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Corpo, significados sociais e a experiência da deficiência

 

*Doutora em Psicologia Social pela USP, psicóloga e jornalista

Professora titular no mestrado em Inclusão Social e Acessibilidade, 

em cursos de Pós Graduação e graduação em Psicologia do Centro Universitário Feevale.

Membro do grupo de pesquisa Educação, Cultura e Trabalho. 

Vice-presidente do Conselho Regional de Psicologia seção 07.

**Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2005)

Professor titular e pesquisador do Centro Universitário Feevale. 

Membro do Conselho de Pesquisa e Pós-Graduação (CONPPG)

Coordenador do Curso de Pós-Graduação Stricto Sensu, 

Mestrado em Inclusão Social e Acessibilidade e do 

Grupo de Pesquisa em Desenvolvimento Regional.

Denise Macedo Ziliotto*

dmziliotto@feevale.br

Everton Rodrigo Santos**

evertons@feevale.br

(Brasil)

 

 

 

Resumo

          As expectativas e significados sobre o corpo são construídos socialmente e possuem contextualização histórica. Os sujeitos dotam seus corpos de propriedades comunicativas e relacionais, especialmente na transmissão de uma imagem de si perante os demais. Diante de tal importância e significado, a experiência da deficiência reveste-se de dificuldades significativas em nossa sociedade, sendo premente explicitar as representações vigentes acerca da corporiedade, podendo contribuir para a reflexão em prol de um processo social efetivamente inclusivo.

          Unitermos: Corpo. Deficiência. Inclusão. Representações. Corporiedade.

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 13 - N° 126 - Noviembre de 2008

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O Corpo como linguagem

    O corpo possui uma função social, pois antes de tudo é uma imagem, uma representação de si, que veicula significados e produz sentidos. Não consegue se restringir à dimensão biofiosiológica, pois é um objeto simbólico socialmente construído, partilhado e sustentado em diferentes culturas e sociedades (PERUZZOLO, 1998). Assim, as diferentes formas de conceber o corpo convertem-se em significados peculiares e historicamente contextualizados. Os padrões estéticos revelam essa mutabilidade de sentidos, estando a beleza e saúde, por exemplo, outrora relacionados à silueta curvelínea, contrariamente ao corpo excessivamente esguio que é perseguido na contemporaneidade.1 Percebe-se, sobretudo, que a cultura contemporânea imprime nos corpos uma mediação relacional importante, dada a valoração premente do físico enquanto representação do sujeito no social.

    Sobre o corpo inscrevem-se marcas identitárias como as tatuagens, as marcas de sedução através do esmero estético e as marcas relacionais nos gestos e nos contatos. As diferenças subjetivas podem, nesse sentido, se valer do corpo para se afirmarem, para buscar transcender o efêmero e registrar um significado particular. Diferente de algumas tradições tribais que introduzem artefatos no corpo para responder à tradição e às prerrogativas relativas ao poder, na modernidade a intenção muitas vezes é de transgressão e uso superlativo da pele e das estruturas, como no body art.2 Mafessoli (1996) afirma que o corpo humano é um espaço de escritura de significações sociais que podem atuar como meio de situar o sujeito diante dos outros, processando um efeito de comunicação. A partir do entendimento da função especular do corpo – capacidade de estabelecer imagem com que o sujeito passa a ser analisado pelo outro – que podemos vislumbrar o investimento, a preocupação e o cuidado vigentes em nossa sociedade com os aspectos corporais.

    A falta de profundidade e o esmaecimento do afeto são apontados por Jameson (2000) como característicos do sujeito na atualidade, contribuindo para um declínio do estilo, da subjetividade. A alienação que o sujeito experimentaria advinda desse processo social seria deslocada, minimizada, deslocada, através da fragmentação, da multiplicidade que estaria facultada aos gostos, comportamentos e escolhas. Nessa lógica, podemos vislumbrar a relação com o corpo como a possibilidade de inscrever neste significados que possam recuperar ou mesmo integrar sentidos, afetos e características que o sujeito deseja exteriorizar permanentemente em seu contato com os demais.

