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Cultura do corpo na pós-modernidade: 

reflexões para a Educação Física

 

Mestre em Educação Física pela UNICAMP

Doutoranda em Educação pela USP

(Brasil)

Nara Rejane Cruz de Oliveira

nararejane@usp.br

 

 

 

 
Resumo

          Este ensaio tem por objetivo refletir sucintamente sobre a lógica que rege os interesses e preocupações com o corpo na atualidade. Partimos do princípio de que a idéia de corpo perfeito, resultado das marcas da cultura pós-moderna, potencializa o olhar sobre o corpo e a ditadura da boa forma, em nome da qualidade de vida. Nesse sentido, necessário se faz que o professor de Educação Física reflita criticamente sobre tal questão, opondo-se aos modismos e à reprodução do ideal de corpo perfeito.

          Unitermos: Corpo. Pós-modernidade. Educação Física.
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 13 - N° 119 - Abril de 2008

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“O mal do século é o mal do corpo. Nos sentimos, com freqüência,

melindrados por qualquer observação sobre nossa aparência física,

pois estamos expostos, sem defesas, ao escrutínio moral do outro”.

Jurandir Freire Costa (2006)

Introdução

    Na sociedade moderna, as preocupações com o corpo se tornaram contundentes ao novo estilo de vida propagado. Basta observarmos, dentre outros fatores, a importância dada à eugenia e ao higienismo, amplamente divulgados pela nova ciência. Da medicina moderna aos métodos ginásticos europeus do século XIX (que tanta influência tiveram na constituição da Educação Física brasileira), foi instaurada na sociedade uma nova visão de corpo, destacando o cuidado de si. Segundo Silva (1996), essa visão se fundamenta numa nova compreensão que o indivíduo passa a ter de si mesmo e de sua finalidade de existência, bem como a imanência secular.

    A pós-modernidade traz consigo uma ampliação dessa perspectiva, porém carregada de contradições. Talvez como nunca o corpo esteve tanto em destaque como agora. Porém, para Silva (1996), ao mesmo tempo em que a liberdade e os prazeres do corpo tornam-se importantes, as instituições intencionam controlar este corpo, moldando-o a uma postura de severidade e correção (como nos métodos ginásticos). Se na Grécia antiga a filosofia conhecida como estética da existência tinha como ideal o equilíbrio corporal relacionado à harmonia da alma, ou seja, o desenvolvimento pleno e harmônico do ser humano; o objetivo agora não mais é atingir a alma, mas levar as pessoas a adotarem um comportamento moralmente aceito pela sociedade. E que moral seria essa?

    A moral da qualidade de vida. Segundo Costa (2006), a sociedade científica encampou o direito de dar sentido à vida, ocorrendo assim uma guinada no terreno dos valores. Para o autor, o que antes era medido na esfera dos ideais morais, passou a ser validado pela experimentação. No lugar do virtuosismo da vida, surge o padrão da qualidade de vida, que tem como referentes privilegiados o corpo e a espécie. Visto assim, parece que no século XXI vivenciamos uma reedição das velhas ideologias européias do século XIX: reduzir tudo à linguagem científica. Desta forma, o cuidado de si migrou a atenção da esfera dos valores morais para a atenção com a longevidade, a juventude, o fitness. Ser jovem, longevo e atento à forma física torna-se uma regra científica que quase sempre desqualifica outras preferências e aspirações à felicidade.

    Os medos de hoje já não são mais os mesmos, são mais agressivos e profundos. Se outrora a velhice figurava como condição normal do ser humano, na pós-modernidade essa condição parece um defeito. Se por um lado a medicina moderna, a cura de certas doenças e os cuidados com o corpo geraram a possibilidade de uma vida mais longa, produtiva, por outro, geraram também uma não aceitação das limitações do próprio corpo e de suas características naturais. O medo de não ser aceito parece gerar uma quase necessidade de entregar-se a padrões corporais pré-estabelecidos, especialmente as pessoas mais jovens.

    O mais contraditório é que em nome da qualidade de vida e da saúde, tão divulgadas pela medicina atual, as pessoas parecem vivenciar uma nova patologia na modernidade tardia, se submetendo a rigorosos tratamentos e intervenções sobre o corpo, muitas vezes agredindo o próprio organismo. Não é à toa que anorexia, bulimia, dentre outras, figuram como doenças típicas da atualidade, assolando principalmente pessoas mais jovens. “Parecer” bonito, saudável, adepto a uma (pseudo) qualidade de vida é o que importa. A essência do corpo, ou o próprio ser (GIL, 1997), parece não importar tanto.

