O universo lúdico proposto por Caillois | |||
Mestre em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Licenciado e Bacharel em Educação Física pela UFSCar Professor efetivo de Educação Física da rede estadual de educação do Estado de São Paulo, município de Araraquara |
Gustavo Martins Piccolo (Brasil) |
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Resumo Este artigo disserta sobre a estrutura epistemológica erigida por Roger Caillois em sua principal obra, a citar, Os jogos e os homens (1990). Nele abordamos a partir de um ponto de vista sociológico o entendimento da etimologia jogo tanto em seus aspectos conceituais, como atitudinais e procedimentais, partindo do pressuposto de que as atividades lúdicas são gestadas no seio da cultura, a qual medeia ativamente a relação entre os seres humanos e a sociedade. Palavras chave: Jogo. Caillois. Entendimento sociológico. |
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http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 13 - Nº 127 - Diciembre de 2008 |
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Introdução
A consideração de qualquer fenômeno social independentemente se materializado nas esferas da arte, do trabalho, da linguagem ou do lúdico, a partir de um enfoque sociológico tem como ponto de partida o pressuposto de que estes fenômenos apenas podem ser compreendidos mediante a análise do processo inter-relacional existente entre os seres humanos e a sociedade da qual fazem e são parte constituinte e integrante.
Neste sentido, o texto abaixo delimita o campo epistemológico das atividades lúdicas, e, em especial daquelas classificadas etimologicamente como jogos, mediante um embasamento teórico-filosófico diametralmente oposto aquele adotado por Huizinga (1980) em sua célebre obra Homo Ludens, já que esta parte do princípio de que os jogos podem se manifestar anteriormente ao surgimento da cultura; algo inconcebível de um ponto de vista sociológico, pois neste universo o jogo é visto como produto, manifestação e criação da cultura humana. É este paradigma que nos orienta na construção arquitetônica do texto seguinte, o qual tem como principal interlocutor Roger Caillois.
Roger Caillois retrata em sua obra: Os jogos e os homens (1990) a classificação dos principais elementos que ele considera como constituintes dos jogos humanos. Para tanto, realiza uma imersão histórica em diversas culturas mostrando tanto as peculiaridades como os princípios gerais de seus jogos, dialogando vivamente com Elkonin (1998), Piaget (1971), Vygotsky (1998), Lévi-Strauss (1967), entre outros. Destarte, o estudo do autor tergiversa entre a Antropologia, a Psicologia e a Sociologia, com passagens constantes também pela Etnografia, fato que demonstra a complexidade da tarefa que ele se propôs a realizar, a citar, a construção dos princípios elementares existentes em qualquer jogo praticado pelos humanos, independentemente do contexto temporal, social, material e psicológico no qual este se materializa.
Para a efetivação deste projeto, o primeiro passo dado por Caillois (1990) foi à admissão da existência de um grande número de jogos em nossa sociedade, sendo que estes não trazem grandes conseqüências para a vida real dos seres humanos, pressuposto também encontrado em Leontiev (1988), sendo que este elemento é justificado pelo fato de os jogos se oporem ao caráter sério da atividade laboriosa, a destacar, o trabalho humano, apesar de muitas vezes ter aí sua origem gênica. A relação entre jogo e trabalho pode ser encontrada na seguinte expressão: “o jogo (...) opõe-se ao trabalho, tal como o tempo perdido se opõe ao tempo bem entregue” (CAILLOIS, 1990, p.9).
Cabe ressaltar, contudo, que apesar da oposição realizada entre o jogo e a vida real, Caillois (1990) nunca subestima o poder que as atividades lúdicas exercem na configuração da personalidade humana, considerando-as como importantes instrumentos da cultura de um povo e de uma sociedade, pois através delas muito se pode descobrir sobre os próprios hábitos cotidianos e sobre as estruturas basilares da própria sociedade em questão.
Além deste aspecto historiográfico, Caillois (1990) foi pioneiro na análise das relações econômicas contidas desde há muito tempo nas práticas lúdicas, pois considera que apesar de estas não gerarem riquezas, a movimentam-nas, citando como exemplo a constante utilização dos jogos de azar pela sociedade, praticados em “cassinos”, bancas e mesas desde a Idade Média.
