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Lazer, cultura e educação física: possibilidades 

dialógicas no espaço escola-comunidade

 

*Mestranda em Educação pelo PPGE da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia.

Grupo de Pesquisa HCEL História da Cultura Corporal, Educação, Sociedade

**Profª Drª pesquisadora do PPGE da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia.

Líder do HCEL História da Cultura Corporal, Educação, Sociedade

***Doutoranda em Educação Física da UFSC, NEPEF, HCEL

(Brasil)

Anália de Jesus Moreira*

nanamoreiraam@hotmail.com

Maria Cecília de Paula Silva**

cecilipaula@yahoo.com.br

Soraya Corrêa Domingues***

socodo11@yahoo.com.br

 

 

 

Resumo

          Esse artigo reflete sobre o lazer na escola, analisando manifestações da cultura comunitária e sua relação com a pedagogia tradicional e sugere novas discussões sobre o conceito de lazer como fator oposto ao trabalho, na visão hegemônica. Estudo de natureza qualitativa, descritiva, que analisa o contraste de lazer como tempo livre definido por Marx, a partir do tratamento dado ao lazer na escola e a Educação Física mediando o debate. O recorte é feito por meio das relações multiculturais, considerando a escola publica periférica e as manifestações ditas “sub-cultas” a exemplo do arrocha (1), pagode, hip hop, rap e seus componentes agregados de valores sociais e políticos da comunidade. Como resultados, apontamos o lazer como aporte histórico construtor das identidades e sua repercussão no ambiente escolar, tendo em vista o que desenha a Lei 10.639/03 (2)  que tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro brasileira, africana e indígena no ensino básico brasileiro.

          Unitermos: Lazer. Cultura corporal. Escola. Comunidade.

 

Abstract

          This article reflects on leisure in school, analyzing events of community culture and its relationship to traditional pedagogy and suggests further discussions on the concept of leisure factor as opposed to work, the hegemonic vision. Study of a qualitative nature, descriptive, which examines the contrast of leisure time as defined by Marx, from the treatment given to leisure and physical education at school mediando the debate. The cut is made through multicultural relations, considering the school publishes peripheral and demonstrations called "under-educated" the example of arrocha, pagoda, hip hop, rap and its components clusters of social values and political community. As results, indicate the historical contribution leisure as builder of identities and their impact on the school environment in order to draw what Lei 10.639/03 which became the mandatory teaching of history and culture african Brazilian, African and indigenous education in Brazil .

          Keywords: Leisure. Culture body. School. Community.

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 13 - N° 125 - Octubre de 2008

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Introdução

    O debate sobre o lazer na escola tornou-se um desafio diário. O problema justifica-se na necessidade de compreensão das abordagens e contextos em que o lazer é visto como fator oposto à produção. A escola como espaço privilegiado de debates, é, pela magnitude de comportar diversidades, uma ressonância de relações sociais assimétricas. Nesta perspectiva, consideramos oportuno levantar a discussão a respeito de uma prática do lazer no espaço escolar que esteja casada com as manifestações construídas na comunidade.

    Primeiro porque se faz necessário buscar um entendimento sobre o que significa lazer para a comunidade e como essa mesma comunidade estabelece relações entre o lazer e a prática pedagógica. Em segundo lugar, porque consideramos a prática de lazer na comunidade como um dos pilares do processo de politização, organização e socialização comunitária, o que aponta como importante tema para ser tratado no contexto educacional como conhecimento escolar.

    Compreendemos a educação como mediadora de um contexto social determinado, que relaciona e reflete seu tempo e contextos, auxiliando a explicitação dos interesses de classe e do projeto de sociedade que ela explicita e conforma, ou para se tornar um dos instrumentos de sua transformação.

    A partir deste movimento dialético, necessário se faz criar redes dialógicas entre a escola e a comunidade. Uma dessas redes, se considerarmos a ação efetiva (ou efetivação) no que se refere ao envolvimento do grupo, pode ser definida a partir de praticas de lazer que podem ser exploradas em ambos os espaços. Ao mesmo tempo, é preciso buscar compreensão sobre os papeis dos dois aportes, escola e lazer, na construção de uma sociedade com características emancipatórias.

