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O corpo e a mídia: análise de uma campanha publicitária

   
*Mestre em Comunicação Social (UNISINOS/RS), doutora em Comunicação
Social (PUC/RS) professora do curso de Comunicação Social do Centro
Universitário Feevale (Novo Hamburgo/RS/Brasil).
**Mestre em História Social pela Universidade de São Paulo (USP/SP/Brasil),
doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica do RS (PUR/RS/Brasil),
professora do curso de História do Centro Universitário Feevale (Novo Hamburgo/RS/Brasil).
 
 
Denise Castilhos de Araújo*
deniseca@feevale.br  
Claudia Schemes**
claudias@feevale.br
(Brasil)
 

 

 

 

 
Resumo
     Este artigo discute as concepções sociais do corpo, o tratamento dado ao corpo feminino por uma campanha publicitária e a utilização desse espaço para a reiteração de certos padrões estéticos vigentes na sociedade atual. Para tal análise utilizou-se como metodologia a Hermenêutica de Profundidade de J.B. Thompson.
    Unitermos: Corpo. Mídia. Publicidade. Construção social.
 
Abstract
     This article discusses the social conceptions of the body, the treatment of the feminine body by an advertising campaign and the use of this space for the reassurance of some aesthetics standards in the current society. For this analysis we used J.B. Thompson's hermeneutics as methodology.
    Keywords: Body. Media. Advertising. Social construction.
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 12 - N° 118 - Marzo de 2008

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Introdução

    Este artigo analisa uma campanha publicitária da empresa Deca, que foi fundada em 1947 em São Paulo/Brasil e atualmente é a líder brasileira no mercado de metais sanitários, além de ocupar posição de destaque no mercado de louças e no fornecimento de materiais de acabamento para a construção civil no País. Seus produtos também são exportados e concorrem com os melhores fabricantes do mundo em sua especialidade.

    Uma das campanhas desenvolvidas por essa empresa utiliza-se do corpo feminino como estratégia de venda de seus produtos, o que nos possibilita uma análise acerca da construção cultural do corpo na contemporaneidade.


O corpo feminino

    O gênero é um tema que tem sido alvo de inúmeras discussões ao longo das últimas décadas. Esses debates remetem à "reconstrução" das relações sociais, à afirmação da mulher como sujeito da História, reafirmando, discutindo e rompendo com alguns padrões sugeridos pelas sociedades, uma vez que tais espaços estavam restritos à presença masculina. Então,

"[...] na década de 70, as mulheres "entraram em cena" e se tornaram visíveis na sociedade e na academia, na qual os estudos sobre a mulher se encontravam marginalizados na maior parte da produção e na documentação oficial". (Matos, 2000: 10)

    Essa transformação mencionada pela autora, começa a ser percebida, com maior evidência, quando os movimentos feministas geraram inúmeras discussões a respeito do papel da mulher. Neste período, a mulher deixa a esfera do privado - seu lar, sua família-, e busca o engajamento na esfera do público, ou seja, quer ter os direitos que, na maior parte das vezes, eram dados somente aos homens.

    Com essas mudanças surgiu o que Lipovetsky (2000) nomeia como a terceira mulher, aquela que, segundo o autor, é indeterminada, pois "a primeira e a segunda estavam subordinadas ao homem", e esta mulher atual não se subordina ao homem. Ela tem diante de si a possibilidade de decidir tudo o que diz respeito a sua vida: casar ou não, ter filhos ou não, descasar, estudar, enfim, ela tomou para si a tarefa de decidir como sua vida será.

    Apesar de reconhecer essa independência da mulher atual, o autor enfatiza:

"[...] o modelo da terceira mulher não coincide de modo algum, é preciso sublinhar, com o desaparecimento das desigualdades entre os sexos, especialmente em matéria de orientação escolar, de relação com a vida familiar, de emprego, de remuneração". (Lipovetsky, 2000: 238)

    Então é possível perceber que, apesar de todas as mudanças que já ocorreram, na verdade, a mulher adquiriu controle sobre sua vida, seus pensamentos, mas ainda precisará continuar a busca pela maior atuação no âmbito do público, pois os modelos sociais ainda permanecem muito semelhantes aos que a sociedade sugeria e estimulava há cinqüenta anos.

    Com a saída da mulher da obscuridade o corpo feminino tornou-se visível, desejado e, muitas vezes, utilizado como objeto nos veículos de comunicação para vender, tanto produtos femininos, quanto masculinos, apontando para o padrão estético que deve ser seguido.