Todas essas características possibilitaram ao autor contestar a classificação que as correntes biologicistas estabelecidas principalmente por Freud (1925), Spencer (1897), Stern (1922) e Claparède (1934) derivavam para o substantivo jogo, cuja gênese evolutiva o colocava como uma atividade frívola e inferior as demais atividades, propiciando um parco desenvolvimento para o ser humano considerado holisticamente. Contra estas correntes fundadas em pilares biológicos e maturacionais Caillois (1990) se impôs mediante a construção de um sistema de relações sociais que estariam presentes em quaisquer atividades lúdicas, o qual de acordo com o referido autor (op. cit.) pode, grosso modo, ser classificado sob a alcunha de elementos primordiais componentes dos jogos. A eles adentraremos agora.
Elementos primordiais componentes dos jogos
Para Caillois (1990, p.11), dentre as principais características de qualquer jogo humano destaca-se a constante presença da idéia de limites e liberdades em seu desenvolvimento, pois: “todo o jogo é um sistema de regras que definem o que é e o que não é do jogo, ou seja, o permitido e o proibido”. Esse conjunto de regras não pode ser violado sob qualquer hipótese, pois acarretaria a destruição da atividade, ou seja, a presença de certos limites é incontestável na prática de qualquer jogo. Entretanto, o jogador sempre tem uma relativa liberdade de criação, já que devido ao afastamento da vida real podem-se correr alguns riscos sem grandes conseqüências para a vida do participante.
Conseqüentemente, não há como negar a função disciplinadora que exercem alguns jogos em nossa sociedade, principalmente, se levarmos em conta a necessidade que o participante possui em interiorizar certas regras para efetivamente adentrar no universo lúdico dos jogos. Em dista disto, essa atividade pode ser encarada, de acordo com Caillois (1990), como um potente elemento civilizacional.
Ainda em Caillois (1990) encontramos, tal como em Elkonin (1998), que o jogo exerce o papel de atividade secundária para seus participantes, pois não garante a subsistência de qualquer ser humano, porém, isso não quer dizer, em hipótese alguma, que seja uma atividade supérflua, aliás, muito pelo contrário, uma vez que promove intensas transformações em todo o desenvolvimento social, cultural, motor e psicológico das crianças que se encontram imersas nesta atividade.
Isto posto, cabe ressaltar que os jogos não são vistos como atividades preparatórias para o trabalho, cujos pressupostos também se encontram presentes na teoria histórico-cultural (LEONTIEV, 1988; ELKONIN 1998, VYGOTSKY, 1998, USOVA, 1979). Assim, quem brinca de cavalinho não está se preparando para ser jóquei, mas, apenas entra em contato com uma nova forma de intervir em sua realidade e, vivenciar ativamente novas experiências.
Também é importante ressaltar que, em certo sentido, Caillois (1990) promove a defesa de alguns aspectos da obra de Huizinga (Homo ludens, 1980), já que a considera como a precursora dos estudos sobre jogos em nossa sociedade, realizando um importante papel de valorização dessa atividade, desprezada anteriormente e, com Huizinga (1980), passando a assumir um papel de extrema importância na construção da cultura humana, entretanto, o pressuposto inicial de que parte estabelece um corte radical entre as duas linhas de estudo.
Esta cisão é acarretada pelo fato de Huizinga (1980) extrapolar as funções e objetivos que efetivamente possuem o jogo em nossa sociedade, pois o considera como o principal elemento humano, criador das culturas, das instituições. Enfim, o autor (op. cit.) realiza uma supervalorização dos jogos em detrimento de todos os outros componentes constituintes de uma sociedade, o que além de não ajudar a conceituação teórica desta atividade, acaba por colocá-la em uma disputa acadêmica contra outras atividades como o trabalho e a linguagem; caminho este gerador de atritos insolúveis e de difícil comprovação.
Direcionando agora nosso foco de análise para o comportamento dos jogadores durante o transcorrer das atividades lúdicas, podemos perceber que o jogador possui seu próprio tempo durante a partida, o qual não é o do relógio, mas, sim, o do prazer que a atividade proporciona. Conseqüentemente, as pessoas que se sustentam materialmente pelos jogos, como os esportistas, não podem ser considerados como jogadoras, na verdade são profissionais e, o jogo para elas é trabalho em todos seus aspectos funcionais e valorativos.