O corpo desumanizado

    Contrariamente ao arbítrio constante do homem contemporâneo sobre seu corpo, as marcas do tempo são insistentemente administradas e mesmo negadas. Segundo sugere Peruzzolo (1998), revela uma atitude de busca de suposto trunfo da ciência e da tecnologia sobre a morte. A passagem cronológica impressa no corpo é tida como demérito em uma sociedade que tem como ideal a adolescência. A felicidade e o reconhecimento pela comunidade residiriam justamente na plenitude e potência das relações amorosas / sexuais exercidas dessa etapa da vida, bem como a produtividade e a expansão social. Assim haveria basicamente duas qualidades subjetivas que são cruciais para se fazer valer em nossa sociedade: é necessário ser desejável e invejável (CONTARDO, 2000). Os ideais cultuados atribuem ao corpo um valor intrínseco, mas retidos num padrão estético e etário extremamente rígido e imperativo. Em contraponto, todo a diferença, o desvio, as alterações corporais ficam, por sua vez, tidas como patologias, como demonstrações inevitáveis da finitude, da fragilidade e efemeridade do corpo humano.

    A deficiência depara-se, especialmente nesse âmbito, com uma sociedade essencialmente excludente, onde a presença de um corpo que denuncia o equívoco da superioridade do corpo à condição humana é reiterada. Concebemos nesse estudo deficiência como toda perda ou anomalia de uma função psicológica, fisiológica ou anatômica (OMS, 1982). Entendemos e sustentamos a deficiência não como sinônimo de incapacidade ou invalidez; salientamos, sobretudo, que as restrições ou impossibilidades muitas vezes advêm das relações entre as pessoas com deficiência e seu ambiente. Sob esta ótica reside o intuito da construção de uma sociedade inclusiva e não o processo de inclusão das pessoas com deficiência. Cerignoni e Rodrigues (2005) afirmam que quando as pessoas se deparam com barreiras culturais, físicas ou sociais que impedem o seu acesso à condição de cidadania é que se vivencia efetivamente a deficiência.Trata-se de uma mudança de cultura implícita, que repercute nas representações, significados e relações interpessoais estabelecidas no social. Nesse escopo, seria possível prever que o convívio efetivo com a deficiência provocasse na sociedade novas representações sobre o corpo e o surgimento de significados inéditos acerca da potencialidade conferida ao biológico.

A deficiência diante das representações sociais do corpo

    Habitualmente o corpo é avaliado de forma segmentada, baseando-se em critérios simbólicos ou classificatórios vigentes, analisando as diferentes partes com representações variadas. O valor conferido ao abdômen no ocidente é significativamente diverso daquele atribuído pelos orientais; contrariamente, a sedução associada ao cabelo feminino é peculiar em países como o Irã. Conforme Peruzzolo (1998) o espaço corporal humano é “ um campo social onde se pode conceber o corpo como um objeto semiotizável em diferentes planos de elaboração, inculcação e sanção de valores da coporiedade” (p. 19). A pessoa com deficiência insere-se nesse contexto com complexidade inegável nas representações que constrói de si, como também naquelas que lhe são indicadas pelos demais.

    O ideal de beleza e mesmo o ideal de saúde vigentes pressupõem integridade física; nesse sentido também as deformidades corporais evidentes contrariam tal condição (QUEIROZ e OTTA, 1999). Tidas como imperfeições corporais - visto a idealização e sacralização do corpo preponderantes – as deficiências podem justificar o juízo da incapacidade ou impotência atribuída ao sujeito, tomando-lhe não como alguém para além da experiência como deficiente, mas como refém e reduzido a ela. Muitos esforços freqüentemente são investidos no sentido de provar a suficiência apesar da experiência da deficiência, como se observa no campo laboral e afetivo, através da paulatina participação dos sujeitos na sociedade.