    Marcellino (1997) nos diz que a incorporação do termo “lazer” ao vocabulário comum, portanto, convencionado, tem um caráter de “novo, de recente e que essa percepção iniciante, nos leva a uma simples associação do lazer como experiência individual vivenciada, restrita aos conteúdos de determinadas atividades” (p.21). No entanto, o lazer no seu significado de tempo livre, não é novo, sendo preciso considerar que os enfoques históricos sobre lazer esbarraram em seu valor oposto ao trabalho: “O que ocorre nesses casos, com maior freqüência, é a mitificação do trabalho, gerando, quase sempre, uma atitude de desconhecimento de outras dimensões do humano, sobretudo das possibilidades pela vivência do tempo de lazer.” (Marcellino, idem).

    Por meio da vivência profissional nos espaços escolares e dos resultados de nossa inserção na pesquisa histórica em comunidades, buscando levantar as práticas de lazer e as relações estabelecidas entre o lazer e o trabalho, bem como ao compreendermos a análise e discussão do tema trabalho e ócio proposta por autores marxianos, estaremos propondo no presente artigo uma reflexão sobre este tema.

    Associamos a esta discussão, a componente “cultura popular” enquanto fator fronteiriço da resistência comunitária aos valores e manifestações midiáticas e hegemônicas. Com estas prerrogativas, debater lazer como aporte na escola e na comunidade pode oportunizar uma prática que considere e respeite às identidades e manifestações culturais do lugar. Para isso, perguntamos: e a escola, estaria disposta a acolher esse aporte como resposta das aspirações do seu entorno? Qual o papel da Educação Física na condução do debate? Estas são reflexões que propomos neste instante.

Lazer, educação física, escola e comunidade

    O lazer atualmente é considerado dever do Estado e garantido, de forma ampla, na constituição Federal de 1988, que menciona o direito ao lazer, de forma clara entre os direitos sociais no art. 6º, embora não de forma específica, a não ser em seu art. 227, ao colocá-lo junto a outros direitos sociais e individuais, como dever do Estado; na seção III do Cap. III, do Título VIII da Constituição Federal, quando explicita o desporto, que pode ser relacionado ao direito à educação, cultura e lazer; por fim, no art. 217, § 3º, ao explicitar o dever do Poder Público em incentivar o lazer como forma de promoção social. Os Parâmetros Curriculares Nacionais da Educação Brasileira, por sua vez, referem-se à importância do lazer no espaço pedagógico,

    O lazer e a disponibilidade de espaços para atividades lúdicas e esportivas são necessidades básicas e, por isso, direitos do cidadão. Os alunos podem compreender que os esportes e as demais atividades corporais não devem ser privilégios apenas dos esportistas ou das pessoas em condições de pagar por academias e clubes. Dar valor a essas atividades e reivindicar o acesso a elas para todos é um posicionamento que pode ser adotado a partir dos conhecimentos adquiridos nas aulas de Educação Física.”(Parâmetros Curriculares Nacionais, vol. 03 Educação Física. 2003)”.

    Em contrapartida, conhecemos as dificuldades dos ambientes escolares, notadamente públicos e periféricos, de serem visualizados como potenciais espaços de lazer. Principalmente, por não estarem fisicamente identificados com a prática e carecerem de condições básicas para tal, a exemplo de quadras, salões e áreas verdes, entre outros. Sabemos também que estes espaços sofrem as conseqüências de teorias pedagógicas não críticas, eivadas por concepções “mercadológicas de lazer e educação”, que dão pouca visibilidade a essas possibilidades.

    Assim, não pode ser considerada ingênua a constatação de rejeição precoce e imediata a eventos comunitários na escola quando estes envolvem manifestações extracurriculares, como a capoeira, ensinada por mestres não letrados na norma culta, o baba(3) comemorativo, o samba-pagode massificado e comercial, e até os movimentos emergentes como hip-hop, rap e arrocha, classificados pejorativamente como sub-culturas.

    Estas manifestações podem até encontrar acolhimento espacial na escola, mas são desprezados em seu componente agregador de valor e, portanto, dotados de pluralidade de identificação. Ao situarmos a prática pedagógica da educação física no espaço escolar, questionamos sobre a sua possibilidade dialógica como fomentadora de uma práxis libertadora. Ao fazer isso uma questão que vem à tona e que ganha espaço importante de análise é a do tempo livre na formação omnilateral do ser humano. Sobre esta questão, Marx desenvolvia a seguinte compreensão: “economizar tempo de trabalho é aumentar o tempo livre, isto é, o tempo que serve ao desenvolvimento completo do indivíduo”. “O Tempo livre para a distração, assim como para as atividades superiores, transformará quem dele tira proveito num individuo diferente.” (Marx, Fondemente de la critique de lê economie politique, apud Dumazadier, 1994). Nesta compreensão, nosso desafio passa a ser possibilitar o diálogo e valorizar as subjetividades enquanto nexo social e político.

