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Processos educativos nas lutas: uma experiência

inicial com a pedagogia dialógica

 

*Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Educação

(Área de Processos de Ensino e de Aprendizagem - bolsista CAPES) pela UFSCar/Brasil

Pesquisador no Núcleo de Estudos de Fenomenologia em Educação Física (NEFEF – UFSCar/Brasil)

Membro/Pesquisador da Diretoria da Sociedade de Pesquisa Qualitativa em Motricidade Humana (SPQMH).

** Pós-Doutor em Ciências Sociais pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa/Portugal

Coordenador do Núcleo de Estudos de Fenomenologia em Educação Física (NEFEF – UFSCar/Brasil)

Vice-Presidente da Sociedade de Pesquisa Qualitativa em Motricidade Humana (SPQMH)

Professor do Departamento de Educação Física e Motricidade Humana e do Programa de Pós-Graduação 

em Educação na Universidade Federal de São Carlos – DEFMH e PPGE/UFSCar

*** Doutor em Ciências da Saúde pela Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto

Membro da Comissão Técnica da Nihon Karate Kyokai - NKK

Professor do Departamento de Epidemiologia e Saúde Coletiva na

Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto – DESC/FAMERP

Victor Lage*

victorlage@gmail.com

Luiz Gonçalves Junior**

luiz@ufscar.br

Kazuo Kawano Nagamine***

kazuo@famerp.br

(Brasil)

 

 

 

Resumo

          Ao participarmos como educadores de encontros com freqüentadores do projeto de extensão “Vivências em Atividades Diversificadas de Lazer”, desenvolvido na Estação Comunitária do Jardim Gonzaga (ECO), no município de São Carlos (SP), observamos diversos gestos e movimentos relacionados às lutas, sejam nas brincadeiras de roda de capoeira, seja simplesmente na brincadeira de “lutinha”. A partir destas experiências propusemos a realização de uma intervenção com vivências em lutas, com o objetivo de compreender os processos educativos envolvidos/decorrentes da prática das lutas em uma intervenção fundamentada na pedagogia dialógica. A metodologia adotada foi qualitativa com inspiração na fenomenologia. As intervenções foram registradas em diários de campo, dos quais, após a identificação das unidades de significado, emergiram as seguintes categorias: A) “Aprendendo com o Outro”; B) “Proximidade”; C) “Resolvendo Conflitos”; D) “Lutando pela Vida”. Consideramos que partindo do saber de experiência feito, no desenvolvimento das vivências, houve um ambiente de participação contínua e ativa dos integrantes, os quais propuseram, modificaram, criaram, discutiram e dialogaram sobre as brincadeiras, as práticas de lutas, a estruturação do cronograma dos encontros, favorecendo o construir juntos as atividades e suas regras. Consideramos ainda que, a partir das vivências em lutas com aproximação embasada na pedagogia dialógica, identificamos processos educativos envolvidos/decorrentes que revelaram a importância da proximidade entre o educador-educando, o sentir/perceber/apreender a diversidade cultural pela vivência em grupo, respeitando a si mesmo e ao outro, seus saberes e experiências, o ser persistente e não esmorecer diante das adversidades colocadas pela vida.

          Unitermos: Processos educativos. Lutas. Pedagogia Dialógica.

 

Abstract

          To participate as educators in meetings with the extension project of "Living in diversified Leisure Activities", developed at the Community Jardim Gonzaga (ECO) in the municipality of São Carlos (SP), we noticed the presence of several gestures and movements related to fighting, are playing in Capoeira, or simply the game of "figthing". From these experiences proposed the holding of an intervention with experiences in fighting, in order to understand the involved educational processes from the practice of fights from perspective of Paulo Freire’s Pedagogy. The methodology chosen was qualitative, with inspiration in phenomenology. The interventions were systematically recorded in the daily book, of which, after identification of the units of meaning, emerged the following categories: A) "Learning from the Other"; B) "Proximity"; C) "Resolving Conflicts; "D)" Fighting for Life". We feel that the departing learn from experience made in the development of experiences in fighting, there was an environment of continuous and active participation of members, which proposed, modified, created, discussed and dialogue on the play, the practice of fighting, the schedule of meetings, the combine positions, build together the activities and its rules. We also believe that from the experiences in fighting closer to the dialogue proposed by Paulo Freire, identify educational processes involved, which showed the importance of proximity between the educator-learner, the feel/understand/apprehend the cultural diversity by living in groups, respecting himself and the other, their knowledge and experience, be persistent and not fade in face of adversity put by life.

