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Fragmentos filosóficos (sobre o corpo):
Dialektik der Aufklärung, sessenta anos

   
*Doutor pela Universidade de Hannover, Professor do PPG em Educação e Educação
Física da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Coord. do Núcleo de
Estudos e Pesquisas Educação e Sociedade Contemporânea (CED/UFSC/CNPq).
**Licenciada e Mestranda em EF pela UFSC. Membro do Núcleo de Estudos e
Pesquisas Educação e Sociedade Contemporânea (CED/UFSC/CNPq). Florianópolis, SC.
 
 
Alexandre Fernandez Vaz*
alexfvaz@pq.cnpq.br  
Beatriz Staimbach Albino**
bia_ufsc@yahoo.com.br
(Brasil)
 

 

 

 

 
Resumo
     Trata-se de um breve comentário sobre Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos, de Max Horkheimer e Theodor W. Adorno, publicado há sessenta anos, e do contexto de seu surgimento. O livro analisa o desenvolvimento da razão em contraposição ao mito, verificando em ambos o mesmo impulso e uma continuidade estrutural. Emerge nesse quadro o tema do corpo, fio condutor dos três capítulos e dos dois excursos, tema central de notas e esboços que aparecem no final da obra, em especial, Interesse pelo corpo. Como resultante dolorosa do embate entre natureza e cultura, o corpo materializa-se em sua dialética: alvo da repressão civilizadora, lugar de onde emerge a utopia da felicidade.
    Unitermos: Dialética do esclarecimento. Corpo e civilização. Corpo e cultura. Corpo e razão. Theodor W. Adorno.

O presente texto é resultado parcial do projeto Teoria Crítica, Racionalidades e Educação II, financiado pelo CNPq
(Auxílio pesquisa, bolsa de produtividade em pesquisa, bolsa de apoio técnico, bolsas de iniciação científica).

 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 12 - N° 116 - Enero de 2008

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Introdução

Uma história da razão como problema do presente

    Há sessenta anos foi publicado por uma pequena editora de Amsterdã um livro, escrito nos Estados Unidos da América, mas em alemão, que se tornaria um clássico do século vinte, uma das mais agudas críticas aos destinos da razão no ocidente e ao projeto moderno. Trata-se de Dialética do esclarecimento - Dialektik der Aufklärung (HORKHEIMER; ADORNO, 1997; 1985), cujo subtítulo, fragmentos filosóficos, muito diz sobre os impasses que a Filosofia deveria enfrentar: à fragmentação do contemporâneo e à falência de seus discursos legitimadores, seria preciso corresponder um pensamento que fosse capaz de, com suas próprias armas, fazer-lhe a crítica mais dura.

    Seus autores, Max Horkheimer e Theodor W. Adorno, haviam deixado a Alemanha e buscado refúgio nos Estados Unidos na ante-sala da Segunda Guerra Mundial, escapando ao destino que lhes reservaria sob o regime nacional-socialista. Depois de escalas em outros países europeus, o Instituto de Pesquisa Social, embrião do movimento teórico anos depois batizado de Escola de Frankfurt, se instalara em Nova York em 1934, junto à Universidade de Columbia. O exílio foi o caminho necessário para muitos intelectuais de esquerda e ou judeus, como vários membros do Instituto, Karl Manheim, Norbert Elias, Hannah Arendt, Helmut Plessner, Bertold Brecht, Thomas Mann, Wilhelm Flusser, entre tantos outros. Se os Estados Unidos da América não foram o único destino, não resta dúvida de que o país se tornou o mais expressivo refúgio para aqueles intelectuais, recebendo e incorporando - ainda que não sem dificuldades - muitos refugiados em suas universidades, centros de pesquisa e outros órgãos privados e públicos1.

    O "livro sobre a dialética", como era chamado internamente o projeto, começara a ser concebido no final dos anos 1930, ainda em Nova York, como um esforço intelectual que deveria se defrontar com a tradição do pensamento ocidental e sua crise face aos horrores que culminaram no século vinte. No início da década seguinte as famílias de Horkheimer e Adorno se mudam para a costa oeste dos Estados Unidos, vindo a morar num subúrbio da cidade de Los Angeles. Lá, os frankfurtianos encontraram e reencontraram vários imigrantes de origem germânica, como Thomas Mann, Bertold Brecht e Fritz Lang. É numa atmosfera muito peculiar, a de um círculo germânico em confronto com a expansiva indústria do entretenimento à beira de uma praia paradisíaca que o livro, um dos mais sombrios da história da Filosofia, foi escrito.