    Os trabalhos de Eliade” sobre os mitos banidos da racionalidade do trabalho e reentronizados no imaginário do lazer: de Maffesoli sobre a socialidade de que se vive fora das instituições atuais; de Yonnet sobre os investimentos de si próprio nos jogos de azar, depois dos trabalhos de Roger Caillois sobre a estrutura séria do jogo em geral, todos estes trabalhos completados pelas pesquisas empíricas da sociologia desde os anos 50 na Europa e Estados Unidos, nos permitiram compreender melhor a profundidade que dever ser chamado de “valores sociais” que se desenvolvem dentro do crescimento do tempo livre”. (Ibidem Dumazadier, p. 47.)

    Estudiosos do lazer defendem a construção de uma pedagogia animadora como ponte escola-lazer, afirmando, porém, não se tratar de um simples aporte, “de rechear o currículo com mais uma disciplina (matéria) onde se aprenda a utilizar o ‘tempo disponível’ em cargas horárias semanais, fixadas dentro da (grade) (Marcellino, 1997, p. 145).

    Defende o autor uma pedagogia que não isole as atividades de lazer nas escolas, transformando-as em ‘ilhas’ de atividades extracurriculares, mas que esta prática contemple a reflexão vinculando a escola à realidade do aluno. “Trata-se de aprender o ‘samba’ no colégio, samba aqui entendido como Cultura popular e aprender como recuperação de sentido, mediada pelo conhecimento”. (idem).

    Ao pensarmos essa questão no trato escolar, na compreensão de uma reestruturação curricular compreendemos que a escola, por constituir um dos espaços institucionalizados de transmissão do conhecimento historicamente produzido, se trabalhado de forma dialógica e a partir da cultura local, em sintonia com a cultura geral, e, no caso específico, do lazer, poderá contribuir para a formação omnilateral, bem como para o jogo da autonomia político-comunitária. Esta rede de relações, se estabelecida desde o princípio e constantemente fortalecida pelos movimentos sociais e pelo projeto político-pedagógico escolar, possibilita a formação da resistência cultural e comunitária, passando a escola a servir como rede potencial do diálogo.

Lazer e cultura popular como possibilidades para uma educação emancipadora

    Partimos do entendimento que o homem é um ser historicamente construído e culturalmente modificado dentro de uma sociedade, dotado se um senso criativo capaz de interferir na cultura a qual pertence e por ela também ser modificado. Esta concepção nos traz a imagem do ser humano como ser criativo, produtor, reprodutor e transformador cultural. E, admitindo a cultura como sendo uma palavra impregnada de história e encharcada de significado, é válido pensar que se proteja e preserve o entendimento de conceitos importantes para a transmissão de um legado através de gerações.

    No entanto, o que se tem percebido é que diversidade da herança cultural popular tem sido historicamente afastada do âmbito educacional brasileiro, especialmente a cultura corporal e arte. Isto porque, a educação no Brasil percorreu uma trajetória distante dos movimentos e das classes populares, embora presenciemos, ao longo do século vinte, diversos e diferentes movimentos em que as organizações populares propunham uma concepção popular de educação que encontrava certa expressão. No entanto, as políticas públicas brasileiras até hoje, ainda não deram a devida importância e tratamento à temática educação e cultura popular.

    Cabe destacar algumas iniciativas dignas de registro a esse respeito na atualidade como, por exemplo, a consideração da diversidade cultural pela legislação e diretrizes educacionais, bem como as suas especificidades: educação do campo, educação indígena, respeito e valorização da cultura afro-descendente pelo currículo escolar, para citar algumas.