          Keywords: Educational process. Fights. Dialogical Pedagogy.

 

          Versão preliminar deste artigo foi apresentada no VIII CONGRESSO NACIONAL DE EDUCAÇÃO – EDUCERE:
Formação de Professores – Edição Internacional. Curitiba: PUCPR, 2008. Agência Financiadora: CAPES

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 13 - Nº 127 - Diciembre de 2008

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Introdução

    Participando como educadores de encontros com freqüentadores do projeto de extensão do Departamento de Educação Física e Motricidade Humana (DEFMH) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), denominado “Vivências em Atividades Diversificadas de Lazer”, desenvolvido na Estação Comunitária (ECO) do Jardim Gonzaga, município de São Carlos, interior de São Paulo, pudemos conhecer cada vez mais sobre a comunidade e suas particularidades.

    Observamos uma corporalidade muito marcante, desde os gestos de afeto entre os participantes e educadores, até mesmo aos constantes conflitos entre as crianças, muitas vezes estes brigavam efetivamente entre si, outras vezes eram apenas ameaças. Outra característica interessante observada foi a grande presença dos movimentos relacionados às lutas, sejam nas brincadeiras de roda de capoeira, muito presente entre moradores do bairro em geral, seja simplesmente na brincadeira de “lutinha”, mais presente entre as crianças.

    A partir destas experiências propusemos para a supervisora da ECO a realização de uma intervenção com vivências em lutas (capoeira, huka-huka, jiu-jitsu, judô, karatê e sumô). Autorizados por ela e depois pelas crianças e adolescentes freqüentadores do espaço, bem como seus responsáveis, demos início a mesma.

    Com o objetivo de compreender os processos educativos envolvidos/decorrentes da prática das lutas em uma intervenção fundamentada na pedagogia dialógica realizada com participantes de vivências em lutas na ECO do Jardim Gonzaga desenvolvemos este estudo.

    Embora lutas, artes marciais e esportes de combate sejam denominações freqüentes a práticas corporais como capoeira, huka-huka, jiu-jitsu, judô, karatê, sumô, dentre outras, justificamos preterir os termos arte marcial e esporte de combate, pois o primeiro decorrente de “Marte”, deus da guerra para os gregos, se vinculando originariamente a preparação militar, enquanto que o segundo, mais usado contemporaneamente a partir do fenômeno da esportivização, supervaloriza o elemento espetacular-visual em detrimento de valores frequentemente presentes nas lutas, as quais mantêm raízes das respectivas culturas originárias (africana, oriental, indígena), tais como: persistência, humildade, dignidade, respeito e honra. Envolvendo, portanto, uma sabedoria de vida, um aprender a conduzir a própria vida, tornar-se pessoa 1, não fragmentando a vida em si mesma da atividade, como se esta fosse meramente física.

    Em outras palavras, ambas as expressões, artes marciais e esportes de combate, possuem raiz na filosofia ocidental, costumeiramente vinculada a uma visão dicotômica (o corpo e a mente separados no Ser e ainda Este do mundo). Assim, neste artigo, faremos uso preferencial da expressão luta por considerá-la mais adequada.

Conhecendo o Jardim Gonzaga

    O município de São Carlos, distante 230 quilômetros da capital paulista, localiza-se na região central do estado, possuindo uma localização privilegiada com rápido e fácil acesso a diversas cidades da região como Araraquara, Ribeirão Preto, Rio Claro, Campinas, São Paulo, dentre outras.

    De acordo com o IBGE (2002) possui 192.923 habitantes e uma das maiores rendas per capita do Brasil. Na economia da cidade prevalece o setor industrial e de serviços, além de produção agropecuária (leite, laranja e cana-de-açúcar).

    Segundo Campos et al (2003), com a instalação de duas grandes universidades (Universidade de São Paulo – campus São Carlos – e Universidade Federal de São Carlos) juntamente com a implantação de diversas empresas, a cidade de São Carlos ganhou o status de pólo tecnológico e tornou-se conhecida como a Capital da Tecnologia, apesar de tal, a cidade também possui bolsões de pobreza, entre eles, o Jardim Gonzaga. Área fronteiriça do perímetro urbano do município e detentor de altos índices de vulnerabilidade social (pobreza, violência, desemprego, drogas e baixa escolaridade). O bairro começou a ser ocupado no período entre 1977 e 1979 e seus moradores são bastante estigmatizados fora do mesmo.

