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O caso Oscar Pistorius: o para-atleta que também queria ser atleta

 

*Autoras 

**Orientador

Universidade Positivo

Universidade Federal do Paraná

(Brasil)

Cristiane Yumi Nakamura*

Ademir de Castro Marques*

Leandro Rochavetz*

Prof. Dr. André Capraro**

cristy_nakamura@hotmail.com

 

 

 

Resumo

          O sonho do para-atleta Oscar Pistorius de participar das Olimpíadas, aliado ao uso das próteses Cheetah Flex Foot, geraram uma discussão cujo foco girava em torno da suposta vantagem que a tecnologia das próteses oferecia a Pistorius em relação aos outros atletas. O presente artigo apresenta o caso – seu processo, estudo, julgamento, apelação, audiência e resultado final – acompanhado de análise mais profunda e crítica, obrigando os profissionais e alunos de Educação Física a sair do senso comum e refletir sobre questões que estendem-se além do simples uso da tecnologia e da concretização ou não de um sonho.

          Unitermos: Oscar Pistorius. Atletismo. Esporte Para-olímpico. Tecnologia.

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 13 - N° 124 - Setiembre de 2008

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Introdução

    Tecnologia, do grego tekhnologia, pode ser traduzida como discurso sobre as regras de uma arte (Otman, 1998). O termo grego tekhnè compreende as atividades práticas, o saber fazer humano em oposição ao princípio de geração das coisas naturais (phusis); para os gregos, todo ato humano é tekhnè e “toda tekhnè tem por característica fazer nascer uma obra” (Aristóteles in Lemos, 2004). Hoje, compreende-se por tecnologia os objetos técnicos, as máquinas e seus respectivos processos de fabricação; sendo proveniente do inglês seu sentido atual como técnica de ponta (Otman, 1998; Lemos, 2004).

    Todas essas obras de arte feitas pelo ser humano se fazem gradativamente presentes no cotidiano; tarefas domésticas podem ser realizadas com simples aperto de botão, matar as saudades de alguém do outro lado do mundo é possível pela comunicação através de uma tela, cirurgias podem ser realizadas através de incisões minuciosas contribuindo em muito na recuperação e prognóstico de doenças, salvam-se vidas com meios auxiliares de diagnóstico avançadíssimos, etc.

    Em época de Olimpíadas fica evidente a aplicação da tecnologia no meio esportivo, contribuindo fortemente em melhores resultados – maiôs que diminuem o atrito com a água, bicicletas aerodinâmicas, etc.; no atletismo sobressaem-se roupas mais leves, tênis com sistemas de amortecimento, tecidos que aceleram a evaporação do suor, sapatilhas de corrida que se encaixam perfeitamente no pé do atleta entre outros (Camargo, 2004; Silva, 2008).

    Sabe-se que em esportes de alto rendimento são os detalhes que fazem a diferença e esta faz o campeão. No caso dos exemplos citados, cujo objetivo é melhorar a performance do atleta, tais adventos tecnológicos são importantes, porém, não fundamentais uma vez que o atleta é capaz de competir sem os mesmos e ainda conseguir bons resultados – possivelmente, a não utilização de tais apetrechos nivelaria a competição, pois sabe-se que inevitavelmente a tecnologia está vinculada ao aspecto financeiro, reforçando as diferenças de desenvolvimento. A mesma tecnologia excludente permite a uma pessoa sem pernas correr. Redundância à parte, concede a um atleta a possibilidade de ser atleta. Esse é o caso de Oscar Pistorius, para-atleta velocista cujo sonho de participar de uma Olimpíada, correndo ao lado de atletas “normais”, foi dificultado por questões que vão além da simples biologia e fisiologia como análise a seguir.

Oscar Pistorius, para-atleta e candidato à atleta

    Sul-africano da capital administrativa da África do Sul, Pretoria – onde mora até hoje -, Oscar Pistorius nasceu no dia 22 de novembro de 1986 com uma malformação congênita bilateral, nas partes distais dos membros inferiores, denominada de hemimelia fibular. Caracterizada pela ausência de fíbula normal. Este osso longo forma juntamente com a tíbia o esqueleto da perna, estando a fíbula localizada lateralmente à tíbia, e interligadas pela membrana interóssea, que impede movimentos de afastamento e pistoneamento. Todo esse conjunto é fundamental para deambulação visto que serve de inserção para muitos dos músculos requisitados em tal movimento. Além disso, os maléolos lateral da fíbula e medial da tíbia são importantes para estabilização do tornozelo (Castro, 1985; Carnaval, 2003; Dangelo, 2000; Martin, 2003; Weineck, 1990).

