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O corpo como uma fábrica de sonhos: representações sociais

de corpo entre mulheres praticantes de atividade físicas que

fizeram intervenções cirúrgico plásticas corretivas

 

*Doutor em Filosofia – Universidade Gama Filho

Professor de Sócio-Antropologia do Movimento Humano

e Esportes da Universidade Federal do Amazonas/Brasil

**Licenciada Plena em Educação Física pela

Universidade Estácio de Sá/Brasil

Dirceu Ribeiro Nogueira da Gama*

dirceugama@ufam.edu.br

Ana Paula Brito Nogueira da Gama**

paula.dirceu@hotmail.com

 

 

 

Resumo

          A questão da adesão das mulheres às atividades físicas vêm sofrendo a interferência de diversos fatores sociais, econômicos e políticos, ao longo da história. Nos dias contemporâneos pode-se dizer que as mídias de massa figuram entre esses fatores. Neste sentido é de se esperar que ela e seus conteúdos, principalmente na forma como consideram o corpo feminino, exerçam influências sobre o modo como as mulheres representam este último. Assim, o objetivo do nosso trabalho consiste de investigar as representações sociais de corpo de mulheres praticantes de atividade físicas que já se submeteram voluntariamente à intervenções cirúrgico plásticas corretivas. Quanto a metodologia adotada para a coleta de dados empíricos optou-se pela observação direta da realidade, própria do método etnográfico, e pela entrevista semi-estruturada. Os dados foram analisados segundo a técnica de análise de conteúdo. Em relação aos resultados as seguintes marcas da realidade que foram encontradas: auto estima, tensão saúde e beleza e tensão parte X todo. Concluímos então que a cirurgia não é vista como mecanismo de emenda do que faltou ao treinamento, mas sim o processo primário mesmo de modificação corporal consoante as referências e critérios dessas mulheres.

          Unitermos: Mulheres. Corpo. Representações sociais. Estética. Mídias.

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 13 - Nº 128 - Enero de 2009

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Introdução

    Por muito tempo no decorrer da história da humanidade, as mulheres ficaram distantes das práticas corporais com sentido não estritamente funcional. A função de reprodutora da espécie favoreceu sua subordinação ao homem. Sobre isso, Bessa (2007) nos diz que muitas civilizações acreditaram que, por fatores biológicos, a constituição do corpo feminino era considerada frágil e incapaz de assumir a direção de chefia do grupo familiar, o que tornava-a uma figura passiva e necessitada de grandes cuidados. Em grande medida, tal crença acarretou a idéia de que o papel social feminino limitava-se ao parto, maternidade e ao cuidado do lar. Em muitas culturas, ela era considerada mais como um objeto do que como um sujeito ativo.

    Em função disso, lembra Tubino (1992), as participações femininas em atividades físico-desportivas de cunho competitivo praticamente não aconteciam nesses tempos. Apenas aos homens cabia tomar parte em tais eventos. No caso específico da civilização grega antiga, as mulheres eram proibidas de tomar parte nos torneios e campeonatos dos Jogos Olímpicos, Píticos, Ístmicos, etc. Essa situação só veio a ser revertida em definitivo nos Jogos Olímpicos da Era Moderna, a partir da década de 20, mesmo em franca contrariedade com as idéias do Barão de Coubertin, o qual acreditava que o sexo feminino deveria somente coroar os grandes campeões masculinos.

    De acordo com Votre e Mourão (2005) a participação feminina em Jogos Olímpicos teve início em 1900, nos Jogos de Paris. As mulheres representavam 1% do total de participantes (11 mulheres). Entretanto, elas não eram reconhecidas como atletas, já que a participação feminina nos jogos não tinha o consentimento do Comitê Olímpico Internacional – COI. Contudo, deve-se considerar que essa iniciativa, por mais simplória que pareça, abriu uma porta para as mulheres transcenderem os limites de seus lares, possibilitando o alargamento do estreito círculo familiar. Algumas tornaram-se, inclusive, sócias e dirigentes de clubes. A partir daí, a presença das mulheres veio crescendo a cada participação, aumentando o seu espaço.

    Depois do término da Segunda Grande Guerra, as décadas de 60 e 70 assistiram a uma intensa transformação social dos costumes. O aparecimento da contracultura, dos movimentos ecológicos, das reivindicações de tolerância aos grupos minoritários, das revoluções tecnológicas e das novas vanguardas artísticas abalaram muitos dos valores sociais hegemônicos até então. Esse momento de turbulência também viu nascer os movimentos feministas, os quais defendiam uma maior liberdade de atuação feminina no contexto da modernidade. Principalmente na Europa e América do Norte, as mulheres começaram a arvorar com mais veemência o direito de usar o próprio corpo segundo suas vontades e desejos. Os principais indicadores objetivos desta nova tendência histórica, segundo Goldenberg (2002), foram a elevação do consumo de contraceptivos; o controle da procriação; o acesso a mecanismos de geração de filhos sem a dependência da figura masculina; o acesso ao mercado de trabalho formal em condições iguais aos homens e a maior freqüência à atividades sociais que até então lhes eram proibidas.

    No bojo desse amplo processo de modificação dos costumes é que também teve vez um movimento crescente de procura feminina pela prática de atividades físicas não apenas competitivas, mas com fins de lazer e saúde. Contingentes cada vez maiores de mulheres, a partir do final dos anos 60, começaram, em escala global, a se matricular em academias de ginástica e musculação, estúdios de treinamento físico, centros de lutas e defesa pessoal, etc. com a intenção de melhorar seus níveis de aptidão motora e alargar seus leques de relacionamentos subjetivos. O esporte de rendimento deixou de ser o campo majoritário de absorção de mulheres interessadas em treinar seus corpos. (Del Priore, 2000).