Referencial de nossa proposta de intervenção com vivências em lutas

    Entendemos que o processo de conhecimento implica em uma busca permanente, uma curiosidade:

    Na verdade, a curiosidade ingênua que, “desarmada”, está associada ao saber do senso comum, é a mesma curiosidade que, criticizando-se, aproximando-se de forma cada vez mais metodicamente rigorosa do objeto cognoscível, se torna curiosidade epistemológica. Muda de qualidade e não de essência. (FREIRE, 2005, p.31).

    Deste modo, torna-se fundamental partirmos do saber de experiência feito (FREIRE, 1994; 2005), ou seja, aquele saber que os educandos trazem consigo, socialmente construídos na prática comunitária, em suas experiências anteriores.

    Segundo Freire (2005) é necessário que os educadores não só respeitem esses saberes dos educandos, mas que discutam com eles a razão de ser de alguns desses saberes em relação com o ensino dos conteúdos.

    Concordando com Lemos (2007) “não se trata, então, apenas do conhecimento escolar, construído na escola” (p.30), mas de um saber popular que os educandos:

    trazem consigo de compreensão do mundo, nas mais variadas dimensões na prática social de que fazem parte. Sua fala, sua forma de contar, de calcular, seus saberes em torno do chamado outro mundo, sua religiosidade, seus saberes em torno da saúde, do corpo, da sexualidade, da vida, da morte (FREIRE, 1994, p.85-86).

    Os processos educativos assim não estão restritos a escola, pois:

    Se estivesse claro para nós que foi aprendendo que percebemos ser possível ensinar, teríamos entendido com facilidade a importância das experiências informais nas ruas, nas praças, no trabalho, nas salas de aula das escolas, nos pátios dos recreios, em que variados gestos de alunos, de pessoal administrativo, de pessoal docente se cruzam cheios de significação (FREIRE, 2005, p. 44).

    No entanto, a ocorrência de processos educativos significativos depende da experiência que, segundo Larrosa Bondía (2002, p.25), trata-se de:

    em primeiro lugar um encontro ou uma relação com algo que se experimenta, que se prova. (...) é aquilo que ‘nos passa’, ou que nos toca, ou que nos acontece, e ao nos passar nos forma e nos transforma. Somente o sujeito da experiência está, portanto, aberto à sua própria transformação (...) e é incapaz de experiência aquele que se põe, ou se opõe, ou se impõe, ou se propõe, mas não se ‘ex-põe’. É incapaz de experiência aquele a quem nada lhe passa, a quem nada lhe acontece, a quem nada lhe sucede, a quem nada o toca, nada lhe chega, nada o afeta, a quem nada o ameaça, a quem nada ocorre.

    Assim, reconhecemos que a educação requer participação ativa, e buscamos privilegiar, em nossa intervenção com vivências em lutas, que as atividades partissem da cultura corporal dos próprios participantes, que tivessem sentido em sua comunidade, em seu mundo-vida. Perguntávamos-lhes e observávamos o que conheciam sobre as lutas, seja pela prática em si, por conhecerem outros praticantes ou mesmo através da mídia (programas televisivos, jornais, revistas, gibis, dentre outros).

    Compreendemos tal compartilhar de experiências como fundamental para o desenvolvimento de cada um, do grupo e da comunidade, nos possibilitando o contínuo vir a ser, já que somos seres incompletos e inconclusos, que nos fazemos e refazemos no mundo no diálogo com os outros, conforme nos apontam Freire (1994, 2006), Merleau-Ponty (1996) e Sérgio (1999).

Trajetória metodológica

    A intervenção com as vivências em lutas com base na pedagogia dialógica foram desenvolvidas em 13 encontros, sendo 8 ministrados por nós e os demais 5 por educadores convidados, quer seja no próprio espaço da ECO, quer seja em suas academias ou dojos.2 Os cinco citados encontros foram organizados junto a grupos de práticas de lutas distintas: karatê-do shotokan, na cidade de Araraquara; jiu-jitsu e judô, em São Carlos; capoeira e huka-huka na própria ECO.

    Para as vivências em lutas se inscreveram um total de 38 pessoas, sendo 13 do sexo feminino e 25 do sexo masculino, havendo uma freqüência média de 9 pessoas por encontro.

    Para a investigação dos processos educativos envolvidos/decorrentes da prática das lutas foram realizados registros em diários de campo, conforme proposição de Bogdan e Biklen (1994), de cada vivência.