    Nesse sentido, a igualdade que buscavam as mulheres, deixa de existir no momento em que seus corpos saem do "escuro", pois deixam de pertencer a si mesmas, passando a pertencer ao "público", exigindo-se dessas mulheres o absoluto controle sobre suas formas, gerando, muitas vezes, o descontrole desse corpo, a impossibilidade de dominá-lo, pois a forma sugerida pela mídia é difícil de ser alcançada.

    A banalização da beleza fez com que a maioria das mulheres consumisse uma imagem que, para grande parte da população feminina brasileira, é um ideal difícil de ser alcançado, uma vez que a publicidade, além de vender o produto, vende também, simbolicamente, conceitos que as mulheres passam a desejar. (Del Priore, 2000: 99)

    Conforme Kellner (2001),

"[...] a propaganda está tão preocupada em vender estilos de vida e identidades socialmente desejáveis, associadas a seus produtos, quanto em vender o próprio produto - ou melhor, os publicitários utilizam constructos simbólicos com os quais o consumidor é convidado a identificar-se para tentar induzi-lo a usar o produto anunciado". ( p. 324)

    Muitos desses estilos de vida são expressos utilizando como sustentação o corpo humano, sugerindo a utilização de certos produtos, como maquiagem, roupas, cremes e até mesmo materiais de construção. É o corpo feminino, muito mais que o masculino, que tem sido usado como suporte publicitário, expondo padrões estéticos, formas, representado as evoluções pelas quais as sociedades têm passado, pois é esse corpo que expõe com maior evidência, ao longo do tempo essas modificações culturais, que foram consideradas por Del Priore (2000), uma "revolução silenciosa", mas perceptível, verificável, também, nos anúncios publicitários.

    O corpo, considerado como texto, apresenta uma série de significações e pode ser lido a fim de que tenha maior conhecimento das características de determinada cultura, pois, a partir da alteração das relações sociais, as representações dos corpos também são alteradas.

    A exacerbação do corpo se intensificou, principalmente, a partir da década de 1980. A procura de um corpo perfeito iniciou-se com a preocupação em manter rituais saudáveis como a boa alimentação e a prática de exercícios, uma vez que não mais é visto simplesmente sob a perspectiva das Ciências Naturais, ou seja, um organismo que cumpre uma série de funções orgânicas. O surpreendente é que a atenção maior, muitas vezes, é dada à possibilidade do corpo servir como precioso veículo para a manifestação de uma série de preocupações e características sociais das épocas.

    Conforme Peruzzolo (1998),

"É importante ter em mente que a figuração do corpo humano como dispositivo de produção de sentido, na mídia e fora dela, não é algo isolado nem no tempo nem no espaço e não está aí sequer por vontade expressa de ninguém nominável. Como produto cultural do tempo das mídias, o fenômeno está sujeito ao jogo das forças inomináveis dos processos sócio-históricos que constroem a cultura e possibilitam a sua integração nela, fazendo a sua vivência". (p. 12)

    Os anúncios publicitários selecionados para servirem como corpus desta pesquisa refletem a situação relatada por Peruzzolo (1998), pois, constroem no anúncio que vende um certo produto o "corpo do momento", baseado nas aspirações, nas "recomendações" estéticas da sociedade atual. Assim, diante de tais recomendações, a mulher que buscava a liberdade e a igualdade, encontra-se, na verdade, presa, não mais ao homem, mas aos padrões sociais ditados pela publicidade, geralmente seguidos, algumas vezes sem sucesso, mas ao menos tentados. Então, a liberdade pode tornar-se aquilo que aprisiona a mulher, seu direito de escolha atrela-se àquilo que o grupo sugere, enfatizando sua dependência, e não sua liberdade.

    A fim de verificar o uso do corpo como suporte para a venda ou para a compra de produtos, e quais os valores sugeridos na publicidade para os corpos femininos atuais, optou-se pela seleção da campanha publicitária dos produtos Deca, a qual, desde 2002, enfatiza a venda de seus produtos baseada na exploração de uma imagem corporal feminina e masculina. Nesta pesquisa a preocupação recairá exclusivamente na representação feminina, através da metodologia de análise da Hermenêutica de Profundidade (HP) de John B. Thompson (2000).


O corpo e a mídia: análise das peças publicitárias

    As peças publicitárias analisadas nesse artigo fizeram parte da campanha da empresa Deca de 2002 a 2005, intitulada "A Forma Exata" e desenvolvida pela agência DPZ, de São Paulo/Brasil.


