O pensamento fenomenológico e a Educação/Educação Física: possibilidades de construção do conhecimento a partir do mundo vivido dos sujeitos | |||
Licenciada em
Ed. Física pela Universidade do Oeste de Santa Catarina - UNOESC/SMO
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Andréia Paula Basei
(Brasil) |
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Objetivamos através deste, refletir sobre a fenomenologia enquanto corrente de pensamento relacionando-a com a área educacional, tratando mais especificamente da Educação Física escolar e as contribuições que esta poderá trazer ao compreendermos o movimentar-se humano tendo como pressuposto o paradigma da reflexão fenomenológica do movimento. Este pressupõe a compreensão de que o movimento configura-se como um diálogo entre o homem e o mundo, carregado de sentidos e significados que dão base a construção do conhecimento pelos sujeitos relacionando-o com seu mundo vivido. Para isso, inicialmente faremos uma breve exposição sobre a fenomenologia, desde sua origem até os principais temas em que se fundamenta, num segundo momento, tecemos reflexões sobre a fenomenologia relacionando-a com a área da educação e por fim, trataremos especificamente da educação física escolar tendo o paradigma da reflexão fenomenológica do movimento como fundamento para nossas reflexões.
Unitermos: Educação Física
escolar. Fenomenologia. Movimento humano.
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http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 13 - N° 119 - Abril de 2008 |
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Introdução
Falar sobre fenomenologia, traz inevitavelmente a necessidade localizarmos esta corrente de pensamento filosófico em um contexto, em um momento histórico em que se encontram os motivos e/ou necessidades de sua gênese. O surgimento de outras correntes filosóficas como liberalismo, positivismo, depois o neopositivismo, pragmatismo, entre outras, que sem dúvida foram importantes pelas contribuições deixadas à sociedade e pela possibilidade de, através destes se alcançar uma evolução, colaboraram de certa maneira para que Husserl, desse início a elaboração de um pensamento com a preocupação de um questionamento da ciência e da filosofia. A ciência que, através seus movimentos parte para uma autonomia, com a elaboração de métodos práticos para servir ao sistema vigente, levando os sujeitos a alienação e ao tecnicismo, e que chega a uma objetividade que não mais é capaz de responder sobre o sentido, as vivências e a consciência do homem.
É nesse contexto, como afirma Martins et al (1984, p. 36) que, a humanidade no pleno desenvolvimento das ciências autônomas, fechadas em si mesmas, não tem recursos para compreender o sentido da própria vida e para guiar racionalmente a própria existência. O homem vive em um mundo que já se tornou uma realidade estranha e inimiga, o homem vê desabar a sua fé na racionalidade.
Diante dessa problemática, é que Husserl proclama o seu ideal. O fato da ciência absolutizar o método, que é tomado em si de tal forma que deixa esquecer o mundo realmente experimentado e experimentável, o mundo pré-científico, que Husserl denomina de Lebenswelt – mundo de vida (MARTINS et al, 1984). Assim, através da fenomenologia, a unilateralidade da ciência, que esquece o sujeito é colocada em questionamento, para se voltar ao mundo pré-científico, ao mundo vivido.
De acordo com Martins et al (1984, p. 43), a volta ao mundo vivido como fonte de onde provém todas as ciências recoloca o sujeito no seu lugar e não permite que ele se torne objetivado por si mesmo, ou pelos outros, não permite que o sujeito seja reduzido a um aspecto dele, tornando-se alheio a si mesmo. Todos esses aspectos serão melhor discutidos a seguir, o que consideramos importante ressaltar é que por mais abstrato que possa parecer, esse pensamento tem sua origem histórica, política e cultural localizada num momento de “ruptura”, poderíamos dizer com a aceitação dos métodos científicos como definição e definidores da ação dos sujeitos. A fenomenologia está aberta ao questionamento, ao inacabamento e, nas palavras de Heidegger “Compreender a fenomenologia é captar as suas possibilidades”.
