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Reflexões sobre o corpo e a Educação Física

 

Mestre em Educação

Universidade Federal de São Carlos

(Brasil)

Cae Rodrigues

cae_jah@hotmail.com

 

 

 

Resumo

          A forma como compreendemos o fenômeno “corpo” certamente influenciará na maneira como o tratamos em nosso cotidiano e, conseqüentemente, na maneira como conduzimos nossa vida. O principal objetivo desse estudo é discutir e refletir sobre o fenômeno “Corpo”, justificando-se na relevância dessa temática para as áreas da saúde, em especial, para a Educação Física.

          Unitermos: Corpo. Educação Física. Relação ser-humano e mundo.

 

Abstract

          The way we comprehend the phenomenon “body” will certainly have an influence in our whole lifestyle. The main objective of this study is to think about the phenomenon “Body”, justified in the relevance of this matter in the study areas related to health, in special, for Physical Education.

          Keywords: Body. Physical Education. Relation between mankind and world.

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 13 - N° 126 - Noviembre de 2008

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1.     Introdução

    A forma como compreendemos o fenômeno “corpo” certamente influenciará na maneira como o tratamos em nosso cotidiano e, conseqüentemente, na maneira como conduzimos nossa vida. Mas será que há uma preocupação em compreender o corpo, em explorar suas infinitas possibilidades? Segundo Critelli (1981, p.60) "A uma civilização que se consuma e se consome ao nível exclusivo do 'fazer', o compreender torna-se obsoleto e sem sentido”. Mas e na área acadêmica, principalmente nas áreas da saúde, quando o “fazer ciência” implica trabalhar com a multiplicidade de conceitos e concepções que envolvem o corpo?

    Neste sentido, o principal objetivo desse estudo é discutir e refletir sobre o fenômeno “Corpo”, justificando-se na relevância dessa temática para as áreas da saúde, em especial, para a Educação Física.

O Corpo

    "...a beleza do cosmos é dada não só pela unidade na variedade, mas também pela variedade na unidade."

(Eco, 2003, p. 24)

    O corpo. Fenômeno amplamente discutido já pelos grandes filósofos gregos, e que ainda hoje presente nos mais diferentes contextos. Mas de que forma será que os conceitos atuais diferem daqueles dos antigos filósofos? Platão (1972, p.74) indagava que:

    [...] nada como o corpo e suas concupiscências para provocar o aparecimento de guerras, dissensões, batalhas; com efeito, na posse de bens é que reside a origem de todas as guerras, e, se somos irresistivelmente impelidos a amontoar bens, fazemo-lo por causa do corpo, de quem somos míseros escravos! Por culpa sua ainda, e por causa de tudo isso, temos preguiça de filosofar.

    O corpo era visto como um fardo do qual o homem não podia se livrar, como uma prisão, e sua fraqueza culpada pelas avarezas do homem e pelas suas dificuldades em filosofar, em sair do escuro em busca da luz da sabedoria. A alma, por outro lado, era vista como moradia da razão, e deveria compensar pelas fraquezas do corpo controlando seus impulsos instintivos. Assim, aquele que conseguisse controlar o corpo pela razão, seria uma pessoa justa. Segundo Platão (1993, p.4), a alma humana era dividida em três partes: "a parte racional, a vontade e o apetite. A pessoa justa é aquela em quem o elemento racional, apoiado pela vontade, controla o apetite".

    As manifestações do corpo também causaram diversas discussões com o surgimento do catolicismo e, bem depois, durante a idade média. O riso, por exemplo, durante séculos foi visto como uma forma perigosa de contestação do poder. Com a justificativa de que nenhuma imagem de Cristo mostrava-o sorrindo, a comédia e o riso foram, durante muito tempo, proibidos. Como indagava Jorge, personagem da obra de Humberto Eco (2003, p. 457),

    [...] se um dia - e não mais como exceção plebéia, mas como ascese do douto, consignada ao testemunho indestrutível da escritura - se tornasse aceitável, e aparecesse nobre, e liberal, e não mais mecânica, a arte da irrisão, se um dia alguém pudesse dizer (e ser escutado): eu rio-me da Encarnação...Então não teríamos armas para deter a blasfêmia, porque ela conclamaria as forças obscuras da matéria corporal, as que se afirmam no peido e no arroto, e o arroto e o peido arrogariam a si o direito que é só do espírito, de soprar onde quer!

