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Re-pensando os processos formativos discentes e docentes em Educação Física: a necessidade de um pensamento crítico-reflexivo

 

*Licenciada em Educação Física pela Universidade do Oeste de Santa Catarina - UNOESC/SMO.
Especialista em Educação Física Escolar pela Universidade Federal de Santa Maria - UFSM.
Mestranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação/CE/UFSM.

**Doutor em Ciência do Movimento Humano CEFD/UFSM e em Educação CE/UFSM

Professor Adjunto do Departamento de Metodologia do Ensino e

do Mestrado em Educação do Centro de Educação/UFSM.

Andréia Paula Basei*

andreiabasei@yahoo.com.br

Hugo Norberto Krug**

hnkrug@bol.com.br

(Brasil)

 

 

 

Resumo

          Objetivamos através deste, refletir sobre os processos formativos para a docência, fazendo referências, especialmente, aos professores de Educação Física. Destacamos num primeiro momento, os conhecimentos que tem legitimado esses processos dentro de nossa tradição pedagógica e as limitações e aprisionamentos a que estão sujeitos os professores dentro dessas tradições. Num segundo momento, a ênfase recai sobre a influência das políticas públicas nas determinações e controle da profissão docente que colocam, muitas vezes, os professores numa posição de reféns do sistema vigente. E, por fim, evidenciamos a necessidade e a possibilidade de romper com as amarras partindo de uma compreensão que a formação deva estar voltada para o desenvolvimento de um pensamento crítico-reflexivo contribuindo com a formação de uma identidade emancipada para os docentes.

          Unitermos: Educação Física. Formação de professores. Políticas públicas. Pensamento crítico-reflexivo.

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 13 - N° 120 - Mayo de 2008

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    A questão da formação profissional ocupa posição de destaque em discussões acadêmicas, profissionais e políticas que se referem à melhoria da qualidade de ensino, à função que a escola desempenha ou deveria desempenhar na sociedade atual, às condições de trabalho e desenvolvimento profissional do professor, bem como, sobre as estratégias de ação e formação que venham atender todas essas demandas.

    A formação de professores pode, assim, ser considerada como um pilar fundamental do processo educativo, por isso, torna-se imprescindível rever o papel dos docentes e sua formação, tanto inicial quanto continuada, uma vez que, sabemos que a sociedade atual exige que o profissional esteja aprendendo o tempo todo, pesquisando, criando, revendo, dialogando, construindo e reconstruindo sua prática e seus conhecimentos.

    Repensar os processos de formação profissional, assim, tem se tornado uma necessidade constante em todas as áreas do conhecimento. Para isso, é necessário que se tenha uma compreensão sobre a contextualização histórica, social e cultural de como esses processos tem se constituído, de suas principais características e o que tem legitimado determinados conhecimentos e práticas tanto no que tange a questão das práticas pedagógicas escolares, quanto as que são desenvolvidas em âmbito da formação profissional.

    Isso nos levará a compreender melhor que nem sempre o professor é o único responsável pelo fracasso escolar, uma vez que, faltam-lhe condições básicas para a melhoria da qualidade do ensino, como valorização profissional, formação continuada, recursos mais adequados e uma política educacional que promova/estimule de fato o seu desenvolvimento profissional. Além disso, não podemos desconsiderar que a formação inicial, na maioria das vezes, não oferece o preparo para os professores enfrentarem a “nova” realidade escolar e assumir as atribuições que lhes têm sido delegadas, cada vez mais numerosas e diversificadas.

    Dentro desse contexto, nos propomos aqui refletir sobre os processos formativos para a docência, fazendo algumas referências em especial aos professores de Educação Física. Destacamos num primeiro momento, os conhecimentos que tem legitimado esses processos dentro de nossa tradição pedagógica e as limitações e aprisionamentos a que estão sujeitos os professores dentro dessas tradições. Num segundo momento, a ênfase recai sobre a influência das políticas públicas nas determinações e controle da profissão docente que colocam, muitas vezes, os professores numa posição de reféns do sistema vigente. E, por fim, evidenciamos a necessidade e a possibilidade de romper com as amarras partindo de uma compreensão que a formação deva estar voltada para o desenvolvimento de um pensamento crítico-reflexivo contribuindo com a formação de uma identidade emancipada para os docentes.

