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Corpo, vida, diagnóstico do presente: aproximações
exploratórias entre Theodor Adorno e Michel Foucault

   
*Licenciada e Mestranda em EF pela UFSC. Membro do Núcleo de Estudos
e Pesquisas Educação e Sociedade Contemporânea (CED/UFSC/CNPq).
**Doutor pela Universidade de Hannover, professor dos Programas de Pós-
graduação em Educação, Interdisciplinar em Ciências Humanas e EF da UFSC.
(Brasil)
 
 
Beatriz Staimbach Albino*
bia_ufsc@yahoo.com.br  
Alexandre Fernandez Vaz**
alexfvaz@pq.cnpq.br
 

 

 

 

 
Resumo
     O presente texto teve como objetivo apontar para algumas aproximações possíveis entre os escritos de Theodor Adorno, Max Horkheimer e de Michel Foucault. Para isso é feita uma síntese das críticas ao esclarecimento empreendidas por eles e das assertivas realizadas por outros autores no sentido de estabelecer um paralelo entre as obras destes. Damos destaque: 1. a centralidade do corpo enquanto objeto de dominação; 2. a importância do investimento em um diagnóstico do presente; 3. e a possibilidade de aproximação entre os conceitos de indústria cultural e biopolítica como um campo profícuo de investigação.
    Unitermos: Crítica ao esclarecimento. Theodor Adorno. Michel Foucault. Corpo e dominação. Diagnóstico do presente.

O presente texto é resultado parcial do projeto Teoria Crítica, Racionalidades e Educação II, financiado pelo CNPq
(Auxílio pesquisa, bolsa de produtividade em pesquisa, bolsa de apoio técnico, bolsas de iniciação científica).

 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 13 - N° 119 - Abril de 2008

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Introdução

    De alguma forma o debate epistemológico contemporânea, inclusive aquele que acontece na Educação Física, incorpora a questão da legitimidade da razão ou o seu abandono. Dois dos interlocutores privilegiados dessa contenda são marcantes nas críticas que endereçaram à razão e às formas de racionalidade. Trata-se de Michel Foucault, primeiro dos autores daquela que ficou conhecida como French Theory, e Theodor Adorno, um dos principais pensadores da Teoria Crítica da Sociedade da Escola de Frankfurt.

    Recentemente1 surgiram alguns investimentos no sentido de aproximar e apresentar divergências entre essas duas correntes de pensamento (CAMARGO, 2006; HONNETH, 1993; MAIA, 2002; DEWS, 1996; HABERMAS, 2000; entre outros), movimento que segue o próprio Foucault (1982; 2005)2. Esse esforço teórico mostra, não apenas para os interesses desse trabalho, mas para a própria dinâmica de ambos pensamentos, a questão do corpo e seus destinos, em especial, no que se refere à condição de ser ele um contraponto à razão, já que justamente representa a condição de "animalidade" do homem ao manifestar nele mesmo o que é indeterminado, impreciso, descontrolado, ou seja, as pulsões na forma dos desejos e das paixões.

    Procurando compreender e compor esse contexto, o presente trabalho propõe-se a apresentar muito preliminarmente elementos da crítica à racionalidade empreendida por cada um desses autores e retomar algumas aproximações, já apontadas por outros, com ênfase nas assertivas de Foucault sobre o tema. A realização de paralelos entre a obra desses dois autores pode ser interessante na medida em que foram eles teóricos que, apesar de comporem escolas de pensamento distintas, se ocuparam de fazer, cada qual a sua maneira, um diagnóstico do presente. Isso oferece a possibilidade não apenas de questionar e avançar no empreendimento teórico de cada um a luz dos escritos do outro, como apreender questões que possam ser complementares em suas obras e que possibilitem diagnosticar o tempo hodierno de um modo mais preciso. Não é pouca a importância para a filosofia desse diagnóstico, uma vez que realizá-lo significa em alguma medida pensar sobre o seu tempo e sobre si mesmo, algo essencial em tempos que ela mostrou-se como insuficiente para explicar fenômenos como os regimes políticos totalitários e toda a barbárie neles presente.

