanizar, sendo esta a verdadeira herança decisiva da qual o homem precisa se apropriar. Logo, não é a herança biológica o principal determinante na constituição do humano, ela é fator importante, mas não preponderante, uma vez que a ausência de alguns de seus componentes podem, inclusive, ser compensados por novas conexões sociais.

    Por isso, de acordo com Vygotsky (1987), o ambiente no qual vivemos se configura como fator crucial para o desenvolvimento e evolução do gênero humano. Quando este ambiente não é propício ao desenvolvimento de todos, devemos transformá-lo a fim de possibilitar que todos desenvolvam suas potencialidades em nível máximo. Destarte, nosso desenvolvimento, antes de obedecer a heranças biológicas, é superposto por forças sociais e culturais.

    Em vista disto, apesar de toda complexidade cerebral humana, são nas suas interconexões externo-sociais que o homem se determina. Aliás, é digno de nota que para Luria (1987), as relações sociais são responsáveis por neo-formações psíquicas sem que seja necessária a formação de novos órgãos biológicos, estando dinamicamente ancoradas em um complexo formativo do qual a vida coletiva é seu pressuposto basilar. O homem só é homem em relação a outros diz Vygotsky (1993). Em virtude deste elemento, para Walon (1986), o ser humano é geneticamente um ser social.

    Em contraposição a pedagogia naturalista que afirma a invariabilidade da natureza de criança, Vygotsky (1987) afirma que, devido à prevalência do fator sócio-cultural, os homens não possuem uma identidade fixa, pré-determinada ou acabada, já que a ontogênese relaciona dialeticamente a maturação biológica e os fatores sociais do desenvolvimento, sendo que a característica marcante de nossa arquitetura consiste no fato de formarmo-nos a partir da apropriação do que foi historicamente acumulado pela humanidade.

    Isto posto, para Vygotsky (1995) a mais importante e fundamental lei que explica a origem gênica do homem e seu processo de diferenciação a qualquer outro animal já conhecido consiste no fato de que todas nossas principais funções psíquicas não estarem pré-determinadas desde nosso nascimento, posto se construírem coletivamente através de um processo de mediação geracional. Assim, nossa história de desenvolvimento nada mais é do que a história da apropriação, objetivação e internalização destes conhecimentos, cujo processo caracteriza aquilo que Vygotsky (1993, p.109) define como lei geral/genética do desenvolvimento humano, qual seja: “cualquier función psicológica superior en el proceso del desarrollo infantil se manifiesta dos veces, en primer lugar como función de la conducta colectiva, como organización de la colaboración del niño con las personas que lo rodean, como esfera interpersonal; luego despúes, como una función individual de la conducta, intrapesoal, como una capacidad interior de la actividad del proceso psicológico en el sentido estricto y exacto de esta palabra”.

    Justamente devido a esta característica, Vygotsky (1995) destaca que o ser humano, em coesão ao princípio de seu desenvolvimento geral, se aperfeiçoa devido à evolução de um complexo de conceitos inter-relacionais: 

  1. o desenvolvimento natural possibilitado pela maturação biológica e, 

  2. o desenvolvimento artificial, garantido pelos processo educativos aos quais estamos submetidos. 

    Isto posto, “se puede definir la educación como el desarrollo artificial del niño. La educación no se limita únicamente al hecho de ejercer una influencia en los procesos del desarrollo, ya que reestructura de modo fundamental todas las funciones del comportamiento” (VYGOTSKY, 1993, p.107). Coerentemente, a educação, seja sistemática ou assistemática, deve ser incentivada e multiplicada em uma gama de elementos que possibilitem aos mais diversos seres humanos desenvolverem suas potencialidades e talentos, explorando, por conseguinte, de maneira enriquecedora o ambiente em que se insere. Colocado estes elementos sobre a humanização em termos gerais, passemos a olhar a questão cultural que envolve os processos educativos das crianças portadoras de necessidades especiais.

A deficiência para Vygotsky

    Antes de tecermos os primeiros apontamentos sobre as considerações realizadas por Vygotsky (1995) acerca das crianças portadoras de necessidades especiais, é importante ressaltarmos que as terminologias (defeito, defectologia, débeis, retardados) utilizadas pelo referido autor pode, à primeira vista, parecer um tanto quanto pejorativo e estereotipada em relação a estas pessoas, todavia, não podemos nos esquecer do contexto histórico que influenciava este autor e dos objetivos libertários e humanizadores tecidos sobre a edificação de cada um destes termos em particular.

    Passado quase um século da morte de Vygotsky, este pensador continua envolto por grandes mistérios que se revelam a cada dia frutíferos no que diz respeito ao entendimento dos múltiplos processos constitutivos dos seres humanos. Sua inserção na Psicologia abarcou temas relacionados a dezenas de áreas afins, tais como a Medicina, a Pedagogia, a Sociologia, a Educação, a Antropologia, dentre outras, por isso, Riviere (1998), certamente um dos intérpretes mais fiéis a Vygotsky, o chamou de Mozart da Psicologia.