    Começamos destacando os debates em torno de nossa tradição pedagógica, ou seja, os modelos de formação e quais os conhecimentos que tem legitimado esses modelos. Temos uma tradição pedagógica em que os conhecimentos técnicos e práticos, próprios do saber-fazer de uma profissão tem sido apontados como os determinantes de todo um processo de formação. Esses conhecimentos estão baseados em uma racionalidade instrumental que deixa os professores na posição de reprodutores de determinados saberes – técnicas – que deveriam dar conta de resolver todos os problemas oriundos de suas práticas.

    Dentro dessa perspectiva, e conforme nos aponta Schön (2000, p. 37) “a competência profissional consiste na aplicação de teorias e técnicas derivadas da pesquisa sistemática, preferencialmente científica, à solução de problemas instrumentais da prática”. Nesse tipo de formação os docentes são os responsáveis pela articulação entre conhecimentos teóricos e práticos, uma vez que, são tratados separadamente e desconsideram a totalidade contextual da atuação profissional como espaço de produção de conhecimentos, para tratá-lo apenas como um espaço de aplicação de técnicas específicas. Porém, quando se pensa no contexto de trabalho dos docentes, percebemos que os conhecimentos técnicos não conseguem dar conta das situações que terão que enfrentar e assim, a legitimidade desse tipo de formação começa a ser questionada.

    No âmbito da Educação Física, isso pode ser verificado no que foi denominado de modelo de formação “técnico-desportivo”, que segundo Betti (1996 apud BRACHT et al., 2003) “enfatiza as chamadas disciplinas práticas. Há separação entre teoria e prática. Teoria é o conteúdo apresentado na sala de aula, prática é a atividade na piscina, quadra, pista, etc. A ênfase teórica se dá nas disciplinas da área biológica/psicológica”.

    Dessa forma, o movimento humano é tratado apenas na sua dimensão instrumental, ou seja, tem-se disciplinas teóricas que explicitam todo um mecanismo de funcionamento do corpo humano e, disciplinas práticas onde os discentes – futuros docentes – aprendem as técnicas específicas de cada modalidade. Contudo, as dimensões social, histórica e cultural desses conhecimentos são deixadas em segundo plano, e pouco ou nada, se discute sobre a dimensão didática e pedagógica que deve ser incorporada ao tratar-se do âmbito escolar, haja visto que, os futuros professores deverão, acima de tudo, proporcionar uma aprendizagem significativa aos seus alunos.

    Esse tipo de formação pode ser associado também ao que Marcelo García (1999) denomina de uma formação com orientação acadêmica, onde o objetivo fundamental da formação de professores trata-se do domínio do conteúdo, isto é, “a formação de professores consiste no processo de transmissão de conhecimentos científicos de modo a dotar os professores de uma formação especializada, centrada principalmente no domínio dos conceitos e estrutura disciplinar da matéria que é especialista” (p. 33).

    Todavia, há que se considerar, que apesar da atividade docente não ser uma ciência aplicada e técnica, essa dimensão ocupa um lugar muito importante, embora limitado, é pressuposto essencial para o talento artístico, ou seja, o docente precisa conhecer as especificidades de seu campo profissional, seus conhecimentos específicos. Mas, devido as limitações e aprisionamentos que estes conhecimentos trazem, deve ser capaz também de fazer a mediação de seus conhecimentos específicos com seu contexto de atuação e seus saberes experienciais.

    Não podemos deixar de citar, também, outra questão que tem marcado nossa tradição pedagógica que trata-se de fundamentar a atividade profissional do professor sobre os conhecimentos ditos práticos como se estes fossem mais importantes que qualquer outro tipo de formação, caindo então numa abordagem tradicional da atividade docente. Com relação a este aspecto, a formação de professores “consiste na aprendizagem do ofício do ensino, o qual é realizado fundamentalmente por tentativas e erros por parte dos professores em formação” (MARCELO GARCIA, 1999, p. 40).