    No caso do Brasil, a procura feminina por atividades esportivas e gímnicas de lazer e saúde mostra-se em franco crescimento desde meados dos anos 70. Contudo, novos fatores devem ser colocados como impulsionadores dessa busca. Dentre eles, há que se considerar, de acordo com Berger (2008), a influência que os padrões estéticos midiáticos exercem sobre as representações cotidianas de corpo. Segundo o autor, contingentes progressivos de mulheres estão deixando cada vez mais de visar a saúde e o lazer, enquanto critérios norteadores de suas práticas, e passando a privilegiar demasiado a construção da aparência externa do corpo via treinamento. Berger (2008) acredita que, impulsionando essa tendência, vige o desejo de enquadramento em um peculiar padrão estereotipado de beleza, disseminado por determinados setores da sociedade.

    Em complementação a Berger (2008), Lovisolo (2000) aduz que em muito pode estar contribuindo para isso o destacado papel que o tema do corpo tem assumido nos discursos imagético-visuais do mundo globalizado contemporâneo. Tal fator pode estar desequilibrando a relação de tensão existente entre aqueles que tradicionalmente sempre buscaram praticar atividades físicas apenas para conservação da saúde e lazer e os que, além desse critério, jamais desvalorizaram a modelagem corporal enquanto motivo de suas ações. Um indício desse desequilíbrio está na imensa quantidade de recursos materiais oferecidos ao grande público pela indústria farmacêutica (cosméticos, complexos vitamínicos) e pela medicina (dietas, tratamentos hormonais, tratamentos a base de raios infra-vermelhos, drenagens linfáticas) sob a promessa de modificarem para melhor os traços corporais naturais, tornando-os semelhantes aos de modelos fotográficos, atletas profissionais, atores famosos, etc. Nesse contexto, as soluções oferecidas pela cirurgia plástica (protetizações, lipoesculturas, extrações de costelas) vêm recebendo grande notoriedade e aceitação pelas pessoas, tanto pelos resultados que garantem quanto pelo custo operacional relativamente acessível.

    Por outro lado, estudos de Eufrásio & Nóbrega (2007) revelam que está se tornando significativo o montante de veteranos praticantes de atividades físicas procurando clínicas de cirurgia plástica com a intenção de transformar segmentos de seus corpos que deixaram de agradar visualmente aos seus gostos. Tal acontecimento, ainda bastante recente, carreia consigo uma série de interrogações sequiosas de maior elucidação por parte da investigação científica.

    Perante esse levantamento, emergem as seguintes questões: a cirurgia corretiva plástica é representada como mecanismo de suplementação dos resultados que o treinamento supostamente não consegue engendrar para indivíduos que incluem a modelagem corporal enquanto valor? Ou há outra sorte de vinculações? Se há, quais são?

    Isto posto, o presente estudo objetiva investigar as representações sociais de corpo de mulheres praticantes de atividade físicas outrora já submetidas à intervenções cirúrgico plásticas corretivas. Tal trabalho justifica-se pela relativa carência de produções acadêmicas sobre este tema no meio da Educação Física. Há que se mencionar também sua relevância social, na medida em que pode contribuir para que profissionais de Educação Física que trabalham na área de fitness reflitam com maior propriedade sobre a forma como boa parte dos alunos do sexo feminino interpreta os efeitos dos processos de treino conduzidos pelos próprios.

Teorias das representações sociais: uma breve exposição

    De acordo com Minayo (1995), o supracitado termo representações sociais refere-se a um conceito filosófico que significa a reprodução de uma percepção retida na lembrança ou do conteúdo do pensamento. Entretanto, para a maior parte das ciências sociais, representações são definidas como categorias de pensamentos que não só expressam uma realidade, mas explicam-na justificando ou questionando seus fundamentos.

    Por mais que esse tema seja recorrente em muitas obras e trabalhos científicos contemporâneos, suas raízes epistemológicas são encontradas no pensamento dos três grandes nomes que fundaram a teoria sociológica moderna: o francês Èmile Durkheim e os alemães Max Weber e Karl Marx.

    Na perspectiva de Durkheim, o conceito de representações sociais tem o mesmo sentido de representações coletivas. Tanto um como outro são empregados para se referir ao modo como uma determinada formação social elabora e expressa sua realidade. Ele ainda afirma também que essas categorias não são dadas a priori e nem são universais na consciência, mas surgem ligadas a fatos sociais passíveis de observação e interpretação. (Durkheim, citado por Retondar, 2007).

    Os estudos de Durkheim sobre representações foram desencadeados junto com suas análises comparativas sobre os sistemas sociais primitivos e modernos. De acordo com estes, as sociedades primitivas não se caracterizam pela divisão social do trabalho; antes, elas são comumente constituídas por associações de clãs onde a autoridade suprema está na figura do chefe. Dele emana e nele se localiza o poder central da comunidade. (ibid)

    Em termos da organização social de tais grupos, ela se processa através daquilo que o autor chama de solidariedade mecânica: as regras, os valores e toda sorte de normatização direta ou indireta que permitem aos indivíduos habitarem espaços livres da barbárie social se apresentam de maneira objetiva e imperativa, não permitindo qualquer tipo de mobilidade ou nuança das normas. Nesses grupos, geralmente a autoridade governamental também é religiosa.

