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O humanizar pelo esporte: a necessidade de
uma pedagogia do esporte mais complexa

   
Professor, licenciado em Educação Física pelo IPA.
Mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUC/RS.
 
 
José Florentino
jose.a.florentino@gmail.com
(Brasil)
 

 

 

 

 
Resumo
     Não há dúvidas de que o esporte é um fenômeno social de grande relevância. Tal é a sua importância para a sociedade que a prática esportiva hoje, tem-se tornado a "expressão hegemônica" no contexto das práticas de movimento. Portanto, se todo e qualquer processo de formação do ser humano visa ao desenvolvimento pleno, então o esporte enquanto atividade social, desenvolvido por princípios e referenciado por objetivos, se vê pautado por um quadro de valores (morais e éticos) indispensáveis à formação humana. Este trabalho tem como objetivos: a) argumentar em defesa de uma compreensão teórico-epistemológica mais complexa do esporte, contrapondo as visões simplistas e reducionistas de ensinar e pensar esporte para crianças e jovens; b) discutir que valores devem reger o desenvolvimento do esporte na atual conjuntura social, refletindo sobre o papel que o esporte deve representar na construção de novos valores sociais e morais e, por fim; c) realizar alguns apontamentos a respeito de uma pedagogia do esporte mais complexa.
    Unitermos: Pedagogia do Esporte. Paradigma da Complexidade. Paradigma linear. Formação e conduta humana.
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 12 - N° 115 - Diciembre de 2007

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Introdução

    Com o intuito de contribuir com o debate acerca do esporte para crianças e jovens, o presente ensaio está delimitado ao pensamento pedagógico e, porque não dizer, epistemológico em educação física, e suas relações com as práticas esportivas. Entendemos por pensamento pedagógico em educação física a área do conhecimento (pedagogia do esporte) que tem como objetivo analisar e compreender as diferentes formas esportivas, ocupando-se dos fenômenos do jogo, do treino, da competição e da aprendizagem; ao mesmo tempo, esta pedagogia do esporte tem como compromisso refletir sobre o sentido do esporte enquanto prática educadora e formadora da condição e conduta humana (BENTO, 1991).

    Não há dúvidas de que o esporte é um fenômeno social e cultural de grande relevância em nossa sociedade contemporânea. Cada vez mais é possível observar diferentes grupos sociais praticando uma modalidade esportiva, seja nas escolas, nos parques, nos clubes ou nas ruas. Tal é a importância do esporte para a sociedade enquanto fenômeno social que a prática esportiva hoje é comum em todo mundo, tornando-se, fazendo uso das palavras de Valter Bracht (2005: 9-10): "[...] a expressão hegemônica no âmbito da cultura corporal de movimento. Hoje ele é, em praticamente todas as sociedades, uma das práticas que reúne a unanimidade quanto à sua legitimidade social".

    Num período em que a sociedade e a cultura contemporânea caracterizam-se pela transitoriedade, pela aleatoriedade, isto é, pela randomização1 dos saberes e das práticas - sejam estas corporais ou de movimento -, o pluralismo e o verdadeiro relativismo axiológico o qual nos encontramos caracteriza, por assim dizer, a nossa sociedade. Desta forma, assim como na educação, no esporte o estudo dos valores sociais e morais também se faz necessário e, porque não dizer, indispensável.

    Bem sabemos há uma nova orientação, na qual as áreas que se relacionam com o movimento humano não podem estar de fora do contexto social, político, econômico, cultural e humanitário. Para tanto, devemos compreender quais valores buscamos e queremos para nós mesmos, assim como, que valores devem reger o desenvolvimento do esporte na atual conjuntura social. Não obstante, o homem se desenvolve sob a influência de uma ordem de valores, sendo assim, podemos pensar que se todo e qualquer processo de formação do ser humano visar o aperfeiçoamento ou o desenvolvimento pleno, não somente de crianças e jovens, mas também da sociedade como um todo, então o esporte enquanto atividade social, desenvolvido à luz de princípios e referenciado por objetivos, também se vê pautado por um quadro de valores, de mensagens e de comunicações que são indispensáveis à formação humana (QUEIRÓS, 2004).

    Considerando que estamos perante uma sociedade em que há uma crise de valores sociais, os quais nos conduzem, muitas vezes, a uma situação de incerteza e de insegurança social, especialmente entre os jovens que necessitam de um novo rumo no caminho da valorização e da inclusão social, algumas perguntas se fazem necessárias: Como fazer do esporte e de sua prática um meio capaz de (re)orientar nossas crianças e jovens na busca por um desenvolvimento humano eficaz? Qual o valor (sentidos e significados) do esporte em nossa sociedade contemporânea?

    Assim sendo, no intuito de problematizar as questões anteriormente levantadas, a proposição deste ensaio é atingir alguns objetivos, quais sejam: a) argumentar em defesa de uma compreensão teórico-epistemológica mais complexa do esporte, contrapondo as visões simplistas e reducionistas de ensinar e pensar esporte para crianças e jovens; b) discutir que valores devem reger o desenvolvimento do esporte na atual conjuntura social, refletindo sobre o papel que o esporte deve representar na construção de novos valores morais e éticos e, por fim; c) realizar alguns apontamentos a respeito de uma pedagogia do esporte mais complexa.


O esporte na sociedade contemporânea

    Resultado de um processo sucessivo de acontecimentos, a sociedade contemporânea altera-se rapidamente. O projeto da modernidade e seus valores esgotaram-se e deixaram de conseguir dar resposta às exigências de uma sociedade que se afirma cada vez mais complexa. Para Boaventura de Sousa Santos (1997), toda esta situação se deve ao processo de transição e transformação pelo qual estamos passando em nossa sociedade. Segundo Sousa Santos, a modernidade não conseguiu dar conta dos fenômenos e de todas as expectativas e avanços que ocorreram no âmbito cientifico e social.

    Os valores pós-materialistas são mais humanos, menos orientados pelo futuro, mais ligados ao presente e por isso expressam, de um lado, "a diminuição de importância de outros valores tais como disciplina, subordinação, rendimento e, por outro lado, um aumento de importância de valores tais como autodeterminação, autonomia, comunicação, fruição da vida e criatividade" (QUEIRÓS, 2004: 193). O esporte tornou-se, assim, um grande meio desta cultura do tempo livre, e o que fez com que o modelo tradicional caracterizado, em primeiro lugar, pelo treino e competição (e inspirado no trabalho) começasse a dar lugar a outros valores, ligados a uma forte acentuação de comportamentos hedonistas, já que os valores tradicionais não são mais suficientes para tratar de todas as necessidades e exigências do contexto atual (QUEIRÓS, 2004; STIGGER, 2005).