    Para tanto é apresentada no primeiro capítulo uma síntese da crítica ao esclarecimento realizada por Horkheimer e Adorno (1985) em sua obra prima, a Dialética do Esclarecimento, seguida da apresentação de parte da crítica elaborada por Foucault às formas de racionalidade, juntamente com apontamentos sobre aproximações, feitas por ele e outros autores, entre sua obra e a dos frankfurtianos. O trabalho se encerra com apontamentos a respeito da importância do empreendimento teórico-metodológico de um diagnóstico do presente e sobre outras possibilidades de aproximação entre esses autores.


Adorno e a crítica à razão instrumental

    É na Dialética do Esclarecimento que Horkheimer e Adorno (1985) elaboraram uma das críticas mais contundentes ao Aufklärung. Nesse livro, considerado sua obra de maior importância, os autores uniram esforços intelectuais em apontar para o estado de dominação total (administrativo, político e social), em que se organiza a sociedade capitalista. Este estado de dominação seria decorrente da centralidade sem precedentes adquirida pela razão e da legitimidade em se exercer todas as ações ditas racionais, independente de seu sentido e fim último. Para dar conta dessa problemática, que se expressaria de modo mais contundente e acabado nos regimes totalitários - os quais, entre outras coisas, são marcados pelo controle racional do morticínio e pelo gerenciamento extremo da vida pública e privada -, tais autores trataram de realizar uma genealogia da razão como dominação.

    Foi desenvolvido pela Escola de Frankfurt então um modelo teórico que pudesse diagnosticar a atualidade: seus "princípios organizacionais da formação social, as orientações de valor da personalidade e as estruturas de sentido da cultura." (BENHABIB, 1996, p. 78): um olhar sobre o presente que fora iluminado por uma mirada sobre o passado, dando abertura assim para que se apreendessem as continuidades e descontinuidades desse processo e seus significados.

    Nesse sentido, de diagnóstico e compreensão do quadro de barbárie hodierno à luz do passado, Horkheimer e Adorno (1985) investem na busca daquilo que seriam as origens e o desenvolvimento da razão ocidental. Para tanto, analisam e interpretam a Odisséia, narrativa de Homero sobre os desafios enfrentados por Ulisses em seu retorno de Tróia à sua cidade natal, Ítaca. Para vencer esse percurso, Ulisses precisa enfrentar as dificuldades do meio externo (natureza), os perigos mitológicos (sereias, ciclopes, semideusas) e as suas próprias pulsões (sua natureza interna), bem como as dos que faziam parte de sua tripulação.

    A história da superação desses obstáculos, em que é imprescindível que Ulisses domine a natureza (interna e externa), é entendida por esses frankfurtianos como a da própria constituição do sujeito racional. Isso porque a libertação da condição de natureza do humano, ou seja, um estado de completa submissão às pulsões, só é possível por meio do domínio, via renúncia, da satisfação pulsional imediata, adiada pela possibilidade de uma gratificação posterior. Foi sob essa condição que Ulisses pôde vencer o medo causado pelos desafios encontrados no caminho e assim ultrapassá-los. Do mesmo modo o homem, para solapar o medo - e assim realizar uma espécie de emancipação a esse sentimento -, domina a si mesmo (sacrifício de si) e o meio em que se encontra, transfigurando-se em humano já que, ao contrário dos animais, já não estaria mais de modo completo vulnerável ás pulsões corporais, sendo capaz de engendrar mecanismos (astúcia, racionalidade, esclarecimento) para escapar aquilo que desconhece. Um exemplo desses mecanismos para explicar o desconhecido, e assim livrar-se do que se teme, é a constituição por parte do homem primitivo de rituais mágicos, vários deles representados pelo corpo como suporte do movimento. Por via do comportamento mimético (danças, usos de máscaras, sons, e outros recursos) busca-se uma identificação com aquilo que se supõe ser uma ameaça, tentando aplacá-la. Trata-se, como proto-história da razão, de colocar o mito como primeiro discurso racional e de fazer mover o corpo já sob o comando de uma outra instância, não-corporal.