    Não bastasse o próprio contexto algo inusitado, a construção de Dialética do esclarecimento não deixa por menos. Em primeiro lugar, foi elaborado por dois autores, algo incomum na produção filosófica. O texto, como costumava acontecer em tempos pré-computadores, foi ditado por ambos para as anotações da esposa de Adorno, a doutora em Química Gretel. A estrutura da redação tampouco é usual, com três capítulos, dois excursos ao primeiro deles e um conjunto de notas e esboços ao final. O tom é de ensaio e apesar do rigor na formulação de cada frase, não há preocupação com a "comprovação" de hipóteses. Os interlocutores são diversos, da Filosofia Antiga a Kant, Hegel, Nietzsche, Marx e também Homero, Mauss e o Marquês de Sade. A inspiração, em grande medida, vem da Filosofia da História de Walter Benjamin2. Cada parte é, sobretudo, de autoria principalmente de um ou de outro dos autores, com exceção, segundo o próprio Adorno (1997a), do capítulo que se dedica à relação entre psicologia e política, onde se analisa o anti-semitismo nazista, ditado inteiramente em conjunto. Não há dúvidas, no entanto, sobre a responsabilidade da autoria comum dos longos e intrincados parágrafos que formam a obra.

    Dialética do esclarecimento procura analisar o que poderíamos chamar de uma meta-história da razão ocidental em seu percurso contraditório: ao derrotar o mito - um discurso primordial sobre o real, constituindo-se, como tal, em uma pré-história da racionalidade - o pensamento esclarecedor torna-se também uma espécie de nova mitologia, ao repetir os mesmos procedimentos do ato mágico; mais que isso, a razão permanece mitológica ao não suportar um fora dela mesma, um momento que pudesse opor-se-lhe como outro, mesmo no interior de seus próprios marcos. É nesse sentido que o esclarecimento é visto como totalitário. Não se trata, no entanto, de qualquer elogio ao misticismo, mas de uma aposta, mesmo que sem qualquer garantia, de que a razão deve, malgrado ela mesma, prevalecer. O mito deriva no esclarecimento, mas este retrocede em direção à mitologia, mesmo ao procurar ser-lhe a mais terrível oposição.


Fragmentos sobre o corpo

    Dialética do esclarecimento é também, de certa forma, um livro sobre o corpo, e não é surpreendente que assim seja, visto que a modernidade é uma experiência histórica que, para o bem e para o mal, o coloca em primeiro plano. É o corpo de Ulisses, tomado como protótipo do sujeito racional nos primeiros capítulo e excurso, que precisa ser controlado por um ego que procura identificar-se consigo mesmo ao enfrentar os mitos que encontra em sua Odisséia - mitos que são expressão da natureza ameaçadora, tanto externa quanto, principalmente, interna, o corpo e seus desejos. É identificando uma cicatriz, marca corporal que eterniza a recordação da dor, que Penélope, a esposa, reconhece Ulisses quando, depois de duas décadas, o comandante do navio está de volta à Ítaca. Somático é o sofrimento que acomete a cada um que persegue, na identificação com o agressor, a moral burguesa, como se lê no segundo excurso, dedicado ao tenso diálogo com Sade, Nietzsche e Kant. Corporal é o domínio político e cultural que a civilização moderna impinge aos que torna (não) sujeitos (da história, à história) sob o signo da indústria cultural e do totalitarismo político, como se pode aprender na leitura dos capítulos dois e três do livro de Horkheimer e Adorno.

    Mas é nas notas e esboços finais que encontramos, junto a outros, um instigante apontamento que nos dirá sobre um Interesse pelo corpo. Segundo se lê logo em seu início, "Sob a história conhecida da Europa corre, subterrânea, uma outra história. Ela consiste no destino dos instintos e das paixões humanas, recalcados e desfigurados pela civilização." (HORKHEIMER; ADORNO, 1985: 215-6; 1997: 265).

    No pequeno texto aparecem muitas das questões que perpassam não apenas o livro, mas as Obras de seus autores. Uma delas é a violenta cisão entre cultura e natureza. Foi esta cisão do humano que, como antes comentado, dota-se de uma racionalidade cuja expressão subjetiva simultaneamente supõe e procura o domínio de si. Essa ruptura, imprescindível para a sobrevivência da humanidade tal como se desenvolveu ao longo de nossa história, se realizou por meio da repressão pulsional e da exigência de um constante adiamento das gratificações. Essa reivindicação do processo civilizador - que é a do esquecimento da natureza que há em cada um de nós - se demarca pela renúncia e, portanto, pelo mal-estar, tal como Freud (1994) já descrevera.

    Esse movimento traumático, de um sentimento não racionalizado de injustiça pela não restituição de algo perdido, ficaria, como afirmam Horkheimer e Adorno (1997, 1985), sempre à espreita, impulsionando uma obscura procura de vingança pela humilhação sofrida silenciosamente. Esse impulso teria como desiderato a instituição de uma relação patológica do humano com o corpo - seu e de outrem, um amor-ódio pelo corpo já vislumbrado na figura de Ulisses, que não apenas domina a si mesmo, ao proteger-se na renúncia frente às sereias, ao amarrar-se ao mastro do navio, mas também os corpos de seus marinheiros, cujos ouvidos foram tapados com cera para que em nada do encantador cântico que embriaga e faz perecer desfrutassem.

