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Corpo e prazer no Movimento Carismático Luterano

 

*Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Professor Titular no Centro Universitário FEEVALE

Coordenador do Mestrado em Inclusão Social e Acessibilidade

Pesquisador no Grupo de Estudos em Desenvolvimento Regional

Professor Adjunto na ULBRA no curso de Graduação em Ciência Política e no Programa de Pós-Graduação em Odontologia

**Doutor em Antropologia pela UFRGS

Professor Titular no Centro Universitário FEEVALE

Pesquisador no Grupo de Estudos em Desenvolvimento Regional

Dr. Everton Santos*

evertons@feevale.br

Dr. Valdir Pedde**

valpe@feevale.br

(Brasil)

 

 

 

Resumo

          Este artigo tem como principal objetivo demonstrar o caráter de espetáculo que a religiosidade tem adquirido na sociedade contemporânea (pós-moderna), articulando as dimensões do lazer, do corpo e do prazer aos ritos religiosos. A pesquisa foi realizada em três comunidades luteranas carismáticas da Grande Porto Alegre, no estado do Rio Grande do Sul (Brasil), utilizando-se de uma perspectiva etnográfica. Valeu-se basicamente de observações in loco e entrevistas em profundidade como instrumentos de coleta de dados e de registros que foram feitos no diário de campo ao longo da investigação.

          Unitermos: Corpo. Prazer. Lazer. Religiosidade.

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 13 - N° 122 - Julio de 2008

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Introdução

    Este artigo tem como principal objetivo demonstrar o papel do corpo e o caráter de espetáculo da religiosidade, nem sempre explícita, como algo circense ou teatral. Facilmente somos levados a associar a palavra espetáculo a uma circunstância, um momento ou um evento que está fora do cotidiano, ou além do rotineiro. De certa forma, é exatamente esta a própria definição de religião dada por Durkheim. Segundo este autor, a religião pode ser definida pela dicotomia entre o sagrado e o profano. O sagrado estaria ligado a momentos de efervescência, de não­-cotidiano, do espetacular. Esses momentos de efervescência, nos quais irrompe o mundo extraor­dinário e sagrado, permitem que as pessoas vivam em harmonia quase ideal.

    Contudo, este sagrado como espetáculo assume uma enorme diversidade através do tempo e das culturas. De que forma torna-se interessante, para nós, pensarmos a religião como espetáculo?

    Para pensar mais detidamente sobre isto, parece-nos importante colocar a religião na perspectiva do contexto cultural em que vivemos, o qual tem sido denominado por muitos autores de pós-modernidade.

    A cultura pós-moderna é mais perceptível: 

  1. nas tecnologias de massa que invadiram o cotidiano, impregnando-o com informações, diversões e serviços; 

  2. numa sociedade ávida por consumo, que tenta seduzir as pessoas para sua "moral hedonista - os valores calcados no prazer de usar bens e serviços" (Santos, 1986: 10).

    Como argumenta Santos (1986), uma reportagem a cores sobre os reti­rantes do Nordeste deve primeiro nos seduzir e para depois nos indig­nar, é preciso que tudo seja fantástico, incrível, espetacular.

    Trata-se de uma estética que dá mais valor à imagem, à sedução e à emoção que ao sentido de algum encontro entre sujeitos. Essa estetização da vida pode ser conceituada como "apagamento da fron­teira entre o real e a imagem", "hiper-realidade", "sobrecarga sensorial", "intensidades carregadas de afeto" (Featherstone, 1995a: 98).

    Assim, para agradar e atrair um público mais amplo vem ocorrendo profundas mudanças nos ambientes e instituições antes designados como espaços de pessoas instruídas e comedidas, como os museus e as igrejas. São locais que se transformam mais e mais em locais de espetáculo, sensações e ilusões. De forma crescente constituem-se em espaços que proporcionam experiências em vez de incutir o valor de algum saber canônico. Há uma busca pelo instantâneo, pelo prazer de mergulhar nos objetos de contemplação, de "abrir-se para todo o espectro de sensações disponíveis que o objeto pode evocar" (Featherstone, 1995a: 105).

