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Qualidade de vida e Educação Física: conhecimento

e intervenção crítica na sociedade de consumo

Life quality and Physical Education: knowledge and intervention critical in the consumption society

 

*Doutor em Filosofia da Educação

Professor do Departamento de Pedagogia da UNIJUÍ/RS

Professor do Programa de Mestrado em Educação nas Ciências – UNIJUÍ/RS

**Mestre em Educação nas Ciências

Professor do Curso de Educação Física da FADEP/PR

Paulo Evaldo Fensterseifer*

fenster@unijui.edu.br

Sidinei Pithan da Silva**

sidinei@fadep.br

(Brasil)

 

 

 

Resumo

          O presente texto discute e analisa a emergência do discurso sobre a “qualidade de vida” na sociedade contemporânea, destacando os desafios implicados nos âmbitos do conhecimento e intervenção em Educação Física. Investiga, num primeiro momento, os percursos históricos da noção de qualidade de vida na racionalidade ocidental. Num segundo momento, destaca este tema como um campo de disputa pela sua interpretação, pelo seu sentido, no âmbito da Educação Física (EF). E, num terceiro e último momento, busca pensar algumas formas de intervenção possíveis no âmbito da saúde e da qualidade de vida a partir da Educação Física Escolar. Emerge deste debate, uma possibilidade epistêmica de situar a Educação Física e compreender sua função na “sociedade de consumo”, bem como uma forma de encaminhar e construir uma perspectiva crítica de intervenção na Educação Física Escolar em relação ao tema da qualidade de vida.

          Untermos: Qualidade de vida. Educação Física. Sociedade de Consumo.

 

Abstract

          The present text discuss and analyses the emergency and speech about “life quality” in the nowadays society, pointing out the implicated challenges in the knowledge and intervention ambits of Physical Education. In a first moment, it investigates the historical routes of life quality notion in the occidental rationality. In a second moment, points out this theme as a debate field by its interpretation, by its sense, in Physical Education ambit. And, in a third and last moment, it tries to think in some possible intervention ways at health and life quality ambit from Scholar Physical Education. Emerges from this debate, an epistemic possibility of situating the Physical Education and to understand its function in the “consumption society”, as well as a way of leading and building a critical perspective of intervention in the Scholar Physical Education regarding to life quality theme.

          Keywords: Life quality. Physical Education. Consumption Society.

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 13 - Nº 127 - Diciembre de 2008

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Introdução

    O presente texto discute e analisa numa perspectiva crítica, as relações entre Qualidade de vida e Educação Física na sociedade de consumo. Objetiva, fundamentalmente, construir algumas possibilidades para pensar o “conhecimento e a intervenção” em Educação Física. Assim, num primeiro momento, o presente texto interroga-se acerca do porquê deste tema (Qualidade de Vida - QV) ocupar o lugar que ocupa hoje em nossa sociedade. Tece breves considerações de ordem histórica acerca da trajetória da racionalidade ocidental e o lugar conferido à saúde e a qualidade de vida. Num segundo momento, destaca este tema como um campo de disputa pela sua interpretação, pelo seu sentido, no âmbito da Educação Física (EF). E, num terceiro e último momento, busca pensar algumas formas de intervenção possíveis no âmbito da saúde e da qualidade de vida a partir da Educação Física Escolar.

1.     Qualidade de vida e cultura corporal na história do ocidente

    No caso da sociedade ocidental, pode-se compreender que o primeiro grande discurso com pretensões unificadoras e “universalizantes” foi o cristianismo propagado pela igreja católica (universal). Unificação que iniciou com o Império Romano e se fragilizou com a Reforma Protestante. O segundo projeto com pretensões unificadoras foi o discurso da modernidade, que por sua vez, apostou na força unificadora da Razão e sua filha predileta, a “ciência”. Promessa que o século XX viu ruir com o advento de duas grandes guerras, com o Nazismo, Stalinismo e outros ismos. Além dos desastres ecológicos que presenciamos, perdemos a visão ingênua das relações entre o bem e o mal, entre ciência e progresso, ao percebermos que no âmbito político nossos sonhos utópicos transformaram-se em pesadelos. No âmbito da natureza seu domínio mostrou-se ilusório uma vez que ela voltou-se contra seu pretenso dominador.

    De acordo com Serres, “desde as nossas origens, regulamos as nossas ações pela distinção entre as coisas que dependem de nós e aquelas que não dependem” (s/d, p. 227) entre as segundas situava-se “a vida”. Porém o esforço conjunto da ciência e da técnica “fizeram recuar, até à esperança de o anular, o limite do que não depende de nós”. Pareceu-nos que nada era irremediável (para tudo tem remédio1). Vivemos segundo Serres, “como divindades, na certeza feliz e segura de que tudo, a partir de agora, dependia, senão imediatamente, pelo menos em curto prazo, dos seus saberes ou de suas capacidades técnicas” (p. 228).

