O esporte nos projetos sociais: reflexões através das contribuições de Norbert Elias Sport in social projects: reflections through the contributions of Norbert Elias |
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Graduado Educação Física CDS/UFSC Laboratório de Mídia Labomidia/CDS/UFSC (Brasil) |
Cristiano Mezzaroba |
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Resumo Este breve ensaio procura discutir a temática do esporte, entendendo-o como um dos campos do processo civilizador e sua grande utilização nos projetos sociais existentes atualmente em nosso pais. Para isso, utiliza-se de referencial teórico de Norbert Elias, e tem-se como questão central pensar a respeito do por que o esporte ser tão utilizado em projetos sociais, sem a pretensão de encontrar uma resposta definitiva, mas de descobrir elementos que permitam um aprofundamento no tema. Unitermos: Esporte. Projetos sociais. Norbert Elias.
Abstract This short text searches to discuss the topic of sports, considering it as one of the fields of the process of civilization and its great use in the social projects that currently exist in our country. To do so, the theoretical reference of Norbert Elias shall be used, and thinking about the reason why the sport is so much used in social projects is the central question, with no intention of finding a definitive answer, but to discover information that can enable a deepening of the theme. Keywords: Sport. Social projects. Norbert Elias.
Texto produzido para a disciplina de Estudos antropofilosóficos do movimento humano, ministrada pelo Prof. Dr. Alexandre Vaz, durante o trimestre 2006-2, no Programa de Pós-Graduação em Educação Física da UFSC. Em junho de 2007, durante a VIII Semana da Educação Física da UFSC e Mostra acadêmica, uma versão deste mesmo trabalho foi apresentada em formato de pôster. Agradeço a CAPES (Coordenação de Pessoal de Nível Superior) pelo apoio durante a realização de meu mestrado. |
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http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 13 - N° 124 - Setiembre de 2008 |
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A partir de observações e experiências do cotidiano, mais especificamente com relação à minha atuação em um projeto social1, que oferecia atividades esportivas e recreativas, aliado às leituras e debates realizados em aula referentes à obra de Norbert Elias (Sugestões para uma teoria de processos civilizadores e Ensaio sobre o desporto e a violência), procuro neste texto discutir a temática do esporte, entendendo-o como um dos campos do processo civilizador, e sua utilização nos projetos sociais.
Essa reflexão foi incentivada, subliminarmente, no dia seis de agosto de 2006, num domingo, enquanto assistia ao Programa Criança Esperança na Rede Globo de Televisão. Tal programa, realizado anualmente, sempre tem seu foco na infância, já que busca angariar recursos que posteriormente serão destinados a projetos sociais com crianças brasileiras e, desta vez, deu ênfase aos Jogos Pan-americanos Rio-20072, mostrando, em meio a apresentações artísticas e musicais, ídolos do esporte nacional (geralmente procedentes das camadas mais pobres) em lugares que têm organizações não-governamentais (Ong’s) que também oferecem atividades esportivas às crianças/adolescentes.
O discurso, homogêneo e uníssono, era de que, através do esporte, as crianças em situação de risco, de qualquer parte do Brasil, poderiam sair da condição que se encontram e, futuramente, ser os representantes da nação brasileira em competições esportivas.
Assim, nessa minha tentativa de articular o tema do esporte nos projetos sociais e as contribuições do processo civilizador de Norbert Elias, a pergunta que surge é a seguinte: por que o esporte é tão utilizado nesses projetos do terceiro setor? O que ele tem que o credencia como o “redentor” das crianças e adolescentes brasileiros?
Procurarei, não como forma de encontrar a resposta definitiva, mas de “descobrir” elementos que possam me aproximar de uma possível resposta, abordar a teoria do processo civilizador de Norbert Elias por meio de duas características que, para ele, são interligadas e interdependentes: o autocontrole (que seria o controle sobre si; o controle interno dos indivíduos) e o controle da violência pelo Estado (através de instituições como o exército e a polícia, por exemplo). Também tratarei a questão da catarse e da relação tensão-excitação que o esporte propicia.
