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A influência da matriz africana na cultura corporal carioca

The influence of the matrix in African culture body carioca

 

*Graduando em Educação Física pela Universidade Castelo Branco (UCB/RJ)

Vice-presidente da Confederação de Estudantes de Educação Física do Brasil (CEEF-Br)

Integrante do Grupo de Cultura Corporal da UCB/RJ

**Graduando em Educação Física pela UCB/RJ

Pós-graduando em Elaboração e Gestão de Projetos Sócio-esportivos pela UCB/RJ

Integrante do Grupo de Cultura Corporal da UCB/RJ

***Licenciado em Educação Física pela UCB/RJ

Pós-graduando em Elaboração e Gestão de Projetos Sócio-esportivos pela UCB/RJ

Integrante do Grupo de Cultura Corporal da UCB/RJ

****Docentes do curso de Educação Física da Universidade Castelo Branco (UCB/RJ)

Professores responsáveis pelo Grupo de Cultura Corporal da UCB/RJ

(Brasil)

Fabiano da Silva Parangaba*

fabianoparangaba@hotmail.com

Maurício Fidelis**

mauriciofidelis@hotmail.com

Rafael Valladão***

rafael-valladao@hotmail.com

Sérgio Ferreira Tavares****

sergiof.tavares@hotmail.com

Bruno Castro****

brunocastro@colegiosantamonica.com.br

Daniela Marcondes****

daniucbmarcondes@gmail.com

 

 

 

Resumo

          Muito antes dos portugueses reinventarem a escravidão, no século XVI, pelo tráfico dos navios negreiros para as colônias, as sociedades africanas já promoviam o escravismo entre suas nações que guerreavam entre si. Os escravos que sobreviviam às atrocidades cometidas durante a viagem, vinham para o Brasil para serem vendidos e trabalhar para os seus senhores. No Rio de Janeiro manifestações de influência cultural africana como o candomblé, capoeira, jongo, lundu, maxixe, samba, funk, foram determinantes para a construção da cultura corporal local. Esta pesquisa buscou realizar um ensaio histórico sobre a influência do negro na sociedade e sua relevância para a construção do corpo carioca.

          Unitermos: África. Rio de Janeiro. Corpo.

 

Abstract
          Long before the Portuguese reinvent the slavery in the sixteenth century, the trafficking of slave ships to the colonies, the African societies already pushed the escravismo between their nations to war with each other. The slaves who survived the atrocities committed during the trip, came to Brazil to be sold and work for their masters. In Rio de Janeiro cultural influences from African to Candomblé, poultry, Jong, lundu, gherkin, samba, funk, were instrumental in building the culture body carioca. This research aimed achieve a historic test on the influence of black people in society and its relevance to the body of carioca.

          Keywords: Africa. Rio de Janeiro. Body.

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 13 - Nº 128 - Enero de 2009

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Ao prof. Dr. Manoel Tubino (in memorian)

    O Grupo de Cultura Corporal da Universidade Castelo Branco (RJ), dedica esta pesquisa à memória do Prof. Dr. Manoel José Gomes Tubino, falecido na madrugada do dia 18 para o dia 19 de dezembro de 2008.

    Este grande ícone da Educação Física brasileira, sempre nos inspirou e motivou à prática da pesquisa científica, em um âmbito mais filosófico, sociológico e cultural. Apesar de não o termos conhecido pessoalmente, tivemos o privilégio de ler alguns livros e assistir algumas das palestras desse gigante de nossa profissão. Nunca nos esqueceremos de suas palavras, quando em tom irreverente dizia que não devemos observar somente o mundo a partir de uma mitocôndria, fazendo alusão à importância das ciências humanas e sociais para a Educação Física.

    Obrigado por tudo que o senhor fez e faz (onde quer que esteja) pela Educação Física no Brasil e no mundo!

Da África ao Brasil: retratos da escravidão e do tráfico

    Ao longo da história da humanidade, ocorre uma prática humana malsã, em que um ser humano priva o outro de seus direitos na sociedade em que está inserido, não permite o transitar livremente ou a escolha do que este vai fazer. Este tipo de ser humano acaba por tornar-se senhor do outro, em uma situação onde os indivíduos podem ser barbaramente torturados por seus “senhores”, sendo obrigados a submeterem-se aos mais variados interesses e tipos de trabalho, onde a vítima de seu algoz não é mais vista como um membro completo da sociedade, mas como um ser inferior e sem direitos. Este é o retrato da escravidão. Mas antes de começar a falar de escravidão, faz-se mister o entendimentos das relações sociais da África, no período em que antecedeu a chegada dos europeus ao continente.