    Mas não era só o riso que era reprimido. O homem então vivia com a perspectiva de salvar a sua alma em vida pelo sofrimento do corpo, que era visto como desprezível e sujo. Ainda o corpo, a "carne", era responsável pelas fraquezas e profanidades do homem. Isso não significa que o homem não pecava, mas o corpo, responsável pelo pecado, sempre deveria ser punido, o que freqüentemente acontecia pela flagelação (em muitos casos autoflagelação), jejuns, penitências, etc.

    Com certeza os conceitos, de forma geral, refletem demasiadamente o período histórico no qual estão inseridos, uma vez que conceitos são socialmente construídos. Conforme os valores se transformam, a tendência é que os conceitos também se transformem, na medida em que novos significados são construídos. Por exemplo, quando ocorreu uma transformação nos meios de produção (revolução industrial), transformou-se também a maneira de se ver o corpo. A mecanização e produtividade essenciais à explosão do sistema capitalista deram ao corpo um novo significado: força de trabalho.

    Mas qual será o conceito atribuído ao corpo na sociedade contemporânea? O que tem se observado nas últimas décadas é exatamente uma transformação do significado atribuído ao corpo. Ao contrário do que vimos até agora, o corpo não mais representa a fraqueza do homem, a sua parte suja e desprezível. Estamos passando por um período de valorização do corpo, no qual ele é visto como fundamental à existência do homem e que, por essa razão, deve ser motivo de preocupações e de cuidados. "'Esta reivindicação do corpo é uma das melhores normas do nosso tempo' (Ortega Y Gasset) [...] Ficavam, para trás, como farrapos de frases insignificantes, a desvalorização do corpo pelo homem medieval, que o apodava de 'cofre de nojos' ou 'jumento vil'." (Sergio, 2003, p.2).

    Estamos na era da comunicação. A mídia controla os meios de comunicação em massa e possui enorme capacidade de atribuir significados que podem influenciar e direcionar o consumo. A saúde, a beleza, a moda, a educação, o sexo tornam-se novos e interessantes mercados, e se utilizam do corpo como forma de propaganda. Isso implica na valorização de uma determinada imagem de corpo, um corpo modelo. Neste sentido, Gonçalves Junior, Ramos e Couto (2003, p. 27) destaca que:

    [...] na sociedade contemporânea tem-se dicotomizado o ser do corpo e o corpo de suas extensões (o mundo e seus objetos), ajustando o corpo à máquina e ao tempo mecânico e, mais recentemente, ao tempo virtual, fruto da sociedade informacional. Percebemos ainda, na atualidade, compulsividade a um modelo 'ideal' de corpo, um corpo-mercadoria, fomentado e homogeneizado pelos meios de comunicação de massa em detrimento do corpo-próprio.

    Essa dicotomia entre corpo e mente ou corpo e alma, a qual se refere o autor, pode ser observada já nos discursos dos antigos filósofos gregos, e ainda está presente nos dias atuais, apesar de se justificar de diferentes maneiras em diferentes períodos históricos. Essa busca do ser humano por existir distante de seu corpo implicou numa série de características que acabaram por impedir sua existência plena. Desta forma, há uma necessidade de se repensar essa concepção de corpo.

Do cartesianismo à abordagem fenomenológica

    No capítulo anterior vimos como a história pode influenciar nas diversas conceituações sobre o fenômeno corpo. Mas como será que esses conceitos são trabalhados pelos diversos ramos da ciência em diferentes contextos históricos?