    Em meados do primeiro cinqüentenário do século XX, Vygotsky (1995) deu início aos seus estudos sobre as anomalias congênitas que afetavam os processos de socialização das crianças em seu entorno, cujo campo foi por ele denominado de defectologia. O objetivo do referido autor ao realizar estes estudos consistia em demonstrar como a sociedade e a cultura poderia criar ferramentas e instrumentos que possibilitassem aos portadores de necessidades especiais superarem as dificuldades em seu processo de inserção social, cuja estrutura se encontra fincadas em padrões de normalidade e homogeneidade.

    Para isso, elucubrou um alicerce teórico que distinguia o desenvolvimento humano a partir de duas linhas diferenciadoras: 1) a linha biológica, coordenada pelos mecanismos de seleção natural e herança genética e; 2) a linha histórica, desenhada pelos processos sociais e culturais no qual cada sujeito está envolvido nas esferas cotidianas não cotidianas. Para Vygotsky (1995), todo o desenvolvimento do ser humano resulta da união dialética e contraditória entre estes pólos, aparentemente opostos, que se expressam em relações de complementaridade.

    Partindo do princípio de que os seres humanos se desenvolvem mediados por estas duas linhas formativas, Vygotsky (1995) tece sua consideração sobre as deficiências que acometem os seres humanos como sendo de dois tipos: a) deficiência primária, a qual é ocasionada pela má formação ou disfunção de algum caractere biológico e/ou hereditário e; b) deficiência secundária, derivada do isolamento das relações sociais e culturais características do entorno em que cada sujeito se insere.

    Grosso modo, para Vygotsky (1995), a deficiência primária compreende lesões orgânicas como déficit intelectual, disfunções parietais, físicas, cromossômicas, etc., enquanto a deficiência secundária tem como característica o não enraizamento ao contexto externo. Ainda em Vygotsky (1995), quanto à deficiência primária pouco a educação, a pedagogia e até mesmo a psicologia podem fazer, cabendo intervenções fundamentalmente no campo da medicina, contudo, no que se refere a deficiência secundária em muito a sociedade e o sistema educacional contribuem para introduzir criativamente os portadores de necessidades especiais na cultura da qual fazer parte, e indo mais além, criar um mecanismo de supercompensação da deficiência, minimizando os deletérios efeitos provocados organicamente.

    Como Vygotsky (1987) enfatiza que no desenvolvimento humano o social se sobrepõe sobre o biológico, nota-se que este autor atribui grandes potencialidades aos indivíduos portadores de necessidades especiais, desde que as condições materiais lhes ofereçam a possibilidade de se apropriarem do patrimônio sócio-cultural acumulado pelas quase duzentas gerações humanas que habitaram este solo, antes de sagrado, profundamente histórico. Sendo assim, para Vygotsky (1995) a falta de relações sociais se constitui como um problema superior em termos qualitativos a própria deficiência orgânica e biológica. Logo, o grande problema do atraso cognitivo, motor e psíquico dos portadores de necessidades especiais se deve no seu entender a uma ausência de educação, considerada em termos amplos, libertária, crítica, democrática e efetivamente humanizadora. É assim que uma deficiência primária se transforma também em deficiência secundária, que a lesão cerebral se converte em deficiência mental e que a cegueira se transforma em uma total perda de visão de qualquer aspecto da realidade.

    Devido a estes aspectos, consideramos que Vygotsky (1995) explica analiticamente a deficiência em termos positivos, pois além de não ficar preso em seus limites/impossibilidades, destaca as inúmeras potencialidades que podem surgir mediante a criação de um ambiente rico e acolhedor. Coerentemente, uma criança com alguma lesão orgânica não é menos desenvolvida do que outra criança tida por normal, mas, sim, uma criança que se desenvolve diferentemente, sob outros olhares, desafios e perspectivas.

    O entendimento dialético de Vygotsky (1995) sobre a ontogênese faz com que o autor critique duramente aquilo que ele considera como concepção aritmética da soma dos defeitos, as quais não vêem caminhos, mas apenas encruzilhadas para o portador de necessidade especial. Para Vygotsky (1995) essa concepção, estritamente quantitativa, se caracteriza pela preocupação apenas com aquilo com que a criança não é capaz de fazer, pelas suas inabilidades, defeitos, pela falta, por sua negação em relação a um padrão estereotipado e cortejado por uma normalidade estabelecida hierarquicamente, em geral, essencialmente homogênea e pouco adaptada aos portadores de necessidades especiais.