    Para a elaboração tanto da intervenção como da pesquisa, foram assinados termos de consentimento livres e esclarecidos pelos pais ou responsáveis dos participantes das vivências em lutas, bem como pelos educadores da ECO e convidados.

    Os nomes dos educadores foram mantidos a partir de suas respectivas autorizações, enquanto os nomes dos participantes (crianças e adolescentes) foram preservados, sendo que eles próprios escolheram nomes fictícios, mantendo o gênero.

    Para a análise dos diários de campo nos inspiramos na fenomenologia (MERLEAU-PONTY, 1996). Após a cuidadosa leitura destes, a pesquisa passou pelas seguintes fases, conforme descritas por Martins e Bicudo (1989) e Gonçalves Junior (2003): Identificação das Unidades de Significado e Redução Fenomenológica: com levantamento de asserções que são significativas para o pesquisador diante do objetivo da pesquisa; Organização das Categorias: a partir dos trechos destacados, agrupando as unidades de significado em categorias, objetivando a essência do fenômeno que se revela ou se manifesta nos acontecimentos relatados e Construção dos Resultados: busca de uma compreensão do fenômeno interrogado, baseando-se diretamente nos dados da matriz nomotética.

    Baseados em Gonçalves Junior (2003), descrevemos a matriz nomotética como se compondo de uma coluna à esquerda onde se expõe às categorias dispostas por letras maiúsculas de nosso alfabeto (A à D), as quais são classificações organizadas pelos pesquisadores com base nas unidades de significado, numeradas com alagrismos arábicos na matriz, as quais foram extraídas dos diários de campo, sendo estes numerados com algarismos romanos (I à XIII) dispostos na parte superior da matriz em uma seqüência horizontal.

    Para facilitar a identificação dos dados na matriz nomotética utilizaremos na construção dos resultados, em cada citação de asserção extraída dos diários de campo, a sigla D, seguida de número romano do respectivo diário, hífen e número arábico da unidade de significado, por exemplo “DVI-13”, correspondendo ao diário de campo VI, unidade de significado 13.

Construção dos resultados

    Buscando uma compreensão dos processos educativos envolvidos/decorrentes da prática das lutas em nossa intervenção fundamentada na pedagogia dialógica realizada com participantes de vivências em lutas na ECO do Jardim Gonzaga, baseamo-nos diretamente nos dados da matriz nomotética, a qual poderia ter revelado idiossincrasias (individualidade de proposições nas asserções encontradas nos diários de campo) e/ou proposições convergentes e/ou divergentes. Neste estudo, porém, encontramos apenas proposições convergentes.

    A construção dos resultados, apresentada após a matriz, se deu a partir da intersubjetividade estabelecida pelos pesquisadores com os sujeitos desta pesquisa (educadores e participantes).

Quadro 1. Matriz Nomotética

DIÁRIOS CATEGORIAS

I

II

III

IV

V

VI

VII

VIII

IX

X

XI

XII

XIII

A. Aprendendo com o Outro

4; 6; 8; 9

  

 

2; 8; 6

4; 11

3; 4; 5; 7; 8; 11

13; 23; 24

 

4; 6; 7; 8; 9; 11; 12; 14; 15; 16; 17; 18

2; 6; 7; 8; 9; 10; 11; 13

3; 4; 5; 6; 7; 8; 9; 10; 11; 13

5; 6; 8; 10; 13; 14; 17

4; 8; 10; 11; 12; 14; 16; 22; 23

B. Proximidade

1; 11; 12

 

1; 2

 

1

 

1; 4

6

1; 10

1; 16; 18

1; 12

1; 2;

1; 2; 6; 7; 15; 18; 20

C. Resolvendo conflitos

3; 5; 7; 10

 

 

1; 3; 4; 5; 7

3; 5; 6; 7; 8; 10

1; 2; 6; 10

2; 5; 6; 7; 8; 9; 10; 11; 12; 14; 15; 18; 19; 20; 21; 22; 25

2; 4; 7

2; 3; 20

3; 4; 12; 17

2; 16

3; 4; 9; 11; 16

3; 9; 13; 17

D. Lutando pela Vida

2

1

 

 

2; 9

9

3; 16; 17

1; 3; 5

5; 13; 19

5; 14; 15

14; 15

12; 15; 18; 19

19; 21

A.     Aprendendo com o Outro

    Nesta categoria, encontramos situações de ensino e aprendizagem entre participantes-participantes, educadores-participantes e participantes-educadores: de movimentos característicos das lutas, de respeito para com o outro e sobre as diferentes culturas em que se originaram as lutas vivenciadas.