    Sabemos que atualmente o professor precisa atuar em um cenário onde convive com a incerteza, a complexidade, e a pluralidade de situações e que certamente os modelos de formação acima mencionados, e outros cuja ênfase recai sobre conhecimentos específicos, que ainda se fazem presentes em muitos âmbitos de formação profissional não são capazes de abranger. Por isso, acreditamos que os conhecimentos que tem legitimado esses processos de formação devem ser questionados e contextualizados em um determinado momento histórico e cultural. A partir disso, poderemos compreender melhor nossas tradições pedagógicas no intuito de buscar por melhorias, por nos libertarmos de alguns aprisionamentos a que estamos sujeitos convivendo e, talvez mais do que isso, incorporando discursos que tem se legitimado em nosso campo pedagógico.

    Por outro lado, e como ficou implícito na contextualização de nossa reflexão em uma tradição pedagógica, é preciso considerar que, os fenômenos sociais sempre se encontram interligados, embora possam apresentar graus diferentes de realização e expressão. Com isso, queremos dizer que, a educação sendo também um assunto político, evidentemente, suas bases estão fundamentadas no sistema social, político e econômico vigente, baseado nas políticas neoliberais que cada vez mais colocam o sistema de ensino diante de uma homogeneização e uniformidade baseada no fortalecimento de uma aprendizagem acadêmica e disciplinar que expressa uma fragmentação dos conhecimentos e submissão às redes de poder presentes nesse sistema.

    Com a expansão do ensino público surge a necessidade de se formar uma quantidade maior de professores para atender a demanda. Isso implicaria a construção e ampliação de universidades públicas com boa infra-estrutura, bons profissionais, desenvolvimento de pesquisas e salários dignos, o que traria gastos para o governo e que viria na contra-mão de uma política de contensão de custos. Fato este, que acaba contribuindo com a expansão de instituições de formação do setor privado, as quais tendem a proporcionar uma formação aligeirada tanto em termos de conteúdos quanto de tempo, que pouco investem em pesquisas, mas basicamente no ensino sua principal fonte de lucros. De acordo com Pérez Gómez (2001, p. 133) “as políticas públicas neoliberais propõem o desmantelamento do estado de bem-estar e a concepção da educação não como um serviço público, mas como uma mercadoria de destacado valor, submetida, logicamente, à regulação das relações entre oferta e procura”.

    Pensando nas repercussões que isso traz para a formação docente, essa é uma das primeiras questões que coloca os professores como reféns de um sistema educacional, ou seja, são reféns “[...]da má qualidade de ensino que ele próprio recebeu” (ZAGURY, 2006, p. 63), e que certamente reservará influências nas práticas que virão a desenvolver passando da condição de discentes à docentes, uma vez que, eles não dispõem de tempo para suprir essas lacunas na formação. Dessa forma, muitos professores saem das instituições com uma formação deficiente e uma prática pedagógica controlada pelas avaliações das políticas públicas comprometendo sua autonomia profissional.

    As políticas de controle sobre o trabalho docente em escolas através das avaliações do Ministério da Educação realizadas pelos discentes anualmente, nos transparecerem uma conotação de que as avaliações dos professores perdem o seu significado, e é necessária a supervisão para garantir que o trabalho está sendo bem feito, colocando os docentes na posição de meros executores de tarefas delegadas por outrem, apresentadas através de livros didáticos e da grade curricular que, no sentido pejorativo do termo, deixa os professores atrás das grades, presos, limitados a executar o que está previsto, independente do contexto em que atuam. Nesse ponto, concordamos com Pérez Gómez (2001) quando fala da pouca participação dos professores no processo educativo, conforme o autor,

    a participação dos agentes na determinação dos pormenores da vida compartilhada não tem a menor importância, posto que não existe esse espaço de vida compartilhada sendo a aceitação de um mecanismo simples e formal que regula os intercâmbios de forma asséptica e distribui os espaços e os tempos (p. 157)