    A lógica do corpo perfeito é o resultado das marcas da cultura pós-moderna, que potencializam o olhar sobre o corpo e a ditadura da boa forma. O corpo parece ser o foco determinante que instaura a identidade cultural pós-moderna, tanto a partir de classificações de gênero ou faixa etária, quanto a partir de condições intermediadas pela mídia (GARCIA, 2005).

    Segundo Hall (2005) a condição pós-moderna faz declinar as velhas identidades e fragmenta o indivíduo moderno. As transformações da sociedade estão também mudando as identidades pessoais, abalando a idéia que temos de nós mesmos, fenômeno este que pode ser chamado de descentração dos indivíduos ou crise de identidade. Essa crise de identidade pode ser vista como parte de um amplo processo de mudança, que está deslocando estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência. Assim, esse caráter de mudanças rápidas e constantes de paradigmas, a globalização, dentre outros fatores, também resulta numa profunda mudança sobre os modos de se pensar o corpo.

O corpo na sociedade pós-moderna ou, da ascensão do narcisismo e hedonismo

    Considerando que o corpo é a nossa própria condição de existência humana, é essencial que nos preocupemos e estejamos constantemente atentos às suas modificações. Segundo Sant’anna (2001) estamos ao longo dos anos evoluindo e o corpo está sujeito a transformações. Por isso é correto que os seres humanos não estejam completamente habituados com seus corpos ou satisfeitos com seu desenvolvimento, pois em certos momentos o corpo pode parecer desconhecido e abstrato. A história de várias culturas é caracterizada pela vontade de manter o próprio corpo sob controle, se possível desvendando-o exaustivamente.

    Entretanto, a nosso ver, essa insatisfação e esse desejo de controle têm ultrapassado os limites na atualidade, no contexto do que realmente é essencial na vida humana. Percebemos que a partir do desejo pelo próprio corpo, aliado a um modelo de corpo incessantemente perseguido, uma geração de “narcisos” pode ter sido gerada (SILVA, 1996). Na pós-modernidade, segundo Silva (2001b), o corpo parece gestar um novo arquétipo de felicidade, fundamentado no culto ao corpo e no narcisismo como neurose coletiva.

    Costa (2006) afirma que uma das crenças fundamentais do indivíduo contemporâneo é a busca da felicidade, que se tornou a chave mestra dos ideais formadores de sua identidade. Identidade esta apoiada em dois grandes suportes: o narcisismo e o hedonismo. A busca da identidade no narcisismo, vertente do individualismo contemporâneo, significa que:

    “[...] O sujeito é o ponto de partida e chegada do cuidado de si. Ou seja, o ‘que se é’ e o ‘que se pretende ser’ deve caber no espaço da preocupação consigo. Família, pátria, Deus, sociedade, futuras gerações só interessam ao narcisista como meios de autorealização pessoal, em geral entendida como autorealização afetiva, econômica, de sucesso pessoal ou bem-estar físico.

    O hedonismo, por sua vez, decorre dessa dinâmica identitária. O narcisista cuida apenas de si porque aprendeu a acreditar que a felicidade é sinônimo de obtenção de prazer. Quanto maior, mais imediato, mais constante for o prazer, mais feliz é o sujeito.” Costa (2006: 2)

    No que diz respeito ao corpo, parece haver na contemporaneidade um narcisismo dirigido, sobretudo pela propaganda. Segundo Baudrillard (1996), existe um narcisismo como controle social, por meio de uma exploração dirigida, instigando a crença de que cada um é responsável pelo próprio corpo, devendo valorizá-lo, investir nele, de acordo com signos refletidos e mediados pelos modelos de massa.

    Nesse sentido, podemos afirmar que os modelos de corpo hoje veiculados, os quais a grande maioria tem o desejo de desfrutar, de “ter” para si, não condizem com a realidade, mas sim com um ideal. Ideal este só alcançado mediante inúmeros sacrifícios (malhação, tratamentos estéticos, dietas, cirurgias plásticas, etc.), realizado geralmente sem quaisquer questionamentos, para atingir a felicidade de ser desejado, admirado. Os modelos de corpos a serem seguidos, parecem ficar expostos como mercadorias numa grande vitrine social, trazendo, para quem adquiri-los, a promessa da felicidade, mesmo que efêmera. Para Brunner (1998), trata-se de uma época de produção contínua de novidades, uma nova fase de fetichismo de mercadorias, de fascinação com as imagens e um contínuo processo de fragmentação social, política e cultural e alienação.