Partindo dessas considerações, objetivamos refletir sobre a fenomenologia enquanto corrente de pensamento relacionando-a com a área educacional, tratando mais especificamente da Educação Física escolar e as contribuições que esta poderá trazer ao compreendermos o movimentar-se humano tendo como pressuposto o paradigma da reflexão fenomenológica do movimento. Este pressupõe a compreensão de que o movimento configura-se como um diálogo entre o homem e o mundo, carregado de sentidos e significados que dão base a construção do conhecimento pelos sujeitos relacionando-o com seu mundo vivido. Para isso, inicialmente faremos uma breve exposição sobre a fenomenologia, desde sua origem até os principais temas em que se fundamenta, num segundo momento, tecemos reflexões sobre a fenomenologia relacionando-a com a área da educação e por fim, trataremos especificamente da educação física escolar tendo o paradigma da reflexão fenomenológica do movimento como fundamento para nossas reflexões.
Fenomenologia: em busca de uma definição
A palavra “fenômeno” é antiga na história da filosofia ocidental. A palavra “fenomenologia” gera-se de duas grandes expressões gregas “phainomenon e “logos”, significando, conforme Zilles (1994, p. 124), etimologicamente o estudo ou a ciência do fenômeno. Fenômeno se referindo ao que existe exteriormente, os fenômenos físicos, com o tempo passou a entender-se por fenômeno a aparência enganosa da realidade, oposta a realidade. Nesse sentido, foi que Platão usa o termo para designar o mundo sensível em oposição ao mundo inteligível.
Acredita-se que o termo fenomenologia foi inicialmente utilizado pelo filósofo e matemático alemão do século XVIII, Johann Lambert, para caracterizar a “ciência das aparências”. Mas, foi com Hegel que o termo entrou definitivamente na tradição filosófica, empregado em sua “ciência da experiência da consciência”, a qual serve de inspiração para Husserl. Sendo assim, a fenomenologia é o movimento filosófico inaugurado por Husserl e desenvolvido, sobretudo, na França e na Alemanha, constituindo uma das principais correntes de pensamento do século XX (MARCONDES, 2004).
Apesar de ter sido encarada por alguns filósofos como uma moda ou um mito, devido a sua reconhecida carência de definição clara e decisiva por parte daqueles que a fundaram e a enriqueceram com suas obras. Conforme Triviños (1987, p. 43), a descrição do conceito de fenomenologia feita por Merleau-Ponty parece ser a mais completa entre as idéias conhecidas dessa corrente filosófica.
De acordo com Merleau-Ponty (apud MARTINS et al, 1984, p. 43), a fenomenologia é o estudo das essências, é uma filosofia que recoloca as essências na existência; uma filosofia para a qual não se pode compreender o homem e o mundo senão a partir de sua facticidade; é uma filosofia transcendental que coloca entre parênteses para se compreender as afirmações da atitude natural e, além disso, a tentativa de uma descrição direta de nossa experiência tal como é, sem levar em conta a sua gênese psicológica e as explicações causais do cientista. Sendo assim, ela é um constante recomeçar, um problema, ela está sempre em estado de aspiração – desejando alcançar um determinado objetivo.
Dessa forma, como aponta Merleau-Ponty (apud TRIVIÑOS, 1987, p. 43) a fenomenologia trata-se de descrever, e não de explicar nem de analisar. Tudo o que eu sei do mundo, mesmo devido a ciência, o sei a partir da minha visão pessoal ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência nada significariam. Todo o universo da ciência é construído sobre o mundo vivido e, se quisermos pensar na própria ciência com rigor, apreciar exatamente o seu sentido e seu alcance, convém despertarmos primeiramente esta experiência do mundo da qual ela é expressão segunda.