    De acordo com Beaty (1996) e Crenshaw (1996), a hemimelia fibular classifica-se em tipo 1 quando do encurtamento da fíbula ou do tipo 2 quando da ausência total da fíbula – caso este o do para-atleta Oscar Pistorius. A ausência total da fíbula causa instabilidade da articulação do tornozelo, desigualdade no comprimento das pernas ou um nanismo desproporcional quando bilateralmente, dificultando ou até impedindo o deambular. Belangero et al (2003) e Tooms et al (1996) concordam em relação ao tratamento para hemimelia fibular do tipo 2, a amputação, que apesar de soar radical para leigos, é o tratamento de escolha por possuir maior vantagem sobre o alongamento, 2ª opção de tratamento. McCarthy e colaboradores (in Belangero, 2003) confirmam o tratamento de escolha através dos resultados obtidos em um acompanhamento por um período de 7 anos, de 10 crianças com hemimelia fibular submetidas ao alongamento e 15 submetidas à amputação. Apesar de o primeiro grupo ter tido bom resultado, com ganho do comprimento e capacidade para andar, os autores concluíram que as crianças amputadas eram mais ativas, tinham menos dor, estavam mais satisfeitas e tinham menos complicações e que o custo final do tratamento, do ponto de vista financeiro, tinha sido menor.

    A malformação congênita bilateral fez com que, aos 11 meses de idade, Oscar Pistorius tivesse suas pernas amputadas logo abaixo do joelho. E, desde criança já confirmava com atitudes o que mais tarde veio afirmar com palavras... “Não há nada que os atletas normais façam que eu não possa fazer” (Pistorius in Carvalho, 2008): foi jogador de tênis de campo, pólo aquático e rúgbi. Em janeiro de 2004, aconselhado pelos médicos devido a uma lesão no joelho direito, mudou dos campos de rúgbi para as pistas de atletismo. Oito meses depois, participou dos Jogos Para-olímpicos de Atenas, conquistando a prata nos 100 metros rasos e ouro nos 200 metros rasos. Desde então, medalhas e recordes no atletismo não-convencional têm sido freqüentes em sua carreira – Pistorius atualmente (2008) detém o recorde para-olímpico em todas as provas nas quais compete: 100m (10s91); 200m (21s58) e 400m (49s16).

    A convite da Associação Internacional da Federação de Atletismo (IAAF), em 2007, Pistorius participou do Meeting de Atletismo de Roma, Itália, sendo esta a primeira oportunidade de correr ao lado de atletas convencionais. No dia 13 de Julho, nesse Meeting, Pistorius acabou em 2º lugar na prova dos 400 metros rasos com o tempo de 46,90s. Inicia-se o sonho de Pistorius de participar de uma Olimpíada, além das Para-Olimpíadas.

    Logo após os holofotes voltarem-se para Pistorius no já citado Meeting de Atletismo; no mesmo mês, a IAAF anuncia a decisão de realizar uma análise biomecânica das próteses Cheetah Flex Foot, da empresa Ossur, com propósito de avaliar a violação ou não, por parte de Pistorius, da regra 144.2 (e) do Livro de Regras da IAAF:

  • (...) Regra 144 - Asistência aos Atletas (...)

  • (...) Para o propósito dessa regra, os seguintes são considerados assistência e assim não são permitidos: (...)

  • (e) uso de qualquer dispositivo técnico que incorpore molas, rodas ou qualquer outro elemento que dê ao usuário qualquer vantagem sobre outros atletas que não usem tal dispositivo” (...).

    Decorridas 8 semanas entre o intento e execução do estudo, realizou-se nos dias 12 e 13 de Novembro de 2007, no Instituto de Biomecânica e Ortopedia da Universidade de Colônia (Alemanha), o referido estudo. Aqui pode-se começar uma análise mais crítica do caso – se câmeras e holofotes não tivessem sido voltados para Pistorius o estudo teria sido realizado? Era realmente necessário tanto tempo de intervalo entre o pensar e o agir? Encontram-se no site da IAAF informações acerca do estudo – objetivo, materiais, método –, financiado pela própria IAAF (obviamente sem citação de valores). Através do uso de câmeras high-speed, plataformas de forças, scanners tridimensionais entre outros equipamentos avançados, comparou-se a performance de Pistorius com a do grupo controle (5 atletas convencionais com níveis de desempenho semelhantes). Os resultados obtidos demonstram que há uma perda de energia de 9,3% nas próteses usadas por Pistorius contrastando com 41,1% da energia perdida no tornozelo humano; o que confere a Pistorius uma vantagem de 30% sobre os outros atletas. Deste modo, para percorrer a mesma distância, na mesma velocidade que os outros atletas, Pistorius necessitaria de menos energia – é a conclusão do estudo.