    Ledo e duplo engano cometido pelos alvissareiros monocromáticos, já que todos seus cálculos utilizados para delimitar e estereotipar a diferença sequer conseguiram compreender minimamente a gênese do desenvolvimento humano sob um olhar dialético, olhar este que retrata os portadores de necessidades especiais como se desenvolvendo tal como os indivíduos que não apresentam tal deficiência. Assim, o que de fato existe não é uma limitação dos portadores de necessidades especiais quanto à apropriação dos constructos histórico-culturais, mas uma peculiaridade orgânica que obriga este processo a se realizar por caminhos diversos. Utilizando uma analogia sobre o desenvolvimento da criança normal e da portadora de necessidades especiais podemos destacar que enquanto a primeira trilha seu caminho de desenvolvimento em uma linha reta com alguns obstáculos, a segunda deve perfazer um caminho sinuoso, repleto de barreiras e desafios a serem vencidos, porém, podem chegar ao mesmo ponto culminante que a primeira.

    É exatamente no desvendar deste caminho que deve se inserir a atuação dos professores quanto aos alunos e alunas portadores de necessidades especiais, mediando seu desenvolvimento através da criação de novas alternativas para superar um mesmo obstáculo. Para isso, entretanto, é necessário que os professores minimamente compreendam os sujeitos com os quais estão trabalhando e tenham como objetivo não a acomodação perante a mesmice da realidade homogênea e pedante, mas, a vontade intrínseca de fazer diferente, ser diferente, transformar a normalidade em diferença.

    Sendo assim, como bem ressalta Vygotsky (1995) se é fato que o defeito traz algum tipo de limitação ao ser humano, também o é que ele estimula maneiras de se superar estas limitações e alcançar tal desenvolvimento de outra forma. Por isso, para Vygotsky (1995, p. 32), o defeito origina aquilo que podemos chamar de estímulos para sua compensação. Em suas palavras:

    A educação das crianças com diferentes defeitos deve basear-se no fato de que simultaneamente com o defeito estão dadas também as tendências psicológicas de uma direção oposta; estão dadas as possibilidades de compensação para vencer o defeito e de que precisamente essas possibilidades se apresentam em primeiro plano no desenvolvimento de crianças e devem ser incluídas no processo educativo como sua força motriz.

    Hodiernamente vários são os mecanismos de compensação que conhecemos em decorrência das deficiências orgânicas apresentadas pelos portadores de necessidades especiais, tais como o sistema de linguagem de LIBBRAS adaptado aos surdos, o método BRAILLE para os cegos, as diversas próteses construídas para aqueles cujos membros perderam sua funcionalidade, dentre outros. Destarte, apesar de a cultura social e sua parafernália técnica e tecnológica estar constituída teleologicamente para a estabilidade de certo tipo biológico considerado normal, isto não impede, em hipótese alguma, que outros mecanismos sejam criados para as pessoas que não se encaixam nesta monocultural noção de normalidade, do belo, bom e valoroso. Logo, apesar de esta organização social excludente atravancar o desenvolvimento dos portadores de necessidades especiais, ela gera novos desafios a serem vencidos e transformados em potencialidades construtivas.

    Isto posto, apesar de repetitivo, é fundamental reiterarmos novamente que o principal apontamento de Vygotsky (1995) no que tange ao desenvolvimento das pessoas que apresentam necessidades especiais situa-se no fato de o defeito orgânico gerar um mecanismo de compensação e possibilidades que permite sua superação mediante novas formas de inserção na realidade e apropriação/objetivação da cultura da qual fazem parte. Essa compensação é justificada pela plasticidade do cérebro que permite a criação de neoformações psíquicas e pelo caráter essencialmente social e coletivo do ser humano. Tal como ressalta Vygotsky (1995), os processos de compensação não são governados rumo a uma suposta cura ou complementação do defeito, mas, sim, a sua superação através de novas conexões inter-funcionais, ou seja, a supressão das dificuldades originadas pelo defeito.

    Todavia, é importante ressaltar que o defeito, de acordo com Vygotsky (1995) pode-se dirigir tanto para a compensação de suas dificuldades, como para o aprofundamento destas, denominada pelo autor de luxação social. Logo, não podemos esquecer que o defeito também pode causar apatia, medo de se relacionar com as dificuldades e um processo de reclusão perante a sociedade e cultura externa, agravando sobremaneira o defeito orgânico, o qual passa também a ser social. Portanto, quando falamos no desenvolvimento das pessoas portadoras de necessidades especiais se faz de fundamental importância sabermos que seu defeito orgânico não pode levá-la, sob quaisquer motivos, a não apropriação do patrimônio cultural historicamente acumulado pelo gênero humano, principal qualidade de nossa espécie, aliás, é este processo que adjetiva de humano o substantivo ser.