    Já nas sociedades modernas, frisa Durkheim, acontece uma especialização e diferenciação de funções laborais com base em laços de poder que buscam equilibrarem-se harmonicamente. A solidariedade que se estabelece entre os atores e instituições sociais é, por isso, orgânica ao invés de mecânica. Em conseqüência, os indivíduos interiorizam a normatização social de maneira consciente, doravante articulando as várias partes que compõem o todo social.

    As representações coletivas traduzem a maneira como o grupo se pensa nas suas relações com os objetos que o afetam. Para compreender como a sociedade se representa a si própria e ao mundo que a rodeia, precisamos considerar a natureza da sociedade e não a dos indivíduos. Os símbolos com que ela se pensa mudam de acordo com a natureza (...). Se ela ou condena certos modos de conduta, é porque entram em choque ou não com alguns dos seus sentimentos fundamentais, sentimentos estes que pertencem à sua constituição. (Durkheim 1978, p. 79).

    Em se tratando do filósofo e cientista social alemão Max Weber, a vida social dos indivíduos vivendo coletivamente é marcada por intensa significação cultural. Essa significação é dada tanto pela base material como pelas idéias, dentro de um espectro de relações onde ambas se condicionam mutuamente. A título de ilustração, num de seus livros mais significativos, ´A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo`, Weber procura nos mostrar como o desenvolvimento de um corpo de noções junto aos membros afins de um determinado credo religioso que não via a acumulação de recursos financeiros como um empecilho moral capaz de levá-los a se sentirem pecadores em muito contribuiu para a consolidação do modo de produção capitalista na América do Norte e na Europa Ocidental.

    Segundo Weber, as idéias (ou representações sociais) são juízos de valor que os indivíduos dotados de vontade possuem. Portanto, cada sociedade, para se manter, necessita ancorar-se em concepções de mundo abrangentes e unitárias. Em geral, Weber insiste que as representações mais elaboradas e com maior força persuasiva são elaboradas pelos grupos dominantes. Essas representações habitam os espaços da linguagem, e por meio dela espraiam-se pela totalidade do corpo social carreando seus significados. Vem daí a sua eficiência pedagógica.

    Em suma, podemos perceber que tanto em Weber como em Durkheim as idéias exercem um papel crucial para a configuração histórica das sociedades. Logo, procurar acessá-las empiricamente emerge como um critério fundamental para que se compreenda como grupos humanos que por ventura partilham os mesmos símbolos, valores e normas, auto-constituem suas identidades e certezas. Por outro lado, os mesmos não negam a possibilidade também histórica de que as conjunturas sócio-econômicas condicionam a aparição de determinadas concepções e atitudes específicas.

    Já Karl Marx, diferente dos outros dois autores acima, coloca como princípio fundamental da estruturação do pensamento e da consciência dos indivíduos a forma como se edifica a produção da vida material.

    Para este autor, a sociedade moderna ou capitalista se erigiu sobre a chamada acumulação originária, que é a luta entre duas dimensões sociais: de um lado, a estrutural, formada pelo particularismo e pela competitividade, enraizada na competição desenfreada onde os meios justificam os fins; de outro lado, a idéia de que a sociedade é uma composição regida pelos homens em espaços que buscam regular seus conflitos, controlando as contradições e o peso dos interesses particulares face ao coletivo.

    Portanto, para Marx, a produção das representações está diretamente entrelaçada com as atividades e o intercâmbio material entre os homens. Em outras palavras, os homens criam suas representações tal como se acham condicionados pelo estágio das forças produtivas reinantes em seu tempo. Assim, a categoria chave, em Marx, para se entender as representações, ou idéias, é a consciência. Para ele, representações, idéias e pensamentos são o conteúdo de uma consciência que é determinada pela base material:

    Não é a consciência que determina a vida, mas é a vida que determina a consciência. (...) A consciência é desde o início um produto social: ela é mera consciência do meio sensível mais próximo, é a conexão limitada com outras pessoas e coisas fora do indivíduo. (...) A consciência jamais pode ser outra coisa que o homem consciente e o ser dos homens é o seu processo de vida real. (Marx, citado por Minayo, 1995, p. 98).

    De certa forma dialogando com Durkheim, Weber e Marx, porém erigindo uma epistemologia própria, a questão das representações adentrou o campo da psicologia social ao longo do século XX com um viés diferenciado. Para essa área do conhecimento, representações sociais referem-se ao modo pelo qual os indivíduos interagem com o real ao seu entorno considerando os fluxos de informações que circulando seus vários campos de sua atuação. O sujeito é um elemento capital dessa conjuntura, com isso, as representações sociais emergem como fenômenos diretamente observáveis e mesmo passíveis de reconstrução pela intervenção racional e sistemática. A psicologia social afirma que toda representação social é sempre representação de alguma coisa (objeto) feita por alguém (sujeito) que se manifesta no interior da própria representação. Esse alguém simboliza, interpreta e se deposita no real por intermédio de imagens, artefatos, criações artísticas, objetos, etc. que lhes façam representar alguma significação. Para Retondar (2007), dois autores se destacam nos estudos recentes sobre representação social em psicologia social: Sigmund Freud e Jean Piaget.