    O esporte é plural. Plural aos motivos, sentidos, formas e intenções dos sujeitos que o praticam, caminhando junto com os valores das sociedades contemporâneas, uma vez que as mesmas se caracterizam pela acentuação e valorização do sujeito e de suas necessidades. Em particular, pensamos ser importante, fazendo uso das palavras de Queirós (2004: 194 [grifo nosso]):

Quando nos referirmos ao enquadramento axiológico do esporte para crianças e jovens, perceber quais os motivos e valores que servem de referência orientadora daqueles que o praticam, percebendo até que ponto o modelo de esporte atual [baseado no rendimento, na competição] se ajusta às novas sensibilidades e expectativas dos praticantes esportivos.

    Não obstante, na era moderna o esporte apresenta-se como uma pedagogia voltada para o prazer, para a busca da forma física; o esporte assume novas características para a cultura, refletindo numa ampla pluralização de sentidos e significados. Fato, este, que pode ser percebido com o surgimento de novas formas de práticas esportivas como, por exemplo, os esportes radicais (BRACHT, 2002).

    Assistimos, portanto, a uma (re)valorização dos espaços de lazer. Há uma procura por novos estilos de vida, pelo prazer da prática esportiva, em que a busca pelo novo, o excitante e o risco são uma constante. Hoje em dia os esportes caracterizam-se pela diversidade, não havendo espaço para discursos unificadores "tampouco comporta afirmações como as que encontramos escrita em dicionário autorizado: 'esporte é um substantivo que não faz falta traduzir, pois se entende perfeitamente tanto na Austrália como no Alaska e como na Patagônia'" (ENRILE, 19772 apud PADIGLIONE, 1995: 30, tradução nossa).


Pedagogia do esporte, linearidade e complexidade

    Ao buscarmos inter-relacionar a pedagogia do esporte com o pensamento complexo, e suas implicações para o desenvolvimento da conduta humana de crianças e jovens, a intenção é mostrar o esporte como um fenômeno complexo, uma vez que o mesmo tem-se constituído num elemento atraente da cultura, angariando um número cada vez maior de adeptos no mundo, estando presente na vida de diversas pessoas. Para termos uma idéia da dimensão social alcançada pelo esporte, basta dizermos que hoje existem mais países filiados ao Comitê Olímpico Internacional (COI) e à Federação Internacional de Futebol Amador (FIFA) do que à Organização das Nações Unidas (ONU). Apesar disso, "ao longo da história da educação física brasileira até os dias de hoje, a pedagogia do esporte, em grande parte, pouco se preocupou em educar considerando, e até mesmo respeitando, a complexidade das pessoas e dos fenômenos sociais [que as cercam]" (SANTANA, 2005: 1 [grifo nosso]).

    Dessa forma, o que pretendemos é discutir uma pedagogia do esporte para criança e o jovem que não esteja fundamentada numa visão ou paradigma3 que chamamos linear. Uma visão teórico-linear é sempre uma visão reducionista, simplista de ver o mundo e os fenômenos que o cerca, sejam estes de natureza social ou não. Esta visão de mundo - comumente chamada de cartesiana - assenta-se no velho princípio que busca disjuntar, simplificar, reduzir todo o problema em tantas partes quanto forem possíveis sem poder comunicar aquilo que está junto, isto é, sem poder entender o todo, o contexto ou a complexidade dos fenômenos de nossa sociedade.

    De outro lado, consideramos importante pensar uma pedagogia em esporte que tenha por base o paradigma da complexidade, ou seja, um pensamento complexo que procure mostrar que os fenômenos não podem ser compreendidos por meio da análise, da fragmentação, mas sim, que os fenômenos complexos só podem ser entendidos dentro de um contexto maior (reconhecendo que o todo é maior que a soma das partes). Por outras palavras, os fenômenos só podem ser compreendidos por um sistema de pensamento aberto e flexível (FLORENTINO, 2006a).

    Não obstante, com o intuito de confrontar a visão linear e reducionista que permeia, por assim dizer, a educação física em geral e a pedagogia do esporte em particular no que concerne o ensino do esporte para crianças e jovens, a proposição desta reflexão é contribuir para uma pedagogia do esporte que corrobore o processo de desenvolvimento humano, à luz do paradigma complexo.


    O paradigma linear e a pedagogia do esporte

    A temática da complexidade (muito em voga no meio acadêmico) ganha referência teórica no final do século XIX e início do século XX, fato este que se deveu a partir das inúmeras transformações nas ciências naturais e matemáticas operadas nas primeiras décadas do século XX e que, entre outras mudanças, "colocaram em dúvida o estatuto epistemológico e ontológico da física newtoniana, à qual se ligavam as idéias de universo determinista4, reduções a causas últimas, mecanismo e reversibilidade" (NEVES; NEVES, 2006: 183). Expressões, estas, úteis para se entender o conceito de complexidade anterior ao que conhecemos hoje e o porquê do fascínio que as matemáticas exerciam.

    Assim, com o filósofo Descartes (1596 - 1650) a ciência viveu seu momento de expansão e descobertas, passando de uma noção de mundo espiritual para uma noção de mundo como uma "máquina perfeita" (FLORENTINO, 2006a). Descartes (1997) acreditava na possibilidade de conhecer e de chegar a verdades absolutas a partir do uso da razão. Na busca de uma matemática universal ele argumentava pela progressão de termos superiores através da informação dos anteriores, como se tudo pudesse, de alguma forma, ser derivado de causas primeiras, isto é, "produzir efeitos pondo em ação causas adequadas" (GRANGER, 19795 apud NEVES; NEVES, 2006: 183). Para Descartes, o Universo - aqui se inclui os seres vivos (sistemas vivos) - era como uma máquina. "Este Universo, ademais, é ordenado e harmônico, existe uma idéia de totalidade que pôde, após Newton (1642 - 1727), ser descrita por leis elegantes e simples" (NEVES; NEVES, 2006: 184). Neste sentido, a natureza funcionava de acordo com leis mecânicas e tudo no mundo material podia ser explicado em função da organização e através da análise de suas partes.