    A dubiedade nada balsâmica dessa relação se radica no fato de que o corpo é a expressão do cruzamento entre cultura e natureza, resultado do embate que faz com se exija que ele seja incessantemente controlado, ao mesmo tempo em que, justamente como natureza não inteiramente domada, torne-se também, lugar de desejo que é, um momento utópico de reconciliação.

    O controle se "enobrece" pela ética do trabalho, visto como medida de ascese. A sensação de logro e mal-estar logo se deixa transparecer, por exemplo, na separação entre trabalho e não-trabalho, tempo visto como livre mas que, como pontuará Adorno (1997b), ainda está, na ordem capitalista, por encontrar a liberdade. O "lazer" permanece no círculo infernal do mito, seja como parte dos esquemas da indústria cultural ou como escárnio dos que não precisam vender sua força de trabalho por aqueles que assim o fazem - que são os mesmos de quem dependem para desfrutar do ócio.

    Para Horkheimer e Adorno o desejo de progresso que autoriza a humilhação subterrânea do corpo ao tomá-lo como um objeto irá, de modo aparentemente paradoxal, exaltar esse mesmo corpo na medida em que se deslumbra a possibilidade daquele se tornar a expressão encarnada do progresso. Esse enaltecimento do somático, entretanto, nada mais fará do que perpetuar a relação de reificação outrora já estabelecida. Qualquer apelo retrospectivo, romantizado, estaria fadado, no entanto, a recair na mitologia passadista: "Não se pode mais reconverter o corpo físico (Körper) no corpo vivo (Leib). Ele permanece em cadáver, por mais exercitado que seja. A transformação em algo morto, que se anuncia em seu nome, foi uma parte desse processo perene que transformava a natureza em matéria e material." (HORKHEIMER; ADORNO, 1985: 218; 1997: 267).

    A incessante promessa de reconciliação com a natureza encontra no artista aquele que primeiro exaltará os fenômenos vitais como meio de encontro com a perdida unidade do corpo (Leib) e da alma, mas será a propaganda totalitária - na "política", como expressão perversa nos esquemas da indústria cultural - que utilizará essa pretensa possibilidade para, ao contrário, afastá-lo de sua unidade quando o potencializa, promovendo a falsa reconciliação pelo solapamento do ego. É nesse movimento que os Autores apreendem a perpetuação do ideário fascista de produção de um tipo humano "superior", contraposto à "anti-raça" que deve ser exterminada, os judeus. Podemos ver como isso se atualiza contemporaneamente se atentarmos para a recorrente veiculação dos modelos de beleza e saúde a serem seguidos.

    O que se coloca em jogo nos destinos do corpo e da razão é não apenas o fato de serem outros entre si, mas de expressarem, como utopia, a felicidade: desejo e razão, imaginação e cálculo como promessas a se realizarem contra o medo, inclusive aquele que afronta quando da presença das criaturas miméticas, frágeis, incertas, corpos hesitantes a cambalear. Mas então é preciso retomar a crítica mais severa, aquela que Horkheimer e Adorno destinaram à razão como principal tarefa que ela ainda pode pretender cumprir, a de ser autocrítica, de colocar-se a serviço, dentro mesmo de seus domínios, da condenação da sanha que faz triunfar o mito.


Notas

  1. Sobre o desenvolvimento da Teoria Crítica da Sociedade nos Estados Unidos, consultar, entre outros, Jay (1984), Wiggershaus (1989) e Claussen, Negt e Werz (1999).

  2. Em especial, das Teses. Cf. Benjamin (1980).


Referências

  • ADORNO, Theodor W. (1968/1969) Wissenschaftliche Erfahrungen in Amerika. Gesammelte Schriften 10-2. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1997a, p. 702-738.

  • ______. (1969) Freizeit. Gesammelte Schriften 10-2. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1997b, p. 645-656.

  • FREUD, S. (1919). Das Unbehagen in der Kultur. Studienasugabe: Fragen der Gesellschaft/Ursprünge der Religion. Frankfurt am Main: Fischer, 1994, vol 9.

  • BENJAMIN, Walter. (1940) Über den Begriff der Geschichte In: ______. Gesammelte Schriften (Band I-2). Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1980, p. 691-704.

  • CLAUSSEN, Detlev; NEGT, Oskar; WERZ, Michael. Keine Kritische Theorie ohne Amerika. Frankfurt am Main: Neue Kritik, 1999. (Hannoversche Schriften 1).

  • HORKHEIMER, MaX; ADORNO, Theodor W. (1944/1947) Dialektik der Aufklärung. Philosophische Fragmente. Gesammelte Schriften 3. (Adorno). Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1997.

  • ______. (1944/1947) Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

  • JAY, Martin. Adorno in America. New German Critique, n. 31, Winter, 1984, p. 157-182.

  • WIGGERSHAUS, Rolf. Die Frankfurter Schule: Geschichte - Theoretische Entwicklung - Politische Bedeutung. 2. Aufl. München und Wien, DTV, 1989.

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