Julho 2003

    Na primeira fase, os anúncios em preto e branco mostravam corpos nus em contato com as peças Deca. No segundo momento, as imagens passaram a ser compostas por mosaicos e partes do corpo humano interagindo com louças ou metais, e, por fim, a terceira fase mostra a interação entre corpo humano e louça, com o diferencial que os corpos são formados por água.

    Através dessas peças, a Deca explora as formas dos corpos humanos, harmonizando com o design dos produtos. As peças geram no consumidor o desejo de adquirir os produtos através da sedução da imagem, elas misturam imagens de mulheres com corpos exuberantes, formas definidas e insinuantes aos produtos Deca. O consumidor é seduzido pelo olhar, pelas formas perfeitas e pela interação entre produto e corpo.

    Para compreendermos as características estruturais dos textos, a análise formal ou discursiva se faz necessária, pois, para Thompson (2000), as relações do discurso são "as instâncias de comunicação correntemente presentes" (p. 373).

    As peças selecionadas para a análise são muito semelhantes, pois retratam o mesmo objeto - o corpo- estabelecendo relações entre a perfeição do corpo humano e o produto vendido pela empresa (louças para banheiro).


Setembro 2004

    Dentre as cinco peças selecionadas, duas têm corpos "reais", ou seja, modelos vivos, as outras três peças trazem corpos construídos graficamente, utilizando água. Contudo essa criação gráfica traz a representação perfeita de corpos humanos, ou seja, os detalhes são observados como o número e dedos, o rosto, os cabelos, os pés, o formato dos seios, enfim, assemelha-se muito a um corpo real.

    Por se tratar de imagens, a análise semiótica será aqui privilegiada, bem como a interpretação das orações que acompanham as imagens.


Fevereiro 2005

    A cor utilizada como fundo das peças é bastante neutra, que varia em tons de bege, areia e ocre. A cor dos corpos presentes nas peças apresenta essas tonalidades, observando que nas peças ilustradas por corpos virtuais, os mesmos são construídos por água, que, pela sensação de transparência permite ver a cor de fundo.

    Os objetos apresentam-se centralizados na página, dispostos verticalmente, dando ao leitor a sensação de que flutuam, em quatro dos anúncios. Em um único anúncio é possível ver o solo onde a pia e o modelo encontram-se apoiados. Ao redor dos corpos vê-se a logomarca da empresa, podendo a mesma estar disposta no canto superior direito, esquerdo, no canto inferior direito ou posta no meio da página à direita.

    As três peças que mostram corpos gráficos apresentam textura de água, pois as imagens, além de terem reflexos - característica da água-, elas também respingam gotas e apresentam algumas bolhas.

    A iluminação presente nas peças incide sobre os produtos a serem vendidos, as louças de banheiro. Há, também, a presença do contraste entre as cores de fundo, dos corpos e das louças. Estas são brancas ou em tom de areia, muito mais claro que a cor de fundo e a cor dos corpos.


Outubro 2002

    Em um dos anúncios há a presença de fragmentos de corpos, pois são imagens obtidas através de vista superior, a qual enfatiza a cabeça e os ombros dos modelos. Desses corpos vê-se somente os cabelos bem arrumados, de forma que enfatizem o formato da cabeça, evitando que os mesmos encubram os ombros, os braços e as mãos fotografadas.

    Ao lado dos corpos vêem-se as expressões: "Mate sua sede de design."; "Até hoje, só a natureza tinha criado formas tão perfeitas"; "A água do banheiro vai virar eau de toilette"; "Transparência com formas exatas. Nada mais perfeito"; "Sua casa é como o seu corpo: o que mais seduz poucos vêem". Em todas as expressões percebe-se o direcionamento dos argumentos para uma classe social mais elevada, principalmente pelo uso de vocábulos como: design, eau de toilette; mas não só isso, porque as expressões reforçam a perfeição dos corpos, bem como a necessidade de cuidar desse corpo, como: formas perfeitas, formas exatas, perfeito. Nos anúncios há a presença da analogia entre a perfeição dos produtos anunciados bem como do padrão estético que exige a perfeição dos corpos.

    A última etapa da análise da campanha é a da "interpretação e reinterpretação". Nesta fase verificar-se-á a "síntese" (Thompson, 2000) que os criadores das peças podem realizar ao considerar tanto os elementos temáticos, calcados na realidade, como aqueles característicos da imagem, e que lhe serviram para a construção dos anúncios.

    As peças analisadas reforçam certos padrões estéticos já discutidos neste artigo, reforçando a idéia de que o corpo feminino deva ser exposto e que, além disso, deve ser perfeito.


