efdeportes.com
'Certezas' ambíguas: entre o 'dom' e o 'mérito'
de ser bela, segundo a Revista Boa Forma

   
*Licenciada e Mestranda em EF pela UFSC. Membro do Núcleo de Estudos
e Pesquisas Educação e Sociedade Contemporânea (CED/UFSC/CNPq).
**Estudante de EF da UFSC, bolsista PIBIC/UFSC/CNPq. Membro do Núcleo de
Estudos e Pesquisas Educação e Sociedade Contemporânea (CED/UFSC/CNPq).
***Doutor pela Universidade de Hannover, professor dos Programas de Pós-graduação
em Educação, Interdisciplinar em Ciências Humanas e EF da UFSC. Coord. do Núcleo
de Estudos e Pesquisas Educação e Sociedade Contemporânea (CED/UFSC/CNPq).
(Brasil)
 
 
Beatriz Staimbach Albino*
bia_ufsc@yahoo.com.br  
Priscila Daniela Hamme**
prizinha_bahiaviva@hotmail.com  
Alexandre Fernandez Vaz***
alexfvaz@pq.cnpq.br
 

 

 

 

 
Resumo
     O presente trabalho se ocupa de resultados parciais de uma pesquisa cujo objetivo tem sido investigar os dispositivos de controle em publicações para o corpo, entre elas a Revista Boa Forma, contemporânea cartilha de embelezamento, disponível no mercado há mais de duas décadas. Tratamos aqui, em especial, da relação ambígua e incerta entre o "dom" e o "mérito" para a obtenção de um corpo feminino visto como belo. Para tanto, a análise se ocupou da capa, dos editoriais e de algumas reportagens, das edições de 2005, 2006 e 2007. Para a Boa Forma, a beleza é intrínseca à mulher desde seu nascimento, mas o mérito aparece, simultaneamente, quando a responsabiliza por suas formas corporais. Os resultados apontam que o discurso produzido pela revista incentiva investimentos no corpo na forma de diversas técnicas que produzem resultados que devam parecer "naturais".
    Unitermos: Culto ao corpo. Revista Boa Forma. Corpo e cultura. Indústria cultural.

O presente texto é resultado parcial do projeto Teoria Crítica, Racionalidades e Educação II, financiado pelo CNPq
(Auxílio pesquisa, bolsa de produtividade em pesquisa, bolsa de apoio técnico, bolsas de iniciação científica).

 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 12 - N° 117 - Febrero de 2008

1 / 1

Introdução

    Entre o presente oferecido pela natureza e o mérito alcançado com muito esforço, radicam-se os encantos e as prescrições da beleza contemporânea, em especial a feminina. Faz parte desse processo a Revista Boa Forma, publicação mensal em circulação há mais de vinte e dois ininterruptos anos, atuando de forma direta nos processos de busca de um corpo perfeito, e na sua analogia contemporânea, "cheio de saúde". A revista, verdadeiro manual iniciático de beleza, apresenta recursos e técnicas potencializadoras do corpo que não se resumem à atividade física, mas abarcam cuidados com a alimentação, sobretudo dietas, uso de produtos embelezadores, cirurgias plásticas, tratamentos da medicina estética etc. É da relação ambígua e incerta entre "dom" e "mérito", agenciada em conformidade instável com as crenças mais convenientes, inclusive as de mercado, encontrando eco no discurso romântico de uma "boa natureza" certamente fetichizada e na fúria contemporânea em prolongar a juventude, procurando eternizar o que pareça jovem e natural, mesmo que não o seja, que tratamos nesse texto.

    Analisamos as capa, os editoriais e algumas reportagens, das edições de 2005, 2006 e 2007. A escolha da capa se deu, sobretudo, porque ela constitui o local mais eloqüente de culto ao corpo, com mulheres com pouca roupa mostrando corpos "sarados". Além disso, as chamadas de capa manifestam muito dos investimentos requeridos sobre o corpo, as promessas de centímetros e calorias a menos, as técnicas mais milagrosas e com menor dispêndio de tempo. Destacamos também os editoriais, resumos das edições nos quais aparece a doutrina da revista, tanto na forma dos destaques de cada número, quanto dos conselhos sobre as novas tendências, tudo assinado pela diretora de redação.

    O trabalho se divide em duas partes antes das considerações finais. Na primeira tratamos mais diretamente do embate entre "dom" e "mérito" na consecução da beleza, de como a ambigüidade se faz presente sem que qualquer síntese seja possível; na segunda desenvolvemos a mesma questão, mas na direção da problemática do domínio da natureza como produtor da beleza, quando o embate entre "dom" e "mérito" ganha certa especificidade. Nas considerações finais retomamos a questão inicial do trabalho, procurando mostrá-la em outro patamar e sugerindo uma associação com a idéia de "tempo livre".