A partir desses aspectos podemos afirmar que constitui-se o lema básico da fenomenologia: “De volta as coisas mesmas”, procurando com isso, a superação da oposição entre realismo e idealismo, entre sujeito e objeto, a consciência e o mundo. Com essa visão, toda consciência é consciência de alguma coisa e, esta caracteriza-se exatamente pela intencionalidade de um sujeito que se dirige a um objeto determinado (MARCONDES, 2004, p. 258).
Sendo assim, como afirma Merleau-Ponty (apud MARTINS et al, 1984, p. 59), se a fenomenologia é a ambição de uma filosofia em ser ciência estrita, ela é também uma resenha do espaço, de tempo, do mundo vivido. Com isso, ele define o Lebenswelt – mundo de vida -, como ponto de partida de sua filosofia, reconhecendo neste a contribuição mais importante da filosofia husserliana.
Conforme Zilles (1994, p. 138) a fenomenologia não recebe da ciência nem a problemática, nem os métodos, não é um método de conhecimento ao lado de outros. As ciências nascem de uma atitude natural, com interesse não apenas por determinado conjunto de objetos, mas, também, implicam um modo de pensamento. A fenomenologia não falará dos mesmos objetos dos quais fala a ciência, nem utilizará seus resultados. A fenomenologia se origina da atitude fenomenológica. Enquanto as ciências se dirigem as coisas como objetos, a fenomenologia se dirige ao conhecimento.
Principais temas da fenomenologia
Retorno às coisas mesmas – Descrição
A fenomenologia husserliana, de acordo com Zilles (1994, p. 127) tenta filosofar a partir dos problemas da vivência da consciência prescindindo do mundo exterior ou do que os outros grandes pensadores já disseram, pois teorias podem ser não só uma ajuda, mas, também um obstáculo para chegar “às coisas mesmas” (fenômenos). Assim, a fenomenologia deve ser ciência dos fundamentos e das raízes, ou seja, uma ciência radical, uma ciência dos fundamentos originários. “Não é das filosofias que deve partir o impulso de investigação, mas, sim das coisas e dos problemas” (HUSSERL, apud ZILLES, 1994, p.127).
Nesse contexto, a tarefa da fenomenologia, como mencionado por Merleau-Ponty (apud MARTINS et al, 1984, p. 60) é de descrever as coisas e não sua explicação ou análise como uma realidade em si. Como afirma Moreira (1995, p. 44) o retorno as coisas mesmas é a volta ao mundo anterior a reflexão, volta ao irrefletido, ao mundo vivido, sobre o qual o universo e a ciência é construído.
O retorno às coisas mesmas não se identifica, pois, como voltar ao objeto da ciência, nem como voltar-se para dentro de si, para o interior da consciência, a um subjetivismo. Retornar as coisas mesmas é voltar-se para este mundo prévio a todo o conhecimento, do qual o conhecimento fala sempre e com relação ao qual toda determinação científica é abstrata, significativa e dependente, assim como a geografia com relação a paisagem onde aprendemos de início o que é uma floresta, um campo, um riacho (MARTINS et al, 1984, p. 61).
Assim, esse retorno ao mundo de vida leva, como conseqüência a rejeitar a relação cogniscitiva apresentada tanto pelo empirismo quanto pelo intelectualismo. Esta relação é introduzida, conforme Merleau-Ponty por Descartes e Kant, visto que, estes libertaram o sujeito ou a consciência, fazendo ver que eu não poderia aprender nenhuma coisa como existente se primeiramente não me sentisse existindo no ato de apreendê-la.
Diante disso, diz Merleau-Ponty (apud MARTINS et al, 1984) o real é um tecido sólido, ele não espera nossos juízos para se anexar os fenômenos mais surpreendentes nem para rejeitar nossas imaginações mais verossímeis.