    Em suma, o que se configurou a partir daí foi uma visão de mundo que se sustentava em premissas como: a ordem das coisas, a legislação universal, a matemática, a máquina, o determinismo. Com efeito, este modo de compreender o Universo vai exercer forte influência em outros campos do conhecimento (Biologia, Filosofia, Física, Sociologia) e, mais tarde, como veremos, na própria educação física, "devido em parte, às conquistas da revolução científica que se finalizavam no século XVII com a mecânica newtoniana e suas leis do movimento" (NEVES; NEVES, 2006: 184). De certa forma, as ciências humanas e as ciências biológicas se tornariam contribuintes de tais empreendimentos, que acabaram reconfigurando a visão de mundo de uma época. Este princípio cartesiano-mecanicista tornou-se o paradigma dominante da ciência moderna, passando a orientar a observação científica e a formulação de todas as teorias dos fenômenos naturais e sociais. Senão, vejamos, por exemplo, o modo como foi sendo construída a visão de corpo do ser humano ao longo da história. Visão, esta, que teve e, porque não dizer, ainda tem forte influência na maneira como pensamos e vemos a prática em educação física e esporte:

O trato com o corpo do ser humano ao longo da história ocidental, alicerçado na ciência moderna pelo mecânico, foi sendo construído a partir da idéia de homem-máquina, aquele que poderia ser manipulado, adestrado, disciplinado, em última análise, para o aparecimento de um corpo dócil, cumpridor de ordens, visando à manutenção do já estabelecido e da permanência do poder e dos poderosos (MOREIRA; PELLEGRINOTTI; BORIN, 2006: 186 [grifo nosso]).

    O corpo humano, ao ser comparado com uma máquina, recebe uma educação que o considera apenas em seu aspecto mecânico, sem vontade própria, sem desejos e sem o reconhecimento da intencionalidade do movimento humano, o qual é explicado através da mera reação a estímulos externos, sem qualquer relação com a subjetividade. O pensamento de Descartes, fundado no exercício do controle e no domínio da natureza, influencia a educação através da racionalização das práticas corporais6. Ao ter como princípios a utilidade e a eficiência, buscou-se a padronização dos corpos.

    Tal fato resulta o que vemos atualmente em nossa educação em geral e em particular no ensino da educação física e do esporte, um distanciamento entre a aprendizagem e as possibilidades de experiências sensíveis com relação a sua prática, fato este explicado pelo desejo de querer um mundo durável de uma razão e racionalização que quantifica, mede e que considera os sentidos como enganadores. "É assim, hegemonicamente centrada na racionalização, que se ensina na maioria de nossas escolas" (GAYA, 2006: 254).

    Ainda nos deparamos, na prática pedagógica em educação física, com métodos reducionistas e mecanicistas de pensar e ensinar esporte. Métodos, estes, excludentes que se caracterizam por uma preocupação excessiva no desenvolvimento das habilidades físicas e motoras dos alunos - na busca pelos mais "aptos" ao esporte. Problema, este, que pode ser explicado pelo fato de nem sempre terem elegido uma pedagogia que se preocupasse em educar considerando a complexidade do educando e do próprio ato de se educar (SANTANA, 2005).

    Cabe aqui um pequeno parêntese, qual seja: não estamos querendo, de maneira alguma, abolir a competição entre os que praticam esporte, pelo contrário, sabendo dosar, a competição é extremamente sadia entre crianças e jovens. Portanto, concordamos com Santana (2005: 2) quando afirma que "o esporte é, independentemente da esfera que se manifeste, educacional". Santana está se referindo ao fato de muitos autores não considerarem o caráter educacional que está arraigado na prática do esporte de rendimento ou espetáculo. Para o autor, a educação, de modo geral, possui caráter permanente, sendo assim, não é possível escaparmos dela ao se fazer, por exemplo, um determinado esporte - de participação, de lazer, educação, espetáculo, telespetáculo -, independente da divisão ou da conceituação que queiram dar a ele.

    Em particular, o grande problema a nosso ver, está na visão de desenvolvimento da criança que enfatiza simplesmente o mecânico, o rendimento, o alto nível. Com efeito, esta visão reducionista e racionalista acaba conduzindo, de acordo com Moreira, Pellegrinotti e Borin (2006: 186-187): "[...] a uma política de manipulação de gestos, de comportamentos, de corpos exercitados e dóceis, ou às vezes de corpos em situação de relações violentas, exacerbando o sentido de competição [...]", desprezando, por assim dizer, outras dimensões do fazer humano como, por exemplo, a afetividade, a moralidade, a ética, o respeito, a sociabilidade, o prazer pela prática. Ou seja, uma visão simplista de que o movimento nada mais é que um comportamento, um gesto motor, onde o corpo é tido apenas como uma "máquina perfeita", constituído por músculos, ossos, órgãos e tecidos, esquecendo-se, no entanto, que este mesmo corpo possui alma, emoções e sentimentos (FLORENTINO, 2007a).

    Apesar disso, a educação física em geral e o esporte em particular sempre pretenderam e, ainda pretendem, em alguns casos...

educar as pessoas a partir de um paradigma reducionista: ou para que sejam mais saudáveis, ou para que sejam mais bem preparadas para um determinado fim, ou para desenvolver capacidades físicas, ou para competirem, ou para se tornarem atletas olímpicos. Não que essas coisas não tenham relevância, mas não podem ser vistas de forma isolada, imperativa e, sobretudo, disjunta de necessidades e possibilidades da maior parte das pessoas (SANTANA, 2005: 3 [grifo nosso]).

    Não obstante, podemos dizer que essa maneira de pensar esporte-reducionista encontra lugar em muitos professores de educação física. Poderíamos supor até mesmo que esta forma de ver e pensar a prática esportiva vem do fato de que muitos pedagogos em esporte7 desconhecem a real complexidade dos fenômenos ser humano e esporte:

Ao longo da história da educação física brasileira [...] nem sempre se elegeu uma pedagogia que se preocupasse em educar considerando a complexidade [...] a pedagogia do esporte educa as crianças mais para a consecução de metas de treinamento preestabelecidas e menos para a autonomia, a descoberta e a compreensão de si mesmas, denunciando um desequilíbrio pedagógico entre o racional e o sensível (SANTANA, 2005: 3).