    A África, segundo Souza (2006), era formada por reinos como Iorubás, Congo, Sudão Ocidental, entre outros, além de cidades ou pequenos grupos familiares, organizados em aldeias. Era o líder da aldeia que tomava as decisões políticas, com o auxílio de um conselho, representado pelos chefes das famílias que dele faziam parte, e os responsáveis pelos assuntos ligados ao sobrenatural, também, eram muito importantes para tal. Todos os conhecimentos vinham dos mais velhos, que mesmo depois de mortos continuavam influenciando a vida. As aldeias muitas vezes se organizavam em confederações que prestavam obediência ao líder do conselho de chefes destas. Casamentos e trocas de produtos era, na maioria das vezes, o que mantinha o contato entre as aldeias.

    Essa organização mais complexa das aldeias, onde as divisões de poderes eram mais bem estruturadas, constituíam as capitais dos reinos, que tiveram tamanhos variados. Além dos reinos, aldeias e grupo nômades – pastores, coletores e caçadores – haviam as cidades cercadas por muros feitos de terra, que não chegavam a formar um reino.

    Desde os tempos mais remotos homens escravizaram outros homens, onde, segundo Souza (2006), as guerras, foram as maiores fontes de escravos sendo postos para trabalhar ou vendidos como mercadoria. Haviam também, os casos que tornavam-se escravos os condenados por transgressões e crimes cometidos, como rebeliões nos reinos, ou ainda em possibilidade de pagar dívidas, ou de sobreviver por falta de recursos.

    Em território africano, o tráfico desenvolveu-se principalmente na costa ocidental, onde os chefes tribais capturavam os negros das tribos inimigas, para os negociarem como escravos, com os traficantes, trocados a preços de bebidas, armas, tecidos e enfeites. Na Bahia, havia a predominância de negros capturados da região da Guiné, chamados sudaneses. Já no Rio de Janeiro, foram mandados negros conhecidos como Banto, que atualmente corresponde à Angola, Moçambique e Congo (YAMASAKI et al, 2006).

    Era este o contexto das relações escravocratas, encontradas em muitas sociedades africanas antes dos europeus reinventarem a exploração, na forma de tráfico de escravos nos navios negreiros, para as colônias. Os portugueses inspirados pela possibilidade de quebrar o controle de alguns comerciantes (maioria italiana) do mar Mediterrâneo, lançaram suas expedições às costas Atlânticas africanas na primeira metade do século XV.

    O reino de Portugal, com o argumento de estar levando a mensagem do Cristo, se apossaram de terras e subordinaram populações, com a justificava que eram infiéis, seguidores de Maomé, considerados inimigos, portanto podiam ser escravizados, afinal, era “justo” guerrear contra os hereges. Porém, mais ao sul, além do rio Senegal, haviam povos que não eram islamizados, não eram subversivos, não eram “inimigos”, mas eram pagãos. E no entender dos portugueses, estes poderiam ser, também, escravizados e convertidos ao cristianismo, onde teriam uma chance de salvar suas almas, na vida além da vida (SOUZA, 2006).

    Apesar de ter usado o cristianismo para a legitimação de seu poder, Portugal também teve que negociar com as lideranças locais, africanas, a obtenção de escravos para seu empreendimento nas colonias.

    Do século XVI ao XIX o comércio de escravos na costa Atlântica da África foi negócio entre comerciantes europeus e africanos, ou representantes dos reis africanos, pois na maioria das vezes eram estes os grandes fornecedores de escravos para os navios negreiros. As trocas eram feitas em alguns pontos da costa, seguindo regras estabelecidas principalmente pelas sociedades africanas (SOUZA, 2006, p. 60).

    Os escravos sequestrados pelos portugueses, “viajavam para o Brasil em navios, chamados de tumbeiros, durante cerca de 40 dias e em precária situação” (YAMASAKI et al, 2006, p. 19). Segundo Bueno (s/a), por mais de 300 anos, os navios negreiros (ou tumbeiros) cruzaram o Atlântico, desde a costa oeste da África até a costa nordeste do Brasil, na qual mais de três milhões de africanos fizeram uma viajem sem retorno em condições subumanas, vítimas das mais cruéis atrocidades.