O mundo deixa de ser um objeto constituído – como é para a ciência – para transformar-se na base, o meio natural e o campo de todos os meus pensamentos e de todas as minhas percepções explícitas. “A verdade não habita o homem interior, ou antes, não existe homem interior, o homem está no mundo, e é no mundo que ele se conhece” (MERLEAU-PONTY apud MARTINS et al, 1984, p. 62).
Dessa forma, a “volta às coisas mesmas” é a recuperação do sentido do mundo de vida – Lebenswelt -, e isso se torna possível através da redução fenomenológica.
Redução fenomenológica
A maioria dos interpretes da fenomenologia husserliana vêem na redução um dos pontos críticos, mais difíceis dessa filosofia. Como nos afirma Merleau-Ponty (apud MARTINS et al, 1984, p. 62) “Não há certamente nenhuma outra questão sobre a qual Husserl tenha se dedicado mais tempo para compreender ele próprio, assim como nenhuma outra questão sobre a qual tenha voltado mais vezes [...]”.
Considerando que, segundo Triviños (1987, p. 44), a possibilidade do conhecimento não se encontra no conhecimento transcendente das ciências, haja visto que, estas não são sistemas de verdades senão apenas “fenômenos de ciência”, para determinar a possibilidade do conhecimento é necessária a redução fenomenológica, ou a denominada epoché entre os gregos. A redução é o processo pelo qual tudo que é informado pelos sentidos é mudado em uma experiência de consciência, em um fenômeno que consiste em se estar consciente de algo. Coisas, imagens, atos, relações, pensamentos, sentimentos, etc. constituem nossas experiências da consciência.
O interesse da fenomenologia não é o mundo que existe, mas sim, o modo como o conhecimento do mundo se dá, tem lugar, se realiza para cada pessoa. A redução fenomenológica requer a suspensão das atitudes, crenças, teorias, e colocar em suspenso o conhecimento das coisas do mundo exterior a fim de concentrar-se a pessoa exclusivamente em foco, porque esta é a realidade para ela.
Conforme Zilles (1994, p. 137) para alcançar as essências é preciso purificar o fenômeno de tudo que não é essencial, ou seja, é preciso reduzir. A redução, significa, portanto, restringir o conhecimento ao fenômeno da experiência de consciência, desconsiderar o mundo real, colocá-lo “entre parênteses”, o que não quer dizer que o filosofo deva duvidar da existência do mundo, mas sim, que a questão para a fenomenologia é antes o modo como o conhecimento do mundo acontece, a visão do mundo que o indivíduo tem.
Em suma, de acordo com Martins et al (1984, p. 63) o objetivo primeiro da redução fenomenológica é, mostrar a necessidade de um elemento puro que possa servir de ponto de partida para um pensamento radical, um fundamento absoluto do conhecimento, graças a noção de intencionalidade. Como escreve Merleau-Ponty (apud MARTINS, 1984, p. 63) a redução é apresentada como o retorno a uma consciência transcendental diante da qual o mundo se estende numa transparência absoluta.
Assim, Merleau-Ponty busca atingir uma autêntica reflexão radical ou fenomenológica que sirva como meio de tomar consciência de nossa relação ao mundo, de fazer aparecer o mundo, sem nos retirar do mundo. Ele não entende que a finalidade da redução seja a de nos retirar do mundo para uma consciência pura. Ao contrário, a reflexão reconhece no irrefletido o seu fundamento. A colocação do mundo entre parênteses, operada pela redução, significa a possibilidade do desvelamento, do surgimento do mundo enquanto tal. Assim, a tomada de consciência do mundo como conhecimento das essências é concluída pela redução eidética (apud MOREIRA, 1995, p. 44).
A redução eidética (do grego eidos, que significa idéia ou essência) consiste na análise do objeto de percepção – noema – para encontrar o seu verdadeiro significado. Isto porque não podemos nos livrar da subjetividade e ver as “coisas” como são – o que é real, uma vez que em toda a experiência da consciência está envolvido o que é informado pelos sentidos e também o modo como a mente enfoca, trata, aquilo que é informado. Assim, os vários atos da consciência precisam ser conhecidos na sua essência, aquelas essências que a experiência da consciência de um indivíduo deverá Ter em comum com experiências semelhantes nos outros.