    Durante a vivência em karatê, Michael Jackson “observava com atenção os movimentos do colega (Erick) e também tentava realizá-los” (DI-8), este lhe ensinava os detalhes que aprendera.

    Iracema, durante uma brincadeira envolvendo as lutas sumô e huka-huka, recebia dicas de suas amigas sobre os movimentos, dentre elas, Luana que lhe disse: “segura na cintura que é mais fácil!” (DVI-7).

    No encontro com o grupo de jiu-jitsu registramos no diário de campo X (unidades de significado 7 e 9) que várias duplas se formaram a pedido do educador Mauro para realização de movimentos de ataque e defesa da citada luta e que, quando um dos colegas da dupla não conseguia executar o movimento demonstrado pelo educador o outro buscava ensinar. Moisés, por exemplo, ensinou sua irmã Amanda e, no momento em que ela formou dupla com Letícia, ensinou a esta o que aprendera com o irmão.

    Ainda no encontro com o grupo de jiu-jitsu pudemos observar o educador Mauro perguntando as crianças do Jardim Gonzaga quais movimentos do Karatê “haviam aprendido e gostariam de ensinar para os colegas aquele dia, Tomas demonstrou o chute frontal” (unidade de significado 10), enquanto “Lauro demonstrou um chute saltando e Roberto o chute circular” (unidade de significado 11). Em contrapartida, André aprendeu com os alunos do Professor Mauro, técnicas consideradas difíceis na prática do jiu-jitsu (DX-8).

    Nos encontros desenvolvidos por nós na ECO ao abordarmos os lemas do Karatê3 nas rodas de conversa registramos várias observações das crianças relativas ao aprendizado do respeito com o outro:

  • “Professor, posso dizer assim: é errado brigar com os outros?” (Liliam no DVII-23);

  • “‘A gente não pode falar palavrão! (...)’. ‘Minha mãe disse que é feio xingar os outros!’” (respectivamente Gisele e Iracema no DVIII-7);

  • “Minha mãe não gosta quando eu falo palavrão!” (Amanda no DVI-8).

    Também se deram processos educativos de atenção, escuta e diálogo com o outro na construção das regras das atividades, requerendo de nós educadores uma postura flexível e motivadora a participação e expressão dos educandos. Na brincadeira denominada “roubar o pano”, por exemplo, alguns educandos optaram por colocar a tira de papel nas mangas de suas blusas, e Michael Jackson propôs: “’Deixa qualquer lugar Professor!’. Colocamos a proposta dele em votação e todos foram favoráveis a livre escolha do local de fixação da tira de papel” (DIV-2). Ocorrência similar se deu no encontro sobre a luta huka-huka, em que também realizamos alguns jogos indígenas, no qual o educador Fabiano perguntou aos participantes sobre o perímetro do campo que seria permitido correr durante a brincadeira “emusi”, e Michael Jackson junto a Gilson propuseram o campo todo, sendo a proposta prontamente aceita (DXIII-12).

    As diferentes lutas vivenciadas proporcionaram situações nas quais os educandos puderam aprender um pouco sobre diferentes culturas.

    As vivências junto aos grupos de karatê, judô e jiu-jitsu, promoveram o contato dos educandos com alguns costumes advindos da cultura oriental, dentre eles, vimos a disposição dos seus praticantes com relação ao zelo e asseio do Dojo.

    Após o encontro com o grupo de karatê, na cidade de Araraquara, nos encontros seguintes, quando as crianças deparavam-se com o “tatame”4, sempre lembravam-se de perguntar sobre a retirada dos calçados. Logo na chegada ao Dojo de jiu-jitsu, Amanda disse: “vamos ter que tirar os sapatos aqui também professor?” (DX-6).

    Na vivência em judô, Michael Jackson fez a mesma pergunta, e o educador Sebá relatou que o praticante desta luta “sempre retira os calçados para não sujar o tatame, mantendo-o limpo para o próximo” (DXII-6).

    Experiência similar ocorreu na própria ECO após um de nossos encontros em que fizemos brincadeira com bexigas, enquanto recolhíamos os pedaços de bexiga espalhados pelo chão, Jacó disse: “‘Nossa Professor, como tem gente porca, né?’, comentando sobre a própria sujeira das bexigas. (...) ‘O certo é limpar, né Professor?’ (...) e comentamos sobre a limpeza da ECO ser responsabilidade de todos que freqüentavam o local, e não apenas dos funcionários” (DV-11).