    Em face do que foi exposto acima, escrever acerca do esporte para crianças e jovens demanda, conforme, Moreira, Pellegrinotti e Borin (2006: 185), "uma análise pormenorizada dos fenômenos ser humano e esporte, pois só poderemos conceber uma prática esportiva a partir do sujeito que pratica esporte". Para tanto, temos que colocar em evidência os dois fenômenos, tendo o cuidado de nunca justificar o esporte por si mesmo, como uma entidade autônoma e não dependente do fazer humano.

    Ao tratarmos do esporte para crianças e jovens o que vemos, de modo geral, é uma pedagogia que tem por fundamento o desprezo pelo desenvolvimento das dimensões sensíveis, tais como, a moralidade, a sociabilidade, a afetividade; em face, privilegia a dimensão racional e quantitativa. Além disso, esta pedagogia simplista e reducionista tem a tendência em eleger um tipo ideal de atleta que acaba sendo seguido ou mesmo perseguido por aquela criança ou adolescente que está iniciando num determinado esporte (SANTANA, 2005).

    No esporte, assim como na educação, o desenvolvimento dos valores (sociais, morais e éticos) também se faz importante e necessário quando o que está em jogo é a formação humana de nossas crianças. Numa época de profundas mudanças, em que há um pluralismo de idéias e de culturas, as crianças e os jovens carecem de encontrar na prática esportiva, um modelo de esporte que respeite a sua identidade, suas diferenças e seus limites, dizemos isto, pois um problema que temos observado na prática profissional "é a tendência [errônea] em se reduzir o esporte à competição e ao rendimento" (FLORENTINO, 2007b: 22).

    Para Santana (2005: 4), essa "maneira racional de pensar alimenta a falsa crença de que o esporte obedece a um processo linear de desenvolvimento com começo, meio e fim". O autor acrescenta que:

[...] estabelece-se, a priori, uma gênese em que o final da linha é o ideal de atleta pretendido. Logo, às crianças basta perpassarem as diferentes etapas de treinamento [processual] e submeterem-se às suas exigências. O fato é que esse tipo de pedagogia tende a eleger princípios e procedimentos de ensino reducionistas [...] (SANTANA, 2005: 4, [grifo nosso]).

    Segundo Capra (1996), para o pensamento cartesiano, linear, todo o fenômeno posto no mundo tem que ser analisado, processado a partir das propriedades de suas partes, do conhecimento do mais simples até o conhecimento do mais complexo. De certo modo, tal forma de pensar o fenômeno esporte não é diferente da maneira de pensar do paradigma linear, tendo em vista que esta aparente fragmentação e redução do fenômeno, é uma característica perceptível na pedagogia do esporte, o que acaba dificultando o estabelecimento de ações, uma vez que se diminuem as "potencialidades específicas que o esporte encerra para corresponder às necessidades de formação, educação, desenvolvimento e configuração da identidade e auto-conceito dos adolescentes" (BENTO, 2004: 29).

    A preocupação exposta acima por Bento ganha força nas palavras de Santana (2005: 7) quando afirma que em se tratando da iniciação esportiva de uma criança - não importando a qual modalidade esteja inserida - os objetivos em geral já estão estabelecidos, pré-determinados, uma vez que...

a criança deve ser selecionada e educada num tipo de esporte ao longo de temporadas, a fim de passar por diferentes momentos do treinamento, aprender a competir, a conquistar as vitórias e a superar os obstáculos que a transformarão no ideal de atleta pretendido [...] é muito pouco resumir a pedagogia do esporte na infância ao cumprimento de etapas e premissas de um treinamento que se preocupa com quem treina apenas com o objetivo exclusivo de uma preparação futura.

    Portanto, uma alternativa para os dados que foram expostos anteriormente seria pensarmos o ensino e aprendizagem do esporte a partir de uma visão complexa, sistêmica (holística). Para Capra (1996), o pensamento sistêmico e/ou complexo tem mostrado que não há espaço para se pensar os fenômenos de maneira linear, ou seja, os fenômenos não podem ser compreendidos por meio do reducionismo e do determinismo.

    Em resumo, tomando como exemplo a questão do esporte, este não pode se resumir a uma pedagogia que apenas se preocupa com o treinamento, objetivando apenas a preparação de futuros atletas. Como um fenômeno complexo, o esporte deve ser entendido dentro de um contexto maior que englobe um sistema de pensamento mais abrangente, pois os fenômenos biológicos e sociais apresentam um número incalculável de interações, uma fabulosa mistura que não poderia ser calculada nem pela mais potente das máquinas (MORIN, 2003, 2005).

    Desse modo, um desafio que se impõe aos professores e futuros profissionais em educação física, está em fazer com que as crianças e adolescentes tenham acesso a uma prática esportiva, que a pratiquem da melhor maneira possível, que aprendam e, sobretudo, aprendam a gostar desse esporte (FREIRE, 2003). O esporte mudou e hoje o que as pessoas procuram é uma prática esportiva que não se resuma aos conceitos antigos nem se balize pura e simplesmente no rendimento e no espetáculo.


    Pedagogia do esporte: a necessidade de um pensamento mais complexo

    No quadro dos altos e baixos de nossa sociedade contemporânea vivemos hoje em tempos de mudanças. Um tempo definido pela busca e experimentação de atividades novas que se expressam em diferentes domínios de nossa vida e que geram um nível alto de possibilidades de ações e sensações. Estes tempos que nos referimos são tempos de: sentir, experimentar, explorar; viver as enormes possibilidades, auto-realizantes, divertidas, enriquecedoras e saudáveis que invadem todos os domínios da nossa vida, tais como, a escola, o lazer, o esporte, as festas populares, etc. Vivemos num período em que a sociedade mundial caracteriza-se pelo pluralismo de idéias, pela complexidade das práticas e dos saberes.