    Bourdoukan (2001), em seu romance, A Incrível e Fascinante História do Capitão Moura, baseado em fatos reais, nos dá uma noção, nos diário de bordo, do que sofriam os negros nesses navios:

    Um condenado foi estrangulado e arrancamos-lhe o fígado, o coração e os intestinos. Seu corpo foi cortado em pedaços. Obrigamos alguns escravos a comerem esses pedaços. Amarramos ontem os negros mais culpados, autores da revolta, pelos quatro membros. Deitados de bruços em cima da ponte, fizemos-lhes escarnificações nas nádegas para que sentissem melhor suas faltas. Depois de ter posto as nádegas em sangue pelos açoites e escarnificações, pusemos em cima pólvora, suco de limão, salmoura e pimenta. Uma negra foi suspensa a um mastro e flagelada. Depois, com tesouras arrancamos cem filetes de carne até os ossos aparecerem. Hoje, para fugirmos da fiscalização, jogamos toda a carga no mar. Mais de trezentos escravos morreram afogados. Hoje, cortamos o pescoço de alguns escravos que ameaçavam se rebelar. Foi um bom exemplo. Hoje, cortamos os dedos e as mãos de vários escravos que reclamavam. Perdemos mais de 150 que não resistiram à viagem (BOURDOUKAN, 2001, p. 29).

O Brasil africano

    A chegada ao Brasil das primeiras levas de escravos, vindas da África, se dava por volta de 1549, com o primeiro contingente a desembarcar em São Vicente, atual Estado de São Paulo. Neste período, o rei de Portugal D. João III, autorizava a posse de, somente, 120 escravos africanos por propriedade (LOPES, 1992). Já em 1779 metade da população brasileira era de escravos (ANCHIETA, 1995).

    Moura (1992) afirma ainda, que os portugueses davam pouca importância em assinalar de maneira precisa as diversas culturas, línguas e grupos étnicos africanos em seus registros, devido a complexidade decorrente da mentalidade destes, que não consideravam o negro um ser humano. À grosso modo, para Moura (1992), os negros eram divididos em dois grandes grupos étnicos: os bantos – predominantes da África equatorial e tropical, da região do Golfo da Guiné, Congo e Angola, dos Planaltos da África Oriental e Costa Sul Oriental; os sudaneses - predominantes da África Ocidental, Sudão egípico e na Costa sentetrional do Golfo da Guiné.

    Já para Anchieta (1995), entraram no Brasil, mais de 280 etnias, dentre as quais destacaram-se: Mushi-congos, Benguelas, Cambindas, Endembos, Yorubas, Ijeshas, Oyos, Haussas, Mandingas, Fantins, Ashantis, Minas, Fons, Mahies, Isebus, Fulanis, Ibos, krobos, bantos, zulus.

    Era um dia-a-dia de trabalho pesado e desgastante. Os escravos, à noite, eram conduzidos aos armazéns e o condutor ficava de pé, contando-os à medida que passavam. O trabalho árduo do escravo era de 14 à 16 horas diárias, fiscalizadas pelo feitor que não admitia pausa ou distração. Quando o escravo era considerado preguiçoso ou insubordinado, vinham os açoites, entre os principais: o tronco e o pelourinho (MOURA, 1992). Os fugidos, encontrados nos quilombos eram marcados com um F na testa, e no caso de reincidência, cortavam-lhes as orelhas (BOURDOUKAN, 2001).

    Tendo em vista que o Brasil, era um verdadeiro porto de escravos de variadas tribos, sendo comparado por alguns traficantes como o porto de Luanda, estes escravos traziam, dentro de si, o ódio de tribos rivais que aqui se encontravam. Para muitos, eram apenas uma massa homogênea de pessoas negras, que aqui estavam, e que foram arrancadas de seus lares para atender aos anseios dos escravocratas, uma classe que estava se fortalecendo. Porém, a variedade de culturas das nações africanas foram forjando aos poucos a identidade cultural do brasileiro. Cultura esta que emana de verdadeiras lutas, seja no campo ideológico e/ou de batalha.