    Em uma de nossas vivências na ECO tivemos a oportunidade de dialogar um pouco sobre a indumentária utilizada no sumô (de origem oriental) e as pinturas corporais utilizadas no huka-huka (de origem indígena) e o sentido destas para estes povos.

    No encontro registrado no diário de campo XIII contamos com a presença do educador indígena Jeika Kalapalo5 ministrando huka-huka, ocasião em que as crianças do Jardim Gonzaga puderam dialogar e aprender sobre o povo e luta dele. Antes mesmo de iniciarmos a vivência, enquanto conversávamos num pátio ao fundo da ECO, Michael Jackson perguntou diretamente para Jeika sobre a comida do povo Kalapalo, Liliam sobre os furos nas orelhas e os brincos utilizados apenas pelos homens, e Letícia indagou acerca da moradia e das redes de dormir.

    A vivência de capoeira, com o educador Adan, possibilitou algumas discussões sobre a história e cultura africana e afro-brasileira, havendo também neste encontro conversas relacionadas à naturalidade e origem étnico-racial dos antepassados dos próprios participantes. Na roda de conversa deste dia, registrada no diário de campo XI, ao serem questionados por Adan sobre a origem de seus antepassados, alguns disseram: “‘Baiano! Meu pai é baiano!’, outros ‘Meu vô era italiano!’, e num canto, Roberto disse: ‘Eu sô de africano!’” (DXI-3), iniciando-se assim diálogo sobre a vinda dos africanos ao Brasil, as moradias escravas em senzalas, a formação dos quilombos, as origens da capoeira.

B.     Proximidade

    Nas diversas asserções referentes a esta categoria podemos ver situações em que a empatia, a afetividade e a proximidade entre todos (participantes e educadores) se fizeram presentes.

    Nos encontros semanais na ECO foi comum a nossa recepção pelas crianças correndo em nossa direção e nos abraçando, quase sempre nos perguntando sobre o que fariam naquele dia, permanecendo abraçadas ou de mãos dadas enquanto caminhávamos ou conversávamos com outras pessoas, conforme observamos nos diários de campo VIII e X, respectivamente unidades de significado 6 e 16.

    Esta afetividade também foi percebida entre os próprios participantes durante as práticas de lutas, nos momentos em que compartilhavam com o outro aquilo que aprenderam, falando com atenção, procurando detalhar aquilo que se viu, demonstrando e às vezes tocando no corpo do outro enquanto ensinavam o movimento nos jogos e brincadeiras e ainda sentando-se juntos, abraçados ou apoiados no colo dos colegas nas rodas de conversa.

    No final do encontro com o grupo de judô, quando retornávamos a ECO, algumas crianças trouxeram consigo alguns biscoitos e um iogurte, observamos no diário de campo XII (unidade de significado 18) elas dividirem tudo entre si, compartilhando o alimento.

    Percebemos também proximidade no que diz respeito ao saber de experiência feito, principalmente durante o período de inserção e desenvolvimento das primeiras atividades na ECO, nas quais se respeitou o conhecimento e cultura dos participantes inscritos nas vivências em lutas e sua comunidade, dialogando sobre aquilo que viveram e conheceram sobre a temática.

C.     Resolvendo os conflitos

    Nos encontros com o grupo, em diversos momentos ocorreram situações de conflitos entre os participantes. Na resolução destes conflitos procuramos sempre intervir no sentido de estabelecer conversa ao invés da retaliação.

    Um exemplo de busca pelo diálogo na resolução dos conflitos ocorreu durante atividade em que foi proposto aos participantes das vivências atividade de desenho e pintura em papel sobre o karatê. Amanda brigou muito com Mirian, ofendendo-a com palavras de baixo calão, pois não queria dividir com ela os lápis de colorir. Foi preciso interromper a atividade entre as duas meninas: “‘Poxa Amanda, por que você não quer deixá-la usar os lápis? (...) você sabe que o material é de todos! Nós todos podemos usá-los! Não é?’. Amanda percebeu o erro que cometera, e ficou irrequieta, fazendo manha, afastou-se um pouco na mesa, puxou os lábios fazendo bico e respondeu: ‘Tá bom! Tá bom!’, continuando a pintar seu Diário” (DV-10).

    No diário de campo VIII também registramos o compartilhamento de experiências a respeito de formas de resolução de conflitos com outros educadores da ECO em reuniões.