    Essa interrelação entre mito e esclarecimento é para Hokheimer e Adorno atual. Ainda que a referência aos mitos não seja mais corrente para explicar aquilo que o homem desconhece, a vontade de saber (esclarecimento) e o poderio que adquire, a partir da modernidade, aquilo que é racional e científico, possui uma relação intrínseca com a mitologia. Ao ser tomado como inquestionável, o conhecimento racional torna-se crença, já que ao substituir o mito pelo procedimento racional, e a imaginação pelo saber, manteve-se mitológico, porque reproduz a lógica cega daquele.

    Além disso, da mesma maneira como o mito, o desejo de saber/controle, que se concretiza sobremaneira por via da ciência, também está calcado no medo daquilo que é desconhecido: "o problemático desse desenvolvimento do pensamento (...) encontra-se na 'solução' levantada para escapar ao medo. O saber que deve liberar do medo é definido como um poder no sentido forte de domínio: é só quando os homens se tornam 'senhores' que eles conseguem ficar sem medo." (MATOS, 1999: 111).

    A partir dessa relação imemorial entre mito e esclarecimento é que são questionadas por Hokheimer e Adorno as premissas de liberdade do Aufklärung. A "promessa iluminista de livrar o homem da tutela a que ele mesmo se expõe não pode ser cumprida através da razão, que é um mero instrumento de autopreservação" (BENHABIB, 1996: 80) e que tem como fim o domínio (interno e externo).

    Essa necessidade de controle fundamentada pelo medo e pela necessidade do ego de autopreservação resulta em uma configuração social (e da própria personalidade e da cultura) em que a técnica - o meio para melhor alcançar determinado fim - ocupa papel central. Isso vai acontecer devido a importância adquirida pela ideologia do progresso, dele como expressão de poder e de auto-suficiência do homem - ainda a questão do afastamento do medo - perante a natureza. A razão servirá ao progresso, será seu instrumento. Por isso o uso por esses autores da expressão razão instrumental e da atenção a um fetiche (como que um encantamento, no sentido de feitiço) da técnica, em que esta se basta por si mesma, torna-se independente de seu fim, muitas vezes não necessitando ter fim algum. De acordo com Adorno (2003),

Os homens inclinam-se a considerar a técnica como algo em si mesma, um fim em si mesmo, uma força própria, esquecendo que ela é a extensão do braço dos homens. Os meios - e a técnica é um conceito de meios dirigidos à autoconservação da espécie humana - são fetichizados porque os fins - uma vida humana digna - encontram-se encobertos e desconectados da consciência das pessoas. (ADORNO, 2003: 132-3).

    Nesse quadro de centralidade da técnica visando um progresso sem limites (razão instrumental), o corpo, que é um instrumento técnico por excelência - por ser seu controle imprescindível para a sobrevivência do homem -, é tomado como objeto manipulável enquanto investido na direção de expressar a capacidade humana de dominar a natureza e de explorá-la, fazendo-a render o máximo possível. Um intento que se concretiza, pois, como explicam os autores, no desejo de progresso que vai autorizar a humilhação subterrânea do corpo ao tomá-lo como um objeto. Um processo que resulta em algo que lhe é aparentemente oposto: a exaltação desse mesmo corpo na medida em que se vislumbra a possibilidade dele se tornar a expressão encarnada do progresso. Um enaltecimento entretanto que nada mais fará do que perpetuar a relação de reificação outrora estabelecida, pois, como se vê, potencializar o corpo só é possível enquanto esse é objetivado. Uma relação patológica de amor-ódio (HORKHEIMER; ADORNO, 1985) do homem com o corpo se exemplifica nos processos do treinamento corporal e nas dietas (VAZ, 1999), bem como nos inúmeros mecanismos de embelezamento (ALBINO, VAZ, 2007). Isso porque para submeter o corpo a qualquer um desses processos é necessário que se o considere como "um outro", que se subjulgue-o, para então fazê-lo suportar a dor e a renúncia do prazer imediato exigido - sentir voluntariamente fome; levar o corpo até a exaustão por meio do exercício físico; comer a partir do cálculo sobre o número de calorias e nutrientes dos alimentos; expor-se a tratamentos de beleza em que se recebe eletro choques, entre outros -, em benefício de se construir um corpo atlético e/ou saudável.