    Pensando agora nas instituições de ensino superior, a situação não é diferente, as avaliações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES -, especialmente em programas de pós-graduação, acabam enquadrando os docentes numa lógica de produção, através da criação de mecanismos efetivos de controle de qualidade da produção científica onde os professores precisam ser produtivos ou podem perder seu credenciamento nos programas. Isso vem somente e reforçar o paradigma positivista, onde as pessoas não são tratadas enquanto pessoas efetivamente, mas a imagem que se tem do que elas representam é vista através dos números de sua produção, onde a condição é: ou você aceita as regras do jogo ou você simplesmente está fora dele. A nosso ver, vive-se um conflito paradigmático, pois, ao mesmo tempo em que os professores colocam-se na posição de pesquisadores que buscam refletir criticamente sobre a realidade, devem manter-se alienados a um sistema que entende que a quantidade está intimamente relacionada com a qualidade.

    Logo, na maioria das vezes, ficam em segundo plano as condições de desenvolvimento profissional que esses professores estão submetidos. Fazemos essa referência destacando o fato de que, esses profissionais são também parte de uma instituição de ensino, que exige uma grande parcela de dedicação, condição esta que é colocada a margem nas avaliações e, por vezes, não considerada como uma forma de construção de conhecimento e desenvolvimento profissional que tem como prioridade a pesquisa, a produção científica. Com isso, o que queremos é enfatizar a questão de que as dimensões pesquisa e ensino devem ser integradas e tratadas com igual importância quando se pensa na melhoria da qualidade de ensino e qualificação profissional.

    Essa situação reflete, para nós, as condições criadas pelas políticas neoliberais, transformando o conhecimento em uma mercadoria, cuja dicotomia entre pesquisa e ensino nada mais é do que a divisão do trabalho tomado como referência de racionalidade e eficiência. Com isso, de acordo com Saviani (1986, p.90),

    perpetuou-se no ensino, a separação entre meios e objetivos, entre conteúdos curriculares e sua finalidade educativa, entre as formas de transmissão do saber e as formas de produção e sistematização do saber, entre o pedagógico e o científico. Paradoxalmente, acentuou-se o divórcio entre o ensino e a pesquisa no momento mesmo em que a reforma se propunha a realizar sua unidade.

    Desse modo, é impossível acreditar no discurso de uma educação/formação mediada pela prática reflexiva com políticas que desqualificam e não investem nos salários de seus profissionais, em seus planos de carreira e nas condições materiais e estruturais das instituições de ensino e formação profissional. Onde os representantes da população que formam o governo “[...]decidem os valores e a cultura que devem ser trabalhados nas escolas, definindo o currículo, a estrutura da organização escolar, os processos de seleção e classificação de docentes e alunos e, inclusive, a metodologia didática mais adequada” (PÉREZ GÓMEZ, 2001, p. 141).

    Consideramos importante destacar também, em se tratando dos profissionais de Educação Física, a questão da regulamentação profissional que tem gerado inúmeros e, por vezes, conflituosos debates entre os profissionais da área. Todas as questões que estão por trás da regulamentação, as quais deveriam lutar por melhores condições de trabalho dos profissionais e pela sua qualificação, vem, na verdade a legitimar, a produção capitalista, onde os profissionais tratam sua força de trabalho como uma mercadoria a ser comprada – na formação universitária – e vendida – na atuação profissional. Claro que, como se refere Vaz (2000) não podemos ser “tolos a ponto de dizer que não se pode relacionar com o mercado. [...]o que perturba é essa servidão voluntária”.

    Dessa forma, a regulamentação vem somente a atender as demandas de mercado, uma vez que, prima por um conhecimento cada vez mais especializado e fragmentado, contra os que possam ocupar espaços profissionais, numa área que na sua totalidade trata das práticas corporais, da cultura do movimento humano. Com isso, acreditamos que há um conjunto de normas, valores, procedimentos pedagógicos, e para simplificar numa palavra, de saberes, cuja aprendizagem precisa ultrapassar as barreiras do saber acadêmico e profissional, e que necessariamente se relaciona com a autonomia profissional e com um pensamento crítico.