Dezembro 2004

    Há, em determinada peça, a remissão à mulher como objeto, pois há a seguinte oração ao lado da modelo: "Mate sua sede de design". O que se pode compreender é que algumas vezes o corpo feminino pode estar fora de forma, mas as louças dos banheiros não podem seguir essa regra, devendo sempre ser perfeitas, seguindo a orientação estética do momento.

    Os valores presentes na campanha remetem à sofisticação, à elegância, à perfeição, a um grupo social específico que provavelmente cultive tais valores, sendo que a utilização desses corpos reforçará tais conceitos.

    A beleza é um dos valores presentes em todas as peças analisadas, reforçando-a como uma característica essencial da mulher que serve como "espetáculo do homem" (Perrot, 2003), pois seu corpo, neste caso, é o suporte para a venda de louças sanitárias.

    Outra questão importante percebida nos anúncios é o anonimato das mulheres, ou seja, para o público não importa quem seja a mulher, mas o corpo e o comportamento que ela tenha, e é este corpo que serve para seduzir os compradores dos produtos Deca.


Considerações finais: a construção cultural do corpo

    O corpo, ou as suas representações, pode ser assimilado como uma "entidade multifacetada que compreende as dimensões física, psicológica e social." (Becker, 1999: 1)

    Nesse sentido, a análise realizada da publicidade que se utiliza do corpo feminino para vender um produto, pode ser fundamentada na noção de corpo definida por Pérez-Samaniego (2001) como a "concepção social do corpo".

    Segundo o autor, a história da noção do corpo se define a partir das tensões geradas entre dois pólos opostos: de um lado, as concepções dualistas, que separam o corpo da alma, de outro, as concepções monistas, que consideram o homem como uma unidade indissolúvel e, por fim, as concepções sociais, que estudam a construção social e cultural do corpo e seus significados. (p. 1)

    Essa nova maneira de ver e representar o corpo, segundo Pérez-Samaniego (2001), é o efeito da pós-modernidade na concepção sobre as idéias do corpo. O autor diz que a "secularização do mundo ocidental" foi uma das responsáveis pelas transformações pelas quais a noção de corpo passou, pois as crenças religiosas foram substituídas pelas científicas e a existência pautada por valores estáveis foi substituída pela individualismo. Diz ainda,

"[...] o auge e a expansão dos meios de comunicação audiovisuais situam simbolicamente essa mensagem de felicidade individual na imagem do corpo ou, melhor dito, de determinados modelos de corpo. A publicidade, os filmes, os programas de televisão propagam a mensagem de que a pessoa feliz é o corpo feliz". ( Pérez-Samaniego, 2001: 3)

    O autor considera esse declínio dos referenciais religiosos e o aumento do corpo como imagem de valor simbólico, como um dos elementos mais importantes na constituição da identidade do sujeito da pós-modernidade.

    O segundo elemento considerado pelo autor como o responsável pelas transformações das noções de corpo foi a "idealização do corpo como projeto", que implica no estabelecimento de um plano através do qual o sujeito poderia alcançar uma série de objetivos pessoais quase sempre relacionados com a saúde ou com a aparência.

    Por fim, o autor considera a "incerteza sobre o conceito de corpo", como o último efeito da pós-modernidade na concepção corporal. As múltiplas possibilidades que o corpo pode apresentar contrastam com a "incerteza sobre o que fazer com essas possibilidades." (Ibidem: 3) Não sabemos mais até que ponto podemos intervir nos nossos corpos sem que se apresentem dilemas morais.

"[...] parece claro que na atualidade estamos vivendo em uma época em que o corpo e seu significado sócio-cultural tomaram dimensões inusitadas. A insistente transmissão pelos mais diversos e escorregadios meios de comunicação de imagens de corpos esbeltos (em mulheres) ou musculosos (em homens) unidas a mensagens sobre felicidade, êxito e autoestima, fixou no inconsciente coletivo a idéia de que um corpo "perfeito" é sinônimo de vida perfeita. [...] a natureza inalcançável desse corpo perfeito o converte [...] em um "mercado eterno" a que se dirigem os mais variados e insuspeitados produtos". (Ibidem: 3, 4)

    A utilização do corpo feminino na publicidade de louças de banheiros vem confirmar essa idéia. O corpo passou a ser um campo onde os mais diversos projetos podem ser representados, onde os mais diversos produtos podem ser vendidos.

    O espaço que a mídia vem dando ao corpo feminino, muito antes de representar uma valorização desse corpo e da mulher que o comporta, representa a continuidade de um modelo de mulher submissa, só que agora, não mais aos pais ou marido, mas aos meios de comunicação.


Referências bibliográficas

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