    Por conseguinte, podemos considerar a esfera da cultura como o principal elemento que engendra o fenômeno caracterizado como compensação ou supercompensação. Nas palavras de Vygotsky (1995, p.153) “onde é impossível o desenvolvimento orgânico, ali está aberta de forma ilimitada a via do desenvolvimento cultural.

    Ao criar o instituto de defectologia, Vygotsky (1995) não procurava a padronização e identificação dos defeitos orgânicos, posto que seu objetivo concreto residisse no estudo dos mais diversos processos de desenvolvimento infantil. A meta do autor bielo-russo estava, pois, em demonstrar que a transformação do meio social modifica as próprias leis de desenvolvimento, sejam estas filogenéticas ou ontogênicas. Apenas coletivamente o portador e a portadora de necessidades especiais podem superar suas dificuldades e desenvolverem formas altamente organizadas de relações sócio-comunicativas. Este fato nos permite introduzir outro conceito basilar na epistemologia de Vygotsky (1993), qual seja: o de zona de desenvolvimento proximal, cuja estrutura gnosiológica destaca a importância de um mediador mais experiente para a realização de atividades complexas vistas sob determinado prisma individual. Em virtude disso, quando age de maneira coletiva e cooperativa, os portadores de necessidades especiais, assim como quaisquer seres humanos, podem alcançar um nível de apropriação cultural qualitativamente superior do que se a relação entre sujeito e objeto fosse realizada de maneira direta e imediata.

    Ao enfatizar o papel da cooperação e da coletividade com toda a sociedade como fatores fundamentais na superação dialética da deficiência, Vygotsky (1995) se contrapôs frontalmente aos modelos educacionais baseado na segregação dos portadores de necessidades especiais em escolas específicas à suas deficiências, pois considerava este processo como uma forma de deixar estas pessoas a margem da cultura da qual se constituíam, impedindo, portanto, qualquer tentativa de sua transformação. Em vista disso, Vygotsky (1995) se recusava a denominar a educação escolar para portadores de necessidades especiais sob a alcunha de educação especial, pois para ele estas crianças deveriam ser educadas tal como quaisquer outras, cujo objetivo final seria a apropriação da cultura produzida pela humanidade, ainda que efetivada por caminhos diferentes, os quais cabem as escolas e professores instituírem conjuntamente aos alunos e alunas.

    A cultura, para Vygotsky (1987), é o principal palco no qual se constroem as mais diversas atividades, ações e representações humanas. É nela que se interpretam e reinterpretam o significado de determinado fenômeno social, assim como, em seu espaço se criam as possibilidades para o humano alcançar seu caráter libertário e omnilateral, conseqüentemente, não pode estar aparte de qualquer sujeito, seja ele pobre, rico, negro, branco, amarelo ou portador de alguma necessidade especial. Tal como Gramsci (1981) destaca, é preciso compreender que quando nos inserimos em determinada cultura além de nos apropriarmos de alguns de seus constructos, neste contato reelaboramos nosso próprio entendimento de ser humano e, portanto, passamos a traçar um caminho completamente diferente em nosso desenvolvimento.

    Seguindo este esteio teórico, atualmente notamos uma grande difusão de movimentos favoráveis ao princípio da inclusão dos portadores de necessidades especiais no ensino regular. O referido princípio aparece pela primeira vez na literatura por volta de 1950 (SASSAKI, 1997), estabelecendo uma crítica radical aos modelos escolares pautados pela segregação dos portadores de necessidades especiais em instituições específicas, fato que claramente se refletia na adoção de uma nova metodologia de ensino no trabalho com as diferenças. Ainda sobre o processo de inclusão, Sassaki (1997), o classifica como um mecanismo dinâmico pelo qual a sociedade se transforma para poder incluir, em seus sistemas sociais gerais, pessoas com necessidades especiais e, simultaneamente, estas se prepararem para assumir seus papéis na sociedade. A inclusão social constitui, então, um processo bilateral no qual as pessoas, ainda excluídas, e a sociedade buscam, em parceria, equacionar problemas, decidir sobre soluções e efetivar a equiparação de oportunidades para todos.

    Destarte, ficava evidente que a escola e suas mais diversas disciplinas deveriam se transformar para ofertar um ensino de qualidade a estes novos integrantes do quadro escolar, que não mais poderiam ficar segregados ou excluídos de quaisquer práticas sociais sob a justificativa de incapacidade ou impossibilidade. Por conseguinte, por inclusão entendemos não apenas o ato dos portadores de necessidades especiais freqüentarem os mesmos locais dos alunos tidos por normais, mas, sim, a efetiva participação destes nas tarefas realizada pelo corpo coletivo discente, cuja materialização necessita de uma conceituação da diferença apresentada por cada sujeito em particular, vista a partir de então não mais como esquisitice, mas, como um componente enriquecedor do desenvolvimento da humanidade, a qual favorece a apropriação de novos saberes, idéias, movimentos corporais e fundamenta a arquitetura de relações sociais mais fraternas, democráticas e solidárias.