    Partindo desses aspectos, não queremos afirmar que não acreditamos que a regulamentação da profissão não possa trazer benefícios aos profissionais, o que queremos questionar é a incontrolável vontade de poder presente em torno da questão que quer alienar os profissionais as condições que o mercado lhe coloca e que nos trazem enormes perdas, no sentido de que a delimitação do estudo da cultura do movimento humano em pequenas áreas estaremos desconsiderando a sua totalidade e voltando às “velhas” dicotomias e dualidades.

    Essa breve ênfase que fizemos as políticas públicas e as influencias na profissão docente, nos apontam para a necessidade de um pensamento crítico-reflexivo, pois assim, poderemos questionar as certezas do conhecimento num constante movimento de idas e vindas entre aspectos que vão desde os seus profissionais, as relações com outros sujeitos – alunos, demais professores, equipe administrativa – até as políticas públicas. Sendo assim, como nos aponta Zagury (2006, p. 239) “para mudar a práxis, é necessário que não se aja simplesmente usando a força da lei, modismos pedagógicos ou simpatias pessoais”, mas é necessária a realização de estudos que decorram da realidade e mais do que isso, que sua execução e adesão de seus profissionais sejam viáveis.

    Refletindo sobre esse contexto, nos perguntamos que tipo de profissionais da Educação/Educação Física interessa formar para esse tipo de políticas públicas? Certamente não estão pensando em profissionais críticos e reflexivos, mas profissionais que se assemelham aos “ventríloquos”, a quem cabe apenas ser comandado por mãos que estão superiores a si, e que dificilmente serão alcançadas, a não ser que encontrem alguma forma de romper com suas amarras.

Rompendo as amarras...

    A necessidade e a possibilidade de romper com as amarras que vem determinando a formação profissional surgem para nós, partindo do desenvolvimento de um pensamento crítico-reflexivo que venha a articular todas as competências e saberes necessários para a docência. Para tanto, é importante que se considere o saber profissional como “um constructo social produzido pela racionalidade concreta dos atores, por suas deliberações, racionalizações e motivações que constituem a fonte de seus julgamentos, escolhas e decisões” (TARDIF, 2002, p. 223).

    Os saberes profissionais para a docência estão articulados em uma complexidade que só serão possíveis de serem compreendidos e incorporados pelos docentes no momento que levarem isso em consideração, pois as bases do saber ensinar vão muito além da aquisição de um sistema cognitivo, mas como salienta Tardif (2002), tratam-se de saberes temporais, heterogêneos, personalizados, situados e pragmáticos, que exprimem uma capacidade argumentativa, discursiva e comunicativa por parte do professor. Sendo assim, o repertório de conhecimentos dos professores é constituído pelo entrelaçamento de saberes culturais, experienciais, curriculares, disciplinares e de formação profissional.

    Em relação aos saberes docente consideramos importante falar qual a abrangência de cada um deles e a necessidade de articulação para não cairmos num reducionismo, pois nenhum deles é completo sem a interação com os outros. Sendo assim, os saberes culturais são os que estão ligados diretamente ao contexto em que o professor vive, herdado de sua trajetória de vida e uma cultura particular que partilha com os alunos; os saberes experienciais, são originados no exercício da profissão, na ação cotidiana; os saberes curriculares dizem respeito aos programas e manuais escolares que os professores devem seguir; os saberes disciplinares tratam dos conteúdos, das matérias ensinadas na escola e; os saberes de formação profissional que tem como base os saberes transmitidos pelas instituições formais de ensino, no caso formação inicial e continuada (TARDIF, 2002).