    Vale destacar ainda que essa exaltação do corpo aponta para a possibilidade de reconciliação com aquilo que foi perdido no momento imemorial de cisão entre natureza e cultura. Uma promessa de reconciliação com a natureza que é vislumbrada no artista, o qual exalta os fenômenos vitais como meio de encontro com a perdida unidade do corpo (Leib) e da alma, mas que também está presente, de modo perverso, na propaganda - nazista ou não - que utiliza essa pretensa possibilidade para, ao contrário, afasta-lo de sua unidade quando o potencializa. Isso porque a aproximação estética com o artista e seu corpo transformado em expressão da arte é substituída pelo fomento de uma identificação imediata a um padrão de corpo, tomado como ideal, expressão de uma beleza que seria única e verdadeira e portanto ícone de poder. A obtenção de tal modelo corporal porém só pode ser alcançado por meio de uma submissão do corpo, afastando-o assim cada vez mais do que seria o corpo vivo (Leib) tanto mais é transformado em apenas um corpo anatômico (Körper). É nesse movimento de produção de um "nobre tipo humano" que os autores apreendem a perpetuação do ideário fascista; o qual pode ser entendido como atualizado contemporaneamente na recorrente veiculação pela mídia de modelos de beleza e saúde a serem seguidos.

    Dessa maneira, para Horkheimer e Adorno, o corpo expressa as ambigüidades da própria constituição do sujeito. Destacam-se as dimensões repressiva e regressiva do domínio de si requerido pela civilização, as quais se materializam no estabelecimento de relações de violência para com o somático. Em que se pese que o controle dos corpos também se dá, como destacado acima, por via do incitamento, da produção do desejo e de uma identificação imediata, resultando na adequação a um modelo de corpo considerado ideal.

    Nas páginas que se seguem será apresentado como essas estratégias, de repressão e estimulação, que se ocupam de igualar as condutas e os corpos, também foram alvo dos estudos de Michel Foucault, indicando similaridades entre o pensamento desses autores.


Foucault e a crítica às formas de racionalidade: realizando paralelos com a obra frankfurtiana

    Assim como os autores alemães, Foucault também toma como projeto a realização de uma crítica ao esclarecimento. Influenciado por uma corrente de pensamento presente na França em torno dos anos sessenta do século passado, que se ocupava de estudar uma espécie de história das ciências e da razão, da qual Nietzsche e Canguilhem foram referências fundamentais, é que Foucault toma para si a seguinte questão: como é possível fazer a história de uma racionalidade; e nesse mesmo sentido, como é possível fazer uma história do sujeito (FOUCAULT, 2005). Esse questionamento também é decorrente do interesse - suscitado pelo texto "Was ist Aufklärung?", de Immanuel Kant - em compreender o que é a atualidade, enquanto momento que a razão é elemento central no modo de inteligibilidade das pessoas entre si e dessas com o mundo, possuindo status de verdade. Depois do período do Iluminismo ter multiplicado os poderes da razão, sobretudo no âmbito da política, o que Foucault se pergunta é sobre o diagnóstico do presente.

    Essa motivação por realizar um diagnóstico do presente também perpassa o empreendimento filosófico frankfurtiano, tal como descrito no capítulo anterior, sendo uma das congruências mais marcantes citadas por Foucault entre a sua obra e a desses autores. Assim diz Foucault:

Creio que a atividade filosófica concebeu um novo pólo, e este pólo é caracterizado pela pergunta, permanente e perpetuamente renovada: 'O que somos nós hoje?' É este, na minha opinião, o campo da reflexão histórica sobre nós mesmos. Kant, Fichte, Hegel, Nietzsche, Max Weber, Husserl, Heidegger, a Escola de Frankfurt tentaram responder a esta pergunta. Inscrevendo-me nesta tradição, meu propósito é, portanto, o de trazer respostas muito parciais e provisórias a esta pergunta através da história do pensamento ou, mais precisamente, através da análise histórica das relações entre as nossas reflexões e as nossas práticas na sociedade ocidental. (FOUCAULT, 1982 p. 813-4).