    Após estes breves apontamentos uma pergunta vem à tona: Como a Educação Física, como componente curricular obrigatório, está lidando, ou pode lidar com o fenômeno da inclusão em suas aulas?

A Educação Física escolar: fonte de inclusão ou segregação

    Desde a Antiguidade os portadores de necessidades especiais se viram excluídos da sociedade por serem considerados como improdutivos, não sendo raras ações de verdadeiro extermínio quanto a estas pessoas. Posteriormente, a partir da Idade Média mais especificamente, o que se nota é uma transformação das atitudes violentas contra os portadores de necessidades especiais, para atitudes cercadas de compaixão e misericórdia, posto considerarem estes sujeitos como dignos de caridade, já que eram “naturalmente inferiores” as outras pessoas. Apenas com o chegar da Idade Moderna, concepções mais libertárias e igualitárias passam a se configurar como parte do novo ideário social, culminando no processo de inclusão em todas as esferas culturais, inclusive nas instituições escolares mediantes suas mais diversas disciplinas, tais como a Matemática, Português, Educação Artística, Educação Física, Geografia, História, etc. Mas quais serão as possibilidades oferecidas pela Educação Física para estas pessoas? Será que em algum momento histórico esta disciplina corroborou com o processo de segregação que se dava na sociedade?

    Se olharmos atentamente para a história da Educação Física perceberemos que esta, ao longo de seus curtos séculos de existência, culturalmente tem se mostrado avessa à diferença e a tudo que foge a determinados padrões de normalidade. É a norma que historicamente domina as metodologias e postulados criados no campo da Educação Física, seja para classificar, rotular, ou para eliminar aqueles que não se encaixam minimante em seus ditames e parâmetros. Voltemos um pouco a sua história.

    De acordo com Betti (1991), as primeiras instituições escolares a se valerem da Educação Física como componente curricular aparecem apenas no início do século XVIII. Anteriormente a esta data notamos a presença de exercícios obrigatórios realizados no interior escolar, mas sem qualquer sistematização curricular, sendo que na maioria das vezes, estas propostas se destinavam mais a contextos militares do que os escolares propriamente ditos. Isto posto, cabe ressaltar que desde seu início, a Educação Física tinha como único objetivo o aprimoramento das habilidades físicas e a higienização do corpo para evitar gastos com a saúde pública, logo, os portadores de necessidades especiais sequer eram incluídos como uma suposta população que poderiam realizar atividades físicas, pois além de organicamente não saudáveis, apresentavam habilidades consideradas como destoantes dos padrões necessários para a prática da Educação Física (ROSADAS, 1984).

    Direcionando nosso foco de análise para as terras tupiniquins, de acordo com Castellani Filho (1995), no Brasil, o aparecimento da Educação Física data do século XIX, tendo seu primeiro respaldo com a reforma Couto Ferraz de 1851. Neste início podemos considerar que a Educação Física cumpriu em relação à sociedade uma função essencialmente higienista, posto ter como objetivo a construção de uma sociedade livre das doenças que acometiam grande parcela da população, prejudicando, conseqüentemente, os níveis de produção material. Ou seja, desde seu surgimento a Educação Física nasceu com forte caráter classista, o qual estava relacionado aos anseios da ainda insipiente classe burguesa.

    Ainda neste ínterim, e permanecendo no século XIX, a recém criada Educação Física passa cada vez mais a ganhar um caráter militar, sendo que sua aplicação nas escolas cabia basilarmente as pessoas ligadas às forças armadas (GONÇALVES, 1997). Neste espaço rigidamente hierarquizado prevaleciam os alunos considerados mais atléticos, sendo que os “inábeis”, quando não excluídos, participavam marginalmente dessa prática social. Aqui, buscava-se a escolha dos indivíduos mais aptos mediante um princípio que beirava os ditames da seleção natural. Mais rápido, mais alto, e, mais forte, apesar de um lema olímpico, sintetizam cristalinamente os anseios da Educação Física de outrora (passado que ainda se repete hodiernamente), sendo que os portadores de necessidades especiais sequer eram considerados como prováveis participantes destas atividades, mesmo quando direcionamos nosso olhar apenas para as instituições especializadas e segregadas no trato com a deficiência. Aliás, cabe ressaltar que, de acordo com Rosadas (1984), o caráter segregacionista de outrora da Educação Física era tão evidente que diversas pessoas eram dispensadas de sua prática por serem consideradas como incapazes fisicamente, elemento registrado em múltiplos documentos oficiais.