    Muitas foram as justificativas encontradas nas praças, nas fazendas e nos portos brasileiros pra justificarem a chegada frenética de navios tumbeiros no país, a colônia estava se desenvolvendo, e gerando muitos lucros para a sua matriz portuguesa, então a escravidão além de ser um comércio altamente lucrativo, apesar das muitas baixas, impulsionava a produção do açúcar, café, ouro, etc. Havia um sistema cíclico dependente, que tinha como mola propulsora à mão-de-obra escrava.

    Neste contexto, surgia no mundo, e no Brasil não foi diferente, movimentos abolicionistas, contrários ao regime escravocrata, dotados de argumentos, relevantes, em defesa do fim da escravidão. Em contra partida, fazia-se cada vez mais necessário, aos grupos favoráveis à escravidão, buscar respostas para serem dadas à estes movimentos, bem como à sociedade da época.

    Uma delas, por exemplo, era o "mito de Can", que “encontra” dentro da Bíblia respostas que confirmassem esta prática:

    E os filhos de Noé que saíram da arca eram: Sem, Cam e Jafé: e Cam é o pai de Canaã. Este são os três filhos de Noé: e a partir deles toda terra foi povoada. E Noé começou a lavrar a terra, e plantou uma vinha. E bebeu o vinho, e ficou embriagado; e despiu-se em sua tenda. E Cam, o pai de Canaã, viu a nudez do pai, e sem demora contou à seus irmãos. Então, Sem e Jafé pegaram uma capa, e a colocaram sobre os ombros, e andaram de costas, e cobriram a nudez de seu pai; e seus rostos ficaram voltados para trás, e não viram a nudez de seu pai. E Noé despertou de sua embriaguez, e soube o que lhe tinha feito o seu filho mais novo. E disse: Bendito seja o senhor Deus de Sem; e Canaã será seu servo. Que Deus aumente as posses de Jafé e que ele resida nas tendas de Sem; e Canaã será seu servo (GÊNESES, 9:18, 27).

    Deste pensamento nasceu uma das várias justificativas para a escravidão, pois pensava-se que os negros eram descendentes diretos de Canaã que fora amaldiçoado pelo seu avô Noé, e que deveria então servir à Sem. Embora o termo mais adequado seja escravo, sobre isso diz Blackburn (2003): "A tradução inglesa da bíblia do rei Jaime descreve o destino de Canaã como o de "servo dos senhores", embora fosse mais exato escrever "escravos", como fizeram outras traduções" (p. 87).

    Não há possibilidades de se desvencilhar da religião como grande vetor de conflitos no que tange as relações de senhor – escravo; escravo – escravo e até mesmo senhor – senhor. Muitas eram as tribos indígenas, muitos eram os cultos, e até mesmo dentro da igreja católica existiam divergências e pluralidade de movimentos. Esta grande gama de religiões influiu em movimentos de resistência que deixaram traços muito fortes da cultura afro-brasileira, e ainda tiveram que lutar para não se descaracterizarem, e nem se perderem, em meio a tantos conflitos.

    Este sincretismo cultural e religioso na sua origem, não eram tão unificados como nos dias atuais, as várias etnias que aportaram traziam na sua constituição cultural e religiosa signos muito singulares e como em qualquer choque de culturas geravam conflitos que eram maquiavelicamente incitados pelos seus senhores, já que assim não se poderia constituir uma "nação" africana dentro dos estados brasileiros, impedindo assim revoltas como as que aconteceram na Bahia pelos Malês que são oriundos das nações Hauçá e Nagôs. Tribos estas que foram escravizadas por muçulmanos. Male é, segundo a Wikipédia (2008), uma palavra oriunda do ioruba "Imale" que designa o muçulmano ou negros muçulmanos. Esta nação passou a ser repelida dos portos brasileiros, pelas suas características guerreiras, pelo seu conhecimentos de técnicas de guerrilha, e pelo seu elevado grau de instrução.

    Segundo Carise (s/d) os Nagôs e os bantos foram as duas nações que mais contribuições deram ao Brasil na formação da sua identidade cultural. A maioria dos Orixás, o Candomblé, a iguarias, instrumentos como agogôs, tambores e atabaques são características fortes dos nagôs; já os bantos acrescentaram aqui as cantigas, instrumentos de sopro. Embora o movimento de resistência cultural muito forte perpetuado pelos negros, que acabaram por criar lugares que poderiam ser consideradas réplicas perfeitas da África, e de suas tribos, apesar de tudo isso muitos negros africanos eram acometidos pelo que se chamava: O Banzo, que era um estado de tristeza profunda, que o levava a definhar até a morte, pela saudade que estes sentiam de sua terra.