    Ou seja, a questão recai é sobre como se dá a relação entre a razão e a ação, ou ainda entre teoria e prática. Sendo assim, é por meio das luzes lançadas pelo diagnóstico do presente sobre o discurso filosófico que ambos os autores vão empreender seus projetos críticos à modernidade e suas promessas. Esse diagnóstico é buscado por Foucault, diferentemente dos autores frankfurtianos que investem na vinculação da filosofia com as ciências sociais, a partir de análises históricas, já que, para ele, os fenômenos do passado são "maneiras de pensar e de se comportar, que são ainda as nossas" (FOUCAULT apud MOTTA, 2003: LV). Entender o seu tempo por via de análises retrospectivas, fazer uma história da racionalidade, se mostrou como uma questão urgente naquele momento - e ainda hodiernamente - em que o aumento da racionalidade teve como desiderato ameaças sobre o indivíduo e sua liberdade, bem como ações de violência e de excesso de poder, concretizadas sobretudo pela via da política.

    As experiências totalitárias vividas naquele século XX foram exemplares da problemática da relação racionalidade, poder e política - assim como foram também fatos históricos inquietantes e motivadores dos escritos de Horkheimer e Adorno3 (ADORNO, 2003; GAGNEBIN, 1999; MAIA, 2002). Frente aos limites demonstrados pela filosofia, da maneira como ela se colocava até aquele momento - na forma de uma pedagogia e de julgamento sobre as relações de poder (boas ou más) (FOUCAULT, 2004) -, de evitar e compreender tais fenômenos, Foucault propõe que essa seja capaz de "analisar o que se passa cotidianamente nas relações de poder, uma filosofia que tentaria mostrar do que se trata, quais são as formas, as articulações, os objetivos dessas relações de poder" (FOUCAULT, 2004: 44). Ou seja, uma filosofia que seja analítico-política.

    A necessidade dessa filosofia analítico-política se mostra como fundamental, principalmente se considerar que para Foucault

O fascismo e o stalinismo apenas fizeram prolongar toda uma série de mecanismos que já existiam nos sistemas sociais e políticos do Ocidente. Primeiramente, a organização dos grandes partidos, o desenvolvimento de aparelhos policiais, a existência de técnicas de repressão como os campos de trabalho, tudo isso foi uma herança efetivamente instituída pelas sociedades ocidentais liberais, e que o stalinismo e o fascismo apenas incorporaram. (FOUCAULT, 2004: 38)

    Ou seja, que a imbricada relação racionalidade, poder e política se faz presente em toda a sociedade liberal, nos mais diversos tempos e espaços, e que para apreendê-la é preciso uma análise que entenda os detalhes, os aspectos sutis dessas relações, já que é nessa modulação que elas operam. "Seria preciso estudar os jogos de poder em termos de tática e de estratégia de norma e de acaso, de aposta e de objetivo" (FOUCAULT, 2004: 45). Foi nesse sentido que o autor procurou trabalhar: "mais do que estudar o grande jogo do Estado com os cidadãos ou com outros Estados, preferi (...) me interessar por jogos de poder muito mais limitados, muito mais humildes e que na filosofia não têm o status nobre, reconhecido" (FOUCAULT, 2004: 45). Foucault então se ocupa de compreender e criticar algumas formas de racionalidade (política), como sendo mecanismos/estratégias de poder. Essas estratégias/poder são entendidas pelo autor enquanto relacionais, como algo que "não se dá, não se troca nem retoma, mas se exerce, só existe em ação (...) [e também não é] manutenção e reprodução das relações econômicas, mas acima de tudo uma relação de força" (FOUCAULT, 2000: 175). Sendo algo que se exerce, o autor investe justamente na compreensão desse exercício.

    Exemplares sobre esse empreendimento foucaultiano de análise das relações de poder são as obras História da loucura, Arqueologia do saber, Vigiar e punir, As palavras e as coisas, A vontade de saber e O nascimento da clínica. Nelas Foucault analisa a constituição dos discursos sobre a loucura, a doença, a gramática, a sexualidade, a prisão, entre outros, como sendo jogos de poder, ou seja, discursos que acabam por determinar o que seria uma conduta racional e por isso "verdadeira", "adequada".