    Em linhas gerais, Jean Piaget coloca que as colaborações coletivas dependem de como os processos cognitivos são efetivados nos processos de interação sociais. Um exemplo contumaz remete a maneira como as crianças se emancipam das pressões diretas dos pais ou das autoridades mais próximas para se submeterem a outros mecanismos de pressão: a conquista paulatina de novas autonomias e censuras na forma de pensar e agir irmana-se ao modo como elas organizam e gerenciam subjetivamente as informações ambientais dispostas ao seu entorno. Esta percepção de indivíduo em Piaget escapa a forma como Durkheim concebe as relações de equilíbrio no corpo social, pois este último sugere que as sociedades fundam-se em forças de coação e cooperação que transcendem a dimensão do sujeito.

    Em se tratando de Sigmund Freud, o mesmo considera que o desenvolvimento da moralidade, hábitos, costumes, etc. liga-se aos conteúdos inconscientes latentes dos contos, lendas e sonhos. Freud (1978), em O futuro de uma ilusão, diz que aquele que sente-se pouco à vontade com as memórias de seu passado e também com seu presente dificilmente conseguirá apontar perspectivas de futuro de maneira segura e mentalmente saudável. A construção do sujeito moral e social se dá assim por intermédio de coerções imputadas a ele pelas instâncias sociais (figura paterna, família, escola...) face aos seus instintos de destruição, de incesto e da ânsia de matar. Ele admite também que a razão de ser da sociedade, da cultura, da civilização, é defender o indivíduo de si mesmo, isto é, afastá-lo de sua própria natureza libidinal através da censura dos instintos.

    À exceção de Piaget e Freud, implícita nas obras dos supracitados Durkheim, Weber e Marx está a visão de que as transformações ao longo da história interferem no plano das representações sociais. Por esse prisma, todos, mesmo sem dizerem explicitamente, subentendem que o curso das restrições tecnológicas influi em maior ou menor grau na forma como as coletividades edificam seus sistemas vitais de pensamento, crenças, valores, costumes e hábitos.

Modernidade, corpo e mídias

    Max Weber e Karl Marx colocam que as modificações institucionais impulsionadas pela Revolução Científica do século XVII e culminadas com a Revolução Industrial do século XVIII constituem a mola-mestre da idéia de Modernidade. Ambos sublinham a importância conferida aos instrumentais tecno-científicos na estruturação das economias capitalistas de escala, na formação do Estado-nação, no aprimoramento da administração metódica dos processos de trabalho, dos afazeres cotidianos e mesmo do dia a dia familiar. Ao acenar como pilar do progresso e emancipação, a interação entre tecnologia e ciência termina ratificando-se enquanto valor universal emergente, imbuído do papel de orientar a humanidade na tarefa de reconstruir o mundo.

    Concordando com essa posição, Gama (2005) assevera que o desenvolvimento da Modernidade caminhou de mãos dadas com o aprimoramento estrutural das máquinas eletro-eletrônicas. Segundo o autor, as descobertas no campo da transmissão hertzianas de informações, acontecidas em pleno século XIX, devem ser vistas como fontes de toda uma geração de dispositivos que revolucionou a vida da humanidade moderna, merecendo destaque especial as válvulas e circuitos elétricos. Isto porque foram eles os apoios fundamentais da montagem do telégrafo, em 1837, do telefone, em 1875, do cinema, em 1899, dos vibradores em ondas de alta freqüência, em 1900, e da televisão nos anos 40. Sem eles, dificilmente se conseguiria gerar a difusão maciça de informações via comunicação de massa, fenômeno crucial para a retroalimentação dos fatores constitutivos da própria Modernidade. Essas descobertas também fundamentaram objetivamente o que se convencionou chamar de publicidade no mundo contemporâneo, a saber, o emprego combinado de recursos e instrumentais lingüísticos imagéticos, escritos, figurativos e simbólicos com o intuito de convencer pessoas a aderir a valores ligados a algum contexto.

    Segundo Featherstone (citado por Berger, 2008) a lógica da publicidade moderna consiste da reapropriação imagética de situações antropologicamente relevantes para a consolidação dos laços de convivência social (festas, jogos, lazeres em geral, danças, etc.) com a intenção de estimular a adoção de comportamentos sociais padronizados. Na cultura mercadológica de consumo, ela é crucial para estimular a aquisição irrefreada de bens materiais. O autor constata que o apelo ao corpo, enquanto indicador dos critérios antropológicos de beleza que permeiam o imaginário da civilização moderna, aparece como uma peça chave da lógica publicitária. Ela manipula a noção de beleza corporal sugerindo que o consumismo de produtos conduz à sua conquista, tanto para homens como mulheres.

    Por intermédio do cinema, da televisão, da publicidade e de reportagens de jornais e revistas, a exigência acaba atingindo os simples mortais, bombardeados cotidianamente por imagens de rostos e corpos perfeitos. (Goldemberg e Ramos, 2002, p. 26).

    Neste sentido, a mídia massificada, por meio do recurso à publicidade, busca ressaltar a imagem do corpo saudável e belo como um dos principais veículos de fromação das identidades coletivas. Essa estratégia nos mostra que a economia de mercado articula meios sutis de dominação através de bem elaborados artifícios de manipulação dos desejos. Assim, as mídias também são fontes de representações, ligadas diretamente ao uso e consumo de imagens e produtos. Em um artigo de revisão sobre essa temática, Nascimento (2008) ressalva o quanto várias imagens de mulheres tratadas como ícones de beleza na faixa dos 40-60, sem sinais de rugas ou flacidez, se tornaram influentes meios difusores de signos e informações. O uso intermitente de suas imagens mostra a importância do elemento visual numa sociedade cujo motor é o consumo.