    Mas o que vem a ser complexidade? Para Morin e Le Moigne (2000), a complexidade é uma palavra-problema e não uma palavra-solução; a complexidade desafia, não dá respostas. A dificuldade em conceber este pensamento complexo está no fato de que ele (pensamento complexo) deve enfrentar o emaranhado, a contradição e, porque não dizer, a solidariedade dos fenômenos entre eles. Independentemente das definições propostas a respeito da complexidade, ela surpreende pela sua irrealidade, isto é, pela irreversibilidade de seu conteúdo, por sua dificuldade de entendimento, por não possuir um sentido concreto. Com efeito,

difere da complicação, com a qual ela é confundida, por preguiça intelectual ou por galanteria retórica, que se caracteriza facilmente por sua visibilidade. A complexidade está para a complicação do mesmo modo que a entropia está para a energia: uma espécie de avaliação do 'valor de mercadoria', definida pelo observador, de um lingote de mistura metálica, com determinado peso e imposto a este observador. O 'muito complicado' pode não ser 'muito complexo' e o muito simples (o grão da matéria!) pode ser dado como muito complexo (MORIN; LE MOIGNE, 2000: 219 [grifo dos autores]).

    Quando pensamos no esporte para crianças e jovens não há como dissociá-lo das idéias acima expostas, tendo em vista que o esporte em si é permeado de unidades, de relações entre estas unidades, de significados, de incertezas, não podendo, portanto, ser resumido a uma idéia simples ou a uma lei. Isto nos remete ao sistema esportivo centrado nos quadros competitivos, em que a pedagogia do esporte fortemente influenciada pelo paradigma reducionista, busca e elege o tipo ideal de atleta, promovendo a fragmentação, a exclusão e a seleção esportiva como forma de se chegar às seleções futuras (SANTANA, 2005). É preciso, pois, pensar num esporte para todos e não num esporte que seja privilégio apenas dos mais dotados.

    Francisco Homem (2003) salienta que o grande problema está na crença errônea de muitos profissionais em educação física de que o esporte é somente para quem tem talento. Tal fato, segundo Santana (2005), nos remete a pensar no número de crianças e adolescentes que se submetem a este tipo de pedagogia; uma pedagogia que elege o rendimento, as vitórias e a competição como o maior objetivo. A este respeito o autor assevera que:

[...] uma pedagogia reducionista [...] se faz quando ignora o todo em detrimento das partes; que ignora, por exemplo, que a criança que se interessa por esporte é a mesma que se relaciona com os amigos, com a família, com a escola, que tem necessidades de brincar despretensiosamente, de se divertir, de ser aceita, de transpor limites, que imagina ser esse ou aquele craque, que tem desejo de jogar, que precisa aprender a conviver, a cooperar e a construir autonomia. Portanto, a criança que faz esporte não é apenas o atleta em potencial que alguns procuram, pois acalenta em si e fora de si uma sociedade de fatores [imprevisibilidade] que nem sempre atenderam os desejos unilaterais de um pensamento simplista (SANTANA, 2005: 8 [grifo nosso]).

    O pensamento complexo configura-se numa nova visão de mundo, que aceita e procura compreender as mudanças constantes do real e não pretende negar a multiplicidade, a aleatoriedade e a incerteza dos fenômenos, mas sim, conviver com elas. Este pensamento tem-se revelado contextual - uma vez que, procura explicar os fenômenos considerando o seu contexto, a sua totalidade e a sua interatividade -, sendo utilizado por teóricos de diferentes áreas do conhecimento (professores, cientistas sociais, pedagogos do esporte, técnicos, psicólogos, etc.) que buscam dar conta de uma complexidade teórico-científica sempre crescente (FLORENTINO, 2006a).

    Contudo, é importante dizermos que não se trata, de acordo com Morin (2005), de retomar a ambição do pensamento reducionista que é a de controlar e dominar o real. A intenção do pensamento complexo não é a de controlar o caos aparente dos fenômenos, mas sim, trata-se de exercer um pensamento capaz de lidar com o real. Para tanto, deve-se ter em mente que a complexidade não vem em substituição da simplicidade, a complexidade surge onde o pensamento simplificador é ineficiente, ou seja, na explicação de fenômenos complexos.

    Cada vez mais, as pessoas procuram uma prática esportiva que não se resuma ao modelo tradicional de esporte. Atualmente, as pessoas buscam uma modalidade esportiva que lhes proporcionem o contato com a natureza, o espírito de aventura, o prazer, enriquecendo, por assim dizer, a vida quotidiana (FLORENTINO, 2007b). A maioria dos estudos sobre o esporte já vem apontando para um sensível aumento da sua importância em termos qualitativos nas sociedades pós-modernas, mostrando que o esporte vem se desenvolvendo como um sistema flexível, informal e não-formal, correspondente àquilo que poderíamos considerar ser o esporte como um direito de todo o cidadão (HOMEM, 2003).

    Dessa forma, cabe aos professores de educação física criar condições para que o esporte seja assumido como um valor de referência na formação de crianças e jovens. Em particular, devemos enquanto professores e pedagogos em esporte lutar contra uma pedagogia que está mais preocupada em cumprir metas e etapas de treinamento, estabelecendo um tipo idealizado de modelo de atleta que deve ser seguido milimetricamente. Em face, acreditamos ser importante visualizarmos e implementarmos uma pedagogia mais complexa que respeite a vontade e os hábitos esportivos de cada criança para, assim, irmos ao encontro de um "novo esporte", mais educativo e responsável.

    Não obstante, para alterarmos o quadro descrito no item anterior, é preciso entendermos que qualquer que seja a modalidade esportiva que o cidadão venha a optar, como fator de saúde, de prazer ou mesmo na busca de resultados, este deve merecer uma atenção redobrada de profissionais formados e, ao mesmo tempo, de uma "formação de profissionais que desenvolvam conhecimento e pesquisas no sentido de propiciar a esse sujeito os benefícios que ele espera da prática esportiva" (MOREIRA; PELLEGRINOTTI; BORIN, 2006: 188).