Por exemplo, uma bola. Podemos observar uma bola maior, outra menor, outra de cores iguais, ou desiguais. Esses detalhes da observação – elementos empíricos – precisam ser deixados de lado a fim de encontrar a essência da idéia de bola – do objeto ideal que é a bola - que é tratar-se de um objeto redondo, com um comprimento x de raio. Essa redução a essência, à bola como um objeto ideal, é a redução eidética.
Contudo, como nos aponta Husserl (apud ZILLES, 1994, p. 138) se quisermos atingir o terreno firme das evidências apodíticas devemos ir além da redução eidética. Teremos que por “entre parênteses” a própria existência do eu e dos seus atos. Só assim, alcançaremos o eu absoluto, eu transcendental e com esse o âmbito da experiência genuinamente filosófica. Esta é a chamada por ele de redução transcendental. Embora tenha trabalhado até o final de sua vida na definição do que chamou de redução transcendental, Husserl não chegou a uma conclusão clara. Basicamente seria a redução aplicada ao próprio sujeito que então não se vê como um ser real, mas como consciência pura transcendental, geradora de todo o significado, que permite questionamentos da existência da consciência eliminando o que a ela é dado e preservando sua pureza intencional.
Assim, conforme Merleau-Ponty (apud MARTINS et al, 1984, p. 64) a redução nos mostrou o mundo tal como ele é, antes de qualquer retorno sobre nós mesmos. “O mundo não é aquilo que eu penso, mas aquilo que vivo, sou aberto ao mundo, me comunico indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é inesgotável”.
Intencionalidade – Interpretação
De acordo com Triviños (1987, p.42) a idéia fundamental, básica, da fenomenologia é a noção de intencionalidade. Esta intencionalidade é da consciência que sempre está dirigida a um objeto. No entanto, como nos afirma Merleau-Ponty (apud MARTINS et al, 1984, p. 64), a intencionalidade só é compreensível pela redução, isto é, não é possível nenhum tipo de conhecimento se o entendimento não se sente atraído por algo, concretamente por um objeto.
Na filosofia de Husserl, segundo Triviños (1987, p.45) a intencionalidade é algo puramente descritivo, uma peculiaridade íntima de algumas vivências ema consciência de algo. Por isso, a importância do conceito de intencionalidade para a fenomenologia é tão fundamental, haja visto que, a vivência e a consciência são idéias básicas nessa filosofia.
A idéia de intencionalidade presente em Merleau-Ponty, como citado por Martins et al (1984) é uma representação dialética onde surge o sentido. Porque estamos no mundo estamos condenados ao sentido e não podemos fazer nada ou nada dizer que não tenha um nome na história. Conforme Merleau-Ponty ainda, devemos reconhecer a consciência como projeto do mundo que ela não abarca nem possui, mas em direção ao qual ela não cessa de se dirigir.
Conforme Husserl (apud ZILLES, 1994) a intencionalidade representa umas característica essencial da esfera das experiências vividas porquanto todas as experiências tem, de uma forma ou outra, intencionalidade. A intencionalidade é aquilo que caracteriza a consciência em sentido grave e concordante em indicar a corrente da experiência vivida como corrente de consciência e como unidade de consciência.
O pensamento fenomenológico e a educação
A educação, numa perspectiva fenomenológica, de acordo com Nielsen Neto (1988, p. 92), deve mostrar ao aluno a vida tal como ela é na sua precária transitoriedade e estimulá-lo a tomar consciência de si mesmo. Assim, toda a aprendizagem é realizada a partir da individualidade do aluno, pois o professor é apenas aquele que tem a possibilidade de despertar na criança a decisão sobre sua própria essência. O aluno é um ser para si, cuja dignidade é o centro de sua própria existência.