    O batuque de Angola, que migrou para os grandes centros na forma do Lundu, do coco e posteriormente samba, o batuque que é um traço tão forte desse povo, e que vimos de forma tão concreta em seus Orixás, que são deuses que dançam.

    A cultura africana segundo Anchieta (1995) não desenvolveu a escrita, porém os cantos e os batuques eram os responsáveis por transmitir as informações culturais, a religiosas e familiares, os movimentos das danças e o sentimento carregado das canções, tinha por finalidade a transmissão deste legado.

    E na força deste batuque, na queda do "império do açúcar” na Bahia e do novo expoente econômico que vinham se tornando um Estado, como o Rio de Janeiro, com a produção do café, sendo a capital do império e considerado um lugar de sonhos para muitos escravos alforriados, ocorre assim uma verdadeira "diáspora" de negros do nordeste para as terras cariocas.

A África carioca e o batuque

    A decadência do açúcar na Bahia e a expansão do café no Rio de Janeiro, faz com que a cidade absorva o excedente de negros dos engenhos. Esses negros começam a se arregimentar, em um local conhecido como Pedra da Prainha, que posteriormente se chamaria Pedra do Sal.

    As obras lideradas pelo prefeito da época, Pereira Passos, na zona portuária, retirando dali muitas pessoas para que pudesse acontecer a construção de armazéns e de uma avenida interligada a linha férrea, gera algumas conseqüências descritas por Moura (1995, p. 57):

    Com a destruição de muitas das velhas casas nas ruas imediatas ao cais, muitos negros sobem a antiga rua do sabão, que, começando no porto, chegava até o campo de Santana (Centro da Cidade do rio), e de lá, numa extensão, subia até a cidade nova, onde passavam a se apertar, os recém-chegados, com seus primitivos moradores. É nessa área onde, já então na virada do século, voltam a se concentrar os baianos, em torno das ruas Visconde de Itúana e senador Eusébio, Santana e marquês do Pombal, convergindo na Praça Onze.

    Sendo a Praça Onze logo depois considerada "A pequena áfrica", pois nela aconteciam muitos eventos culturais dos negros, se via ali, os capoeiristas, o candomblé, os malandros que se tornaram personagem marcantes da cultura carioca, o próprio samba tem uma ligação muito visceral com este ponto da cidade, pois nele morava uma personagem que tem a sua história vinculado aos ranchos que posteriormente deram lugar às grandes escolas de samba da cidade do Rio de Janeiro.

    Dona Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata, representa essa personagem que se casara com João batista da Silva, que ganhou um cargo no gabinete de polícia, concedido pelo presidente Wenceslau Brás, por sua esposa ter tratado de um equizema na perna do presidente com ervas.

    As batucadas e sambas da época tão reprimidos encontravam agora na “pequena áfrica” um reduto seguro, já que o marido de Tia Ciata gozava de certo respeito e autoridade. E nesse ambiente calmo tinham freqüentadores, segundo Moura (1995), como Pixinguinha, Donga, João da baiana, Heitor dos prazeres, entre outros.

    Tia ciata é um dos muitos personagens que trouxeram em seu código cultural o batuque. E é ao batuque que vamos nos ater, na força que este elemento que é muito mais energia do que matéria, tem conotações, em variados momentos de nossa história, na história do negro e posteriormente do carioca. O batuque pode simbolizar o som da guerra, assim como um culto a um Orixá específico, ou os momentos de extrema tristeza - ou Banzo - e de muita alegria. O batuque que sempre apresentou inúmeras representações sobre muitas coisas tem sua marca mais forte dentro da religião do negro, e por conta disto foi perseguido de forma impiedosa.

    No Rio de Janeiro não havia distinção do que era samba, capoeira, candomblé, tudo era denominado batuque, e só isso já era o suficiente para que prisões fossem feitas, e que as praças do rio se tornassem verdadeiros ringues. O início do século XIX foi marcado por muitas revoltas, e em muitas delas os negros com seus batuques foram associados e perseguidos.