    Resolvemos demasiado bem as intenções da ciência moderna: dominar o mundo, agora resta saber “como dominar a nossa dominação, como controlar o nosso domínio?” (p. 232). Passamos, segundo Serres, “do verbo poder para o verbo dever, em relação aos mesmos atos”. E, conclui: “Que retorno inesperado da moral!” (p. 232). Se antes “o outro” que nos restringia era da ordem divina, agora quem é o outro? Nosso esforço de quantificação traduzir-se-à em qualidade? Produzimos mais vida, seremos capazes de produzir mais sentido para viver? Enfim que discursos hoje nos mobilizam?

    Sobrou-nos como discursos unificadores, capazes de produzir razoável consenso, o Ecológico (cuidar do mundo = cuidar de nós) e o da Saúde (sem a qual tudo o resto não faz sentido). E como uma espécie de “mantra” que engloba tudo, a propalada Qualidade de Vida (espécie de saco sem fundo no qual cabe tudo). Um bom termômetro do lugar que este tema ocupa no mundo contemporâneo é o fato de o próprio discurso religioso direcionar suas baterias para esta vida, logo os deuses devem contribuir para eternizar esta vida, para o que se faz necessário dinheiro e poder. Este é o discurso do que se chama hoje “Teologia da Prosperidade” 2.

2.     Qualidade de vida, cultura corporal e Educação Física na sociedade de consumo

    Como entra a EF nessa história? A EF comparece com a tarefa missionária de “salvar o corpo” (quem sabe a mais nobre tarefa do mundo contemporâneo). A “evangelização aeróbica” chegou até os templos (vide a “aeróbica do senhor”), e nós, profissionais (não mais “simples professores”), transformados em “missionários do suor”, temos, teoricamente, junto aos demais profissionais da nobre área da saúde, o poder de penitenciar os novos pecadores de velhos pecados como o da gula, ou de novos pecados, como o pecado mortal do sedentarismo (nova “Caixa de Pandora” de onde emergem todos os males menores como: colesterol; diabetes; a flacidez; a “barriguinha” etc). Como vivemos em uma sociedade capitalista (ou de mercado para não chocar) e através dele (do mercado) que atingiremos as promessas de felicidade no paraíso, agora terreno (WHITE, 1995, p. 112-3).

    Nesta perspectiva os problemas sociais que atingem a coletividade, devem, pelos preceitos desta nova forma da “providência divina” serem resolvidos individualmente. Aliás, a principal lição do novo catecismo é essa: a salvação é individual e não coletiva – só depende de ti. Precisamos de uma ótima aptidão física para a concorrência que impera neste jogo que torna o stress sintoma de normalidade, mas principalmente, como todos os grandes vencedores do mundo dos esportes, uma ótima saúde financeira. Afinal, se a atividade física vira mercadoria sua razão de ser está em si (se realizar enquanto mercadoria) e não no sujeito que a realiza. Realidade que pode ser exemplificada pelos modismos neste âmbito ou no esporte de alto rendimento.

    O “cidadão”, que era uma categoria política que herdamos da modernidade, transforma-se em “consumidor” 3 (categoria econômica). Não falamos mais em “direitos do cidadão”, mas em “direitos do consumidor”, não lutamos mais para “conquistar direitos”, mas para ter acesso ao “livre mercado”, no qual tudo está a venda, inclusive, obviamente, a qualidade de vida. Aliás, vender vida, ou promessa de vida, é o melhor negócio dos nossos tempos. O mundo transforma-se em um grande Shopping Center, e as pessoas existem à medida que podem acessá-lo pelo seu poder de consumo. Mas, qual o papel do conhecimento em Educação Física, ou melhor, do conhecimento e da intervenção em Educação Física na escola (educação básica)?

3.     Qualidade de vida, cultura corporal e Educação Física Escolar: conhecimento e intervenção

    A EF pode muito bem (como tem feito) pegar carona nessa “profecia” vendendo o receituário de um “estilo de vida saudável” (o que devemos reconhecer é bem mais fácil). Pode-se, porém, questionar esta simplificação que é a redução da complexidade dos aspectos envolvidos na qualidade de vida, a características subjetivas de “estilo de vida” 4. Um bom exemplo disso é nossa dificuldade de reconhecer o sedentarismo como “conquista da humanidade”, que em muitos aspectos aumentou nossa expectativa de vida, mas que, como basicamente todas as conquistas humanas, carrega aspectos negativos. Precisamos aprender a lidar com isso sem desprezar as complexidades que envolvem o imaginário humano em torno desse fenômeno.