Nesse contexto, o professor não é alguém que instrui, que transmite ao aluno conceitos que devem ser assimilados. O professor deve sim, apresentar diferentes pontos de vista sobre algo que expõe e deixar os alunos optar por si mesmos, não deve impor um modo de ver as coisas, muito menos formar opinião. Agindo assim, o aluno seria convertido em objeto, e o professor em agente de má fé e se torna desonesto, uma vez que nenhuma matéria é mais importante que outra, é o aluno que vai adquirir o conhecimento pelo próprio esforço (NIELSEN NETO, 1988).
De acordo com Kneller, um dos representantes mais destacados da fenomenologia na área educacional, o objeto de estudo, o conhecimento codificado, não deve ser tratado com um fim em si mesmo, nem como um meio destinado a preparar o estudante para uma profissão, mas, deve ser usado antes, como um meio para o desenvolvimento pessoal e a auto-realização. Em vez de sujeitar o estudante à matéria, esta deve ficar sujeita ao estudante. Devemos deixar o estudante “apropriar-se” de qualquer conhecimento que for objeto de seus estudos. Nesse sentido, segundo o autor, as matérias escolares devem, portanto, converter-se em instrumentos para a realização da pessoa, não disciplinas impessoais a que todos devem ser submetidos indistintamente. Assim, a pessoa em desenvolvimento, o estudante, poderá elaborar mentalmente verdades para si mesmo, não verdades em abstrato, mas suas verdades.
Com isso, não se quer afirmar que as pessoas devem acreditar somente no que gostam, mas pelo contrário, a busca pelo conhecimento irá despertar no estudante o desejo para verificar se as coisas são verdadeiras. Assim, se o que for verdade para alguns, para outros não se comporta da mesma maneira será possível uma discussão sobre os fatos e sobre essas verdades, podendo gerar outras verdades. O estudante deve achar as verdades para si mesmo, verificar as leis universais e estar apto a incorporar a sua visão pessoal do mundo.
Enquanto que, como a filosofia positivista, que predominou até a década de 70, presenciamos a reificação do conhecimento, transformando-o num mundo objetivo de “coisas”, com a fenomenologia, realizou-se a desreificação do conhecimento (TRIVIÑOS, 1987, p. 47).
A reificação do conhecimento teve conseqüências extraordinárias para a elaboração do currículo escolar, transformando o conhecimento numa soma de informações que era transmitida e devia ser assimilada pelo aluno. Assim, o currículo constituiu-se, e de certa forma ainda constitui-se, como algo elaborado, terminado e alheio fundamentalmente aos sujeitos.
Já com a fenomenologia, de acordo com Triviños (1987, p. 47), fala-se de currículo construído, de currículo vivido pelo estudante, baseado nas experiências do mundo de vida dos alunos. Segundo o autor ainda, a fenomenologia representa uma tendência filosófica que, entre outros méritos, tem questionado os conhecimentos do positivismo, elevando a importância do sujeito na construção do conhecimento.
O enfoque fenomenológico, privilegiando a escola tem demonstrado que os estudos da sala de aula, da interpretação dos fenômenos como ocorrem, oferece a possibilidade de tratar-se de alguns elementos culturais, como os valores, que caracterizam o mundo vivido dos sujeitos. Nesse sentido, a construção do conhecimento e o conhecer depende do mundo cultural dos sujeitos e de sua interpretação, enquanto forma de interpretação na busca dos significados da intencionalidade dos sujeitos.
A fenomenologia e a Educação Física escolar: o sentido/significado do movimentar-se humano
Para refletirmos sobre a questão do movimento humano, tema de que trata a Educação Física escolar, e sobre suas formas de abordagem, trazemos uma reflexão do prof. Hildebrandt-Stramann (2001), que aborda as concepções de movimento que orientam as práticas educativas a partir de dois paradigmas, que em sua contradição nos deixam bastante clara a necessidade e a possibilidade de tratar do tema partindo do segundo paradigma exposto. A primeira abordagem trata do Paradigma das Ciências Naturais e a segunda abordagem que faremos do Paradigma da Reflexão Fenomenológica do Movimento.