    E este som que anteriormente representava resistência, preservação alento começou a ganhar espaço, numa cidade que não apresentava muitas opções de divertimento. Com exceção das festas religiosas, começa a efervescência de ritmos, que através de algumas simbioses dão a origem ao chorinho, maxixe, Foxtrote, lundu, samba, funk, dentre outros. Ritmos que reuniam vários signos culturais que ajudaram a construir um corpo, um corpo específico, um corpo carioca, um símbolo de uma cultura que serviu e até hoje serve como referência.

O corpo afro-carioca na atualidade

    Para que possamos observar a manifestação da cultura corporal carioca, faz-se necessário verificar sua interligação com o perfil das sociedades, da diversidade cultural destas e os indivíduos que nelas estão inseridos. Em virtude disto, as manifestações culturais, e de cultura corporal, podem ser classificadas, qualificadas (e quantificadas?) de acordo com o perfil de sociedade que estamos observando (MERLO E TAVARES, 2006).

    A constituição do corpo do carioca, feita e atrelada à própria história dos ritmos no Rio de Janeiro, ganharam força e criaram uma cultura corporal muito forte e singular. O movimento peculiar, que distingue o povo carioca, deve muito a cultura africana, que foi emprestada e transformada em um código próprio, através de um processo de incorporação, como afirma Daolio apud Valladão (2008, p.7):

    [...] um indivíduo incorpora algum novo comportamento ao conjunto de seus atos, ou uma nova palavra ao seu vocabulário ou, ainda, um novo conhecimento ao seu repertório cognitivo. Mais do que um aprendizado intelectual, o indivíduo adquire um conteúdo cultural, que se instala no seu corpo, no conjunto de suas expressões.

    O corpo do capoeirista é marcado pelos signos sociais daqueles guerreiros que foram arrancados de seus lares, e pelo seu porte e vigor eram trazidos, pois acreditava-se que estes renderia melhor nas lavouras, e resistiriam às viagens pelo oceano. Destes grupos e da resistência que os mesmos apresentavam naquilo que tangia a preservação da sua cultura nasceu à capoeira, desta luta que muito se assemelha a uma dança, marca registrada da cultura negra, pois desta forma, culturalmente, se faz o corpo. Neste contexto é que a sociedade o transforma. É como já disseram: “o que o corpo fala é o que o social está falando através do corpo” (MEDINA, 2005, p. 66).

    Dentro da formação cultural do carioca, sob a ótica da matriz africana, pode-se dizer que diversas manifestações artísticas como o jongo, lundu, maxixe, samba e o funk, foram fortes precursores desta assimilação, tendo em vista a sua influência na determinação dos signos sociais do corpo do carioca.

    O corpo é apropriado pela cultura. Vai sendo cada vez mais um suporte de signos sociais. É modelado como projeção do social. (...) Como dizem, é necessária a preparação (do corpo) para o convívio em sociedade. É preciso aprender as regras sociais. Começa a divisão. Começa a educação (MEDINA, 2005, p. 65-66).

    O lundu, por exemplo, foi considerado a primeira manifestação coreográfica dos negros, e foi proibido no Brasil, por volta de 1780. Alguns anos depois as letras no lundu começaram a ganhar um duplo sentido, mais ou menos como acontece com o funk atualmente (LEME, 2008).

    Além da riqueza cultural, manifestada pelo corpo do carioca, podemos observar, também, os resquícios da época da escravidão, onde ocorria o preconceito contra o negro usado e vendido como mercadoria, explorado, alforriado e condenado a sobreviver em condições subumanas. Ainda hoje o racismo, a desvalorização (e banalização?) da cultura negra, a “endemonização” das religiões afro-descendentes, entre outras discriminações, se fazem presente na cultura carioca de maneira, as vezes sutil, as vezes declarada.

    Para que tais absurdos não venham ocorrer, às pessoa que realizam mais livremente seus próprios desejos, que dançam, que tocam, que lutam, que cantam, que exprimem através de seu corpo uma cultura historicamente construída, é necessário que cresçam, não em suas individualidades absolutas, mas em suas relações com os outros e com o mundo, sendo necessário o respeito ao princípio da alteridade, aprendendo a lidar com as diferenças, não vendo os costumes e as práticas de um outro grupo como certa ou errada, e sim buscar compreender a importância de determinada prática, para determinado grupo (MEDINA; DAOLIO, 2005, 2007).