    Mais um intervalo, agora de 9 semanas, foi necessário (realmente necessário?) entre a realização do estudo e a publicação do seu resultado e da decisão da IAAF que, em 14 de Janeiro de 2008, anuncia que Oscar Pistorius não está apto a correr em eventos para atletas convencionais devido à violação da regra 144.2. do Livro de Regas 2008 da IAAF. Mais uma questão sem resposta: por que não houve a preocupação de verificar a existência dessa vantagem antes do convite ao Meeting de Roma? Interessante ressaltar que a empresa fabricante das questionadas próteses afirma que tal tecnologia existe há praticamente 10 anos, entretanto, nenhum outro atleta conseguiu desempenho similar ao de Pistorius – até que ponto a performance deste atleta é influenciada pela tecnologia da prótese? Não seria Pistorius um atleta excepcional no sentido figurado e literal da palavra?

    Pistorius, ciente da falta de tempo para um bom programa de treinamento e suas conseqüências, apela contra a decisão da IAAF à TAS/CAS (Tribunal Arbitral du Sport / Court of Arbitration for Sport), no dia 01 de Fevereiro de 2008. Somente nos dois últimos dias de abril (29 e 30), praticamente 12 semanas depois (o intervalo novamente presente...), houve uma audiência do caso Oscar Pistorius x IAAF em Lausanne, Suíça, onde ambas as partes apresentaram-se com seus advogados, testemunhas, pareceres e evidências.

    Em 16 de Maio de 2008, Oscar Pistorius é “absolvido” pela TAS/CAS, que considerou as provas apresentadas pela IAAF como insuficientes para determinar a vantagem de Pistorius sobre os outros atletas, enfatizando que a decisão é válida somente para Pistorius e especificamente para essa prótese e nessa apelação, finalizando com a não exclusão da possibilidade de, num futuro com o domínio e avanço da tecnologia, a IAAF consiga provar de fato que existe realmente uma vantagem de Pistorius sobre outros atletas com o uso das próteses Cheetah Flex Foot – não estaria já sendo “previsto” um futuro não muito distante, talvez menos de quatro anos?

    Levou-se, então, 43 semanas a conceder a Pistorius o direito de participar das Olimpíadas; para tanto, o atleta deveria alcançar o índice olímpico (45s95) até 20 de julho de 2008. Restava ao atleta 4 semanas de treino. Pistorius chegou a afirmar para Agence France Press, logo após o veredicto de 16 de maio de 2008, que agora poderia perseguir seu sonho de participar de uma Olimpíada, se não em Beijing, em Londres 2012.

    A partir do veredicto, Pistorius passou a correr contra o tempo e a própria fisiologia do seu organismo, que necessitava desenvolver um nível crescente de desempenho, maximizando o resultado no período competitivo. O êxito esportivo depende de uma série de fatores, dentre eles uma boa programação de treinamento que acaba levando à periodização, que parte do princípio que um esportista não pode estar um ano todo em um nível máximo de rendimento, sendo necessária a estruturação do treinamento em ciclos que envolvem períodos que compreendem a aquisição e desenvolvimento da boa forma (período preparatório), o desenvolvimento adicional da melhor performance e sua manutenção (período de competições) terminando no período de transição com a recuperação e regeneração ativa do atleta (Bompa, 2002; Sandoval, 2005; Weineck, 1999). O objetivo aqui não é descrever os vários princípios, conceitos e formas de trabalhar com a periodização, e sim demonstrar que o êxito no esporte não é mera coincidência ou sorte, é fruto de planejamento, estudo, dedicação e preparação por um período que ultrapassa os 60 (sessenta) dias que restaram para Pistorius. Para efeito de comparação, segundo Bompa (2002), de forma geral, numa periodização simples (um ciclo) o período preparatório leva 32 semanas ou mais, o período competitivo, 10 a 15 semanas e o período de transição, 5; o ciclo duplo levaria o total de 26 semanas (divididos em 13 ou mais, 5 – 10 e 3) e até mesmo para o ciclo triplo, o mais curto de todos, seriam necessários só para o período preparatório, 8 semanas ou mais (seguidos de 3-5 semanas no período competitivo e de 2-3, na transição).