Destarte, para Caillois (1990), os jogos são atividades que possuem certa relatividade temporal, pois sua ação dura enquanto continuar a gerar divertimento e alegria. Não bastasse isso, o resultado de uma partida sempre se encontra em suspensão, caso contrário, não teria o menor sentido continuar a realização da atividade. Esse aspecto conjuntamente aos outros fatores anteriormente indicados garante o desenvolvimento e a manutenção da própria atividade lúdica.
Em síntese, para Caillois (1990, p.29-30) o jogo pode ser encarado essencialmente como uma atividade:
livre: uma vez que, se o jogador fosse a ela obrigado, o jogo perderia de imediato a sua natureza de diversão atraente e alegre;
Delimitada: circunscrita a limites de espaço e de tempo, rigorosa e previamente estabelecidos;
Incerta: já que o seu desenrolar não pode ser determinado nem o resultado obtido previamente, e já que é obrigatoriamente deixada à iniciativa do jogador uma certa liberdade na necessidade de inventar;
Improdutiva: porque não gera bens, nem riquezas nem elementos novos de espécie alguma; e, salvo alteração de propriedade no interior do círculo dos jogadores, conduz a uma situação idêntica à do início da partida.
Regulamentada: sujeita a convenções que suspendem as leis normais e que instauram momentaneamente uma legislação nova, a única que conta;
Fictícia: acompanhada de uma consciência específica de uma realidade outra, ou de franca irrealidade em relação à vida normal.
Cabe ressaltar que para Caillois (1990, p. 29) as duas últimas características estão em franca oposição, pois “os jogos não são regulamentados e fictícios. São, antes, ou regulamentados ou fictícios”. Entretanto, ao recorrermos a Elkonin (1998) percebemos que esta aparente contradição na verdade deve ser encarada como uma complementação dialética entre ficção e realidade no processo de apropriação e inserção do ser humano ao solo histórico da sociedade.
Todavia, não é nesta delimitação dos principais componentes dos jogos que se encontra a maior contribuição de Caillois (1990) às áreas da Educação e da Educação Física, mas, sim, no caráter inovador adotado pelo referido autor na classificação dos jogos surgidos durante o desenvolvimento das mais diversas sociedades e culturas humanas, e na crítica a alienação presente nestas atividades.
A classificação de Caillois
Acreditamos que o elemento mais precioso da obra de Caillois (1990) está diretamente relacionado à classificação da natureza social dos jogos, assim sendo, em qualquer jogo podem ser encontrados pelo menos um dos quatro elementos descritos pelo autor, a citar, agôn, alea, mimicry e ilinx. Descrevemos abaixo as principais características de cada um desses quatro elementos para uma melhor visualização das características gerais dos jogos.
Agôn: jogos dominados fundamentalmente por atividades competitivas. Seu campo de atuação tenta criar situações ideais e igualitárias para todos os participantes no intuito de que o vencedor apareça como o melhor preparado. Entretanto, para Caillois (1990), por mais que se tente criar situações ideais de competição isto nunca será alcançado, já que o meio interfere de diferentes maneiras na construção do sujeito. O agôn aparece predominantemente nas competições esportivas.
Alea
Para Caillois (1990, p. 38), esse tipo de jogo se encontra apenas nos seres humanos, já que:
os animais, demasiado dominados pelo imediato e demasiado escravos dos seus impulsos, não seriam capazes de imaginar um poder abstrato e insensível, a cujo veredicto se submeteriam previamente, por diversão e sem reagir.
Mimicry: são jogos fictícios em que os participantes adotam para si o papel de determinados personagens. É uma forma de se apropriar de outra realidade que não a sua. Para Caillois (1990, p.42), na criança este jogo se caracteriza principalmente pela imitação do adulto, o prazer é ser outro, ou pelo menos se passar por outro, cabendo ressaltar que nessa atividade não existe submissão às regras, cujos maiores exemplos se encontram nos jogos protagonizados. Ainda de acordo com o referido autor, essa manifestação mantém uma íntima ligação com as atividades esportivas, pois:
as grandes manifestações desportivas não deixam de ser ocasiões privilegiadas de mimicry, mesmo esquecendo que a simulação é transferida dos actores para os espectadores: não são os atletas que imitam, mas sim os assistentes. A mera identificação com o campeão constitui já uma mimicry semelhante àquela que faz com que o leitor se reconheça no herói do romance e o espectador no herói do filme.