    A publicidade lida assim com a beleza de modo mercantil, ou seja, relacionando-a à promoção de vendas e objetos por meio de imagens que povoam o inconsciente da sociedade.

    Então, é de se esperar que muitas mulheres passem a se relacionar com seus corpos balizadas por essas noções subjetivas. No caso da realidade brasileira, nota-se que determinados segmentos do corpo feminino tendem a ser publicitariamente mais privilegiados do que outros, dada a representatividade cultural que possuem no conjunto de crenças, superstições, certezas e consensos que norteiam o imaginário do nosso povo. Por exemplo, Lessa (citado por Samarão, 2007) fala da “bundalização” que sinaliza para uma fragmentação dos corpos em partes: são peitos, coxas e rostos transformados em mercadorias aprimoráveis; seios erguidos com silicone; quadris diminuídos por lipoaspiração fabricados para a orgia do ver. Eufrásio e Nóbrega, (2007) ressaltam que o corpo tornou-se uma embalagem, um verniz para esconder outros valores, pois a beleza deixou de ser definida a partir do corpo pessoal, passando a ser através de modelos estéticos padronizados publicitária e comercialmente. No atual momento midiático brasileiro um dos programas de maior audiência no horário nobre é um “reality show” de cirurgia plástica. O corpo parece não ter nenhuma referência consigo mesmo, pois passa a vincular-se a padrões externos de estética e beleza. Seguindo esse modelo, a publicidade serve para que o indivíduo seja uma caricatura da perfeição que lhe é apresentada por meio de representações do que seria o mais perfeito, onde o vir a ser esse modelo se torna um uma meta irrefletida para muitas pessoas.

    Nunca antes se produziu e propagou, em escala global, tantos discursos e imagens relativas à beleza. Assim, Couto (2004) diz que homens e mulheres se submetem cada vez mais às estratégias forjadas pelas técnicas para acentuar e criar com precisão cada vez maior a beleza desejada. Em outras palavras, a beleza pode ser construída e comprada; basta “ter vontade”, visto que essa metamorfose é alcançável via um trabalho individual e moral sobre o próprio corpo.

    Em suma, nota-se pelo exposto que a publicidade moderna em geral associa uma dada concepção de estética corporal com promoção da felicidade, mediada pelo consumo de mercadorias. Inspirados em Fry (2002), podemos dizer que tal contexto configuracional pode engendrar duas equações representacionais:

  1. Os produtos para consumo desfilados em outdoors, revistas, folder, etc são associados a objetos detentores de propriedades mágicas que ao serem comprados, transferiram essa dimensão para as mulheres compradoras, que doravante acabaram tendo os seus corpos tornados mais belos. Essa beleza vai ao encontro dos padrões de corpo presentes nos anúncios.

  2. A transformação das formas corporais nos moldes ditados pela publicidade é compreendida como uma forma de franquear o acesso ao mundo das mercadorias consumíveis (bens materiais, bens simbólicos, trabalho, complementos afetivos, etc.), o que não deixa de ser uma referência para a felicidade difundida pela materialidade do mundo moderno.

    Cumpre lembrar que essas duas tendências não são excludentes uma da outra; antes, elas co-existem em intercâmbio dialético.

Metodologia

    O presente estudo, quanto a forma de abordagem do problema, é de natureza qualitativa. Do ponto de vista da consecução de seus objetivos, ele caracteriza-se como exploratório. Em relação aos tipos de procedimentos técnicos adotados, ele consta de uma consulta a fontes bibliográficas pertencentes ao campo das ciências humanas e sociais, seguido de uma ida a campo com a intenção de se proceder um levantamento de informações empíricas. Urge reiterar que, neste trabalho, não se buscará estabelecer relações explicativas determinísticas do tipo causa e efeito entre as eventuais ocorrências fenomênicas detectadas (Gil, 1999).

    Em se tratando dos sujeitos da amostra, se tratarão de mulheres maiores de 18 anos de idade praticantes de atividades físicas que já se submeteram voluntariamente à algum tipo de intervenção cirúrgica plástica corretiva.

    Finalmente, acerca dos instrumentos e métodos para coletas de dados, faremos uso de uma combinação entre a vertente do método etnográfico calcado na observação direta da realidade, sem interferência dirigida junto aos atores sociais, e com registro das informações coletadas em diário de campo, associado à uma entrevista semi-estruturada com respostas abertas (Goldemberg, 1999).

    Em seguida, os dados serão interpretados pela técnica de análise de conteúdos segundo prescrita por Bardin (1977), à luz das referências teóricas desenvolvidas na revisão de literatura.

    O presente estudo atende às Normas para a Realização de Pesquisa em Seres Humanos, Resolução 196/96, do Conselho Nacional de Saúde de 10/10/1996.

Análise e discussão dos resultados

    O recenseamento dos dados de campo revelou que três grandes tendências discursivas fizeram-se presentes no diário de campo e nos depoimentos colhidos, as quais foram agrupadas em torno das seguintes categorias interpretativas, heuristicamente construídas: auto-estima; tensão saúde e beleza; tensão parte X todo.

Auto estima

    A manutenção da auto estima aparece como algo priorizado pelas entrevistadas. Percebemos que para elas a reconquista desse valor é proporcional à mudança das proporções corporais visualizáveis externamente. Vejamos as seguintes citações:

  • “A auto estima aumentou bastante então (...) foi tão bom para mim minha saúde melhorou claro 100% e foi tão bom também para minha cabeça (...)”.