    Até os dias atuais não é incomum nos defrontarmos com conceitos que tratam o corpo de forma fragmentada, que separam o corpo da mente, ou a alma do corpo, etc. Frases como "estava agindo com o coração, e não com a cabeça", ou "só meu corpo estava lá, pois minha mente estava em outro lugar" fazem parte de nossa cultura popular. Mas de onde vem esse conceito fragmentado do corpo?

    Descartes, em seu "Discurso do Método", desenvolve uma teoria de pesquisa científica que busca compreensão do mundo pela razão, elegendo a matemática como a linguagem mais apropriada para esse fim. Mas a matemática, como uma ciência exata, compreende uma estruturação fragmentada dos fenômenos naturais em busca de uma ordem já existente, mas que nossa visão por vezes não enxerga. Para tanto, Descartes cita como parte de sua metodologia:

    dividir cada uma das dificuldades que examinasse em tantas parcelas quantas pudessem ser e fossem exigidas para melhor compreende-las [...] Conduzir por ordem meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de serem conhecidos, para subir, pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento dos mais compostos, e supondo mesmo certa ordem entre os que não se precedem naturalmente uns aos outros.

    Essa fragmentação e simplificação adotada pela ciência passou também a fazer parte do pensamento popular. O nosso modo de pensar reflete, até hoje, essa tentativa de racionalizar os fenômenos naturais, entre eles o corpo e suas diversas potencialidades.

    A fenomenologia, outro método de pesquisa, compreende os caminhos da ciência de maneira bem diferente a de Descartes.

    Merleau-Ponty (1908-1961) elabora a sua obra, partindo (como Sartre) da fenomenologia e num ambiente cultural onde se entrecruzavam, inconformistas e militantes, o existencialismo, o marxismo, o personalismo e até o estruturalismo. O cartesianismo já não tinha forças para obstaculizar a passagem do sujeito ao objeto, ou para dividir o Homem em duas substancias incomunicáveis. (SÉRGIO, 2003, p. 2).

    Para a fenomenologia, " [...] o corpo é nosso ancoradouro em um mundo” (Merleau-Ponty, 1996, p. 200). A "ancoragem", na filosofia clássica, se dá a partir de pontos geométricos expostos no espaço (eixo cartesiano). Pode-se citar como exemplo disso o homem que está em um trem parado, mas tem a impressão que está em movimento ao assistir um outro trem, esse sim em movimento, passar pela janela. Já na filosofia fenomenológica, a ancoragem se dá pela experiência do corpo próprio no espaço (mundo).

    O corpo é nosso meio geral de ter um mundo. Ora ele se limita aos gestos necessários à conservação da vida e, correlativamente, põe em torno de nós um mundo biológico; ora, brincando com seus primeiros gestos e passando de seu sentido próprio a um sentido figurado, ele manifesta através deles um novo núcleo de significação. (Merleau-Ponty, 1996, p.203).

    Para Descartes, corpo e mundo só existem a partir do pensamento ("Cogito ergo Sun" - penso, logo existo). Esse argumento extrai da existência do pensamento atual a realidade da alma enquanto substância individual. Sou uma coisa que pensa. Já para Merleau-Ponty, o cogito não substitui o próprio mundo (existo, logo penso).

    Um cartesiano não se vê no espelho: vê um manequim, um 'exterior' do qual tem todas as razões de pensar que os outros igualmente o vêem, mas que, nem para si mesmo nem para eles, é uma carne. A sua 'imagem' no espelho é um efeito da mecânica das coisas; se ele se reconhece nela, se a acha 'parecida', é seu pensamento que tece esse vínculo, a imagem especular nada é dele (Merleau-Ponty, 1969, p.55).