    A construção cultural do consumismo firma-se sobre o fato de as pessoas estarem abertas a experimentar variadas escolhas, prazeres e sensações. Esta é uma das formas pelas quais se insere a estetização da vida contemporâneo. As coisas não são apenas mercadorias, mas implicam mostrar, pela ima­gem, estilos de vida. O real e o imaginário são estreitados pela estética. Cria-se um verdadeiro prazer estético. A mensagem é secundarizada e o sentido de um evento cultual carismático é submetido ao se­gundo plano pela eficácia da imagem, sensação e prazer que uma determinada atividade pode assumir. Em parte, através desta reflexão é possível explicar a cultura do prazer, do lazer e do corpo na contemporaneidade.

    De certa forma, as religiões, ao se institucionalizarem, racionalizaram-se, tornando-se "mais civiliza­das", nos termos de Elias (1992), isto é, com maior controle emocional.

    Assim, a partir da Reforma, sobretudo com Calvino, a teologia protestante enfatizou a revelação de Deus não em imagens, mas na subjetividade e racionalidade humanas. Deus é anunciado pela proclamação da palavra divina e revela-se no entendimento humano. O indivíduo emerge como o locus preferen­cial da manifestação divina, não mais a Igreja (Dumont, 1985). Max Weber ao refletir sobre “a ética protestante e o espírito do capitalismo” procurou mostra como um determinado tipo de racionalização se solidificou no “mundo ocidental”. Weber demonstra como havia sido trocada a atitude de lazer da Idade Média por uma severa frugalidade. A concepção puritana de vocação, como comportamento asceta intra-mundano, orientava sua energia não para o deleite do corpo, mas para o trabalho. Assim, percebe-se que, para os puritanos, o corpo tinha que ser útil a uma finalidade, mais racional que espiritual. O corpo, sem dúvida, precisava ser eficiente para o trabalho, não como expressão de diversão e lazer. A religião, mais do que nunca raciona­lizante, não aceitava a estética como caminho para a salvação.

    Destarte, o movimento religioso da modernidade protestante foi um movimento iconoclasta de purificação do culto. A relação com Deus exigia um elevar-se acima ou desprender-se dos sentidos. Entretanto, na modernidade tardia (ou pós-modernidade) "a experiência estética, assim como a religiosa, tende a buscar nos suportes materiais tão somente a motivação para uma experiência centrada no observador, no crente" (Abumanssur, 2000: 190). Como argumenta Comblin (1997), o movimento carismático luterano oferece excitação para a alma e para o corpo, nele o crente pode encontrar cultos vivos e participativo, com músicas fáceis e letras repetitivas, com forte empolgação. Cada pessoa é importante e exercita a sua religiosidade de forma individual, sem complicadas mediações, quase que inventando ou reinventando o seu próprio culto (Pedde, 1997).

    Muitos estudiosos têm pensado a relação entre a religião e a corporalidade, a emoção e o consumo. Assumindo este caminho, procuraremos refletir sobre o sagrado e a estética corporal; e, mais precisamente, sobre a estética do sagrado. Trata-se de um tema amplo. Circunscrevo-o em uma religiosidade carismática sob a perspectiva da cultura do lazer, da emoção e do corpo.

    Nessa tentativa de aproximar a religião ao lazer, trata-se não de aceitar apenas e simplesmente a economia como determinadora das múltiplas esferas do social, mas de perceber qual o projeto estético a que a religiosidade carismática está submetida.

    Desta forma, no primeiro tópico “O lazer e o prazer corporal” faremos uma rápida, mas necessária inflexão teórica, explicando a passagem de uma religião “mais civilizada” na modernidade, portanto, controladora das emoções, do prazer e do corpo para uma religiosidade de viés carismático entre os luteranos na pós-modernidade, que deixaram de seguir unicamente padrões teológicos intelectualizados e racionalistas para se centrarem em uma vida mais hedonista. No segundo tópico, “O Movimento Carismático Luterano como comunidade emocional, de expressividade corporal e de busca pelo prazer” faremos à análise do ritual religioso nas três comunidades em tela observando dois momentos distintos, mas de maior performatividade corpo- emocional a elevação espiritual, o canto (o louvor) e a oração (“ministração”), que corroboram a religiosidade contemporânea em sua característica espetacular.

1.     O lazer e o prazer corporal

    Como muitos pensadores já demonstraram, em se tornando religião, as experiências místicas racionalizam-se, tornando-se "mais civilizadas", isto é, com maior controle emocional.