  • “Auto estima principalmente e você quando está com a cabeça boa gostando de você mesma, o resto vem tudo junto. (...) Eu acho que (...) é a auto estima”.

    O conceito de auto estima segundo Freud (citado por Campagna, 2005) significa o tamanho do Ego. Segundo a idéia freudiana de prazer, podemos dizer que estas transformações corporais geram inúmeras fantasias na busca por um corpo perfeito. Conclui-se daí então que a perda da auto estima de nossas entrevistadas e a subseqüente necessidade de recuperá-la liga-se a uma série de produções simbólicas que impele-as na direção de um fim a ser atingido e que, enquanto não é, torna-se fonte de angústia existencial. Ainda segundo nossas falas, tal recuperação da auto estima é representada como diretamente ligada a uma melhora dos estados e disposições emocionais - afetivas. Isso fica notório nas expressões abaixo, onde ela é relacionada a uma dimensão de incremento positivo. Ex:

  • “Você consegue resgatar aí sua auto estima é (...). Você se sente muito melhor”.

  • “(...) então quer dizer pra mim a cirurgia plástica foi tudo porque me trouxe minha (...) Voltou minha auto estima. Entendeu?”

  • “(...) a auto estima fica lá em cima”.

  • “(...) e melhorou assim muito a minha auto estima. Quero dizer eu passei a me sentir muito melhor comigo mesma. Né? Então acho que o benefício assim, psicológico foi muito bom (...)”.

    Com essa mudança, o horizonte da felicidade se alarga. Vejamos.

  • “Ah!!! Pode trazer felicidade. Porque quando alguma coisa te incomoda assim, você pode se livrar dela é (...) é tudo. Né?”

  • “Eu (...) vejo uma pessoa feliz (risadas) E (...) segura com o seu corpo, bem (...) é bem feliz com o que está vendo”.

  • “É (...) pode trazer felicidade com certeza (risadas) Com certeza felicidade, eu estou muito realizada depois que eu fiz a minha cirurgia plástica”.

  • “Com o seio que eu sempre quis ter e o corpo pra mim está ótimo, pra mim estou me sentindo muito feliz com isso. Com o meu corpo assim”.

  • “Ah!!! Muita felicidade (...)”.

  • “Uma mulher muito bonita (risadas) e realizada, feliz. Com meus “peitões” novos”.

  • “(...) Inclusive tua saúde, você começa a se cuidar melhor, você começa a (...) não sei, você fica mais feliz, fica mais aberta para as coisas, para tudo”.

  • “Vejo uma mulher feliz. Não estou satisfeita 100% com o corpo agora neste momento, mas, (...) feliz com o que eu consegui até agora, satisfeita. Eu vejo uma mulher satisfeita e feliz com que (...) com que está vendo (risos)”.

  • “Muita felicidade, é uma realização, é uma complementação de vida, é uma oportunidade que todas nós ou todos nós deveríamos, poderíamos ter”.

  • “(...) Feliz tranqüila, um pouquinho cansada a essa altura do dia. (...) Ah!!! Eu vejo o que eu vejo todo o dia. Estou feliz. Estou em paz. Uma cara feliz. (risos)”.

    Ou seja, nota-se que mudando-se a aparência, muda-se a forma da pessoa se ver, que se reflete na noção de felicidade, que nada mais é do que enxergar (olhar) o mundo externo com novas perspectivas. A transformação qualitativa das relações subjetivas com o mundo passa pela mediação necessária de uma metamorfose nas partes do corpo que são visíveis.

    Nesta metamorfose, o que prepondera é a intervenção cirúrgica que artificializa (prótese, retirada via lipoaspiração, modelagem corporal via lipoescultura). Percebe-se ou nota-se que nenhum momento as entrevistadas mencionam a atividade física como fator que desencadeia transformações corporais como, por exemplo, diminuição do percentual de gordura ou aumento da massa muscular. Olhemos o que algumas entrevistadas disseram:

  • “Para o que eu queria melhorar no meu corpo a atividade física não ia adiantar ou iria demorar séculos”

  • “Eu malhava para emagrecer mas como não deu resultado tive que apelar para a lipoaspiração”.

    As entrevistadas tratam assim a cirurgia como primeiro recurso, para modificar a morfologia corporal, ainda que admita que o treinamento possa fazer o mesmo. No entanto, em termos de sua equação custo-benefício, o treinamento e mais caro em se tratando do tempo para que as alterações morfológicas sejam vistas em comparação com a intervenção cirúrgica corretiva. Assim, a escolha por esse último recurso é justificada e fundamentada.

Tensão saúde e beleza

    As falas das entrevistadas também denotam a vigência de uma complexa relação de tensão entre saúde e beleza, no sentido de ambas co-existirem sem serem auto-excludentes. Vejamos.

  • “Primeiro a saúde, aí depois a beleza apesar de que uma coisa tem a ver com a outra também. Né? Uma coisa não está distante da outra ainda mais para mulheres. Né?”

  • “Saúde com certeza. É muito mais importante a gente ter saúde do que a beleza. Isso é fato”.

  • “Pra mim é mais pra manter a forma mesmo. Não penso nem tanto na saúde a atividade física mais para estar mantendo a forma mesmo”.

  • “Saúde. É claro, mas sem deixar a beleza em segundo plano. Eu acho que é mais importante a saúde, claro. Se não você não fica bela”.

  • “Representa saúde e beleza também”.

  • “Ah!!! (...) Pode ser a beleza, pode ser a saúde. Ah, (...) uma vaidade. Né? A gente faz por vaidade, mais também representa a beleza também”.