Entre o "dom" e o "mérito": corpo e beleza

    De questão de ordem da divindade, como presente de Deus - algo presente nos primórdios da modernidade (VIGARELLO, 2006), também em sua versão à brasileira (SANT'ANNA, 1995) - a beleza e seu alcance passam a ser problema terreno. Em manuais produtores e reprodutores de moda, como a Boa Forma, encontramos um conceito secularizado de dom. A beleza considerada dom, a qual a revista faz menção, é relacionada às qualidades inatas da mulher, ou ainda ao que ela possui de belo e que já estava intrínseco a ela, como potência, no momento em que nasceu. Vejamos um editorial: "A conquista de Fabiana é bem do jeito que a gente gosta. Ela não queria virar outra pessoa, mas conseguir isso sim, ficar o mais bacana possível dentro do corpo que Deus lhe deu. Ser bonita ao seu estilo..." (REIS, 2006: 10). A expressão "dentro do corpo que Deus lhe deu" remete ao sentido de que Fabiana - uma "menina comum"1 - possui beleza desde que nasceu.

    O presente concedido por Deus não dispensa o mérito do esforço, compondo um jogo em que a responsabilidade da mulher pelo destino de sua beleza não é desprezada. Esse esforço encontra todas e cada mulher em particular, já que cada uma tem seu "estilo", valorizado deste de que seja o mesmo e já previsto pela Boa Forma. A revista joga com o estímulo no momento em que indiretamente elogia a beleza da leitora, e com base neste argumento incentiva-a a alcançar a perfeição em suas formas corporais. Haveria algo de belo em todas as mulheres que, assim, estariam autorizadas a investir no próprio potencial. Afinal, a mulher contemporânea, personificada, entre outras, na apresentadora de televisão Adriane Galisteu,

Aprendeu a olhar no espelho, encarar a própria figura e inventou o seu jeito de ser bonita. [...] ela criou um estilo, explorando seus pontos fortes e suavizando os que não são tão perfeitos. Ela adora a pele bronzeada, o corpo esguio, enxuto, o cabelo loiro, muito bem cuidado, a maquiagem feita só para dar um realce, nada de exageros no jeito de vestir, seios pequenos, sem silicone, por que não? (REIS, 2005: 07).

    Segundo o editorial em questão - e lembremos que esta parte da revista apresenta a doutrina da publicação - Adriane sempre foi "linda", mas "aos 32 anos está com certeza muito mais bonita que aos 20" (REIS, 2005: 7), isto é, por meio de uma série de recursos e investimentos maciços no corpo ela aperfeiçoa sua beleza.

    Conquistar um corpo perfeito, segundo a Boa Forma, é resultado de esforços individuais. O corpo é tomado, mais do que nunca, como matéria a ser moldada. Quando a revista se refere a este empenho, o faz, sobretudo, com vistas à prática de exercícios físicos e cuidados com a alimentação como disciplina a ser desenvolvida. Um exemplo seria o da atriz Cláudia Raia, capa da edição de maio do ano de 2006: "Cláudia Raia: 2 filhos, quase 40 anos e um corpão espetacular! Em 1,80m de altura (1,10m é só de pernas), a atriz exibe coxas malhadas, barriga dura e braços torneados" (BILTOVENI, 2006: 88). Na reportagem, como em um testemunho religioso, ela conta às leitoras como conseguiu tal êxito: "um corpo não se faz em um, dois, cinco anos... eu danço desde os 3 anos de idade, faço musculação há 20 anos. É um trabalho da vida inteira. Além disso, nunca fui de comer besteira, não tomo refrigerante nem bebida alcoólica e não fumo." (BILTOVENI, 2006: 88).

    Há nesta estratégia uma intenção de dizer às leitoras que é possível decidir ser bonita2 - e para tanto meninas comuns também são citadas nas reportagens, ao lado das célebres estrelas da televisão - responsabilizando-as por sua beleza ou feiúra. Mais importante do que causar a sensação de mal-estar e frustração na leitora - quando ela vê modelos "sarados" nas folhas da Boa Forma - é dizer-lhe que a ela também é possível o alcance de tal proeza.