    Para Elias e Dunning (1992), a sociedade moderna arranjou mecanismos de controle emocional sobre os in­divíduos. Estes autores advogam que, na sociedade ocidental, a orientação para o controle emocional coletivo e até privado “maior e mais efetivo do que nas sociedades tradicionais. De forma que o con­trole sobre a vida emocional é imposto aos indivíduos e tornou-se um aspecto da estrutura profunda da personalidade” (Elias; Dunning, 1992: 103). Estes sociólogos constatam que o processo civilizador constitui um processo de modificações que inclui o campo do lazer. Nas sociedades antigas, numerosos tipos de atividades religiosas possuíam funções análogas às que as atividades de lazer têm hoje. Nas sociedades contemporâneas, o lazer constitui-se o campo que agrega a excita­ção e a emoção, sofrendo, porém, restrições com normas civilizadoras. A excitação é, em parte, “uma emo­ção compensadora das restrições de emotividade manifesta na nossa vida cotidiana” (Elias e Dunning, 1992: 105).

    De modo geral, o que podemos, aproveitar das reflexões de Elias e Dunning (1992) em torno do lazer, é que o lazer constitui-se, na sociedade ocidental atual, em um dos poucos espaços de uma certa liberdade de amarras para a emoção. Nos momentos de lazer, a emoção que conduz à excitação pode ser liberada e até se deseja que isto aconteça.

    Os autores definem lazer como uma possibilidade de experimentar, em público, uma "explosão de fortes emoções - um tipo de excitação que não perturba nem coloca em risco a relativa ordem da vida social" (Elias; Dunning, 1992: 112).

    Em função disto, esses pensadores propõem outra dicotomia que não a separação entre traba­lho e lazer, mas entre atividades monótonas e não-monótonas. Na verdade, nem sempre o tempo livre de trabalho é lazer. Grande parte de nosso tempo livre não pode ser considerado lazer, na me­dida em que usamos o tempo em que não estamos trabalhando, por exemplo, para repousar, dar conta de outras tarefas, alimentar-nos, entre tantos outros. Também o tempo investido nestas ativi­dades pode estar engendrado pela monotonia. Em outras palavras, existe uma oposição entre roti­na - que também pode estar dentro do tempo livre - e momentos de não-monotonia. "A agradável excitação-prazer que as pessoas procuram nas suas horas de lazer, representa assim, ao mesmo tempo, o complemento e a antítese da tendência habitual perante a banalidade das vivências emocionais que se deparam nas premeditadas rotinas 'racionais' da vida" (Elias; Dunning, 1992: 115).

    Retomando o conceito de lazer em Aristóteles, esses autores concluem que o lazer, que provoca excitação, está associado ao conceito de catarse. Quer dizer, o lazer estaria intrincado com uma sensação agradável e de um efeito curativo - já que catarse, em grego, significa limpeza. Dizem esses pensadores: "sem o elemento hedonista do 'entusiasmo', da excitação produzida pela música e pelo drama, nenhuma catarse é possível" (Elias; Dunning, 1992: 122).

    Na religiosidade de viés carismático entre os luteranos, objeto de nossa investigação, é possível perceber que estes deixaram de seguir unicamente padrões teológicos intelectualizados, racionalistas e puritanos, para se centrarem naquilo que o mundo contemporâneo produz: uma concepção de vida hedonista. Aqui também se sabe que o lazer, que carrega consigo algo de excitação prazerosa, é, de certa forma, a "antítese do autodomínio, da conduta racional ou razoável" (Elias; Dunning, 1992: 138).

    Vemos, portanto, que o fenômeno carismático, compõe parte de seu potencial atrativo em conseguir proporcionar uma relação entre religião, lazer, prazer e excitação corporal. Quer dizer, a religião-espetáculo retirou-se do mundo religioso racionalista dos séculos XVIII e XIX, para alcançar uma faceta importante do mundo pós-moderno: a fuga da monotonia, a busca de um corpo em prazer, da emoção. Os movimentos carismáticos tornam-se, assim, "comunidades emocionais" (Hervieu Léger, 1987).