Considerações finais

    As manifestações culturais da cidade do Rio de Janeiro, que hoje em dia se aprende a admirar, participar, incorporar, compreender, se surpreender, sofreram forte influência da matriz africana, trazida com a escravidão, durante quase 500 anos de história brasileira. Atualmente essa história de dores, flagelos, alegrias e irreverências pode ser lida no corpo do carioca, na sensualidade dos passos de funk, do samba, na agilidade dos golpes da temida capoeira e no batuque, que também pode, hoje, ser chamado de brasileiro.

    Fica clara também a necessidade de uma pesquisa mais ampla, sobre as manifestações da cultura africana no rio e de todo o material produzido no período histórico da escravidão, como: registros, documentos, críticas, reportagens que por, talvez, desconsiderando a contribuição que a cultura negra daria à cidade, não desfrutaram dos benefícios de registro e divulgação, dificultando o acesso dos pesquisadores à essas informações que correm o risco de ficarem perdidas no tempo e até mesmo ocultadas pela discriminação e preconceito presentes na época.

    Na dimensão das manifestações artísticas também é necessário um maior aprofundamento no sentido de resgatar os passos, as danças, as coreografias, os artesanatos, enfim, toda representação simbólica da cultura afro-carioca e realizar pesquisas de campo com pessoas (ainda vivas) que conviveram e participaram do universo de criação destas obras, objetivando colher mais dados, que fundamentem as verdadeiras motivações dos precursores da construção da cultura negra, haja visto que o espaço reservado à história dessas manifestações é reduzido.

    Entende-se, portanto, que se faz importante e imediato, abandonar idéias preconcebidas que atribuem uma aparente simplicidade à cultura corporal do carioca e perceber que por meio das manifestações da matriz africana, emergem uma série de elementos sociais, formais e emocionais que estão presentes em vários campos do viver humano e nos auxiliam a compreender as diversas contradições da sociedade carioca (e brasileira) e formular estudos e sugestões para um melhor desenvolvimento da sociedade em que vivemos.

Referências

  • ANCHIETA, J. Ginástica afro-aeróbica. Rio de Janeiro: Shape, 1995.

  • BLACKBURN, R. A construção do escravismo no novo mundo, do barroco ao moderno 1492- 1800. Rio de Janeiro: Record, 2003.

  • BOURDOUKAN, G. L. A Incrível e Fascinante História do Capitão Moura. 6. ed. São Paulo: Casa Amarela, 2001.

  • BUENO, E. et al. História do Brasil. Porto Alegre: ZERO HORA/ RBS Jornal, s/a.

  • CARISE, I. de. A arte negra na cultura brasileira. Arte nova, s/a.

  • DAOLIO, J. Da cultura do corpo. 11. ed. São Paulo: Papirus, 2007.

  • GÊNESES: In: Bíblia Sagrada. tradução na linguagem de hoje. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1988.

  • LEME, M. Humor e malícia é coisa antiga na nossa música popular. Disponível em: http://www.inpauta.com.br/pdf/Humor_e_Malicia.pdf, Acesso em: 15 dez. 2008.

  • LOPES, N. O negro no Rio de Janeiro e a sua tradição musical. Rio de Janeiro: Pallas, 1992.

  • MEDINA, J. P. S. O brasileiro e seu corpo: Educação e política do corpo. 10. ed. São Paulo. Campinas: Papirus, 2005.

  • MERLO, T. E.; TAVARES, S. F. Cultura corporal e pensamento social brasileiro: modelo contemporâneo e dialéticas. Conexões, v. 4, n.1, 2006.

  • MOURA, C. História do negro brasileiro. 3. ed. São Paulo: Ática, 1992.

  • MOURA, R. Tia Ciata: e a pequena África no Rio de Janeiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Coleção Biblioteca Carioca, 1995.

  • SOUZA, M. de M. e. África e Brasil africano. São Paulo: Ática, 2006.

  • YAMASAKI, S. et al. Os Maiores Acontecimento da História do Brasil. São Paulo: Melhoramentos e Gold, 2006.

  • VALLADÃO, R. Micareta e “amor líquido”: a influência ideológica da indústria cultural sobre o corpo do micareteiro. Rio de Janeiro: Revista Ciência Online, 3º trimestre de 2008. Disponível em: http://www.parthenon.esp.br/revistacienciaonline/artigos/20080302.pdf, Acesso em: 18 dez. 2008.

  • WIKIPÉDIA, A enciclopédia livre. Revolta dos Malês. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Revolta_dos_Mal%C3%AAs, Acesso em 05 nov. 2008.

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