    A primeira grande reforma na maneira de se encarar a Educação Física no Brasil surge apenas durante o trâmite referente à aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação do ano de 1961. De acordo com Castellani Filho (1995), após esse período a Educação Física se desmilitariza em seu currículo, mas não em sua epistemologia orientadora, sendo que o Esporte passa a ser adotado como a principal prática pedagógica. Todavia, isso não significou a democratização da Educação Física, pois seu objetivo era, ao invés de formar militares, construir atletas de alto rendimento que pudessem elevar o nome da nação em competições internacionais. Como bem aponta Soares et al. (1992), o que temos aqui é o esporte na escola e não o esporte da escola.

    Tudo é feito como se a escola fosse um grande palco esportivo, cujos objetivos seriam o da seleção dos alunos e alunas mais aptos para representar futuramente o Brasil em competições internacionais. Conseqüentemente, mais uma vez os portadores de necessidades especiais sequer eram lembrados como possíveis participantes das aulas de Educação Física, aliás, é digno de nota o fato de estes serem dispensados das aulas devido a sua deficiência, portanto, a inclusão ainda estava bem longe de se concretizar nos corredores escolares.

    Esse modelo de Educação Física voltado para a formação de atletas fracassou de maneira retumbante. O Brasil não se transformou em uma potência olímpica, os números de praticantes de atividades esportivas não tiveram o aumento esperado, e, tampouco, a Educação Física ganhou um status científico, sendo vilipendiada em relação a outras disciplinas escolares, como a Matemática, Português, Física, Química. Em virtude destes elementos, assim que findou o regime militar, este modelo esportivista de Educação Física passou a ser duramente questionado, dando início a uma profunda crise de identidade nos pressupostos que orientava o discurso e a prática da Educação Física.

    Tal como aponta Daólio (1995), a partir da década de 80 do século XX notamos uma clara mudança de paradigmas e pressupostos orientadores da Educação Física escolar. A tão propalada visão aristotélica de separação entre corpo e mente é duramente contestada, sendo que como conseqüência notamos o aparecimentos de visões mais holísticas no campo epistemológico da Educação Física, a qual deveria se voltar não para o rendimento atlético em detrimento de todas as outras variáveis, mas sim, nos processos de socialização e inclusão ampla do indivíduo as mais diversas culturas constituintes do gênero humano. Dentre as diversas correntes surgidas no campo da Educação Física cabe destacar a psicomotricidade, a Educação Física desenvolvimentista, a perspectiva dos Jogos cooperativos, a concepção de cultura corporal, e a que mais nos agrada, a perspectiva histórico-crítica da Educação Física, que definia esta como uma prática pedagógica escolar cujos conteúdos perpassam pelas atividades expressivas, o jogo, o esporte, a dança, a ginástica e as mais diversas brincadeiras componentes daquilo que podemos denominar de cultura corporal.

    Pela primeira vez em quase duzentos anos de história da Educação Física se tracejou a necessidade intrínseca de questionar seus objetivos pedagógicos, os quais deveriam estar voltados para a apropriação do patrimônio corpóreo-cultural arquitetado pela humanidade por todos seus sujeitos componentes, e não apenas uma minoria considerada como privilegiada em termos físicos e motores. Por conseguinte, surge de maneira candente um repensar sobre a Educação Física em termos de igualdades de oportunidades e possibilidades, das quais os portadores de necessidades especiais deveriam necessariamente estar incluídos.

    Neste escopo teórico a Educação Física passa a ser vista como estando em contínua relação com a sociedade da qual faz parte, assertiva que fica bem clara nas seguintes palavras de Soares et al. (1992, p.39):

    é preciso que o aluno entenda que o homem não nasceu pulando, saltando, arremessando, balançando, jogando, etc. Todas essas atividades corporais foram construídas em determinadas épocas históricas, como respostas a determinados estímulos, desafios ou necessidades humanas. Esta concepção enfatiza a importância de valores como solidariedade, cooperação, liberdade de expressão dos movimentos que devem ser retraçados e transmitidos para os alunos na escola.

    Sendo assim, a Educação Física passa a visualizar nos mais diversos movimentos corporais, que também são culturais, uma fonte de conhecimento e possibilidades de desenvolvimento motor, cognitivo e social, sendo que sua prática além dos mais habilidosos, deveria se voltar fundamentalmente sobre aqueles que mais precisam de se apropriar destes movimentos, considerados historicamente como débeis ou inaptos.

    Destarte, voltando nossos olhos para os portadores de necessidades especiais, se antes estes eram considerados como incapazes de materializar movimentos corporais significativos, a partir de então, passaram a ser vistos como uma população potencialmente ativa para o desenvolvimento de diversos objetivos educacionais que se valem do movimento corporal como principal mediador de suas relações sociais. Ao invés da deficiência, começou-se a enxergar as potencialidades contidas nestas pessoas advindas de alguma perda ou disfunção orgânica.