    Outro conceito para o qual Elias e Dunning (1992) chamam a atenção é o de mimese. Apoiados nas reflexões de Aristóteles, os autores fazem notar que "grande parte dos fatos de lazer desperta emoções que estão relacionadas com aquelas que as pessoas experimentam em outra esfera: despertam medo e compaixão ou ciúme e ódio (... ), mas de uma maneira que não é seriamente perturbante e perigosa" (Elias; Dunning. 1992: 124). São situações emocionais experimentadas na "vida real". Seguindo seu raciocínio, os autores colocam que a excitação mimética pode ter um efeito catártico.

    Estas considerações podem muito bem ser associadas aos encontros cúlticos dos carismáticos. Indo mais longe, podemos afirmar que todos os rituais possuem um caráter catártico, de forte apelo emocional e de representação mimética. Contudo, nem todos os ritos possuem o grau necessário para a irrupção da emocionalidade entre os participantes. Muitos ritos, depois de inúmeras repeti­ções, não possuem quase que nem um grau de envolvimento emocional, o que os torna monótonos. Este é o caso, por exemplo, que nos permite fazer uma distinção entre cultos tradicionais e carismáticos. Apenas o segundo enquadrar-se-ia dentro do conceito de lazer-excitação, repleto desse caráter mimético, emocional e catártico. Evidentemente que este caráter de excitação precisa contar com uma abertura subjetiva. Os autores não o negam. Contudo, convém dizer que existem atividades lúdicas e rituais, que conseguem potencializar emocionalmente a maioria dos participantes; já outros não dão conta de criar esse impacto emocional. Isto é fundamental, contando na qualidade dos sentimentos engendrados nos que executam (ou participam) que se avalia o caráter de monotonia.

    Este caráter mimético e catártico, justamente por propiciar uma sensação agradável nos participantes, possibilita-lhes a renovação de energias para a continuidade da vida. De certa forma, então, podemos dizer que uma atividade mimética e catártica de excitação-lazer-corpo, carrega em si um poten­cial de representação dramática de situações da vida cotidiana.

    Pode-se levantar a hipótese, entre outras, de que os ritos luteranos tidos por tradicionais estariam fundados preferencialmente na força propositiva da palavra (constituída a importância semântica e, portanto, sobre um processo de racionalização). Entre carismáticos. Entretanto, o rito está mais centrado na força ilocucional1.

    Dessa forma, parece que, quanto maior for a expressividade ritual (também corporal) de uma reali­dade extracotidiana, o sagrado, maior será a possibilidade de transmissão do divino como verdade. Entendo que talvez possamos interpretar dessa forma elementos simbólicos e performáticos como a glossolalia, a dança, os cantos de louvor, os quais praticamente, sem nenhuma proposição, ganham relevância central nos ritos cultuais carismáticos (Csordas, 1994). A relação com a divindade coloca­-se como uma experiência. Essa experiência é tanto maior quanto mais articular o sagrado em expressões corporais e /ou emocionais. Ganham relevo os ritos que parecem não obedecer a uma lógica proposicional, apenas uma verdade a ser experimentada e vivenciada.

    O ritual, então, retira sua força não tanto das informações que passa, mas da maneira como conse­gue articular o mundo social e cosmológico das pessoas. Dessa forma, "muitas coisas são aceitas cognitivamente na performance precisamente porque elas são dramáticas, misteriosas ou impres­sionarem, e nem tanto porque são racionalmente significativas e compreensíveis, desde que elas não saiam para além do senso comum cultural" (Schieffelin, 1985: 721-722).

    Assim, encontramos nos cultos carismáticos luterano, uma estética (pós-moderna) que dá mais valor à imagem, ao corpo, à sedução e à emoção que ao sentido de algum encontro entre sujeitos. A emoção tornou-se a base para o sentido.

2.     O Movimento Carismático Luterano como comunidade emocional, de expressividade corporal e de busca pelo prazer

    Primeiramente, olhemos um pouco mais de perto o ritual carismático luterano. Veremos que a performance ritual se encontra em profunda sintonia com o Zeitgeist (o espírito de época) pós-­moderno, primando pelo espaço valorizado da emoção, da expressão corporal, da música, entre outros; enfim, da estética.

    Agrupando a seqüência ritual em uma estrutura mais enxuta, notemos que o ritual se organiza ao redor de quatro núcleos. São eles:

  • Recepção e saudação

  • Elevação espiritual: o louvor

  • Pregação

  • "Ministração"

    Quero, entretanto, fixar a atenção sobre dois momentos de maior performatividade emocional: a elevação espiritual, o canto (o louvor) e a oração (“ministração”).