    Afinal, segundo Garcia (2005), na lógica do corpo “perfeito”, admite-se que os corpos bem construídos devem ser obtidos com muito esforço, objetividade, força de vontade. Para o autor, o culto ao corpo na atualidade inscreve duas formas de tratamento: a medicina e a ginástica, que tratam o corpo biológico para permitir a implementação visual necessária para agradar o seu dono.

    A partir destas considerações, nos parece lógica a consideração de Silva (2001a: 18), para a qual:

    “A expectativa do corpo moderna se fundamenta no reforço de um sentimento contraditório que se vê explodir na atualidade: dominar o corpo e, ao mesmo tempo, liberta-lo; subjugá-lo e depender dele para sua felicidade; acreditar na superioridade e independência da mente, mas submeter-se aos rituais necessários ao corpo ‘em forma’.”

Considerações finais ou reflexões para a Educação Física

    Pensar sobre o corpo e as práticas corporais na atualidade é uma tarefa ampla, delicada e que não diz respeito a uma ou outra área de conhecimento apenas. Afinal, percebemos que a problemática em torno da cultura do corpo na atualidade carece de reflexões profundas e constantes.

    Entretanto, compreendemos que no contexto da Educação Física esta tarefa deve permear o cotidiano do professor (seja de escolas, academias, clubes, dentre outros). Isto porque, apesar de não determos a exclusividade sobre o trabalho com o corpo (que também está no contexto das artes, da medicina, da antropologia, dentre outras áreas), entendemos que de certa forma é uma área que lida com o corpo por excelência e com as pedagogias corporais (SILVA, 2005).

    Com a ampliação dos interesses pelo corpo e pelas práticas corporais na atualidade, ampliam-se também as pedagogias do corpo. Se por um lado é positiva uma oferta maior de atividades corporais à população, por outro lado corremos mais riscos de nos submetermos aos modismos e reproduções, que na atual conjuntura fazem parte de tudo o que diz respeito ao corpo, como percebemos no decorrer das considerações neste trabalho.

    Neste sentido, as considerações elaboradas neste trabalho têm como finalidade instigar o professor de Educação Física a refletir criticamente sobre o seu papel na sociedade, opondo-se aos modismos e agindo com discernimento quanto às práticas corporais. Se grande parte da população sucumbe aos apelos midiáticos e pós-modernos relativos ao corpo “ideal”, necessário se faz, cada vez mais, a presença de um profissional que possa fazer um contraponto a esta cultura e não apenas continuar reproduzindo o ideal de corpo perfeito. Não que sejamos os únicos responsáveis, ao contrário, mas que possamos estar atentos e propagar o prazer pelo corpo e práticas corporais, destituído de modismos efêmeros. Quem sabe não possamos alcançar um outro sentido para o termo “qualidade de vida”.

Referências

  • BAUDRILLARD, Jean. A troca simbólica e a morte. São Paulo: Loyola, 1996.

  • BRUNNER, José Joaquin. Globalización cultural y posmodernidad. Santiago: Fondo de Cultura Econômica, 1998.

  • COSTA, Jurandir F. A subjetividade exterior. Disponível em: http://www.jfreirecosta.com/subjetividade.html. Acesso em: 01/08/2006.

  • GARCIA, Wilton. Corpo, mídia e representação: estudos contemporâneos. SãoPaulo: Pioneira Thomson Learning, 2005.

  • GIL, José. Metamorfoses do corpo. Lisboa: Relógio D’Água, 1997.

  • HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 10.ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

  • SANT’ANNA, Denise B. É possível realizar uma história do corpo? In: SOARES, Carmen Lúcia (Org). Corpo e história. Campinas, SP: Autores Associados, 2001, p. 3-24.

  • SILVA, Ana Márcia. O corpo do mundo: algumas reflexões acerca da expectativa de corpo atual. In: GRANDO, José Carlos (Org). A (des)construção do corpo. Blumenau: Edifurb, 2001(a), p. 11-34.

  • ________________. Corpo, ciência e mercado: reflexões acerca da gestação de um novo arquétipo de felicidade. Campinas, SP: Autores Associados: Florianópolis: Editora da UFSC, 2001(b).

  • ________________. Das práticas corporais ou porque Narciso se exercita. In: Revista Brasileira de Ciências do Esporte. Vol.17, n.3, maio, 1996, p. 244-251.

  • ________________. Corpo, conhecimento e educação física escolar. In: SOUZA JÚNIOR, Marcílio. Educação física escolar: teoria e política curricular, saberes escolares e proposta pedagógica. Recife: Edupe, 2005, p. 85-95.

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