    No Brasil podemos averiguar um quadro que se configurou durante o século vinte para compreendermos avanços, retrocessos e permanências, ocorridos no período, relacionada à temática da cultura e educação popular. Moacir Gadotti (1981), ao realizar um profundo e exaustivo estudo sobre deste período, compreende que o primeiro movimento educativo com a preocupação de fomentar a díade cultura e educação popular surge em 1920, sendo que, para este movimento, a educação fora considerada um instrumento privilegiado para a participação dos trabalhadores na política. Movimento este barrado pelos liberais católicos, que disputavam a hegemonia dos projetos político-educacionais da burguesia.

    Contraditoriamente, essas disputas entre as frações da burguesia pela dominação do aparelho do Estado oportunizaram aos movimentos sociais algumas conquistas como, por exemplo, a formação de cursos para operários, objetivando a participação política de massa (início 1930, no Distrito Federal), interrompidas, no entanto, com a repressão do Estado Novo (PAIVA, 1970). Já na década de 1940, por meio dos “comitês democráticos” organizados em municípios e bairros das grandes cidades surge novo movimento voltado à educação das classes mais pobres, até então excluída deste processo e visava à dotação de maiores verbas para a educação e a democratização do ensino fundamental.

    Para Gadotti (1981) o movimento de renovação da educação ocorrido neste último período relatado significou um marco na história brasileira, devido a fatores e reflexões que vieram à tona e configuraram um avanço na educação brasileira. Temáticas como a dimensão social e política do profissional de ensino ganha relevo, por questões como: a apropriação durante muito tempo pela educação do idealismo pedagógico que introduzia a falsa separação entre instrução, treinamento, etc., visto que tôo treinamento e toda instrução são atividades que implicam uma educação.

    Em acordo com a interpretação deste autor, nas sociedades dependentes, colonizadas e conservadoras, considerava-se a boa educação apenas aquela que reproduzia as relações dependência, isto é, apenas aquela que incutia os valores conservadores, aquela que conseguia reproduzir a dependência; “assim, quando erigimos um tipo de educação como a educação, a única verdadeira, estamos não só limitando o conceito de educação como estamos, sob o ponto de vista social, descaracterizando esse conceito de suas virtudes dialéticas, isto é, contraditórias”(1981, p. 8).

    Em seguida, aponta um debate crescente a respeito do contexto sócio-político da sociedade em conflito. Nesta polêmica que se configurava no cenário educacional brasileiro, destacamos alguns pontos relevantes que até hoje estão na pauta de nossas inquietações.

    Entre as muitas questões polêmicas que se tornaram bandeiras de luta dos movimentos sociais organizados e favor da educação como, por exemplo, a organização sindical pode-se destacar os seguintes pontos: a consideração do professor como um profissional em conflito; a tarefa coletiva de restabelecer a confiança na educação e a afirmação da educação como eminentemente política, que “há ainda poucos anos, passava por uma profissão de fé revolucionária e causava certo escândalo, conforme nos diz Bernard Charlot (1980, p.11-3).).

    Relacionado à cultura e educação popular, quando analisadas historicamente, observamos que há uma memória da mesma que reivindicava e/ou desenvolvia políticas públicas específicas a respeito desta questão no período como, por exemplo, Paulo Freire e seu sistema de educação popular; o movimento de educação de base desenvolvido por movimentos sociais específicos; as idéias geradoras a respeito de cultura popular propaladas por intelectuais, artistas e educadores e pelos movimentos estudantis. Este corte nas questões educacionais, sociais e econômicas, imposto ao Brasil pelo regime militar instalado em 1964, acarretou uma profunda crise, que se estende até nossos dias.

Novas referências para o lazer e a escola: a cultura como ponte

    O homem surge na história como um ser cultural e ao agir, ele atua culturalmente apoiado na cultura e dentro de uma cultura. Seu potencial criador representa um fator de realização e transformação que afeta a própria condição humana, bem como os contextos culturais. Como vimos a criatividade é inerente a todo ser humano, e desenvolve-se ao longo da vida, através dos gestos e atitudes do homem dentro de seu contexto sócio-cultural, a fim de mudar e transformar as coisas. Podemos assim considerar a criatividade como uma potência de agir ligada a tarefas essenciais à vida humana.