O esporte, tal como o entendemos hoje, é de origem inglesa, tendo existido desde o século XVIII, a partir da Revolução Industrial. Nasce, portanto, com a sociedade industrial, sendo inseparável de suas estruturas e funcionamento. Foi se estruturando e organizando de acordo com a evolução do capitalismo mundial e assumiu forma e conteúdo que refletem a ideologia burguesa. (PRONI, 2002).
Ideologia esta com os resquícios de uma sociedade cortesã (aristocrática) sejam na maneira de falar, na forma de usar os talheres, nos manuais de etiqueta e boas maneiras comuns da nobreza, na questão da sexualidade, entre outras características. Os grupos burgueses passaram a assumir as funções da nobreza, que perdeu seus direitos hereditários e status como classe superior separada, mantendo “os modelos, os padrões de controle de emoções e as formas de conduta da fase cortesã; de uma forma mais constante e invariável do que qualquer outra classe burguesa da Europa.” (ELIAS, 1993, p. 262).
Elias fala em processo de desportivização, que teria tomado forma a partir do século XVIII, na Inglaterra, em decorrência deste país estar num processo adiantado de industrialização e urbanização. Segundo ele, o processo de industrialização e a propagação das formas inglesas de ocupação de tempo livre (desporto) são dois processos que ocorreram paralelamente. (ELIAS, 1992).
Conforme sua teoria, os passatempos e divertimentos de outrora, agora denominados desportos, foi uma das maneiras como a Inglaterra resolveu o problema do risco de desordens socialmente intoleráveis e de ferimentos mútuos, garantindo às pessoas, mesmo numa sociedade cada vez mais regulamentada, “os meios suficientes de excitação agradável em experiências compartilhadas”. (ELIAS, 1992, p. 256).
Segundo Elias (1992, p. 230),
O desporto – qualquer que seja – é uma actividade de grupo organizada, centrada num confronto entre, pelo menos, duas partes. Exige um certo tipo de esforço físico. Realiza-se de acordo com regras conhecidas, que definem os limites da violência que são autorizados, incluindo aquelas que definem se a força física pode ser totalmente aplicada. As regras determinam a configuração inicial dos jogadores e dos seus padrões dinâmicos de acordo com o desenrolar da prova. Mas todos os tipos de desportos têm funções específicas para os participantes, para os espectadores ou para os respectivos países em geral. Quando a forma de um desporto fracassa na execução adequada destas funções, as regras podem ser modificadas.
Assim, industrialização, urbanização e desportivização possivelmente “tenham sido sintomáticas de uma transformação mais profunda das sociedades européias, que exigia dos seus membros individuais uma maior regularidade e diferenciação de comportamentos.” (Ibid., p. 225).
Tal “diferenciação de comportamentos” seria o autocontrole (autodisciplina), ou seja, ao indivíduo cabia, cada vez mais, controlar suas pulsões e tensões, respeitando as regras, as quais passaram a ser mais rigorosas, explícitas e diferenciadas.
A racionalidade deveria sobrepor-se às emoções e aos instintos (controlando e limitando o lado “animalesco” dos seres humanos), o que conduziria a sociedade em geral a esse processo civilizador, que teria como objetivos reduzir o mal-estar, rejeitar a liberdade e o prazer, a fim de se ter mais segurança.
O “mal estar” que essa renúncia à liberdade e ao prazer causa precisa ser canalizada, e o esporte, neste caso, seria a forma altamente civilizadora de fomentar/instituir o autocontrole, visto que tal processo é realizado a longo prazo e tende à racionalização e a um controle dos afetos; ou, como escreve Elias, “o processo civilizador constitui uma mudança na conduta e sentimentos humanos rumo a uma direção muito específica.” (ELIAS, 1993, p. 193).
É de se pensar, neste momento, o papel que o esporte assume, nos mais variados projetos sociais brasileiros, de controle externo, ao que se pode comparar àquilo que Elias denomina de controle da violência pelo Estado. Apesar de não ser o Estado propriamente dito que regula as atividades do terceiro setor, as organizações não-governamentais acabam assumindo a função daquele, obviamente não na forma de exército ou polícia, mas através da oferta de atividades esportivas como efeito compensatório que dá vazão às tensões do cotidiano, “canalizando” aquela violência juvenil que pode não ser benéfica à sociedade.