    Adentrando na questão da formação profissional em esporte, acreditamos serem importantes algumas considerações de cunho teórico-epistemológico quando o que está em jogo é a formação e o desenvolvimento de nossas crianças. Com relação ao trabalho interdisciplinar, Moreira, Pellegrinotti e Borin (2006) salientam que a base epistemológica pode ser conseguida por meio da teoria da complexidade, pois para os autores o profissional em esporte deve ser um educador na sua relação com os seus alunos e um pesquisador dos elementos que, por assim dizer, constituem a complexidade do fenômeno esportivo. Nas palavras dos autores:

Esse complexo universo da formação profissional em Esporte deve contemplar elementos, numa teia de integrações, que estão presentes nos sentidos de ensino, pesquisa e extensão a partir do fenômeno ser humano que pretende desenvolver conhecimento e prática em esporte, como: Filosofia, Antropologia, Psicologia, História, Administração, Pedagogia, Medicina, Fisiologia, Biomecânica, Anatomia, Testes e Procedimentos Estatísticos, Formas de Avaliação. Com esse suporte, por exemplo, deverão aparecer pesquisas que, nas áreas das humanidades, questionam os valores éticos da prática esportiva, investiguem as razões, o porquê de determinadas comunidades serem afetas a determinados esportes [...] (MOREIRA; PELLEGRINOTTI; BORIN, 2006: 188).

    Sendo assim, é correto afirmar, como havíamos salientado no início deste ensaio, que o professor ou pedagogo em esporte é um educador e, por ser um educador a pedagogia terá uma participação decisiva na facilitação de conhecimentos, de valores e no saber-fazer e no saber-compreender as atividades e os pressupostos ligados ao esporte, tanto para crianças quanto para jovens e adultos. O esporte enquanto fenômeno cultural e social apresenta-se numa complexidade organizacional, onde o todo e as partes se inter-relacionam (MOREIRA; PELLEGRINOTTI; BORIN, 2006). Isto significa dizer que o esporte é formado pelo tecido da complexidade, o qual é composto de diferentes variáveis que, por sua vez, geram outras variáveis - num espaço de tempo o qual não podemos determinar - que se inter-relacionam e que não podem ser explicadas por uma matriz reducionista, mas sim, por uma matriz complexa.

    Outrossim, a complexidade traz em seu seio o desconhecido, o misterioso. A complexidade nos torna sensível a enxergar as evidências, antes imperceptíveis, isto é, a impossibilidade de expulsar a incerteza do conhecimento. O problema da complexidade não é o de colocar a incerteza entre parênteses ou de fechar-se para um ceticismo generalizado, mas o de integrar profundamente a incerteza no conhecimento e o conhecimento na incerteza, para compreender a natureza da natureza (MORIN, 2003).

    Com efeito, a educação física e a pedagogia do esporte como um todo não devem se preocupar apenas em ensinar as técnicas corretas do esporte; mas, serem uma área que torne seus alunos sujeitos autônomos e emancipados nas questões corporais, nos valores morais e éticos. Santana (2005: 6) acrescenta que:

O pensamento complexo não exclui conhecimentos. Tampouco exclui o surgimento de crianças que chegarão ao esporte profissional. Trata-se de levantar o fato de que não dá para reduzir a ação do pedagogo esportivo apenas à consideração desses e de outros fatores sob o signo da racionalidade. Há outras dimensões humanas, como a afetividade, a sociabilidade, o desenvolvimento moral, e toda uma série de evidências de complexidade relevantes [...].

    Pensamos que o professor no trato com o esporte deve desenvolver uma abordagem mais complexa que se preocupe com a formação da criança e do adolescente, oportunizando novas experiências, criando condições para que o esporte se assuma como um valor de referência na saúde e no bem-estar de muitas crianças e jovens. Em outros termos, uma pedagogia e um esporte que esteja voltado para o novo enquadramento axiológico de nossa sociedade na participação de crianças e adolescentes, refletindo, sobretudo, uma elevada significação existencial para todos aqueles que nele participam ou virão a participar. Ou, como salienta Bento (2004: 35): "estou a pensar em tudo quanto nos perfaz por dentro e por fora, nos pensamentos e atos, nos sentimentos e gestos, nos ideais e nas palavras, nas emoções e reações. Estou a pensar no Homem-Todo, na pessoa de fora e na expressão da sua beleza e grandeza na pessoa de dentro".

    Ou seja, uma visão de esporte que tenha como substrato o paradigma da complexidade que outras áreas já reivindicam, e que consiste numa visão sistêmica, ou seja, holística que "consiga, através de um esforço de convergência e de coexistência, superar o passado (nem o negar ou ignorar) e incorporar toda a pluralidade e pluridimensionalidade do esporte dos tempos contemporâneos" (QUEIRÓS, 2004: 196).

    Dito isto, devemos procurar ver a complexidade não como um conceito teórico, mas como um fato da vida. "Por mais que tentemos, não conseguiremos reduzir essa multidimensionalidade a explicações simplistas, regras rígidas, fórmulas simplificadoras ou esquemas fechados de idéias" (MARIOTTI, 2000: 87). Neste sentido, o paradigma complexo resultará do conjunto de novas concepções, de novas visões, de novas descobertas e de novas reflexões que vão se reunir. Segundo Morin (2005: 77 [grifo nosso]): "Estamos numa batalha incerta e não sabemos ainda quem será o vencedor". O pensamento complexo resulta da complementaridade das visões de mundo linear e sistêmica; essa abrangência possibilita a elaboração de saberes e práticas que permitem buscar novas formas de entender a complexidade dos sistemas naturais e de lidar com ele, o que evidentemente inclui o ser humano e o esporte.


Qual o valor do esporte na sociedade contemporânea?

    É sabido que vivemos numa sociedade complexa e caótica. A instituição família encontra-se, hoje, de "mãos atadas" que, somado ao desaparecimento da socialização primária, mergulha numa profunda crise de valores sociais. É neste ponto que entendemos o papel decisivo do esporte, juntamente com a educação, na busca por princípios e valores sociais, morais e éticos. É necessário, portanto, buscarmos uma nova orientação a qual os valores do esporte, do jogo e da brincadeira, não permaneçam apenas dentro das escolas ou dos clubes, mas que transitem para além. Dessa forma, cabe ao professor de Educação Física criar condições para que o esporte seja assumido como um valor de referência na inclusão e no bem-estar, não apenas de crianças e jovens, como também de adultos e idosos (FLORENTINO; SALDANHA, 2007).

    Outrossim, no esporte, assim como na educação, o desenvolvimento dos valores também se faz importante e necessário quando o que está em jogo é a formação humana. É sabido que o esporte apresenta um caráter normativo e prescritivo em suas práticas, onde existam responsabilidades e direitos, quer tratamos do esporte no setor da educação, da saúde, do lazer, da cultura ou do rendimento. O esporte comporta e deve assumir seu estatuto cultural e as obrigações que esta circunstância lhe impõe, incluindo sua dimensão de tempo e espaço (BENTO, 2004).