    O estabelecimento dessa conduta ideal se dá por meio de um registro contínuo de conhecimento, do corpo sendo tomado como objeto, o que possibilita a produção de um saber a respeito dele e consequentemente de modos de melhor controlá-lo. São "métodos de observação, técnicas de registro, procedimentos de inquérito e de pesquisa, aparelhos de verificação" (FOUCAULT, 2000: 186) formulados para que se encontre a melhor via de vigilância e de distribuição dos corpos no espaço e no tempo, ou seja, o melhor meio de disciplinarização do corpo, visando a sua potencialização. Esse saber produzido será então acolhido ou descartado de acordo com a "política geral" de verdade existente em cada sociedade, pois como explica Foucault, "todo saber é político. (...) Todo ponto de exercício do poder é, ao mesmo tempo, um lugar de formação de saber (...) e, em contrapartida, todo saber assegura o exercício de um poder" (MACHADO, 2000: XXI-II).

    Para Foucault, esses discursos de verdade além de serem acolhidos ou não de acordo com os interesses políticos de um tempo, têm sua gênese na produção do governo dos homens, de suas condutas, esse próprio governo sendo uma questão política. Essa emergência é decorrente da centralidade adquirida pelo homem e seu corpo como peça/mecanismo de poder econômico em detrimento ao território. Uma mudança que se fez devido à superação da estrutura feudal e da dispersão e dissidência religiosa4, bem como da necessidade de uma "teoria do governo" perante aos novos desafios econômicos impostos pelo desenvolvimento do aparelho administrativo da monarquia territorial, de uma ciência do Estado5 e do mercantilismo. Para que se possa mais bem gerir, faz-se iminente a produção de um conhecimento/saber acerca daquilo que se governa, no caso, entre outras coisas, os homens, seus corpos e suas condutas.

    Vale destacar que esses são também discursos que se constituem em meio a resistências, reivindicações e por isso mesmo que se estabelecem como relacionais, exigindo que se organizem de modo cada vez mais estratégico, plural, ambíguo. Apenas reprimir já não é suficiente, é preciso que as estratégias exerçam um controle sobre o desejo, que se estabeleçam enquanto um "controle-estimulação" (FOUCAULT, 2000), dando assim nuances mais amplos e diversificados à dominação.

    Nesse sentido, de acordo com Honneth citado por Maia (2002), o trabalho do francês pode ser tomado como uma radicalização6 e concomitantemente como complementar à própria Teoria Crítica, sobretudo pelo "modelo conflituoso/agonístico das relações sociais" (HONNETH, apud MAIA, 2002: 69). Já Camargo (2006) entende que a questão do poder, tal como é desenvolvida por Foucault, é também uma forma de compreensão da sociedade contemporânea (teoria social crítica), pois ele se propõe a investigar a racionalidade como "algo que se manifesta em práticas sociais e discursivas concretas" (CAMARGO: 106). Charles Taylor por sua vez considera que "Foucault oferece à escola de Frankfurt uma explicação da conexão interna entre dominação da natureza e dominação do homem que é muito mais detalhada e convincente do que aquela que eles mesmos apresentaram" (TAYLOR apud MAIA, 2002).

    O problema a que se ateve Foucault foi então apreender, a partir do modo como se configuram as suas estratégias, a racionalidade (política) como mecanismo de produção de corpos úteis e dóceis, da forma de racionalidade com que se depara e com seus fins de dominação. Aqui fica evidente mais uma aproximação entre o pensamento foucaultiano e o da primeira geração da Escola de Frankfurt: o da violência sobre o corpo, sua perda de liberdade e exposição ao sofrimento por meio da disciplinarização (HONNETH, 1993; HONNETH apud MAIA, 2002); mas também a questão pouco explorada da manipulação do desejo a partir do elogio a padrões de comportamento/corpos tomados como ideais, visando uma normatização. Um mesmo processo que pode tanto ser tanto apreendido pela questão da exaltação do "nobre tipo humano", tal como apontado por Adorno e Horkheimer (1985), quanto por meio de um mecanismo de "controle-estimulação" (FOUCAULT, 2000).


Um comentário final

    Ao empreender uma crítica à racionalidade e aos limites do esclarecimento em realizar suas promessas de liberdade e de emancipação, nenhum desses autores porém predica um abandono da razão, mas, tratam sim de realizar uma crítica racional da racionalidade, dessa como produtora de submissão e dominío, sobretudo do corpo, frente a sua emergência como determinante da subjetividade.