Ilinx – jogos que se assentam na busca de vertigem, com o intuito de destruir a estabilidade de percepção do corpo humano, ou seja, busca-se atingir uma espécie de espasmo, transe, afastamento súbito da realidade. Essa atividade pode ser encontrada tanto em crianças, como nos adultos. Para Caillois (1990, p. 44), “cada criança sabe também que, ao rodar rapidamente, atinge um estado centrífugo, estado de fuga e de evasão, em que, a custo, o corpo reencontra seu equilíbrio e a percepção sua nitidez.” Essa sensação pode ser provocada por giros, volteios, rápidas trocas de direção, ou seja, por meios naturais de movimentação corpórea. A modernidade trouxe consigo sérias conseqüências para este tipo de atividade, tais como a construção industrial de brinquedos que permitem a satisfação dessas necessidades, passando a se tornar um recurso comercializável, cujos maiores exemplos se encontram nos parques de diversões, os quais, infelizmente, tendem a limitar radicalmente a qualidade dos movimentos corpóreos realizados pelas crianças. Cabe ressaltar outros meios artificiais que promovem a perca de estabilidade humana como drogas, bebidas, cuja manifestação afasta os indivíduos da verdadeira compreensão da realidade.
Sobre estes quatro pilares se sustentam a classificação dos jogos de acordo com Caillois (1990), sendo que além desta disposição em categorias, o referido autor também traz uma importante crítica aos processos alienantes que passaram a estar presentes em diversos dos elementos anteriormente citados.
Para Caillois (1990), a alienação no jogo pode ser encontrada quando ao fingir-se de outro se esquece do próprio eu, ou seja, quando existe uma perda de identidade de tal monta que o indivíduo não percebe a adoção de uma personalidade estranha, processo que pode ser observado nas quatro categorias descritas pelo autor. Encontramos em Caillois (1990, p.71) que a alienação:
produz-se quando não há uma divisão clara entre sonho e realidade, quando o sujeito, lentamente, pôde encarnar perante si mesmo, uma personalidade diferente, quimérica, envolvente, que reivindica direitos exorbitantes no que respeita a uma realidade necessariamente incompatível com ela. Chega o momento em que o alienado, aquele que se tornou outrem se esforça desesperadamente por negar, admitir ou destruir esse sólido adorno, que para ele é inconcebível, provocante.
Nossas sociedades atuais se desenvolveram sobremaneira na capacidade de proporcionarem alienação para seus indivíduos, os quais precisam fugir da realidade presente para se sentirem mais extasiados tanto nos aspectos mentais como sociais e psicológicos. Continuando em Caillois (1990, p.74), encontramos que:
o entorpecimento, a embriaguez, a intoxicação pelo álcool, arrastam o homem para uma via em que ele próprio se destrói de um modo subtil e irremediável. Por fim, privado da liberdade de desejar outra coisa que não seja seu veneno, acaba por ser vitima de uma constante perturbação orgânica, invulgarmente mais perigosa do que a vertigem física que, ao menos, só momentaneamente compromete a capacidade de resistir ao fascínio pelo vazio.
Destarte, acreditamos que a fuga constante da realidade buscada pelos homens e mulheres, inclusive em alguns jogos transfigurados sob perspectivas não condizentes com a realidade (materializada em alguns jogos esportivos, de apostas, protagonizados ou aqueles que se valem de uma indução forçada para gestar uma perda de equilíbrio) está longe de representar qualquer afronta ao sistema social em que estão inseridos, muito pelo contrário, já que se caracteriza como uma atitude alienada que impede os seres humanos de visualizarem as principais contradições presentes no seio da sociedade capitalista. Portanto, o grande poder destas ferramentas consiste em transformar seus sujeitos em tolos dóceis, os quais lamentam seu insucesso social através do pseudo-esquecimento do próprio, ou seja, não lutam diretamente contra o problema, mas, apenas o postergam.