2.1.     Elevação espiritual: o louvor

    Trata-se de um contínuo de hinos, sem interrupção do dirigente, com a duração aproximada de quarenta minutos, podendo chegar até a uma hora de músicas sem pausa conduzidas pelo líder do grupo vocal. Os participantes do culto permanecem o tempo todo em pé. Os hinos cantados são repetidos muitas vezes; no mínimo, três. Mesmo aqueles que chegam pela primeira vez ao culto, logo estão acompanhando as canções, por serem melodicamente fáceis e em função de suas repetições, possibilitando uma rápida aprendizagem. Não raras vezes, pode-se observar pessoas chorando, casais se abraçando, pessoas de olhos fechados, buscando um contato com o sagrado. Neste contexto, a redundância desempenha exatamente o papel de promover envolvimento emocional, abrindo as pessoas para o sobrenatural. Mesmo aquelas que vêm pela primeira vez ao templo, deixam-se levar por este entusiasmo emocional. Seus corpos, embora de forma evidentemente mais constrangida que os demais, balançam ao som melódico dos hinos, fecham os olhos, levantam seus braços e percebem que o culto se torna um evento em suas vidas (Corten, 1996).

    Em cada culto carismático há a presença de um grupo musical. Sua boa qualidade é fundamental para alcançar momentos de impacto emocional sobre os fiéis. Normalmente os conjuntos responsáveis pelo andamento musical são constituídos de, no mínimo, quatro instrumentistas e três vocalistas. No grupo de canto de uma das comunidades por nós observadas, por exemplo, são tocados um violão elétrico, uma guitarra, um contrabaixo, uma bateria, um teclado e um saxofone. Além deles, constituem o grupo mais três ou quatro pessoas que cantam, cada uma utilizando um microfone individualmente. Alguns instrumentistas também cantam, totalizando um vocal de cinco a seis pessoas. O som é amplificado e as vozes afinadas garantem uma condução firme e homogênea do canto, transformando-se em um instrumento de grande potencial de veiculação emocional. O cuidado com a questão musical é visivelmente muito grande. De tempos em tempos, há coletas de dinheiro junto aos fiéis específicas para compra de instrumentos e a melhoria da sonorização. O recurso musical é expressivo e causa um grande impacto. Somente sua ausência pode nos dar uma idéia do que a música e a banda significam na performance ritual dos cultos e no impacto que ela causa sobre corpos e emoções.

    O conjunto musical serve também como modelo de expressividade corporal para a comunidade. Torna-se uma referência de técnicas corporais, ajudando a comunidade a se desinibir. Enfim, tudo contribui para o envolvimento da pessoa no ritual, deixando-se levar pelo emocional. A música ampli­ficada é constitutiva da performance ritual. O clima emocional que se instaura, significando o encontro com Deus, uma experiência mística, é grandemente potencializado pela música e executada dentro do momento cultual. Ela está presente do início ao final do culto. Quando não está cantando com a comunidade, a banda faz um fundo musical nas orações e na “ministração”. A exceção fica por conta dos momentos de pregação e de avisos gerais dado à comunidade. No mais, a música embala o ritual.

    Algumas falas de dirigentes procuram estimular nos participantes a noção de que o louvor é a porta de entrada para o contato com o divino. Emoção, vibração, enlevo, movimento, expressão corporal, gestual facial, fazem parte desse pacote, provavelmente mais eficaz do que a mensagem bíblica.

2.2.     "Ministração"

A ministração é, sem dúvida, a grande novidade do Movimento de Renovação Carismática dentro dos cultos luteranos. Constitui-se no último momento do culto carismático. Um dos pastores entrevistados definiu a ministração como:

    "esse acréscimo de se ficar ali orando pelas pessoas que têm necessidade, sempre com imposição de mãos, ou ainda um breve aconselhamento. É ali, também, que se agendam aconselhamentos. Temos um grupo de aconselha­mento. Então ali acontecem muitas coisas. Não é só oração. É um dar atenção às pessoas. É ouvir um pouco também. E, não há dúvida, é um horário para interceder para que Deus interfira na história daquela pessoa. Mas isso nós temos chamado de ministração" (Aparício2).