    No mundo contemporâneo, diversos fatores interferem, pressionam e geram expectativas e tensões na vida social. De modo geral, tais fatores podem estar relacionados aos problemas que decorrem do avanço científico e tecnológico de nosso tempo. Convivemos com mudanças contínuas, crises paradigmáticas, ausência de valores morais e éticos, ou seja, vivemos e convivemos com a instabilidade, com o indeterminismo. Num mundo que se caracteriza, cada vez mais, pela complexidade podemos nos questionar que tipo de educação e de esporte deverá permear nossa sociedade complexa e de valores tão mutáveis. Nas palavras de Roitman (2001: 147):

O grande desafio que se nos apresenta e deverá ser enfrentado por todos nós, nesse período de grandes mudanças tecnológicas, com novos padrões de comunicação, em uma globalização unificadora das sociedades, em meio a crises, competições, desencontros, quebras de valores e instabilidade, é o de educar sem perder a perspectiva do humano.

    Dessa forma, que contribuições caberiam ao esporte e à educação física na formação humana de crianças e jovens? Podemos dizer que o esporte e sua prática estão diretamente relacionados ao homem e à sua necessidade de humanizar-se, tornando-se pleno e intrinsecamente inserido na trajetória histórica e cultural de seu povo. Atualmente são várias as manifestações de cultura corporal de movimento na contemporaneidade, todas elas aglutinando o exercício físico a uma prática socializante. Para Angelo Vargas, o esporte é uma instituição privilegiada em que o mito, a sociedade e a própria humanidade se inscrevem de forma profunda, pois...

nele estão inscritos a força e a técnica, o empenho e o desempenho, a aventura e o risco, a inteligência e a intuição, o indivíduo e o grupo, a sorte e o azar, o gênio e a equipe, a ética e a estética, a moral e o imoral [...] resumindo: o desporto envolve o homem na plenitude de sua individualidade e de ser social (VARGAS, 1995: 123 [grifo nosso]).

    Não é segredo para ninguém o papel primeiro que o esporte representa, o de propiciar a vivência do jogo, da comunicação, da cooperação, da sociabilidade, da competição, etc. esporte e homem estão interligados, um depende do outro; assim sendo, podemos dizer que o esporte "emerge de um campo absolutamente constitutivo da essência humana: a necessidade fundamental de estar ativo, de agir e de se movimentar livre de exigências e prescrições, implicando a totalidade do homem (intelecto, emoções, sensações e motricidade) [...]" (BENTO, 2004: 39-40 [grifo do autor]).

    Hoje, há uma nova orientação, por assim dizer, na qual as áreas que se relacionam com o movimento humano - incluindo o esporte - não podem estar isoladas de seu contexto social, cultural e humanístico. De acordo com Queirós (2004), não se pode mais ignorar as mudanças que ocorrem no sistema social e no sistema tradicional do esporte, tendo em vista que o mesmo está inserido em uma mudança de valores, tal como outros sistemas parciais da sociedade contemporânea. Para tanto, devemos buscar compreender quais os valores que regem o desenvolvimento do esporte na atual conjuntura social; qual o seu paradigma norteador no processo de mudanças axiológicas as quais estamos vivendo contemporaneamente.

    Os sistemas sociais, como um todo, e os diferentes sistemas sociais em particular, desenvolvem-se a partir de uma ordem dominante de valores ou de diferentes valores ao longo de nossas vidas; valores, estes, que derivam do tipo e das características comunicacionais de cada agrupamento pertinente ao "sistema-mundo" (FLORENTINO, 2006b; FLORENTINO; SALDANHA, 2007). Portanto, podemos pensar que se todo e qualquer processo de formação do ser humano visa o aperfeiçoamento ou o desenvolvimento pleno, não somente das crianças e jovens, mas do grupo e da sociedade como um todo, então, o esporte enquanto atividade social, desenvolvido à luz de princípios e referenciado por objetivos, também se vê pautado por um quadro de valores, de mensagens e de comunicações que serão importantes para a prática pedagógica em educação física e esporte (QUEIRÓS, 2004).

    Em face do que foi exposto fica claro a necessidade de o professor ou pedagogo em esporte perceber e considerar o ser humano como um todo, não desprezando e nem negando a sua individualidade, as suas diferenças e, muito menos, a sua complexidade. Devemos enquanto pedagogos em esporte enfatizar o esporte como um projeto axiológico, embasado em valores que atingem o seu objetivo maior, qual seja, o de reforçar o seu caráter educativo e renovador no que tange, acima de tudo, ao esporte para crianças e jovens (BENTO, 2004).

    Portanto, uma das formas de se alcançar este objetivo é pensarmos numa prática educativa do esporte orientada por um viés inclusivo, que vise à promoção de atividades recreativas, formativas e sociais. Uma prática que (re)construa valores, tais como: responsabilidade, respeito ao próximo, respeito às regras, desenvolvimento da personalidade, da tolerância, da integração e convivialidade. E para que isso ocorra é preciso que o professor acredite na mudança, zele por uma coerência total entre suas idéias e suas ações na prática educacional; busque conteúdos e uma metodologia de ensino dinâmica. Em suma, uma aprendizagem formativa que faça do seu aluno um ser pensante, autônomo, criativo e crítico.

    Ainda em relação ao papel do professor e do próprio esporte na educação e formação pessoal de crianças e adolescentes, Bento com propriedade acrescenta que:

Ora o esporte é pedagógico e educativo quando proporciona oportunidades para colocar obstáculos, desafios e exigências, para se experimentar, observando regras e lidando corretamente com os outros; quando fomenta a procura de rendimento na competição e para isso se exercita, treina e reserva um pedaço da vida; quando cada um rende o mais que pode sem sentir que isso é uma obrigação imposta do exterior [...] É educativo quando não inspira vaidades vãs, mas funda uma moral do esforço e do suor, quando socializa crianças e jovens num modelo de pensamento e vida, assente no empenhamento e disponibilidade pessoais para a correção permanente do erro [...] embora não seja uma panacéia, o esporte funciona como um pólo que realça os valores da cidadania e do trabalho em equipe, ao mesmo tempo em que combate frontalmente fenômenos destrutivos que caracterizam a nossa sociedade, Tais como droga, violência e criminalidade. Sobretudo porque ensina e comprova que todos podem fazer alguma coisa por si próprios (BENTO, 2004: 54-55).