O provisório desfecho

    A última chance de Pistorius para conseguir o índice olímpico foi no dia 16 de Julho de 2008, em Lucerna (Suíça); onde diminuiu em 11 centésimos sua marca pessoal deixando-a em 46s55; porém aquém dos 45s95 necessários para sua participação nas Olimpíadas. Obviamente seu treinamento foi afetado pelo pouco tempo disponível, e levando-se em conta a periodização – unanimidade quando se trata de maximizar desempenho – pode ter sido esse um dos fatores principais que contribuíram com a não realização de seu sonho. O estudo, processo e julgamento tinham como objetivo final a participação de Pistorius em um evento esportivo com data marcada – seriam necessárias realmente as 42 semanas e 6 dias para a conclusão do caso? Teria sido obra do acaso e da falta de sorte o pouco tempo de preparo e treinamento?

    A fisiologia certifica que o treinamento planejado com tempo é imprescindível para alcançar resultados desejados. Impossível afirmar com certeza que a morosidade no processo tenha sido friamente calculada a fim de dificultar a obtenção de êxito por parte de Pistorius. Porém não pode-se deixar de refletir sobre o assunto. Cabe aos profissionais e alunos de Educação Física, desprender-se do senso comum, receber e selecionar as informações recebidas, a fim de realizar uma análise um pouco mais crítica e profunda; que no caso Oscar Pistorius, permite trazer à tona questões que vão muito além do confronto grego tekhnè versus phusis e da simples concretização ou não de um sonho: ficaria a performance dos atletas convencionais afetada pelo fato de correr contra alguém amputado? Caso acontecesse, qual seria a reação de cruzar a linha de chegada atrás de alguém sem pernas? Quais os impactos financeiros que isso traria? A repercussão do caso não abriria uma porta de entrada para novos processos e julgamentos? A mídia transformaria Pistorius em um herói? As crianças estão preparadas para idolatrar alguém deficiente? Qual seria a reação das pessoas ao ver alguém cujas pernas são duas lâminas de fibra de carbono no meio daqueles cujos corpos são considerados perfeitos pelo senso comum? Estaria a sociedade pronta para conviver igualmente com o diferente?

    Coincidência ou não, em 26 de maio de 2005 foi decidido pela Câmara Municipal da cidade de Oscar Pistorius, Pretoria, a mudança do nome oficial da cidade para Tshwane. Tshwane deriva do nome de um chefe local do período pré-colonial e significa “Somos todos iguais”.

Referências bibliográficas

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  • BOMPA, Tudor O. Periodização, Teoria e Metodologia do Treinamento. São Paulo: Phorte Editora, 2002. Capítulo 8, pag. 205-239.

  • CARNAVAL, Paulo. Cinesiologia aplicada aos esportes. Rio de Janeiro: Ed Sprint, 2000. Capítulo 1, pag. 11-16.

  • CASTRO, Sebastião Vicente de. Anatomia Fundamental. 3a. ed. São Paulo: Makron Books, 1985. cap 2.

  • DANGELO, José Geraldo; FATTINI, Carlo Américo. Anatomia básica dos Sistemas Orgânicos. São Paulo: Editora Atheneu, 2000. Capítulo II, pag 13-18

  • IAAF. Competition Rules, 2008.

  • LEMOS, André. Cibercultura, Tecnologia e Vida Social na Cultura Contemporânea. Porto Alegre: Editora Sulina, 2004. Capítulo I, pag 25 – 38.

  • OTMAN, Gabriel. Dicionário da cibercultura. Porto Alegre: Instituto Piget Divisão Editorial, 1998.pag 369

  • SANDOVAL, Armando E. Pancorbo. Medicina do Esporte – princípios e práticas. São Paulo: Artmed Editora, 2005. Capítulo 9. Pág. 239-260.

  • TOOMS, Robert E. Princípios Gerais das Amputações. In: CRENSHAW, A. H. Cirurgia ortopédica de Campbell, vol II. 8aed. São Paulo: Editora Manole Ltda, 1996. pag 719-731

  • WEINECK, J. Anatomia aplicada ao esporte. 3a. ed. São Paulo: Editora Manole, 1990. Capítulo 5. pag 158-161.

  • ___________. Treinamento Ideal. 9aed. São Paulo: Editora Manole Ltda, 1999. Capíulo 7, pág. 62-65.

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