    Coerentemente, a Educação Física, desde que corretamente mediada, passou a ser vista como um espaço essencial para a inclusão dos alunos portadores de necessidades especiais na cultura e no ethos escolar, servindo como uma forma de combate a discriminação, ao preconceito e aos modelos homogeneizantes de práticas corpóreas. Logo, a contradição dialética novamente se fez presente, e o que historicamente se mostrou como um mecanismo de segregação começa a ser visto em termos igualitários e democráticos.

    Exatamente neste ponto a Educação Física parece estar cotejada pela concepção analítica de Vygotsky (1995) sobre a educação para portadores de necessidades especiais, a qual deve ter os mesmos objetivos da educação geral, porém, se valer de novos métodos e ferramentas compensatórias para o alcance dos mesmos objetivos. Voltando ao escopo da Psicologia Histórico-Cultural, percebemos que aqui as aprendizagens de diversos movimentos da cultura corporal principiam ser vistas como um fator propulsor ao desenvolvimento humano, reestruturando todo o processo psíquico e motor pelo qual se organizam estruturalmente os portadores de necessidades especiais.

    Por isso, a educação especial nada mais do que a educação geral, humanista, fincada na apropriação da cultura histórica, ou seja, em nada se distingue do processo regular de escolarização. Os portadores de necessidades especiais devem necessariamente fazer parte deste contexto relacional. Em relação à educação regular, suas principais alterações, por conseguinte, não seriam nos conteúdos destinados as crianças, mas, sim, na elaboração de diversos métodos de ensino e na transformação do próprio ambiente em questão.

    Dessa forma, o defeito começa a ser visto como um fator a ser superado por incorporação dialética de novos desafios e trilhas a serem seguidas, passando a diferença a ser encarada como fator essencial do processo de humanização pelo qual estamos envolvidos. Portanto, o que antes era visto como impossibilidade se transforma em potencialidade, a deficiência torna-se eficiência na medida em que os objetivos são alcançados pela criação de mecanismos auxiliares e pela transformação do meio social.

    Isto posto, compreendemos a Educação Física como uma prática pedagógica ampla e libertária, cuja manifestação além de melhorar os aspectos relacionados à saúde, comunicação coletiva e aos aspectos propriamente lúdicos das atividades físicas, propicia a vivência de inúmeros movimentos culturais, tais como a mobilidade, flexibilidade, o equilíbrio, o domínio do corpo, a orientação espaço-temporal, o enriquecimentos dos sentidos humanos, a lateralidade, os quais permitem aos portadores de necessidades especiais ampliar sua exploração sobre a realidade externa, que passam a enfrentar novos desafios e experimentar diversas aprendizagens advindas desta plasticidade e sinergia pluri-corporal. Com isso, permitiremos aos portadores de necessidades especiais uma maior segurança e independência em seus movimentos e decisões, cuja concretude está em devir com a complexificação de novas relações sociais estabelecidas no seio da comunidade.

Mas como transformar a deficiência em eficiência nas aulas de Educação Física?

    O primeiro passo certamente está em reconhecer as diferenças culturais e motoras que caracterizam cada aluno em uma sala de aula. Saber que a beleza de uma enterrada no basquete para alguns pode ser materializada no acertar de uma cesta para outros. Ou seja, como professores de Educação Física devemos admitir a existência de múltiplos movimentos corporais em determinados jogos, brincadeiras, esportes, etc., posto não existir uma norma do certo e do errado. Em virtude disso, as aulas de Educação Física devem se valer de materiais variados e dos conteúdos mais diversos possíveis.

    O objetivo principal da Educação Física escolar não pode ser o da formação de atletas nas escolas, mas, sim, o da apropriação cultural de diversos movimentos lúdicos por todas as crianças, independentemente de sua habilidade motora. Sendo assim, podemos transformar uma aula quando estabelecemos outros objetivos gerais, quando modificamos o ambiente, suas regras e, pelo simples fato de valorizar e compreender as diferenças não como desigualdades, as quais precisam ser vivenciadas e experimentadas coletivamente.

    Estar na escola é estar na multidão, nossa vida escolar é essencialmente coletiva tanto em seus relacionamentos, como em suas atitudes. Por isso, a Educação Física também deve se embasar em modelos coletivos de relacionamento, fato que está em consonância à criação da zona de desenvolvimento proximal exposta por Vygotsky (1993), que pode ser entendida, grosso modo, como a ampliação do campo de ações individuais possibilitadas pela intervenção mediativa de um sujeito mais experimentado em termos da referida tarefa.

    Vygotsky (1993) destaca um papel essencial estabelecido pela cooperação no próprio desenvolvimento humano, pois, para ele, o que consigo fazer hoje com a ajuda mediada, farei amanhã sozinho. Destarte, Vygotsky (1995) redefine a rota do desenvolvimento psicológico em voga pelos modelos aritméticos e maturacionais, enfatizando o curso dinâmico do desenvolvimento humano, cercado por suas progressões, involuções, teses, antíteses e sínteses, enfim, mediados ativamente pela contradição.