Além destes elementos, outro aspecto destacado por Caillois (1990), o qual é de fundamental importância para a compreensão do poder social, educacional e psicológico exercido pelo jogo está relacionado à prática coletiva dessa atividade. Não existe jogo individual, pois ao jogarmos dialogamos direta ou indiretamente com outros atores sociais, mesmo quando estes não se encontram presentes. Por isso, para Caillois (1990, p.59), “por mais individual que se suponha ser o manusear do brinquedo com que se joga: papagaio, ioiô, pião, diabolô, passa-volante ou arco, deixaríamos rapidamente de nos divertir, se acaso não houvesse nem concorrentes nem espectadores, por imaginários que fossem”.
Assim sendo, o jogo pressupõe a companhia e não a solidão, pois seu desenvolvimento está repleto de conteúdos socializantes que possibilitam a construção de um bem estar social coletivo e, não individual, como advogam as atuais teorias pós-modernas.
Como último apontamento para a compreensão do sistema de relações que configuram as atividades lúdicas na sociedade; destacamos o fato de os jogos representarem eminentes fontes de análise crítica sobre a configuração da própria sociedade e cultura que o constituíram.
Sociologia a partir dos jogos
Considerar os jogos como importante recurso sociológico significa acreditar em seu potencial de compreensão social. O jogo só pode ser uma fonte da Sociologia se ele permitir o desvendamento e a compreensão da estrutura cotidiana de certo local, além disso, sua prática deve influir diretamente na vida das pessoas, ou seja, não pode ser considerado como uma atividade banal e frívola.
De certa forma o universo dos jogos é um pré-molde de uma ampla visualização da sociedade, a qual atualmente estrutura seu poder entre uma fragmentação erigida sobre duas classes: dominantes e dominados. Assim sendo, tal como na sociedade, quem governa os jogos busca por intermédio de suas regras explorarem os participantes, sem aniquilá-los, além de garantir algumas remotas possibilidades de sucesso e êxito para que eles continuem praticando a atividade.
Por esses e outros motivos, para Caillois (1990), uma análise atenta da história nos mostra como os jogos sempre estiveram presentes no interior de nossa sociedade. Os jogos competitivos tornaram-se desportos, os de imitação religião e os de azar se transformaram em potentes instrumentos lógicos e esotéricos.
É claro que a presença dos jogos em toda a história da humanidade caracteriza-o como um elemento fundamental na construção das diversas relações sociais de certa comunidade, entretanto, estar presente não significa exercer a mesma influencia em distintas épocas históricas. Os jogos são produtos e resíduos da sociedade e cultura, por isso, percorrem séculos e países com, praticamente, a mesma lógica lúdica, porém, sua área de atuação se altera na medida em que os grupos dirigentes da sociedade trocam ou invertem suas relações de poder. Sendo assim, notamos a predominância marcante de alguns jogos em determinadas eras políticas, sociais, econômicas e ideológicas.
Coerentemente, um estudo criterioso dos jogos nos permite averiguar os próprios costumes, normas e padrões aceitos e não aceitos de determinada população. Os jogos prediletos de uma comunidade representam muito mais do que o principal passatempo, pois sua prática interfere, de acordo com Caillois (1990, p.15), “na história da auto-afirmação da criança e na formação da sua personalidade.” Além disso, as atividades lúdicas podem refletir, mas não como um espelho, as principais atividades laboriosas realizadas em certa sociedade, pois interiorizam em seus participantes alguns objetivos propalados pela própria sociedade da qual se faz parte, por exemplo, sociedades cooperativas tendem a construir seus jogos de uma forma mais harmônica e altruísta, enquanto nas sociedades competitivas, o maior prazer dos jogos consiste em vencer o outro, o desenrolar dessa atividade só tem graça quando um perde e outro ganha.
Isto posto, para Caillois (1990), não seria absurdo algum supor que uma dada época possa ser definida pelos seus jogos, pois seu desenrolar oferece linhas de força sobre as principais características da natureza social.
Uma melhor visualização deste exemplo pode ser oferecida pela análise de dois jogos extremamente influentes em seu tempo, quais sejam: jogos de gladiadores no Império Romano e os esportes praticados nas sociedades capitalistas atuais.