No primeiro paradigma, o movimento humano é visto e tratado tendo como base as ciências naturais (a Física, a Biologia, etc). Nesta visão – “A Visão Científica Natural do Movimento: uma visão antipedagógica” – Hildebrandt-Stramann (Ibid.) constata que “A reflexão científica natural do movimento define movimento como um deslocamento de um corpo físico no espaço e no tempo. Movimento é visto no aspecto externo de uma execução visível e passível de descrição analítica”.
Essa forma de trabalhar com o movimento humano pressupõe um movimento ‘correto’ que serve de parâmetro, sendo a otimização o seu principal interesse. Esses modelos geralmente são transplantados dos esportes de alto rendimento para as práticas educativas da Educação Física escolar. Nas palavras de Trebels (1992), o corpo do movimento torna-se um boneco com membros (fantoche) que funciona conforme regularidades mecânicas e cujos modelos podem ser otimizados com a ajuda de análises (bio)mecânicas.
O que, para nós, é passível de crítica nessa concepção é o entendimento de que o movimento perde muito da sua condição pedagógica, visto que “A individualidade de cada um como pessoa não existe. [...] Dentro desse paradigma, o sentido de movimento, conforme o significado configurado pelos homens, não é discutido” (HILDEBRANDT-STRAMANN, 2001, p.101).
Com isso, a ação pedagógica do professor de Educação Física fica presa ao pré-determinado, ao modelo externo, ao analisável e apreensível, empirico-analiticamente. Assim, o monólogo é estabelecido: o professor dá as orientações, as informações, programa a aprendizagem e compara os resultados da execução do movimento a uma situação “ideal”. Isso nos leva a perceber que a aprendizagem ocorre de uma “forma bancária” (FREIRE, 1983) em termos de movimento humano, como escreve Hildebrandt-Stramann (2001, p.103): “O aluno está alheio ao seu movimento e, consequentemente, ao seu corpo. Ele é um objeto no qual deve ser implantada uma forma estranha de movimento”.
A conseqüência dessa visão com exclusividade biológica na consideração do corpo, como afirma Daólio (2004), parece ter sido a construção de uma concepção de prática pedagógica como um processo somente de fora para dentro do sujeito, atingindo apenas sua dimensão física, independente de uma totalidade, do contexto sócio-cultural onde esse sujeito está inserido. Conforme o autor ainda, segundo essa lógica se todos os seres humanos possuem o mesmo corpo, composto pelos mesmos elementos, ossos, músculos, articulações, tendões, então a mesma atividade proposta em aula servirá para todos os alunos, causando neles os mesmos efeitos, tomados como benefícios.
Sendo assim, o movimento não é uma “coisa” do aluno, mas sim, uma “coisa” do professor, pois este, a partir do seu conhecimento biomecânico dá aos alunos a forma do movimento, cujo sentido não passa de realizá-lo no menor tempo e com a máxima perfeição. Isso, nos remete a uma reflexão, a tanto tempo se discute sobre a legitimação da educação física na escola, mas com essa orientação para as aulas, que referência tem essas forma de ensinar para o mundo vivido dos sujeitos, se nem ao menos percebem-se como sujeitos?