    Um modo de fazer isso é não “vender ilusões”, mas sim ajudar o aluno a compreender melhor o mundo em que vive através da “janela da Educação Física” (esperando que as demais disciplinas o façam a partir de suas especificidades). No caso da EF atitudes irresponsáveis de promessas fáceis têm levado a um quadro assustador de problemas como o uso abusivo do Doping, distúrbios como anorexia, bulimia, vigorexia, permarexia (obsessão por dieta), lipofobia (fobia a gordura), ortorexia (obsessão por alimentos sadios), manifestação de uma cultura paradoxal que normaliza o narcisismo e ao mesmo tempo gera uma inconformidade patológica consigo mesma5.

    Um modo concreto de realizar esse intento é propiciar aos alunos acesso a conhecimentos que o ajudem a compreender os determinantes objetivos envolvidos na promoção da Qualidade de Vida e como potencializá-los nos contextos em que estes estão inseridos, acreditando, como Vilela Junior e Vilarta, que,

    A partir da conquista da autonomia estruturam-se os pressupostos básicos que possibilitarão uma melhoria da qualidade de vida de uma população. Ensino e pesquisa se constituem como instrumentos basilares na construção desta autonomia. Esta construção se manifesta como processo dinâmico, uma vez que é a partir da apreensão da complexidade da totalidade que poderemos, racional e sensatamente, atuar na localidade (2004, p. 28).

4.     Considerações finais

    Concluindo, precisamos buscar uma melhor compreensão do que os gregos chamavam “pathos”, aquilo que nos atrai para a vida (paixão pelo viver) e nos dá a alegria de viver. Algo mais que “queimar calorias” que esta mesma sociedade de consumo nos faz ingerir. Sociedade que produz a obesidade e paradoxalmente condena os obesos (só não é paradoxal do ponto de vista do capital que ganha nas duas pontas).

    Enfim, que a busca por Qualidade de Vida nos permita reconhecer que a felicidade humana não se encontra nas prateleiras da “Daslu” ou nas lojas de “1 real”. Quem sabe ela esta mais próxima da definição de Érico Veríssimo, segundo o qual, a “felicidade é a certeza de que nossa vida não está se passando inutilmente”.

Notas

  1. A noção de “remédio” amplia-se significativamente nos dias de hoje pelas diferentes intervenções que somos capazes de promover sobre o corpo.

  2. Lembramos um panfleto veiculado por uma igreja que dizia mais ou menos assim: “Cristo já pagou nosso pecados, nós temos que ser felizes, portanto se você tiver algo que impeça esta felicidade, nos procure”.

  3. O ato de consumir para viver seguramente não é invenção do capitalismo, mas viver para consumir é com certeza algo que se ajusta a seus propósitos.

  4. Autores clássicos como Luc Boltansky, Pierre Bourdieu, ou pesquisadores do tema na EF brasileira como Alexandre Palma, Aguinaldo Gonçalves entre outros, tem chamado atenção para esse fenômeno.

  5. As pessoas devem compulsoriamente amar-se a si mesmos, mas como fazê-lo se o ideal que almejo está cada vez mais distante de mim mesmo.

Referências

  • BOLTANSKY, L. As classes sociais e o corpo. Rio de Janeiro: Graal, 1989.

  • BOURDIEU, P. Gostos de classe e estilos de vida. In: Bourdieu, P. Sociologia. Organizador [da coletânea] Renato Ortiz. São Paulo: Ática, 1983.

  • GONÇALVES, A. Em busca do diálogo do controle social sobre o estilo de vida. In: Vilarta, R. (organizador). Qualidade de vida e políticas públicas: saúde, lazer e atividade física. Campinas: IPES Editorial, 2004.

  • PALMA, A. Educação Física, Corpo e Saúde: uma reflexão sobre outros “modos de olhar”. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, v. 22, n.2, p. 23-39, jan., 2001.

  • SCHNEIDER, P. Universidade. In: GONZALEZ, F.J.; FENSTERSEIFER, P.E. Dicionário Crítico de Educação Física. Ijuí: Ed.UNIJUÍ, 2005.

  • SERRES, M. Diálogo sobre a ciência, a cultura e o tempo: conversas com Bruno Latour. Lisboa: Instituto Piaget, s/d.

  • TUGENDHAT, E. Antropologia como filosofia primeira. In: Pommer, A; Fraga, P. D.; Schneider, P. R. (organizadores), Filosofia e crítica: Festschrift dos 50 anos do curso de Filosofia da UNIJUÍ. Ijuí: Ed. Unijuí, 2007.

  • VILELA JÚNIOR, G. B.; VILARTA, R. Inclusão digital, cidadania e construção do conhecimento para a qualidade de vida. In: Vilarta, R. (organizador), Qualidade de vida e políticas públicas: saúde, lazer e atividade física. Campinas, SP: IPES Editorial, 2004.

  • WHITE, S. K. Razão, justiça e modernidade: a obra recente de Jürgen Habermas. São Paulo: Ícone, 1995.

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revista digital · Año 13 · N° 127 | Buenos Aires, Diciembre de 2008  
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