Na Antiga Roma todo o processo político de opressão e dominação estava circunscrito a famosa política do pão e circo, a qual acreditamos estar demonstrada de maneira cristalina no desenvolvimento dos próprios jogos. Superficialmente, poderíamos acreditar que esta atividade representava apenas a política do circo, pois tinha como principal função promover a distração e o entretenimento da população. As pessoas se alucinavam/alienavam a tal ponto que esqueciam os principais problemas sociais de Roma.
Porém, uma investigação criteriosa sobre a prática desses jogos, nos permite visualizar que ele também representava de maneira disfarçada a política do pão na sociedade romana medieval, já que os gladiadores eram em sua totalidade escravos capturados nas guerras vencidas por Roma; os quais eram duplamente explorados tanto na produção de alimentos como na distração das massas populares (PONCE, 1981). Mas porque a política do pão estava representada nos jogos de gladiadores?
Todo sustentáculo do Império Romano estava sobre o ombro de seus escravos. A partir de suas atividades laboriosas Roma tirava o sustento de grande parte de seu povo, ou seja, os escravos representavam à mola mestra da economia romana e, os jogos de gladiadores se caracterizam como a atividade que mais bem refletia as contradições presentes nessa sociedade, pois colocava frente a frente os verdadeiros produtores e pilares da sociedade romana, a citar, os gladiadores contra os parasitas de Roma tão bem representados pelo Senado romano. Deste embate resultou o próprio sepultamento do Império Romano, que alicerçou suas bases sobre uma estrutura parca e insustentável, o qual desmoronou assim que os escravos se rebelaram contra o regime inumano em que viviam conjuntamente a uma série de investidas bárbaras.
Nas sociedades atuais, os esportes se tornaram a principal atividade lúdica realizada pelos homens na sociedade e sua estruturação pode ser observada na própria constituição do regime capitalista.
O capitalismo, enquanto regime sócio-político-econômico se baseia no princípio da livre concorrência e da igualdade formal de direitos, característica essa, presente no interior de qualquer atividade esportiva, já que o transcorrer das ações pressupõe a oportunidade de que o melhor efetivamente vença na sociedade, além disso, o palco do jogo deve ser igualitário para não possibilitar qualquer vantagem aos jogadores, fato que quebraria o princípio da livre concorrência.
Entretanto, a tão propalada igualdade de condições não quer dizer, em hipótese alguma, possibilitar aos indivíduos as mesmas condições de desenvolvimento, mas, sim, através de regras delimitadas, as quais não podem ser violadas, buscando fazer com que os participantes se adaptem a um sistema rígido de comportamentos e padrões a serem seguidos para que os melhores vençam a disputa de forma leal e justa.
Ou seja, a gênese do esporte, assim como, da sociedade capitalista, tem em seu bojo histórico a idéia de que os mais aptos devem substituir os mais fracos, além disso, cria um corpo social de vencedores e a imensa maioria da população passa a ser taxada como perdedores.
Todavia, não podemos nos esquecer que não há qualquer possibilidade de livre concorrência em uma sociedade que não destina as mesmas oportunidades para seus indivíduos, posto ainda nos basearmos essencialmente pelo produto, não visualizando o moroso processo de construção humana, sendo que o esporte reflete como poucas atividades a divisão da sociedade em regras fixas, as quais não podem ser contestadas. Ou seja, em termos gerais, tanto o esporte como a sociedade, tencionam impedir a manifestação de qualquer tentativa de transformação social mediante a internalização de diversos chavões, tais como: apenas os mais fortes governam; as leis de concorrência são as mesmas para qualquer participante, etc. Enfim, o desenvolvimento esportivo (principalmente o de alto rendimento) reflete a discriminação presente na estrutura histórica da sociedade capitalista e garante a manutenção em parte desse regime segregacionista.
Seguindo este esteio teórico, Caillois (1990) destaca os jogos de competição como um excelente meio para a inserção das crianças em sociedades competitivas e capitalistas, pois permite que elas se constituam na mesma lógica histórica que a sociedade necessita, ou seja, são potentes instrumentos de aprendizagem.