    A escola passa por uma "crise de sentidos", na medida em que negligencia os sentidos humanos que podem ser desenvolvidos pelo ato
criador. A criatividade dentro do espaço escolar não necessariamente se aplica nas aulas de artes, mas abrange atividades que vão desde a escolha dos conteúdos que serão trabalhados nas disciplinas, até as formas de avaliação, a organização do espaço físico da escola, etc. O exercício das artes representa um dos níveis de liberação da criatividade humana, pois também indica um ato criador que busca se concretizar através de formas, que guardam sentidos e saberes particulares. Estamos falando do papel social da arte na humanidade, o que significa a atuação do homem ao longo do seu processo histórico.

    Ao longo dos tempos, diversas acepções têm se configurado acerca da arte, seus sentidos e significados, o que evidencia que esta é quase tão antiga quanto à origem do próprio homem. Ernest Fischer, fala que a arte pode ser entendida como "substituto da vida", mas que não se encerra neste conceito, e afirma que "a arte concebida como o meio de colocar o homem em estado de equilíbrio com o meio circundante - trata-se de uma idéia que contém o reconhecimento parcial da natureza da arte e da sua necessidade" (FISCHER, 1967, p. 11).

    A maneira mais inteligente de "promover a cultura" e "animar" o desenvolvimento das ciências, das artes e das letras ainda é munir substancialmente o ensino e a pesquisa em todos os seus ramos (Alfredo Bosi, Cultura Brasileira: temas e situações, 1988) O intuito de investigar e coletar dados sobre as artes da cultura popular, buscando compreender estas manifestações no âmbito histórico-cultural e
estético, estabelecendo um arquivo histórico, mapeamento e catalogação desta produção artístico-cultural é outro resultado que merece discussão.

Cultura corporal negra: viéis de um dialogo para o reconhecimento do lazer na escola

    No ano de 2007, A Tarde, o maior jornal de Salvador, publicou uma série de reportagens sobre a dificuldade de implantação da Lei *10.639/03 nas escolas da rede privada. Embora estejamos ainda refletindo sobre a substituição da Lei 10.639/03 pela Lei 11.465/08, salientamos que a troca de números não invalida nossas considerações sobre o tema proposto neste artigo(4). Do contrário, acreditamos que a promulgação da nova Lei amplia nosso foco de interesse uma vez que reconhece as contribuições do povo indígena, fortalecendo nosso objetivo de visibilizar a cultura indígena como produtora de sentidos e identificações. A reportagem, assinada pelo jornalista Victor Pamplona nos informa da decisão do Ministério Público em fiscalizar os projetos Políticos Pedagógicos que não estão contemplando a Lei. Sob o título “Escolas privadas não temem inquérito do MP”, o jornalista revelou:

    O cumprimento da Lei 10.639/2003 pelas escolas baianas entrou na agenda do Ministério Público estadual na última semana. Os promotores Almiro Sena (Combate à Discriminação) e Márcia Virgens (Defesa da Educação) se reuniram com representantes de 24 instituições particulares de Salvador para pedir que, até a próxima quarta-feira, 16 de maio, encaminhem ao MP o plano político-pedagógico adotado por elas.” “Têm chegado ao nosso conhecimento notícias de escolas que estão dificultando a implantação das mudanças. O fato de a Bahia não ter regulamentado a lei não serve como desculpa, pois desde 2004 o Conselho Nacional da Educação divulgou as diretrizes para todo o País”, diz Almiro Sena. “Depois da entrega dos projetos, vamos criar uma comissão de especialistas para avaliá-los”.

    A série jornalística nos revela um momento de reflexão em torno da motivação para a resistência a aplicação da lei, especialmente na rede estadual e na rede privada. Na busca da explicação, nos confrontamos mais uma vez com as abordagens, feitas no capítulo anterior sobre as bases formativas da educação brasileira, aprumadas em políticas importadas, notadamente norte-americanas e eurocêntricas que historicamente nortearam nossa práxis.

    Salvador foi a primeira cidade a aplicar de forma obrigatória o ensino das africanidades nas escolas do ensino fundamental, cuja repercussão precisa ser justificada através de pesquisas, debates e reflexões. A Lei que tornou obrigatório o ensino da história e da cultura afro-descendente, africana e indígena nas escolas básicas de todo o país propõe outros olhares sobre o processo político-pedagógico, indicando um repensar da práxis bem como uma reviravolta histórica no currículo e na relação escola-sociedade.