    Salientamos também que o corpo é comumente compreendido enquanto fonte de satisfação e prazer, muitas vezes coisificado e mediatizado, funcionando como um instrumento de gozo imediato e liberdade na contemporaneidade. Nessa premissa também se encontra impedido da mesma condição imaginária no corpo que possui uma alteração ou perda. Ribas (2007) refere que até pouco tempo era ainda estranho pensar a respeito da sexualidade das pessoas com deficiência física, auditiva e visual, e que a sexualidade as pessoas com deficiência mental era de natureza intrinsecamente problemática ou patológica.

Considerações finais

    Assinalamos que o corpo figura na ordem da cultura, oriundo de significados e símbolos sociais. Peruzzolo (1998) afirma que sendo o corpo o lugar de processos fisiológicos, remete à visualização da naturalidade do homem, mas fundamentalmente é a sede do sentido de sua cultura. Revela as modalidades vigentes de perceber e organizar o real e especialmente a imagem especular de si. Em virtude da importância conferida ao corpo - entendido em sua condição simbólica, relacional – em nossa sociedade, podemos dimensionar os efeitos na relação com os demais que a pessoa com deficiência está submetida, já que confronta continuamente o outro com a falência de alguns pressupostos ideais relativos à corporiedade.

    Construindo intervenções da cultura sobre o corpo pode-se incidir sobre os padrões estéticos, sobre a concepção de beleza, mas, sobretudo, sobre a forma com que os sujeitos deficientes são vistos e percebidos na sociedade. Tal mudança reflete-se sobre a imagem que possuem de si, em decorrência dessa relação social, mas também sobre os modos atuais de viver e conceber o corpo. A representação da deficiência atrelada à corporiedade é um significado que urge ser analisado e dimensionado em sua condição histórico-cultural.

Notas

  1. Barber apud Queiroz e Otta (1999) analisou as curvas das modelos da revista Vogue entre 1901 e 1993, tomando como indicador a proporção do busto em relação à cintura. Identificou nesse período uma redução nas curvas dos corpos das modelos, associando tal mudança à elavação do nível de instrução e à maior participação da mulher na economia. Segundo o autor, o armazenamento de gordura corporal é inversamente proporcional ao status econômico das mulheres.

  2. A body art, ou arte do corpo, designa uma vertente da arte contemporânea que toma o corpo como meio de expressão e/ou matéria para a realização dos trabalhos, associando-se freqüentemente aos happenings e às performances.

Referências bibliográficas

  • BRASIL. Ministério da Educação – Secretaria de Educação Especial. A Hora e a Vez da Família em uma Sociedade Inclusiva. Organização SORRI –Brasil, São Paulo, 2006.

  • CERIGNONI, Francisco Nuncio & RODRIGUES, Maria Paula. Deficiência: Uma questão política? São Paulo, Paulus, 2005.

  • CALLIGARIS, Contardo. A adolescência . São Paulo, Publifolha, 2000.

  • JAMESON, Frederic. Pós Modernismo – a lógica cultural do capitalismo tardio (2. ed). São Paulo, Ática, 2000.

  • MAFFESOLI, Michel. No fundo das aparências. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.

  • ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS). Programa Mundial para as pessoas com deficiência, 1982.

  • PERUZZOLO, Adair C. A circulação do corpo na mídia. Santa Maria, RS: Imprensa Universitária da UFSM, 1998.

  • QUEIROZ, Renato da Silva & OTTA, Emma. A beleza em foco: condicionantes culturais e psicobiológicos na definição da estética corporal. In: O Corpo do brasileiro: estudos de estética e beleza. São Paulo, SENAC, 2000.

  • RIBAS, João. Preconceito contra pessoas com deficiência: as relações que travamos com o mundo. São Paulo: Cortez, 2007.

  • SASSAKI, R. Inclusão: Construindo uma sociedade para todos. Rio de Janeiro: WVA, 1997.

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