    A beleza é reconhecida como escolha de vida e como expressão de liberdade individual, entendida também, no entanto, como forma de responsabilização. E é nesta dimensão que trabalham estes manuais, provocando a culpa como estratégia de conquista de sucesso. Como ensina Vigarello (2006), tudo parece ser direcionado à escolha individual, a fim de que esta se sobressaia até o fim; tudo parece ser feito para que a responsabilidade de cada uma, e também o sentimento de fracasso, prevaleça em caso de embelezamento "limitado". É responsabilidade da leitora fazer exercícios físicos e manter cuidados com a alimentação, pois será assim que alcançará um corpo equivalente ao de Cláudia Raia - ou seja, disciplina e mérito caminham juntos como controle-estimulação: trata-se, nos termos de Foucault (2000) de um domínio que se realiza de um modo diferente da repressão que outrora era exercida sobre o corpo. Transfigura-se agora em dominação por meio do estímulo de mostrar-se e fazer-se desejar, o que incita a tornar possível, ao menos ilusoriamente, qualquer que seja a configuração corporal - ou, por outra, exigida pelas demandas de consumo.


"Contra o sofrimento": domínio de si para a produção da beleza

    Na Boa Forma encontramos todo um aparato vocabular para que a questão do mérito não lembre o sofrimento que é próprio das renúncias exigidas pelo culto ao corpo. Não se deve impor, nem obrigar, mas sim confortar. No entanto, para conseguir realizar aquela sessão de exercícios físicos e manter-se resistente à dieta, segundo a pedagogia destes manuais de embelezamento, é necessário "estar de bem consigo mesma", ter "força de vontade", sentir-se feliz e olhar para "seu interior". Desta forma, coloca-se a crença de que um corpo mais "tranqüilizado" mais bem reage a situações que possam lhe causar sofrimento. Há uma mescla entre "exterior" e "interior": "Pense diferente: mude a sua cabeça e perca peso agora" (BOA..., 2005). Interessa trabalhar sobre si de forma a facilitar o labor com o corpo.

    Nesse olhar de "fora para dentro" se estabelece uma relação segundo a qual o corpo é visto como "outro" a ser dominado, natureza a ser subjugada, domesticada, apaziguada porque expressão do perigoso desejo, dos apetites traiçoeiros. Radica aí o logro imemorial que se demarca pela cisão entre corpo e uma outra instância, humana e não-corporal, ao mesmo tempo em que se sabe ser impossível esta separação (HORKHEIMER; ADORNO, 1997)3. Mediado pela ciência e seus artífices - os especialistas -, esse processo legitimador de controle do corpo é operado pelas revistas, oficiantes de detalhado conhecimento somático. Os manejos conceituais de "dom" e "mérito" andam juntos nessa "guerra"4 contra o corpo. O caso da menina Fabiana é exemplar:

[...] descobrir o plano de dieta e exercício que ela adotou para ganhar um shape novo. A conquista de Fabiana é bem do jeito que a gente gosta. Ela não queria virar outra pessoa, mas conseguir isso sim, ficar o mais bacana possível dentro do corpo que Deus lhe deu. Ser bonita ao seu estilo [...] (REIS, 2006: 10).

    Fabiana conquistou um "novo corpo" por meio de uma dieta e um plano de exercícios, no entanto isso se fez possível a partir do que ela possuía de "natural" o "corpo que Deus lhe deu". Há neste discurso uma tentativa de conciliação, nunca alcançada, entre o que é possível/dom, e o que se pode ser conquistado por meio dos esforços.

    A corrida meritocrática e individual em busca de uma perfeição pode se assemelhar ao ritmo frenético das pessoas em meio ao concorrido mercado de trabalho em uma sociedade altamente racional, dentro do qual o corpo ganha condição de protagonista. Ele se tornou objeto de trabalho, de consumo, de lazer. Potencializar o corpo é submetê-lo ao alcance de traços corporais considerados perfeitos; não apenas um direito, mas um dever. O "dever" não pode, no entanto, ser visto como tal, mas sim parecer ameno e não fastidioso, assim como seria já o trabalho, visto como algo pesado, obrigatório e cansativo. Ao contrário disso, a busca por um modelo corporal tem que ser feita de maneira "prazerosa", de forma que possa se igualar ao que chamamos de lazer.

    A pedagogia da Boa Forma é hedonista, busca o prazer individual e imediato pregando um discurso de bem-estar como inquestionável (ALBINO, 2006). Este "prazer" individual unido ao bem-estar poderá ser alcançado se o investimento na aparência vier a ser vivido como entretenimento. Em uma capa lê-se: "Parece brincadeira: 15 minutos na piscina e adeus gordurinhas!" (BOA..., 2007). Brincar na piscina sugere um momento de descontração - "tempo livre" - e está ligado à obtenção de um corpo escultural. Isso ocorre também quando em diversos momentos a revista incita a leitora a praticar exercícios físicos na praia ou no sítio, espaços considerados de relaxamento e descanso.