    A partir dessas considerações, e como nos propõe o autor, acreditamos no desenvolvimento de uma epistemologia da prática profissional, cuja finalidade é revelar esses saberes, compreender como são integrados nas tarefas profissionais e como os profissionais incorporam, produzem, utilizam e transformam o seu conjunto de saberes em seu espaço de trabalho cotidiano. Com a articulação de todos os saberes que fazem parte do repertório dos professores seria possível a valorização dos professores como produtores de saberes em suas práticas diárias e também, a diminuição das distâncias entre os professores do ensino básico e do ensino superior, bem como a idéia de pesquisadores/professores universitários como os teóricos e professores como práticos e responsáveis por fazer as coisas acontecerem, superando essa visão completamente distanciada da realidade que coloca a universidade na posição de fornecer os “remédios” para um “doente” que nunca se quer foi visitado.

    Como ponto chave para essa articulação, como já enfatizamos anteriormente, é necessário o desenvolvimento de um pensamento crítico e reflexivo, tanto por parte dos docentes, quanto dos discentes, problematizando, questionando e argumentando sobre seus fazeres. No entanto, esse é um processo que implica muito mais que um “pensar sobre”, mas trata-se de um re-pensar constante e intencional que deve perpassar todos os momentos da trajetória profissional e que “implica a imersão consciente do homem no mundo de sua experiência, um mundo carregado de conotações, valores, intercâmbios simbólicos, correspondências afetivas, interesses sociais e cenários políticos” (ZEICHNER, 1993 apud PÉREZ GÓMEZ, 2001, p. 194).

    Por isso, e de acordo com Smyth (1989 apud GARCIA, 1999, p. 46) um processo reflexivo deve se dar em quatro fases, descrever o que faço, qual é a minha prática atual, informar sobre o que significa o que faço, que teorias estão expressas na minha prática, confrontar como cheguei até aqui, o que mantém/limita as teorias e, reconstruir de forma a poder fazer as coisas diferentes. Nesse sentido, a atuação dos professores está fundamentada na problematização do fazer pedagógico, na investigação sobre ele e nas possibilidades de transformá-lo, o que levaria os professores a saírem da menoridade1 em busca do esclarecimento, constituindo-se como sujeitos autônomos, desenvolvendo um conhecimento emancipatório.

    Nessa mesma linha de pensamento Schön (2000), ao elucidar-nos sobre a prática reflexiva na formação de professores, destaca os processos de reflexão na e sobre a prática, no intuito de superar as limitações para as ações impostas pela sua determinação apenas em conhecimentos técnicos e/ou práticos.

    Através desse processo, os professores seriam capazes de resolver os imprevistos e surpresas para situações a que Schön (2000, p. 17) determina de “zonas indeterminadas da prática”, que são envolvidas em uma complexidade, variabilidade, singularidade, incerteza e em conflitos de valores que colocam os professores em dificuldades de encontrar as estratégias e os meios adequados para agir frente a determinadas situações.

    Com um pensamento reflexivo na ação, os docentes mobilizam seu repertório de conhecimento e experiências, do seu “talento artístico”, como denominado por Schön (2000), tomando-os como base para novos insights para situações problema que precisam ser enfrentadas, encontrando estratégias momentâneas para os problemas que se colocam. Mas um processo reflexivo vai além, perpassando também a reflexão sobre a ação, ou seja, uma reflexão sobre as estratégias tomadas, se foram pertinentes, adequadas ou não e quais seriam outras possibilidades para a mesma situação. A articulação consciente desses processos é que de fato vai construir o repertório de conhecimentos dos professores, a mobilização, transformação e produção de saberes na ação.

    Reportando-nos mais uma vez aos professores de Educação Física, a partir do momento em que tiverem incorporado em suas práticas um pensamento crítico e reflexivo, passarão a compreender o movimento humano partindo de uma racionalidade comunicativa, dimensão muito importante quando se pensa no movimento como um diálogo entre o homem e o mundo, carregado de intencionalidades e subjetividades e capaz de contribuir com a construção da identidade dos sujeitos. Além disso, a racionalidade comunicativa, tanto na formação quanto na atuação profissional nos permite compreender os sentidos e significados que carregam as ações de movimento dos sujeitos dentro de um contexto social, histórico e cultural específicos, e que certamente vão muito além do que é considerado tratando-o com uma abordagem instrumental e mecânica, presente no ensino tradicional.