    Na ministração, a interação entre audiência e pastor é alterada. Durante todo o culto, o pastor fica distante da comunidade, restringindo-se ao espaço do altar. No momento da ministração, as pessoas vão para frente e ficam diante do pastor. Enquanto ele fala, os obreiros3 vão chegando e começam a orar com imposição de mãos sobre as pessoas. O pastor, mesmo não deixando seu microfone de lado, impõe as mãos sobre os fiéis ali reunidos e ora por eles. Assim, ele vai dando o tom das orações que são feitas pelos obreiros. Enquanto os obreiros oram com imposição de mãos, toda a comunidade ora em voz alta, participando daquele momento com muito entusiasmo. Vale dizer que todos fazem suas orações ao mesmo tempo, o que gera um considerável burburinho no ambiente cultual.

    Muitos presentes esperam este momento de intercessão. Em primeiro lugar, ele serve como pedido de ajuda. O intercessor invariavelmente usa o corpo como instrumento de acolhimento e conforto, ele toca e abraça o fiel que chega para a oração. As pessoas acorrem para a ministração em um misto de respeito e ansiedade. Muitos buscam o recebimento concreto de bênçãos de Deus. Há pessoas que vão orar para pedir a presença do Espírito Santo e o seu poder. Muitas vezes, os obreiros ungem com óleo os que ali se apresentam. Trata-se também de um momento usado para aconselhamento. E, não raras vezes, pessoas contam umas às outras revelações que teriam recebido de Deus, que versam sobre os mais variados temas.

    O segundo aspecto é que a ministração consiste em um momento de intercessão por curas. Muitos atestam que foram curados por estas orações. Com certeza, grande contingente de pessoas vem ao culto para participar deste momento. Buscam a cura e a solução de problemas, ou, por vezes, querem apenas compartilhar problemas e orar. Em um dos cultos observados o pregador concla­mava os fiéis a participarem ativamente daquele espaço, dizendo:

    "Onde você quer ver a mão de Deus? Coloque sua mão sobre a enfermidade. Deus vai fazer maravilhas esta noite na vida daqueles que estiverem orando. Nós repreendemos toda a força maligna que quer se opor a ti, Senhor! Quem estiver com dor, levante a mão. Queremos repreender todo o espírito malig­no da dor, da enfermidade”.

    Em terceiro lugar, e intimamente ligado ao aspecto anterior, cabe salientar que o espaço da ministra­ção constitui-se em um momento para a expulsão de demônios, como costumam dizer. Quando as pessoas vêm à frente e pedem oração por curas físicas, com alguma freqüência a doença é percebida como "colocada" por um espírito demoníaco, sendo necessário, em seu entender, orar pela expul­são do mesmo.

    Ainda na ministração, o pastor afirmou que não é ele quem cura, mas Deus. Os obreiros vão à frente para "ministrar a cura de Deus". A comunidade ficou de pé, o teclado fez um fundo musical. O pastor pediu que a comunidade estendesse a sua mão sobre todos aqueles que foram à frente e orou ao microfone:

    "Toda a enfermidade vai sair. Sai, sai obra maligna". Alguém desfaleceu, jogou-se para trás. Muitos da comunidade gritaram: sai, sai. Caracteriza-se uma expulsão de demônio. O pastor continuou a dizer "Sai, espírito maligno. Saia de suas costas. Saia das pernas". A pessoa convulsionou. "Em nome do Senhor, sai e não volte mais. Todo espírito causador de dor, saia desta vida e não volte mais",

    No final, o pastor ainda perguntou aos que estavam na frente: Tem alguém com dor? Dor de cabeça, dor no ombro? Não tem mais nada? Glória a Deus! Este Jesus é maravilhoso!

Considerações finais

    Os cantos e as orações (dentre as quais salientamos a ministração) são os dois momentos de maior expressividade emocional dentro dos rituais carismáticos observados.

    Todas as orações são realizadas ouvindo-se um fundo musical. A dimensão musical, através de uma linguagem estética, procura auxiliar na transmissão de emoção. Assim, unindo música, oração e gestos corporais, múltiplos meios sensoriais são acionados para a transmissão da mensagem. Enfim, tudo procura conduzir para um momento de reflexão íntima e de emocionalidade. O conjunto todo da mensagem expressa na oração, envolvida pela música de fundo, provoca a emergência das emoções.