Uma consideração final: ambigüidade que permanece e ainda o "tempo livre"

    Para a Boa Forma, a beleza é simultaneamente intrínseca à mulher desde seu nascimento, mas o mérito aparece quando a responsabiliza por suas formas corporais. Há que parecer "natural", antes de tudo: o "mérito" deve estar associado à busca pela potencialização do "dom", seja ele verdadeiro ou não.

    Vale, para finalizar, fazer um breve comentário sobre a problemática do "tempo livre" tal como inspiram Horkheimer e Adorno (1997). O trabalho no sentido de algo "pesado", em nossa sociedade, deve ser esquecido. É esta a proposta oferecida pela Boa Forma. Entretanto, ela reproduz a lógica cega do trabalho quando determina à leitora o que lhe seria válido e "prazeroso" no alcance de uma forma perfeita, uma vez que prescreve o consumo de produtos, práticas e lugares específicos para o seu "bem-estar". A inverdade da suposta liberdade acaba por reproduzir as práticas oriundas do trabalho. Reside nesta pedagogia o compromisso da conquista da beleza como sinônimo de sucesso e este como promessa de felicidade. Não é pouco.


Notas

  1. A expressão "menina-comum" significa, neste contexto, uma mulher que não seja atriz, modelo, cantora, ou qualquer tipo de personagem produzido pelo cinema, televisão ou outros meios de comunicação (ALBINO; SILVA; VAZ, 2004).

  2. Já nos anos 1950, "recusar o embelezamento denota uma negligência feminina que deve ser combatida." (SANT'ANNA, 1995: 129).

  3. "[...] o fortalecimento do corpo parecem reviver a utopia de uma vida eterna, na medida em que partilham da crença no progresso infinito, algo que nos faça esquecer da morte. O que se coloca, no entanto, é que a redução do corpo a uma materialidade desqualificada faz com que ele seja visto como maquinismo, natureza cega, ou, o que é pior, como cadáver. O olhar da ciência designa-lhe uma fungibilidade inespecífica, assim como um corpo morto assemelhar-se-á quimicamente, cada vez mais, a outro corpo morto." (VAZ, 1999: 104).

  4. Há todo um vocabulário bélico que oficia uma luta contra o corpo na Boa Forma: "dinamitar", "destruir", "detonar", "atacar" as gorduras, a flacidez, a preguiça, os excessos das festas e dos finais de semana etc.


Referências

  • ALBINO, B. S. Biopolítica, indústria cultural e produção do corpo e bem-estar: um estudo sobre os dispositivos pedagógicos da revista Boa Forma. Trabalho de Conclusão de Curso. (Graduação Licenciatura Em Educação Física) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2006. 63 p.

  • ALBINO, B. S.; SILVA, A. S. da; VAZ, A. F. Meninas-modelos & meninas "comuns": indústria cultural, educação e culto do corpo. Relatório de pesquisa (PIBIC/UFSC/CNPq) - Universidade Federal de Santa Catarina/Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, Florianópolis, 2004. 29 p.

  • BILTOVENI, C. Cláudia Raia: um exagero de mulher. Boa Forma. São Paulo: editora Abril, v. 21, n. 5, p. 88-93, maio/2006.

  • BOA Forma, São Paulo, v. 20, n. 8, agos/2005.

  • BOA Forma, São Paulo, v. 20, n. 7, jul/2005.

  • BOA Forma, São Paulo, v. 20, n. 5, maio/2005.

  • BOA Forma, São Paulo, v. 22, n. 4, abril/2007.

  • BOA Forma, São Paulo, v. 22, n. 9, setembro/2007.

  • FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 15. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2000. 295p.

  • HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. W. Dialektik der Aufklärung: Philosophische Fragmente. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1997. (Gesammelte Schriften Adorno, 3).

  • REIS, C. Vida nova. Boa Forma. São Paulo: Abril, v. 21, n. 3, p. 10, março/2006.

  • REIS, C. Diante do espelho. Boa Forma. São Paulo: Abril, v. 20, n. 6, p. 07, junho/2005.

  • SANT'ANNA, D. B. Cuidados de si e embelezamento feminino. In: _______(Org). Políticas do corpo. São Paulo: Estação Liberdade, 1995, p. 121- 139.

  • VAZ, A. F. Treinar o corpo, dominar a natureza: Notas para uma análise do esporte com base no treinamento. Caderno CEDES, ano XIX, n. 48, ago. 1999.

  • VIGARELLO, G. História da beleza: o corpo e a arte de se embelezar, do renascimento aos dias de hoje. Tradução Léo Schlafman. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.

Outros artigos em Portugués

  www.efdeportes.com/
Google
Web EFDeportes.com

revista digital · Año 12 · N° 117 | Buenos Aires, Febrero 2008  
© 1997-2008 Derechos reservados