    Registramos ainda (DIV-1 e DXIII-5), no período de nossa intervenção, alterações de espaço físico utilizado, como quando transferimos o local dos encontros da quadra coberta para o pátio ao fundo do campinho de futebol, devido aos conflitos constantes com outros freqüentadores da ECO que desejavam utilizar a quadra no mesmo horário de nossas vivências em lutas, resolvendo assim, a situação indesejável.

D.     Lutando pela vida

    O sentido de luta e dedicação pode ser observado no decorrer das próprias atividades nas vivências, como quando o educando Joel praticou um pouco de judô com o educador Sebá. Seus olhos fixos, atentos, seu esforço e dedicação estampados no rosto, mesmo quando o educador o derrubava na prática da luta. Joel não desistia, levantava-se e rapidamente voltava a lutar (DXII-15).

    Por outro lado, desde os primeiros contatos com a comunidade pudemos perceber profundas dificuldades vividas por esta, como a marginalização social e econômica. Já no momento da recolha dos termos de consentimento livre e esclarecido deparamo-nos com uma grande parcela de pessoas que não sabiam ler e/ou escrever, alguns nem mesmo sua data de nascimento. Depois, no dia-a-dia das vivências em lutas, no contato e conversa constante com os participantes, com seus familiares e mesmo com outros moradores do bairro, soubemos da situação de desemprego ou subemprego de alguns e de reclusão prisional de outros.

    Em uma das conversas com a educadora Maria, supervisora da ECO, falávamos sobre Jericó e sua família, quando ela nos relatou as constantes reclamações que faziam a ela sobre seu comportamento em diversos projetos da ECO, bem como no bairro de modo geral. Explicou-nos a dificuldade que vivia o garoto, estando o pai preso e a mãe desempregada. Os desafios desta criança para sobreviver diariamente nestas condições desiguais deviam por nós educadores (e também pesquisadores) ser considerados na tomada de quaisquer decisões (DVIII-1).

    As contínuas perguntas relacionadas aos horários em que serviríamos os lanches demonstram outro desafio enfrentado pelos educandos (DX-5; DIX-5, 13; DXII-19): a fome, forçando alguns a deixarem de participar das vivências em lutas para auxiliarem nas tarefas da casa, no cuidado com irmão(s) mais novo(s) ou em busca de trabalho que ajude no sustento da família (DI-2).

    Foi o caso de Joel e Michael Jackson, depois de participarem de várias vivências tiveram de ajudar seu pai a cuidar do irmão mais novo, buscando-o ao final das aulas na escola, o que ocorria no mesmo horário dos encontros (DV-2 e DVII-3). Enquanto Erick e Alex interromperam a participação nas práticas de lutas devido a obtenção do emprego (DI-2 e DII-1), o qual, segundo eles, era importante para auxiliar no sustento da família.

Considerações

    Consideramos que o constante diálogo entre todos proporcionou ambiente a processos educativos relacionados a autonomia, cooperação, solidariedade, respeito e, partindo do saber de experiência feito, no planejamento e desenvolvimento das vivências em lutas, houve um ambiente de participação contínua e ativa dos integrantes, os quais propuseram, modificaram, criaram, discutiram e dialogaram sobre as brincadeiras, as práticas de lutas, a estruturação do cronograma dos encontros, favorecendo o harmonizar, o conciliar, o combinar posições, o construir juntos as atividades e suas regras.

    Nos encontros ocorridos, seja apenas conosco, seja com a presença de outros educadores, presenciamos momentos nos quais os educandos aprenderam e compartilharam entre si experiências relacionadas às lutas e, de modo geral, a sua cultura.

    O contato e conhecimento de diferentes lutas e culturas nos permitiu também (re)conhecer melhor a nossa própria, nos possibilitando aprendizado do significado de usos, costumes, tradições, desenvolvendo respeito e valorização ao invés de preconceito e discriminação.

    Consideramos ainda que, a partir das vivências em lutas com aproximação embasada na pedagogia dialógica, identificamos processos educativos envolvidos/decorrentes que revelaram a importância da proximidade entre o educador-educando, o sentir/perceber/apreender a diversidade cultural pela vivência em grupo, respeitando a si mesmo e ao outro, seus saberes e experiências, ser persistente e não esmorecer diante das adversidades colocadas pela vida.