Além disso, ao esporte, entre tantas funções, cabe também a de estruturar a personalidade3; como nos diz Elias (1993, p. 205), “embora a autodeterminação da pessoa, maleável durante o início da infância, se solidifique e endureça à medida que cresce, ela nunca deixa inteiramente de ser afetada pelas relações mutáveis com outras durante toda a vida.” Conforme o autor, essa civilização do ser humano jovem, ou a aprendizagem do autocontrole, sempre deixa cicatrizes, e jamais é um processo inteiramente indolor. (Id.)
Desta maneira, no decorrer dos tempos, as regras, sejam elas esportivas ou sociais, vão sendo internalizadas pelos indivíduos ao longo do processo civilizador (processo este que em algum momento começou, mas não se sabe ao certo quando foi; é contínuo e com fim, isto é, sua duração será até quando uma sociedade atingir um grau de civilização ótimo). Num determinado momento, aquilo que é explicitado passa a ser internalizado, ficando, então, implícito, passando a fazer parte do processo de socialização. Certamente também desta forma é que o esporte, com todo seu quadro de regras, passou a ser considerado como algo “institucionalizado” nos tempos atuais (pelas mais diversas funções, algumas já destacadas).
Cabe, agora, resgatar o problema lançado neste ensaio: por que o esporte é tão utilizado nesses projetos do terceiro setor? Pessoalmente, acredito que o principal motivo seja a ocupação do tempo livre das crianças e jovens, pois assim é possível controlá-los ainda mais, disciplinando-os e impedindo que suas tensões sejam canalizadas em outros âmbitos. Considerando que no espaço e tempo da prática esportiva (ginásio, estádio, tatame, pista atlética, piscina ou qualquer outro lugar das práticas esportivas) é permitido extravasar a violência (de forma controlada, até aonde as regras permitem) ao esporte é atribuída uma função catártica muito importante na sociedade atual, através da libertação de tensão (uma limpeza ou purificação de algo reprimido pela consciência).
Enquanto pratica esporte, o indivíduo está de acordo com regras que, por mais que pareçam rígidas, não são tão duras quanto as regras da sociedade – no esporte, as regras são representações das regras da sociedade, não são réplicas. Conforme Elias (1993, p. 235), “A peça fulcral da configuração de um grupo envolvido no desporte é, sempre, a simulação de um confronto, com as tensões por ela produzidas controladas, e, no final, com a catarse, a libertação de tensão.”
Trata-se, na verdade, de um equilíbrio entre excitação e controle proporcionado pelo esporte, que é sempre um balanço dessa relação. Como característica do comportamento moderno, é necessário que tenhamos uma dose de excitação cada vez mais alta (a idéia de recordes, rankings e estatísticas poderia servir de exemplo), ao mesmo tempo em que devem ocorrer mudanças nas regras, a fim de que se tenha um controle maior e a violência liberada seja controlada, isto é, as regras “definem os limites autorizados de força física.” (ELIAS, 1992, p. 232).
O período da tensão (não ser nem demasiado breve, nem demasiado longo) e o equilíbrio de força e habilidade (adversários que não sejam excessivamente superiores aos outros em força e técnica) são outros fatores que compõem a configuração de um jogo-desporto. (ELIAS, 1992).
Assim, de acordo com Elias (1992, p. 243),
O desporto é, de facto, uma das maiores invenções sociais que os seres humanos realizaram sem o planear. Oferece às pessoas a excitação libertadora de uma disputa que envolve esforço físico e destreza, enquanto reduz ao mínimo a ocasião de alguém ficar, no seu decurso, seriamente ferido.
Outra pergunta que merece ser apresentada e comentada é: o que o esporte tem que o credencia como o “redentor” das crianças e adolescentes brasileiros? Penso que apesar do aspecto positivo do esporte (ascensão social), que de fato, possa existir, há o lado perverso, ou seja, o ídolo apresentado como único caminho para essas crianças/jovens.