  • “Eu priorizo a saúde hoje mais do que a beleza. Acho que a gente vai ficando mais velha, vai priorizando mais a saúde. Mas acho que é saudável também, cuidar da aparência. Então eu considero beleza é (...) parte vamos dizer assim da saúde. Eu gosto de estar bem. Então eu cuido também da parte estética porque considero isso um hábito saudável. Uma conduta saudável. Né? Eu gosto. Né? De me sentir bem, de estar. De me olhar e vê que eu (...) enfim, que eu estou bem fisicamente”.

  • “Em primeiro lugar a saúde e depois a estética, a beleza”.

  • “Eu não me preocupo só com a beleza, não. Mas pelo menos está próximo. Né?”

  • “Saúde, sem dúvida alguma saúde. Com ela nós conseguimos a beleza e todo o resto. Encerrado. (risos)”.

    Percebemos então que beleza e saúde são representados como valores não separáveis entre si. Em alguns momentos, um ou outro aparece com uma conotação mais precisa, como podemos ver nos seguintes excertos:

  • “Além (...) do próprio exercício físico. Né? Que eu que tenho problema de enxaqueca, já fui recomendada pelo médico a vir fazer exercício físico para melhorar a enxaqueca e realmente eu melhorei bastante. Né? Então uma questão de saúde. Né?” (Prioridade da saúde).

  • “Olha eu era muito incomodada com a pele que eu tinha por causa da gravidez. Né? Duas. Aí a pele ficou mesmo mole. Né? Porque a barriga vai, volta. Né? (...) Então enquanto eu não consertei, então quer dizer pra mim a cirurgia plástica foi tudo porque me trouxe minha (...)” (Prioridade estética).

    Todavia, no escopo geral dos depoimentos, priorizações desta natureza não se verificam, predominando a interdependência entre ambos. Resultado semelhante foi encontrado em uma pesquisa feita por Castro (2003), onde a autora detectou que entre os praticantes regulares de atividades físicas em academia a necessidade de obter um corpo belo e funcionalmente integro, em se tratando do bom funcionamento de tecidos e órgãos, aparece como o grande imperativo que motiva suas idas diárias aos treinamentos. Parafraseando Durkheim (1978), estamos diante de uma norma interiorizada por parte deste grupo cujo singularidade não é outra senão a constatação de que um fator não vige sem a interdição do outro que lhe é adjacente e que contribui para defini-lo enquanto categoria de pensamento.

Tensão parte X todo

    Nesta categoria trabalharemos em outra idéia também recorrente entre as entrevistadas, a de que mudando uma parte do corpo, aparecem efeitos que se desdobram para todo o resto. A título de ilustração:

  • “Olha eu gosto de ter pernas bonitas, é barriga bonita sequinha. E (...) braço eu não gosto muito não, na verdade, vou falar a verdade eu detesto fazer exercício de braço faço mesmo para não ficar tudo caído, mais eu detesto (risadas)”.

  • “Eu acho que é o abdome. Eu assim tinha o pavor de ter é (...) barriga”.

  • “No corpo feminino mais a cintura (risadas) Eu acho o que é o que mais deixa a mulher bonita se ela tiver cintura bonitinha, bem fininha. Acho que fica a mulher muito mais bonita com certeza”.

  • “Perna (risadas) a bunda também fica (risadas) mas o mais importante pernas. Não sei se é porque eu preciso muito malhar perna e estou dando muita importância a ela. Acho que perna é essencial”.

  • “É bonito um físico assim (...) Bem torneado (riso)”.

  • “A região do corpo que eu mais me dedico, que eu mais cuido é (...) é com as pernas, e a bunda. Né? Quadril e coxa (risos)”.

  • “Eu já falei para você que eu gostava muito da perna, que é o que eu mais cuido é verdade. Mas o rosto também, agora eu estou vendo aqui no espelho, eu cuido muito do meu rosto também”.

  • “A barriga, uma cintura delineada, é coxa sem imperfeições pelo menos procurar não ter muita celulite”.

  • “Eu acho que o rosto, as pernas, quando bem (...) Tudo tem que estar bem, então a gente tem que cuidar de tudo”.

    Essa predileção fica nítida quando observamos o perfil das séries e os tipos de exercícios praticados pelas entrevistadas. De acordo com o relato de nosso diário de campo, aduzimos que a ênfase dos exercícios incide sobre os membros inferiores: quadril, região glútea e abdome. Aulas de body jump, body combat, spinning, lambaeróbica, ginástica localizada e GAP foram algumas das mencionadas na qualidade de mais preferidas.

    Chama a atenção, dentre as falas selecionadas, a fragmentação do corpo em unidades, unidades essas que correspondem aquelas com maior carga erótica na cultura popular brasileira. Pelos depoimentos, subentende-se que a transformação material de partes do corpo condicionam a formação de identidades. Ou seja, pela mudança destes segmentos chega-se ao caminho de uma salvação simbólica de si mesmo na direção de um suposto paraíso perdido sequioso de alcance a qualquer custo.

    Nunca o corpo-simulacro, o corpo-descartável foi tão exaltado como nos dias de hoje. Órgãos sem corpo são fixações parciais que massacram o próprio corpo. Boca, seios, olhos, pernas, genitália esfacelada, moldada: não se trata mais de um corpo, mas de um acumulo de órgãos colados em algo que se denomina corpo. (Le Breton, 2003, p. 10).