    Em suma, o esporte enquanto fenômeno social, rico em sentidos e significados, não está "desobrigado de ser um campo de educação. De ser um fator de qualificação da cidadania e da vida" (BENTO, 2004: 54), como bem havíamos salientado ao longo deste ensaio. Não obstante, não podemos deixar de comentar e de fazer menção - afinal foi um dos objetivos propostos - que a finalidade do esporte é a de "irritar" (no sentido de provocar uma mudança), de corroborar, de fazer o ser humano uma pessoa única, inseparável. Em outros termos, a missão do esporte em nossa opinião é fazer perceber o homem enquanto sujeito e não como um simples objeto; é fazê-lo dar-se conta de sua totalidade e complexidade (física, moral, estética e espiritual).


Considerações finais

    Neste ensaio procuramos tratar de um conjunto de temas que, a nosso ver, estão diretamente relacionados com o esporte para crianças e adolescentes; em particular, pensamos que os objetivos propostos ao longo do trabalho contribuem para um possível e rico debate, principalmente no âmbito da pedagogia do esporte. Com efeito, são estes os principais apontamentos:

  1. O esporte constitui-se num amplo espaço de formação e educação, tendo em vista sua potencialidade em proporcionar oportunidades (em diferentes formas) para a formação e desenvolvimento da conduta humana;

  2. Devemos, enquanto professores e pedagogos em esporte, buscar novos métodos, novas maneiras de ensinar em nossas aulas para atingirmos o objetivo proposto, qual seja, um ensino do esporte que respeite a individualidade e a complexidade de cada aluno;

  3. Isto posto, é preciso refletir sobre uma pedagogia e um esporte que esteja voltado para o novo enquadramento axiológico de nossa sociedade na participação de crianças e adolescentes. O pedagogo em esporte deve investir numa educação com base no paradigma da complexidade;

  4. Ao se tratar do esporte, devemos procurar trabalhar a competição de forma mais pedagógica, buscando sempre um equilíbrio entre o racional e o sensível (SANTANA, 2005);

  5. O esporte é pedagógico e educativo quando proporciona oportunidades, desafios e exigências; quando socializa as crianças num modelo de pensamento mais complexo, abrangente e flexível, que perceba o todo, as perspectivas e o contexto social e cultural do indivíduo;

  6. O professor, tendo consciência da ferramenta valiosa que possui em suas mãos (o esporte), deve aprofundar o desenvolvimento de atitudes afetivas e coletivas, fazendo com que seus alunos (não importando a raça, o credo, o gênero) reconheçam e respeitem sem discriminação, as características pessoais, físicas, sexuais e sociais do próximo. Devemos pensar numa prática pedagógica que minimize a exclusão; em outros termos, uma prática que negue as desigualdades que acabam inviabilizando o trabalho do professor com seus alunos;

  7. No jogo podem ser adquiridos valores (como bem dissemos ao longo do trabalho). Valores, estes, que servem de base para a vida pessoal, contribuindo para a concretização dos princípios básicos que devem reger a educação física e o ensino do esporte: a busca pelo verdadeiro; a adesão à moralidade, percebendo e buscando aquilo que nos enobrece e rejeitando aquilo que é ruim (BENTO, 2004);

  8. No esporte devemos trabalhar nas crianças o costume de assumir responsabilidades, de aceitar e cumprir regras e tarefas estabelecidas;

  9. Por fim, se considerarmos que estamos perante uma sociedade em que há uma crise dos valores morais e sociais, os quais nos conduzem muitas vezes a uma situação de incerteza e insegurança, especialmente, segundo Queirós (2004), entre grupos de jovens que necessitam, por assim dizer, de um novo rumo no caminho da valorização, das certezas e da inclusão social, é neste sentido o papel que o esporte deve representar, o de agente, um meio ambiente ou entorno, possibilitador de novas mensagens e de comunicações que venham alterar, provocar a construção de um novo enquadramento axiológico nos diferentes grupos ou sistemas sociais!


Notas

  1. Segundo o Novo Dicionário Aurélio - Século XXI, o verbo randomizar pode significar casualizar, acidentalizar, ou aleatorizar. De random, em inglês, derivam o verbo randomizar, e seu particípio randomizado, e o adjetivo randômico. At random significa aleatório, palavra derivada de igual vocábulo latino, com o significado de fortuito, casual, acidental, dependente de fatores incertos e sujeitos ao acaso.

  2. ENRILE, E. Dizzionario dello sport. Paoline: Milano, 1977.

  3. Aqui o termo paradigma está sendo utilizado no sentido proposto por Thomas Kuhn, em seu livro: A estrutura das revoluções científicas, 1962. Kuhn coloca que, nos diversos momentos históricos e nos diferentes ramos da ciência, há um conjunto de crenças, visões de mundo e de formas de trabalhar, reconhecido pela comunidade científica, configurando o que ele denomina paradigma.

  4. Até o início do século XX, a maior parte das ciências tinha como modo de conhecimento a redução (do conhecimento de um todo pelo conhecimento das partes que o compõem), como conceito-chave o determinismo, ou seja, a ocultação do acaso, do novo, e a aplicação da lógica mecânica da máquina aos problemas vivos, humanos e sociais.

  5. GRANGER, Gilles-gaston. Introdução. In: DESCARTES, René. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Os Pensadores).

  6. Morin (2005), em seu livro Introdução ao pensamento complexo, sugere uma relação muito interessante entre os significados e sentidos que podem ser referidos ou atribuídos às expressões racionalização e racionalidade. Para ele a racionalidade é o diálogo incessante entre nosso espírito que cria e (re)cria estruturas lógicas e que as aplica sobre o mundo fenomênico. Não obstante, Morin salienta que devemos perceber que, quando esta lógica é insuficiente, temos de admitir que nosso sistema lógico é insuficiente. Já a racionalização consiste em querer encerrar a realidade num sistema corrente e tudo o que contradiz este sistema coerente é desviado, ou seja, posto de lado.

  7. O pedagogo em esporte é o professor de educação física propriamente dito, isto é, o agente responsável pela formação pessoal de crianças e jovens, estando apto a debater sobre questões complexas no concernente aos fenômenos ser humano e esporte.


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