    Na coletividade, os portadores de necessidades especiais podem aprender a realizar tarefas de outras maneiras que não as suas próprias. Melhoram os sentidos do tato, visão, olfato, tal como se orientam de forma mais coesa no espaço das atividades, o que gera um maior domínio corporal e o desenvolvimento muscular considerado de forma global. Todavia, é importante ressaltar que todas essas alterações também se dão nas crianças tidas por “normais”, as quais ao experimentarem a diferença modificam sua auto-relação com seu corpo. Em virtude deste elemento, Vygotsky (1987) destaca que apenas conhecendo o outro posso me conhecer, ou seja, o processo de inclusão dos portadores de necessidades especiais no ensino regular traz benefícios para todos os alunos e alunas envolvidos no processo escolar devido à amplificação do sistema cultural, e não apenas aos portadores destas necessidades.

    Mediante o contato com nosso corpo conhecemos o universo, ampliamos nossa visão de mundo e a própria percepção auto-identitária. O corpo não é apenas sede de castigos e proibições, é fonte de vivência, de sabedoria, de conhecimento e apropriação cultural, devendo ser valorizado constantemente nas aulas de Educação Física. Nas palavras de Daólio (1995, p.39-40):

    O homem, por meio de seu corpo, vai assimilando e se apropriando dos valores, normas e costumes sociais, num processo de inCORPOração. Diz-se correntemente que, um indivíduo incorpora algum novo comportamento ao conjunto de seus atos, ou uma nova palavra ao seu vocabulário ou, ainda, um novo conhecimento ao seu repertório cognitivo. Mais do que um aprendizado intelectual, o indivíduo adquire um conteúdo cultural, que se instala no seu corpo, no conjunto de suas expressões. Em outros termos, o homem aprende a cultura por meio de seu corpo.

    A ampliação de nossos movimentos corporais, que deve ser garantida pela Educação Física, possibilita uma melhor qualidade de vida e compreensão crítica da própria realidade cultural, sendo que no caso dos portadores de necessidades especiais suas deficiências devem ser transformadas em eficiências. Assim, o andar rápido que para a criança aparenta ser normal e uma tarefa extremamente fácil, para o deficiente mental é uma atividade de difícil resolução, cuja concretização deve ser vista com grande sucesso, tal qual a enterrada em um jogo de basquete. Isto posto, não podemos nos esquecer que a eficiência não deve na escola ser estabelecida em termos de alto rendimento ou anexa à norma, mas como um processo que leva em conta a execução de uma tarefa em relação ao seu ambiente e as capacidade e limitações manifestas por cada sujeito em particular, portanto, não é um processo quantitativo, mas essencialmente qualitativo.

Conclusões

    Finalizamos este trabalho destacando que a noção de deficiência aponta, sobretudo, para sua complementação dialética, a citar, a superação do defeito por vias e mecanismos auxiliares. Neste espaço que a Educação Física deve vista, compreendida, interpreta e inserida. Aqui os caminhos são feitos pelas possibilidades e não pelas limitações históricas.

    Esta nova consideração da deficiência nos aponta sobre a própria conceituação da deficiência. Será mesmo que ela está situada no corpo dos portadores de necessidades especiais, ou na forma monocultural que enxergamos a realidade, cuja diferença é vista como defeito, algo a ser corrigido, um equívoco da natureza? E quando direcionamos nossas análises para a escola, não estaríamos nós transmitindo nossa incapacidade de criar métodos para a superação das deficiências para o próprio deficiente? Uma resposta a estas duas perguntas é encontrada nas seguintes palavras de Vygotsky (1995, p.45):

    É um equívoco ver na anormalidade só uma enfermidade. Na criança anormal nós só vemos o defeito e por isso nossa teoria sobre a criança, o tratamento dado a ela, se limitam a constatação de uma porcentagem de cegueira, surdez ou alterações do paladar. Nos detemos nos gramas de enfermidade e não notamos os quilos de saúde. Notamos os defeitos e não percebemos as esferas colossais enriquecidas pela vida que possuem as crianças que apresentam anormalidades

    Coerentemente, é fundamental destacarmos que o aspecto chave da aprendizagem está na inter-relação social coletiva. Sem o contato com o coletivo, as deficiências apresentadas pelos portadores de necessidades especiais tendem a se agravar ainda mais. Sem mediação da diferença, a homogeneidade impera nas relações sociais. Logo, se existe algo que pré-determina o destino dos portadores de necessidades especiais, não são seus defeitos, mas, sim, o papel de exclusão que a sociedade lhes outorga, impedindo-os de desenvolver suas potencialidades e as compensações necessárias para a superação de seus defeitos, ou melhor, de seu desenvolvimento diferenciado.

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