    A experiência religiosa como percebida nesses ritos cultuais quer ser, antes de qualquer coisa, um encontro subjetivo com a divindade. Esse encontro é tão mais intenso quanto mais suscitar emoções (Corten, 1996). Entendo que este aspecto vem ao encontro do espírito pós-moderno. Atomizado e isolado, busca-se emoção e afeto.

    A pós-modernidade, conforme os autores que a têm estudado, pode ser caracterizada como a busca da superação da racionalidade totalizante e teleológica. A pós-modernidade desconstrói, pela crítica, o fundamento da modernidade, ou seja, o Fim (que garante um sentido), a Unidade (para assegurar que o universo é um todo conhecível pela ciência) e a Verdade (para guiar-se pelo ser, pela real natureza das coisas). Assim, ela abalou os "três pilares da cultura ocidental: o cristianismo (Fim), o conhecimento científico (Unidade) e a Razão filosófica e moral (Verdade)" (Santos, 1986: 76).

    A estética pós-moderna assenta-se sobre uma vivência metafísica e imagética da realidade. Essa sensorialidade afeta as manifestações religiosas. Conforme Hervieu-Léger (1987), as relações sociais tendem a ampliar os laços emocionais em torno de uma pessoa carismática; as pessoas procuram mais experiências religiosas do que ensinamentos dogmáticos; e a participação é orientada mais por um compromisso com o grupo em si do que com a religião.

    A religião como espetáculo prescinde de quase toda a teleologia tradicional (a vida eterna) e passa a fixar-se na própria performance do ritual e na eficácia simbólica do bem-estar imediato (saúde, dinheiro, etc.). O centro do discurso não está no que é dito, mas no que é feito e no como é dito. A pragmática desloca a semântica (Hansen, 1994).

    Hoje, não é mais possível imaginar uma religião que queira se construir que não leve em conta o poder do caráter corporal e de espetáculo que um evento religioso pode oferecer. O que parece relevante nesta análise é o fato de perceber que os rituais entre os carismáticos, rituais que privilegiam a emoção e a excitação, encontram uma interface com a cultura hedonista de nossa época.

    Analisando a religião a partir de uma concepção de disputa de mercado, poder-se-ia afirmar que as religiosidades de cunho pentecostal disputam um espaço não apenas com outras igrejas, mas tam­bém com espaços seculares, inclusive de lazer.

    Com estes apontamentos, e longe de esgotar esta complexa temática, esperamos ter contribuído para uma reflexão sobre o que nós podemos entender, hoje, acerca da religião como expressão corporal e espetacular e em que sentido isto se realiza. Inserida em uma cultura que espetaculariza tudo e, de certa forma, se coloca em oposição ao racionalismo instrumental, também a religiosidade, particularmente pentecostal e carismática, busca o prazer e a adrenalina.

Notas

  1. Retomando estes conceitos a fim de torná-los o mais claro possível, vale dizer que, para Austin, um ato de fala ilocu­cionária constitui-se na "realização de um ato ao dizer algo, em oposição à realização de um ato de dizer algo" (1990: 89). Os atos de fala ilocutórios são atos de fala convencionais que, em circunstâncias apropriadas. "são objetos de julgamentos de felicidade ou legitimidade e não de testes racionais de verdade e falsidade" (Tambiah, 1985: 135).

  2. O nome da pessoa entrevistada foi alterado.

  3. A palavra obreiros possui duas conotações distintas entre os carismáticos luteranos, cujo significado depende do contexto em que é usado. A IECLB é constituída por um quadro de obreiros. Isto quer dizer: o clero. Mas as comunidades caris­máticas usam o termo obreiros para designar aquelas pessoas que são mais do que meros participantes em seus cultos. Trata-se daquelas que ajudam em atividades específicas dentro da comunidade. Quando os pastores carismáticos pedem o auxilio dos obreiros para realizar orações, exorcismo, etc., referem-se a estas pessoas reconhecidas pela comunidade como auxiliares em tarefas específicas sem uma vinculação institucional, ou em outros termos, não ordenados pela IECLB

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revista digital · Año 13 · N° 122 | Buenos Aires, Julio 2008  
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