    É neste imaginário que Le Breton (2003), nos mostra que, no mundo contemporâneo, há um convite implícito para a construção do corpo, modelagem da aparência e ocultação do envelhecimento. Na perspectiva de se manterem jovens e belas, essas mulheres tentam retardar a sua velhice, lutando contra si, perdendo-se no espelho à procura de si mesmas. Como aponta Mendlowicz (citado por Novaes, 2006) em uma sociedade globalizada, dividida entre ganhadores e perdedores e sem ideais, os indivíduos se entregam as compulsões. Nessa urgência, qualquer espera equivale ao desespero perante o corpo, causado por uma enorme intolerância àquilo que o atrapalhe em sua busca pela perfeição.

    A biotecnologia ou a medicina moderna privilegia o mecanismo corporal, o arranjo sutil de um organismo percebido como uma coleção de (...) funções potencialmente substituíveis. O sujeito como tal aí representa um resto (...) Um dicionário moderno de idéias feitas escreveria hoje no verbete corpo: uma máquina maravilhosa. (Le Breton, 2003, p. 18-19).

    E nada mais distante da perfeição, na atual sociedade, do que a velhice e seus infortúnios.

    Contudo, é necessário cautela para se pensar compreensivamente essas mulheres. É necessário que elas reavaliem as perspectivas em relação aos seus corpos, entendendo-os como expressão de sua real história de vida e também da espécie da qual fazem parte. Um potencial caminho filosófico que dialeticamente se abre quando atentamos para a necessidade de melhor discussão essa questão está na própria metáfora da máquina maravilhosa de Le Breton (2003).

    Tal formulação é ambivalente, no sentido de que pode ser lida a partir de uma outra perspectiva: não é o corpo que é uma máquina maravilhosa, mas sim a máquina uma proposta paradigmática de corpo maravilhoso, subentendendo a vigência de um estado vital pós humano em vias de ser atingido onde as imperfeições da origem serão todas retificadas. Simbolicamente, o que está em jogo alude a uma redenção da Queda do Éden via as reparações artificiais e cirúrgicas da tecno-ciência.

Considerações finais

    Em linhas gerais, o cômputo maior de nosso estudo, da maneira como veio sendo exposto a partir da seção introdutória, revelou que desde as civilizações mais antigas, a crescente integração do público feminino mundial e nacional às práticas corporais de atividades físicas com fins recreativos, de competição, de saúde etc. deu-se através de avanços e quebras com tradições, o que não deixa de ser o próprio movimento dos fluxos da história até o momento atual. Diante dessa interdependência, em cujo centro estão justamente nuanças da subjetividade feminina vistas na sua dimensão temporal tanto individual como coletiva, a estratégia teórica que escolhemos para fundamentar o entendimento de como ela constrói-se, e mesmo subsidiar a coleta de informações empíricas em se tratando de sua singela situação no estágio presente, foi a teoria das representações sociais.

    Além disso, dado o peso que os instrumentos de comunicação de massa exercem no mundo contemporâneo, principalmente o recurso à publicidade imagética que tem na exibição do corpo feminino um de seus principais artifícios de linguagem, também procuramos colocar informações conceituais pertinentes à esse fenômeno na nossa argumentação, tendo em vista que, pela sua historicidade, é de se esperar que repercutam de algum modo nos processos de representação das próprias mulheres acerca de sua dimensão corporal.

    Isto posto, e em consonância com a parte formal do trabalho onde anunciamos o problema a ser investigado, o objetivo a ser atingido e os procedimentos metodológicos para coleta e interpretação de dados de campo, podemos agora responder a questão norteadora do estudo. Vimos que nossas entrevistadas têm a busca da ancestral idéia de felicidade como um dos motores de suas vidas, motores esses que perpassam a sensação de sentirem-se melhor em relação a si mesmas tendo-se como referência um padrão que lhes guia. Todas despendem razoáveis esforços (psíquicos, materiais, financeiros, farmacológicos, físicos, etc.) para, consoante esse padrão, transformarem seus corpos e com isso, gozarem de uma experiência de satisfação estética não raro temporária. Essa experiência condiz com uma certa maneira de se ver equilibrado e não dissonante. Estando em conformidade, elas sentem-se saudáveis, mas não olvidam que gozando de saúde, tendem a superar desequilíbrios com menos dificuldades.

    Na medida em que o grupo assume que, implicitamente, canaliza seus esforços para os fins anunciados pela intervenção cirúrgica e em nenhum momento sequer faz menção aos eventuais lugares que o treinamento poderia ocupar nesse complexo situacional, mesmo sendo todas praticantes de atividades físicas, isso leva a constatação de que ele não enxerga o treinamento como um processo de transformação estética do corpo, pelo menos não na direção do que é consensualmente considerado mudado ou mutável. Por outro lado, Isso mostra que o horizonte das metamorfoses almejadas situa-se muito distante do que efetivamente esse processo pedagógico consegue ocasionar. Nesse sentido, a cirurgia não é vista como mecanismo de emenda do que faltou ao treinamento, mas sim o processo primário mesmo de modificação corporal consoante as referências e critérios dessas mulheres.

    Uma vez que, pelas teorias do treinamento desportivo, uma das apregoações feitas em se tratando dos efeitos de seus conteúdos didáticos materiais (ginástica, lutas, jogos, desportos, etc.) diz respeito à transformação estética do corpo, em se tratando dos resultados desse trabalho, essa consideração há que ser relativizada antropologicamente, o que abre margem para estudos e debates futuros.

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