    O grande primeiro impacto recai sobre a proposta de legitimar nossa identidade numa perspectiva étnico-racial. A Educação Física por sua vez assume em relação a lei 10.639/03 o seu contraste epistemológico. A Educação Física tem sua origem ligada às instituições militares e à classe médica e essa relação de época se assumiu como simbiótica também na pedagogia, o que transformou a área em ponto estratégico para a difusão das práticas eugenistas e higienistas.

    Visando a educação de corpo e tendo em vista um físico saudável e equilibrado organicamente, a Educação Física esteve ligada a médicos higienistas que buscavam modificar os métodos de higiene da população, ajudando a estabelecer a matriz racista brasileira, ranços traços que são contemporâneos.Tal ideologia foi responsável por valorizar os estereótipos racistas e a construção da identidade estigmatizada estritamente ligados à questão do preconceito e da discriminação racial no Brasil, e embutido no próprio processo de aquisição da idéia, da ideologia de raça, do senso comum.

    A ideologia do branqueamento se prevaleceu dos estereótipos para consolidar a imagem negativa do negro na sociedade brasileira. No discurso racista, o uso sistemático de estereótipos associados á raça serviu, e serve, para dividir e marcar os indivíduos e grupos na sociedade”. (Seyferth, 1995, apud Rodrigues, Tatiane, 2005).

    A Lei 10.639/03, portanto, se apresenta como contraponto da discussão sobre o movimento cultural original do entorno da escola, contribuindo para o entendimento sobre negação de manifestações da “sub-cultura” dentro do espaço escola

Outras considerações

    O momento de promoção do diálogo escola-lazer requer novos olhares e emergentes atitudes, e isto envolve a participação do sujeito social que, embebido de sua experiência, poderá estimular os aportes pedagógicos na busca de uma compreensão sobre o movimento comunitário e as manifestações e significados produzidos na comunidade.

    A ambição maior do nosso artigo é contribuir para a discussão sobre valores da vida, dentro e fora da escola, considerando as localidades e manifestações culturais e de lazer como nichos identitários. Dessa forma estaremos admitindo as possibilidades de referências e repercussões na escola, buscando a compreensão dos modos, histórias e relações que perfazem o conjunto de ações capazes de instigar novos olhares sobre o movimento e a consciência.

    Buscamos dimensionar os conceitos de lazer e tempo livre, hoje embutidos na pedagogia como aporte extra, o que projeta ações pejorativas em relação às manifestações localizadas na comunidade, a exemplo do hip hop, rap,pagodes e arrochas. Ao preconceituar tais manifestações, subestimamos o significado maior delas que é seu fator agregador social, cultural e político. Dessa forma fechamos as portas a um possível processo de aproximação entre pedagogia e e comunidade.

    Tomando como exemplo a Lei 10.639/03 que institui a obrigatoriedade da Educação das Relações Étnico-raciais e do Ensino da História e Cultura Afro-brasileira, Africana e Indígena na educação básica, o debate pode nos oferecer um momento de reflexão sobre o que é identitário e, o que a escola fez com a diversidade, notadamente numa cidade como Salvador onde segundo o IBGE,2008 sua população é em 85% afro-descendente.

    A proposta lembra ainda como os aspectos de negação e invisibilidade atuam na escola e como os referenciais multiculturais críticos podem agir para problematizar a questão.

    Consideramos que o lazer não deve ser compreendido como a versão oposta ao trabalho. é preciso, pois, assumir a cultura e o lazer como fatores de um movimento comunitário afirmativo e que não encontra, dentro das pedagogias tradicionais, uma ressonância legítima.

Notas

  1. Ritmo popular dançante definido como mistura da seresta com merengue, surgido provavelmente das periferias da cidade de Candeias, na região metropolitana de Salvador.

  2. Dissertação sobre os impactos da Lei 10.639/03, que institui a obrigatoriedade da Educação das Relações Étnico-raciais e do Ensino da História e Cultura Afro-brasileira e Africana na Educação Básica no ensino da educação física perspectivando a Cultura Corporal.

  3. Denominação baiana do futebol praticado sem regras rígidas e de forma lúdica, como atividade de lazer.

  4. No dia 11 de março de 2008, (diário oficial da união) foi publicada a 11.465/08 que altera um artigo da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) e substitui a lei 10.639/03, que já previa a obrigatoriedade do ensino sobre história e cultura afro-brasileira em todas as escolas brasileiras. A partir de agora, confere-se o mesmo destaque ao ensino da história e cultura dos povos indígenas.

Referências

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