    Para tanto, um dos primeiros aspectos, a nosso ver, para atender a essas necessidades é que os currículos, em todos os níveis de ensino, e principalmente o de formação profissional, estimulem o desenvolvimento de um pensamento crítico e reflexivo. Essa referência é feita, porque não é o que presenciamos na maioria dos cursos de formação, e notadamente no caso da Educação Física, o que traz inúmeras dificuldades e limitações quando falamos da atuação profissional, pois como nos aponta Kunz (1995) “uma vez que não lhe foi proporcionado o exercício da análise e reflexão de conhecimentos adquiridos na graduação o resultado é a ausência de reflexão que se estende no exercício da profissão”.

    Nesse sentido, acreditamos que os debates acadêmicos que dão – ou deveriam dar – suporte as discussões na formação de profissionais em Educação Física precisam ser aprimorados no sentido de estarem mais próximos das questões vivenciadas no dia-a-dia da intervenção profissional, rumo a uma verdadeira epistemologia da prática.

    As mudanças que se fazem necessárias nas práticas pedagógicas e na formação dos profissionais serão efetivas através de profissionais bem preparados, comprometidos com a construção de conhecimentos e com o seu desenvolvimento profissional como uma prática consciente, uma vez que, o se observa nas instituições de ensino é uma enorme distância entre o perfil do profissional que a atualidade exige e a realidade reprodutivista e passiva, ainda viva dentro dessas instituições.

    Para finalizar, reconhecemos que as reformas nos currículos dos cursos de formação têm enfrentado muitos problemas e nem sempre o que se deseja é o que realmente se consegue fazer, não por uma questão de opção, mas por condições a que estão expostos os docentes, algumas das quais foram parte de nossas reflexões e que estão ligadas as ambigüidades e contradições das políticas educacionais. Contudo, acreditamos que mesmo em contextos adversos como os que presenciamos atualmente, existem possibilidades de se re-pensar os processos formativos docentes e, em especial na área de Educação Física, ampliando as compreensões que se tem sobre o processo de ensino e aprendizagem pautado por uma perspectiva crítica.

Nota

1. De acordo com Kunz (1999) “a menoridade é a incapacidade de se servir de seu entendimento sem a direção/conduta de outrem. Sapere aude! Tenha coragem de fazer uso de seu próprio entendimento, este deve ser o lema do esclarecimento”.

Referências

  • BRACHT, V. et al. Pesquisa em ação: educação física na escola. Ijuí: Unijuí, 2003.

  • KUNZ, E. A relação teoria/prática no ensino/pesquisa de Educação Física. Revista Motrivivência: Educação Física, Teoria & Prática, v. 1, n. 8, p. 46- 54, 1995.

  • MARCELO GARCÍA, C. Formação de professores: para uma mudança educativa. Porto: Porto Editora, 1999.

  • NÓVOA, A. (Org.). Profissão Professor. 2.ed. Lisboa, Porto Editora, 1992.

  • PÉREZ GÓMEZ, A. I. A cultura escolar na sociedade neoliberal. Porto Alegre: Artmed, 2001.

  • PIMENTA, S. G.; GHEDIN, E. (Orgs.) Professor reflexivo no Brasil: gênese e crítica de um conceito. 4.ed. São Paulo: Cortez, 2006.

  • SAVIANI, D. Educação: do senso comum a consciência filosófica. São Paulo: Cortez, 1986.

  • SCHÖN, D. A. Educando o profissional reflexivo: um novo desing para o ensino e a aprendizagem. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000.

  • TARDIF, M. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.

  • VAZ, A. F. Regulamentação da "profissão": desejos e mal-estares. Revista Movimento, Porto Alegre, Ano VIII, n. 14, p. 20-27, jul., 2001.

  • ZAGURY, T. O Professor Refém: para pais e professores entenderem porque fracassa a educação no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 2006.

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revista digital · Año 13 · N° 120 | Buenos Aires, Mayo 2008  
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