Uma segunda abordagem, oposta à anterior, com tradição epistemológica na Fenomenologia, vê e trata o movimento humano como um diálogo entre homem e mundo, e este diálogo só pode ser entendido se forem levados em consideração três aspectos, conforme Trebels (1992):
Movimentar-se sempre é ação de um ator de movimento que produz o movimento concreto. Assim, os sujeitos produzem o movimento e tem também a consciência do que estão fazendo;
Movimentar-se acontece sempre numa situação concreta que está estruturada em si mesma, a o contexto. Sem esta referência ao contexto situacional, o movimentar-se ficaria solto no ar, ficaria abstrato, e talvez a dificuldade de algumas formas escolares de aprender a movimentar-se está na falta de referência de situação. Movimentar-se não é só a ação motora de um corpo de movimento, como tratado no primeiro paradigma, é ao mesmo tempo uma atividade para dentro de uma certa situação que é estruturada e reconhecida pelo movimento.
Movimentar-se é sempre uma atitude ligada ao sentido, movimentando-se as pessoas sempre seguem certos sentidos de movimento que se segue – fenomenologicamente poder-se-ia dizer a orientação intencional – sempre está presente em todos as ações de movimento.
Nessa condição, o movimento humano é visto de forma relacional, constituindo-se nas relações entre o sujeito e o mundo, onde fatores internos e externos interagem determinando as possibilidades e os limites da ação de movimento, constituindo uma totalidade que só pode resultar deste processo dialógico estabelecido. Assim, o “se-movimentar adquire uma forma de compreensão do mundo pela ação”. Devendo ser visto como um “diálogo entre homem e o mundo”.
Dessa forma, devemos ver o homem que “se-movimenta” como um ser no mundo, rico em intencionalidade, intencionalidade esta que dá sentido e significado às ações humanas, dando-se, com isso, sua relação com o mundo.Para tanto, precisamos buscar na concepção do “se-movimentar”, trazida por Hildebrandt-Stramann (2001), Trebels (1992), Kunz (1991), a base teórica para uma proposição destinada à ação em práticas educativas da Educação Física escolar, pretendendo ressignificar, a partir dessa forma de tratar o movimento humano, o ensinar e o aprender em Educação Física, (re)significando as experiências dos sujeitos, pois conforme Kunz (2003, p.97), “oportunizar a criança e ao adolescente a chance de vivenciar experiências bem sucedidas, que escapam do sentido cotidiano das atividades obrigatórias, é contribuir com a possibilidade de indivíduos críticos e emancipados”.
Assim, observamos que, para implementarmos qualquer mudança na prática educativa, além de conhecermos e compreendermos as teorias acima colocadas, esse desafio se constitui, também, na condição de ter uma orientação objetiva para o desenvolvimento de um trabalho com o movimento humano, isto é, uma intencionalidade clara do trabalho pedagógico que será desenvolvido.
Referências
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 2. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1982.
COTRIN, Gilberto. Fundamentos da filosofia. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
FREIRE, Paulo. Educação como prática de liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
GONÇALVES, Maria Augusta Salim. Sentir, Pensar e Agir – corporeidade e educação. 2. ed. Campinas/SP: Papirus, 1997.
HILDEBRANDT-STRAMANN, Reiner. Textos pedagógicos sobre o ensino da educação física. 2. ed. Ijuí: Ed. Unijuí, 2003.
KUNZ, Elenor. Educação física: ensino e mudança. Ijuí: Unijuí, 1991.
MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 8. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahaar Ed., 2004.
MARTINS, Joel et al. Temas fundamentais de fenomenologia. São Paulo: Moraes, 1984.
MORANDI, Franc. Filosofia da Educação. Bauru, SP: EDUSC, 2002.
MOREIRA, Wagner Wey. Educação Física Escolar: uma abordagem fenomenológica. 3.ed. Campinas, SP: Ed. da UNICAMP, 1995.
TREBELS, Andréas. Plaidoyer para um diálogo entre teorias do movimento humano e teorias do movimento no esporte. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, vol. 13, nº 13, Jun. 1992.
TRIVIÑOS, Augusto Nibaldo Silva. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1987.
ZILLES, Urbano. Teoria do conhecimento. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1994.
revista
digital · Año 13
· N° 119 | Buenos Aires,
Abril 2008 |