Notas

  1. Para aprofundamento ver: SILVA, Petronilha B. G. e. Aprender a conduzir a própria vida: dimensões do educar-se entre afrodescendentes e africanos. In: BARBOSA, L. M. de A.; SILVA, P. B. G. e.; SILVÉRIO, V. R. De preto a afrodescendente: trajetos de pesquisa sobre relações étnico-raciais no Brasil. São Carlos: EDUFSCar, 2003, p.181-197.

  2. Expressão mais comum quando da referência a lutas de origem oriental, sendo que nesta cultura Do significa “caminho” e jo “local”, tratando-se do local para se aperfeiçoar os vários caminhos (KISHIKAWA, 2004). Na atualidade, tornou-se comum o uso da expressão para designar simplesmente o espaço físico onde ocorrem os treinamentos.

  3. Conhecido também no idioma japonês como “Dojo Kun”, são compostos por cinco lemas utilizados durante a prática do Karatê-Do Shotokan: “Sempre – Esforçar-se para a Formação do Caráter; Sempre – Fidelidade para como Verdadeiro Caminho da Razão; Sempre – Desenvolver a Persistência e o Esforço; Sempre – Respeito Acima de Tudo; Sempre – Conter o Espírito de Agressão” (tradução livre).

  4. O tatame geralmente é constituído por um conjunto de placas feitas de palha de arroz, revestidas de uma esteira de junco. Também pode ser feito em material sintético, por exemplo, o E.V.A. No Japão, o tatame é tradicionalmente utilizado para cobrir o chão das casas, os locais de meditação e de prática de lutas. No Brasil, alguns Dojos/Academias mantêm este costume.

  5. Indígena pertence ao povo Kalapalo, atualmente estudando no cursinho pré-vestibular da UFSCar, o mesmo é professor de português em sua aldeia (Aiha - Alto Xingu – Mato Grosso) e já ministrou várias palestras e participou de diversos encontros sobre cultura indígena em escolas de São Carlos, grupos de estudos da UFSCar e de entidades como o SESC/São Carlos.

Referências

  • BOGDAN, Roberto C. BIKLEN, Sari K. Investigação qualitativa em educação. Porto: Porto Editora, 1994.

  • CAMPOS, Silmara E. A.; GONÇALVES JUNIOR, Luiz; MAIA, Maria A.; VASCONCELOS, Valéria O.; SILVA JUNIOR, José A.; LIMA, Mônica dos S. O lazer cotidiano do Jardim Gonzaga - São Carlos. In: XV ENCONTRO NACIONAL DE RECREAÇÃO E LAZER - LAZER E TRABALHO: NOVOS SIGNIFICADOS NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA, 2003, Santo André. Anais... Santo André: 2003. CD-ROM.

  • FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 43ªed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006.

  • ______. Pedagogia da autonomia. 31ªed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.

  • ______. Pedagogia da esperança: um reencontro coma pedagogia do oprimido. 3ªed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.

  • GONÇALVES JUNIOR, Luiz. Lazer e novas relações de trabalho em tempos de globalização: a perspectiva dos líderes das centrais sindicais do Brasil e de Portugal. 2003. Tese (Pós-Doutorado em Ciências Sociais) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa, Lisboa (Portugal).

  • INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. URL: www.ibge.gov.br. Acessado em 19/06/2007.

  • KISHIKAWA, Jorge. Shinhagakure: pensamentos de um samurai moderno. São Paulo: Conrad Livros, 2004.

  • LARROSA BONDÍA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação 27, n.19. Jan/Fev/Mar/Abr 2002.

  • LEMOS, Fábio R. M. Compreensões de trabalhadores de indústrias de São Carlos acerca do lazer: aprendizagens envolvidas. São Carlos, 2007. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal de São Carlos, São Carlos (Brasil).

  • MARTINS, Joel; BICUDO, Maria A.V. A pesquisa qualitativa em psicologia: fundamentos e recursos básicos. São Paulo: Moraes/EDUC, 1989.

  • MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. 2ªed. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

  • SÉRGIO, Manuel e col. O sentido e a acção. Lisboa: Instituto Piaget, 1999.

  • SILVA, Petronilha B. G. e. Aprender a conduzir a própria vida: dimensões do educar-se entre afrodescendentes e africanos. In: BARBOSA, L. M. de A.; SILVA, P. B. G. e.; SILVÉRIO, V. R. De preto a afrodescendente: trajetos de pesquisa sobre relações étnico-raciais no Brasil. São Carlos: EDUFSCar, 2003, p.181-197

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revista digital · Año 13 · N° 127 | Buenos Aires, Diciembre de 2008  
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