Atletas considerados ídolos são modelos de comportamento e passam a ser vistos pelos jovens como “um modelo de superação, um exemplo de que o esforço pessoal e o sofrimento podem ser recompensados (...) O problema é que essa identificação com o ídolo não implica uma liberação e sim ‘uma subordinação do indivíduo a uma tipologia conformista manipulada pelos meios de comunicação de massa’”. (PRONI, 2002, p. 51)
Isso pode significar para tais sujeitos que não é o esporte em si que acaba motivando a prática (ou praticar esporte simplesmente pelo prazer que ele proporciona, e/ou até mesmo pela sua fruição estética), mas os benefícios principalmente econômicos (e também sociais) que o esporte poderá trazer. Outro aspecto desse lado perverso seria a falta de perspectiva para certa parcela da juventude na sociedade brasileira: ser ou jogador de futebol, ou funkeiro/pagodeiro (ascensão social pela “música”) ou traficante!
Considero importante destacar, também, que esse discurso de esporte em projetos sociais destinados às crianças/jovens já está constituído no imaginário das pessoas, inclusive é cada vez mais utilizado pela mídia. Exemplo disso, a própria utilização de tal temática num programa de grande audiência nacional como foi o Criança Esperança (que cito no início deste texto) ou o Projeto Amigos da Escola (desenvolvido pela Rede Globo de Televisão), bem como projetos governamentais, como o Segundo Tempo do Ministério do Esporte/Educação. Em âmbito local, a título de ilustração, citaria os projetos dos institutos Guga Kuerten e Ayrton Senna (coincidentemente, instituições que levam o nome de dois astros do esporte nacional).
Concluindo, apesar de ser meu primeiro contato com sua obra, acredito ter realizado algumas aproximações com a teoria do processo civilizador de Norbert Elias, articulando-as à temática do esporte e sua inserção em projetos sociais. Sem a pretensão de encontrar uma resposta definitiva, mas de descobrir elementos que permitam, posteriormente, um aprofundamento no tema, julgo necessário explorar ainda mais este autor no campo da Educação Física, pela forma com que trata a categoria “corpo” no processo histórico e as implicações no campo social.
Notas
Projeto Segundo Tempo, do Ministério do Esporte em parceria com o Ministério da Educação, no qual destina-se a crianças e adolescentes matriculados no ensino fundamental e médio dos estabelecimentos públicos em “áreas de vulnerabilidade social” de várias cidades brasileiras, cujo objetivo é oferecer práticas esportivas em turno oposto àquele da escola, além de distribuição de uniforme, lanche e materiais para uso nas atividades. (Informações obtidas no site: http://portal.esporte.gov.br/snee/segundotempo/default.jsp).
Os Jogos Pan-americanos Rio/2007 que foram realizados no Brasil configuraram-se como a temática principal da minha dissertação de mestrado, através do agendamento que foi produzido e veiculado em torno deste grande evento esportivo. Para isso, realizei um estudo de recepção com escolares a fim de compreender as (possíveis) relações desse evento com a Educação Física escolar.
Elias (1993) escreve que durante a infância e a juventude, fase mais impressionável da vida de um indivíduo, é que se produz uma personalidade em formação, “tendo sua contrapartida na relação entre suas instâncias controladoras, o superego, o ego, e os impulsos da libido.” (p. 205). Essa personalidade é induzida pelos adultos, seja automaticamente ou através da conduta e dos hábitos, e objetiva que as crianças tenham modelos de comportamentos correspondentes. (Ibid., p. 203).
Referências
ELIAS, Norbert. Ensaio sobre o desporto e a violência. In: ELIAS, Norbert; DUNNING, Eric. A busca da excitação. Lisboa: Difusão Editorial Lda, 1992, p. 223-256.
ELIAS, Norbert. Sugestões para uma teoria de processos civilizadores. In: ___. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993, p. 191-297.
MINISTÉRIO DO ESPORTE. Projeto Segundo Tempo. Disponível em: http://portal.esporte.gov.br/snee/segundotempo/default.jsp Acesso em: 14 de agosto de 2006.
PRONI, Marcelo. Brohm e a organização capitalista do esporte. In: PRONI, Marcelo; LUCENA, Ricardo (orgs.). Esporte: história e sociedade. Campinas/SP: Autores Associados, 2002. (Coleção Educação Física e esportes).
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digital · Año 13 · N° 124 | Buenos Aires,
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