    Contrastando com essa forma de pensar o corpo, a fenomenologia percebe "o ser existindo no mundo a partir dos existenciais básicos: afetividade, compreensão e expressão, que estão sempre numa mesma dimensão de importância, sendo equiprimordiais, pois são fundantes da constituição do ser; são modos de existir-aí" (GONÇALVES JUNIOR, RAMOS e COUTO, 2003, p. 28). Se para o cartesiano o importante para um surfista são os pontos onde ele deve se posicionar em sua prancha, o ângulo em que deve estar seu joelho e a quantos graus deve ter o espaçamento entre suas pernas em busca do equilíbrio em cima da prancha, para a fenomenologia a prancha é um prolongamento do próprio corpo e, desta maneira, o importante é como o surfista percebe a si mesmo e a prancha como uma só unidade.

    Visível e móvel, meu corpo está no número das coisas, é uma delas; é captado no tecido do mundo, e sua coesão é a de uma coisa. Mas, já que vê e se move, ele mantém as coisas em círculo à volta de si; elas são um anexo ou prolongamento dele mesmo, estão incrustadas na sua carne, fazem parte de sua definição plena, e o mundo é feito do próprio estofo do corpo (Merleau-Ponty, 1969, p.36).

    Neste sentido, " [...] o sujeito que aprende a datilografar integra o espaço do teclado ao seu espaço corporal. O exemplo dos instrumentistas mostra melhor ainda como o hábito não reside nem no pensamento nem no corpo objetivo, mas no corpo como mediador de um mund." (Merleau-Ponty, 1996, p.201). Se para o cartesianismo o corpo está no espaço e no tempo, para a fenomenologia " [...] longe de meu corpo ser para mim apenas um fragmento de espaço, para mim não haveria espaço se eu não tivesse corpo." (Merleau-Ponty, 1996, p.149). Desta maneira, " [...] não estou no espaço e no tempo, não penso os espaço e o tempo; eu sou no espaço e no tempo, meu corpo aplica-se a eles e os abarca." (Merleau-Ponty, 1996, p.195).

Considerações finais

    Como estudante, pesquisador e profissional da área de Educação Física, torna-se relevante para mim não só refletir sobre essas relações históricas do fenômeno “Corpo”, mas também pensar na relevância dessas relações para a área da saúde, em especial, para a Educação Física. Isso significa pensar numa Educação Física que supere a racionalidade que separa o ser humano em corpo e mente, em motor e cognitivo, pois “a totalidade da existência humana não pode ser descrita nem pela dicotomia entre corpo e espírito, nem pela separação entre ser humano e mundo” (TREBELS, 2003, p. 259).

    Uma Educação Física que,

    [...] ao reclamar para si o corpo e o movimento como objeto de estudo, necessita contribuir para a construção de ações para uma escola que não se limita a tratar criticamente os conteúdos escolares apenas como abstração teórica ou como uma experiência fria, sem alegria. A educação corporal não é exclusividade da Educação Física, assim como o lúdico ou a alegria da experiência pedagógica. Seria papel da Educação Física nas escolas contribuir para que currículos pudessem ser problematizados pela necessidade da experiência corpórea como forma de fazer da prática pedagógica uma experiência lúdica. Frente ao abismo das diferenças sociais, em que convivem o conhecimento e a ignorância, a miséria e a riqueza, é urgente propor práticas corporais lúdicas para toda a escola, capazes de formar e conformar valores, desejos e identidades para a superação de tal situação (NOGUEIRA, 2003, p.191).

    Uma Educação Física pelo “perceber”, definida por Merleau-Ponty, durante a Société Française de Philosophie, como “tornar presente qualquer coisa, com a ajuda do corpo” (citado por SÉRGIO, 2003). Isso porque “eu não sou um sujeito isolado, sem mundo, mas sim nele ancorado, por meio de meu corpo, e dele faço o horizonte no qual me comunico perceptivamente com as coisas” (TREBELS, 2003, p. 259). Uma Educação Física que permita ao indivíduo perceber-se enquanto motricidade, enquanto movimento, que é linguagem de comunicação com o mundo, enquanto consciência, enquanto tempo e espaço, enquanto intencionalidade original. Enfim, uma Educação Física para a vida.

Referências bibliográficas

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