Outra maneira de representar como os jogos são influenciados e influem no modo de estruturação de certa sociedade se materializa quando investigamos as mudanças nas principais categorias de jogos praticados pelos habitantes em certa época histórica.
Para Caillois (1990), geralmente a passagem das sociedades primitivas para àquelas consideradas civilizadas está relacionada à passagem dos jogos que utilizam principalmente o ilinx e o mimicry nas relações sociais para outros em que preponderam os princípios do agôn e alea.
Uma analise histórica nos mostra que nas sociedades primitivas a máscara assumia um papel de destaque nas relações sociais, denotando o poder e a ira dos deuses. Porém, com a ascensão da ciência se começa a dar atenção para outros valores que não os místicos, já que a construção de uma sociedade em si necessita a formação de rígidos aparelhos burocráticos e estatizantes, os quais só podem se estruturar através dos princípios competitivos e não mais em recursos sobrenaturais. Conseqüentemente, a competição é a grande mola propulsora das sociedades modernas.
Atualmente, as máscaras passaram de principais elementos nas relações de poder exercidas pelos seres humanos para simples objetos de venda, ou seja, foram englobadas pelo mercado capitalista, transformando-se em bens de consumo e não de adoração a alguma divindade. Sendo assim, a partir da ordenação e concepção de um universo mais estável, a mimicry entra em plena decadência, já que agora passa-se a dar um sobre-valor ao número em detrimento de outros elementos.
A modernidade e a Revolução Industrial destacam ao número um papel significativo na ordenação da sociedade capitalista, sendo que sua presença pode ser notada na expansão do mercado e da vida administrativa, além disso, juntamente com a competição dá origem a burocracia, a qual tende a colocar o agôn como recurso imprescindível a qualquer carreira. Ou seja, o jogo de competição está plenamente de acordo com os ideais propalados pela democracia, pois, como diria CAILLOIS (1990, p. 131), ele se baseia na:
concorrência honesta, da igualdade de direitos, e, em seguida, da igualdade relativa de oportunidades, permitindo revelar-se ao nível dos fatos, do real, uma igualdade jurídica que freqüentemente se revela mais abstrata que eficaz.
Todavia, mesmo com a competição prevalecendo como o elemento primordial nas relações sociais, não se conseguirá eliminar, por completo, nas sociedades capitalistas um elemento que aparentemente se opõe à competição, a citar, a sorte do próprio ato de nascimento. Assim, por mais que se tente aniquilar os princípios que não sejam àqueles baseados no esforço próprio da pessoa em vencer seus obstáculos, nunca conseguiremos impedir que a vantagem de freqüentar determinados meios sociais ocorra nas relações cotidianas, conseqüentemente, a tão sonhada igualdade de direitos não passa de um recurso ideológico capitalista.
Por mais que se tente elevar o agôn a um nível nunca visto anteriormente a sorte ainda subsistirá, nem sempre ligada a roletas, loterias ou baralhos, mas, sim, a um jogo interminável e sempre em construção que é a história humana, a qual se manifesta de diferentes maneiras para diferentes sujeitos. Devido a todas essas características, a configuração simbólica e material do sistema representacional característico das atividades lúdicas não se constitui como um campo fechado, mas, como um espaço multi-relacional em que proposições e contradições se dialogam de maneira constante e dialética.
Considerações finais
Esperamos que mediante este texto novas questões possam ser tracejadas sobre o complexo processo de origem e desenvolvimento dos próprios jogos enquanto manifestações da sociedade e cultura que constituem e são constituídas por todos os seres humanos. Assim, tencionamos mostrar que qualquer classificação naturalista do jogo não subsiste a uma análise criteriosa em termos empíricos, heurísticos e epistemológicos, logo, devem ser criticadas em sua raiz gênica.
Além disso, esperamos ter trazido a baila algumas concepções desenvolvidas por Caillois, o qual, infelizmente, ainda não tem seu nome colocado entre os grandes pensadores da área da Educação Física, todavia, oferece contribuições que nos permitem entender a interdisciplinaridade como uma relação formadora do próprio campo científico da Educação Física e de seus mais diversos conhecimentos, sendo que certamente os jogos fazem parte dele.
Referências bibliográficas
CAILLOIS, R. Os jogos e os homens. Lisboa: Portugal, 1990.
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