    A partir desse quadro traçado, cada qual a sua maneira, pelos autores abordados, talvez o que haja de mais importante não seja saber se a razão é um grande relato que agora terminou7, mas sim o investimento em um diagnóstico do presente que possibilite apreender as formas de racionalidade como mecanismos de dominação sutis e cambiáveis. Dessa maneira, entender "o que é a atualidade", como diz Foucault "não consiste simplesmente em caracterizar o que somos, mas seguindo as linhas de vulnerabilidade da atualidade, em conseguir apreender por onde e como isso que existe hoje poderia não ser mais o que é" (FOUCAULT, 2004: 325).

    Ainda sobre a realização de um diagnóstico do presente, destaca-se a importância da conjunção entre reflexão filosófica e análise sócio/histórico/política presente na obra de ambos autores como uma questão teórico-metodológica que se abre ainda na atualidade como um horizonte profícuo de pesquisas. O corpo e seus usos parecem ser um mecanismo de inteligibilidade do tempo hodierno (e porque não de sua superação?!) - assim como indicam tanto Adorno quanto Foucault - e mostra ser um caminho interessante a ser percorrido. Para tanto, apontamos aqui para a relevância de conceitos centrais da obra desses autores: indústria cultural, no caso de Adorno e Horkheimer, e biopolítica, em Michel Foucault. Conceitos esses fundamentais para se comprender a lógica de investimento pelas estratégias de poder na questão do desejo, do incitamento, da estimulação como mecanismo de padronização e assim exercer um controle mais eficaz das condutas.


Notas

  1. Apesar da existência dessa confluência teórica nas obras desses autores e desses serem contemporâneos o diálogo entre eles (correntes de pensamento) não existiu. Vale destacar que uma das oportunidades dessa aproximação ocorreu em 1935, quando alguns componentes da Escola de Frankfurt buscaram refúgio na França, devido as enormes proporções que gradativamente ganhava o nazismo na Alemanha, porém eles não foram bem recebidos. Desse modo, "o entendimento que poderia ter sido estabelecido entre a Escola de Frankfurt e um pensamento filosófico francês através da história das ciências, e portanto da questão da história da racionalidade, [ao menos naquele momento] não se deu." (FOUCAULT, 2005, p. 315).

  2. A tradução do texto referente ao livro Dits et Écrits, vol IV foi feita e cedida pelo Prof. Dr. Selvino Assman.

  3. Para os autores da Escola de Frankfurt o que é crucial na questão do Holocausto é o caráter racional do morticínio, ou seja, a racionalidade enquanto meio (instrumental) justificando qualquer fim, independente de qual seja. Nesse sentido o que os autores salientam é o processo de reificação da consciência proveniente do ideário da modernidade. Para Foucault o que se coloca é a questão do excesso de poder e a racionalidade existente nessas relações que têm como desiderato um controle social extremo.

  4. A Reforma e a Contra-reforma impulsionam o desenvolvimento de questionamentos sobre "o modo como se quer ser espiritualmente dirigido para alcançar a salvação" (FOUCAULT, 2000, p.278).

  5. Sob o nome de Ciência do Estado pode-se agrupar duas coisas: "por um lado, um conhecimento que tem por objeto o Estado; não somente os recursos naturais de uma sociedade, nem o estado de sua população, mas também o funcionamento geral de seu aparelho político. (...) por outro lado, a expressão significa também o conjunto dos procedimentos pelos quais o Estado extraiu e acumulou conhecimentos para melhor assegurar seu funcionamento." (FOUCAULT, 2000 p. 81).

  6. "outre la Dialetique de la raison, chefd'oeuvre de la théorie critique en matiére de philosophie de l'histoire, on trouvera difficilment entreprise plus radicale dans sa volonté de desmasquer la raison européene que la théorie du povouir developée par Michel Foucault" (HONNETH apud MAIA, 2002, p. 69).

  7. É válido destacar que muitas das discussões em torno do fim da modernidade ou sua permanência também estão engendradas em relações de poder.


Referências

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revista digital · Año 13 · N° 119 | Buenos Aires, Abril 2008  
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