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Notas conceituais sobre os esportes na natureza
Notas conceptuales sobre los deportes en la naturaleza
Conceptual notes regarding the sports in nature
Notes conceptuelles concernant les sports dans la nature

   
Universidade Federal Fluminense, Niterói.
(Brasil)
 
 
Cleber Augusto Gonçalves Dias
tiocleber@aol.com  
Edmundo de Drummond Alves Júnior
drummond@bighost.com.br
 

 

 

 

 
Resumo
     A ampliação no número de possibilidades de práticas corporais coloca novos problemas para as teorias do esporte. Entre todos, destacamos os problemas conceituais surgidos da recente expansão de atividades realizadas em meio à natureza. A contemporaneidade dessas práticas tem exigido um olhar cada vez mais atento e cuidadoso das ciências humanas. Contudo, o desenvolvimento de estudos nessa área depara-se sempre com uma certa confusão conceitual gerada em seu interior. A falta de consenso e a imprecisão terminológica criam algumas dificuldades adicionais para suas investigações. Nosso objetivo neste trabalho é pontuar alguns dilemas teóricos-conceituais colocados pelo processo de utilização da natureza para prática de esportes.
    Unitermos: Lazer. Esportes na natureza. Conceitos.
 
Resumen
     La ampliación de las posibilidades de prácticas corporales presenta nuevos problemas para las teorías del deporte. Una de esas ampliaciones y nuevos problemas conceptuales puede ser identificada cuando pensamos en las actividades realizadas en la naturaleza. Estas nos exigen una mirada cada vez más cuidadosa desde el punto de vista de las ciencias humanas. Sin embargo, cuando observamos el desarrollo de estudios en este sector encontramos usualmente una cierta confusión conceptual. En realidad, la ausencia de consenso y la imprecisión terminológica crean algunas dificultades para las investigaciones. Nuestro objetivo en este trabajo consiste en proponer un debate sobre los problemas teóricos y conceptuales alrededor de los estudios sobre la utilización de la naturaleza para la práctica de los deportes.
    Palabras clave: Ocio. Deportes en la naturaleza. Conceptos.
 
Abstract
     The increase in the number of possibilities of body practices generates new problems for the sport theories. Among them we detach the conceptual problems arising from the present expansion of activities made in the middle of nature. The contemporarily of these practices is claiming for more attention and careful exam from the human sciences. However, the study developments on this area always face a certain conceptual confusion generated in its inside. The lack of consensus and of the terminology precision generates some additional difficulties for the investigations. Our objective in this work is to point out some theoretical and conceptual dilemmas placed by the process of using the open nature for the sports practices.
    Keywords: Leisure. Sports in open nature. Concept.
 
Resumé
     L'élargissement des possibilités de pratiques corporelles place nouveaux problèmes pour les théories du sport. Nous détachons les problèmes conceptuels apparus de la récente expansion d'activités réalisées dans la nature. L´actualité de ces pratiques impose un regard, à chaque fois plus attentif des sciences humaines. Néanmoins, le développement d'études dans ce secteur se rencontre toujours avec une certaine confusion conceptuelle produite à son intérieur. L´absence de consensus et l'imprécision des termes créent quelques difficultés supplémentaires pour leurs recherches. Notre objectif dans ce travail est de proposer une discussion des problèmes d´origine théorique et conceptuelle placées par le processus d'utilisation de la nature pour la pratique des sports.
    Mots-clés: Loisir. Sports dans la nature. Concept.
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 12 - N° 114 - Noviembre de 2007

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In English

Introdução

    Problemas e confusões conceituais são recorrentes nas abordagens sociológicas sobre esporte. Estes problemas podem ser tributados, em alguma medida, a atualidade do esporte no âmbito das ciências sociais, que remontam-nos somente ao final da década de 1950, onde finalmente o esporte passa a configurar um objeto de análise relativamente respeitável aos olhos das ciências sociais (BRANDÃO, 1994: 41).

    Mais recentemente podemos assistir o surgimento e consolidação de novas modalidades esportivas. Algumas reflexões e conclusões desenvolvidas pela sociologia do esporte se aplicam a essas novas modalidades ao mesmo tempo em que elas introduzem novos problemas e desafios a essas teorizações. E nesse sentido, destacam-se os problemas conceituais.

    O problema conceitual acerca dos esportes, quer seja nas suas novas adjetivações, quer seja nas definições sociais e academicamente estabelecidas, mostram que esta discussão ainda é insuficiente. Esta incompletude fica ainda mais evidente quando nos referimos a práticas esportivas surgidas mais contemporaneamente, como os esportes de aventura, onde as ciências sociais ainda não dedicaram tempo e esforço suficientes para sua compreensão. Soma-se a isso, o caráter eminentemente polissêmico inerente ao próprio conceito de esporte. E é nesse quadro que gostaríamos de apresentar o problema de conceituação dos esportes na natureza.

    Em uma rápida revisão bibliográfica pode-se encontrar uma certa "nebulosa conceitual". Os termos utilizados para designar e caracterizar essas práticas são difusos, imprecisos e pouco consensuais. A dificuldade de se elaborar um conceito que possa definir e caracterizar com alguma precisão essas práticas acaba criando uma dificuldade adicional para suas investigações. Na tentativa de suprir essas demandas, muitos termos têm sido utilizados de maneira ainda mais dispersa e ainda menos consensual, não nos cabendo aqui listá-los. O fato é que são muitos conceitos empregados para designar um mesmo objeto de estudo. O que mais confunde do que esclarece.

    Costuma-se dizer que essas práticas imprimem uma ruptura radical com algumas das características mais fundamentais do conceito tradicional de esporte, a ponto de não as considerarem como um esporte. Essas discussões levaram ao surgimento de conceitos tão esdrúxulos e confusos quanto à própria enxurrada de terminologias que é indiscriminadamente utilizada. Em outras palavras, as questões que se apresentam aqui, dizem respeito a possibilidade da compreensão dessas atividades como esporte. Essas práticas podem mesmo ser consideradas como esporte? O que poderia ser considerado um esporte na natureza? E é sobre essas inquietações que gostaríamos de abordar neste trabalho.


Afinal... ser ou não ser esportivo?

    Numa rápida revisão acerca do conceito de esporte encontramos em Bracht (2003) a afirmação de que "refere-se a uma atividade corporal de movimento com caráter competitivo" (p. 14). A apreensão direta e linear desse tipo de conceituação para a interpretação dos esportes na natureza cria algumas dificuldades. A problemática desta apropriação está na interpretação da competição como um elemento central na sua caracterização. O que segundo alguns, não ocorreria nas práticas corporais na natureza. Afirma-se mesmo o contrário, que nestas práticas pode-se encontrar um caráter cooperativo e colaborativo. Daí decorrem dois equívocos. O primeiro é o de vislumbrar o esporte tão somente como uma prática de caráter competitivo. O segundo é a interpretação dos esportes na natureza como não dotados de competição. Ambas concepções pecam por desconsiderarem a pluralidade de significados inerente ao próprio conceito de esporte.

    No primeiro caso, é um equívoco teórico legado das interpretações de caráter freudo-marxistas sobre o esporte, mais particularmente aquelas desenvolvidas por Jean-Marie Brohm, que o reduziam invariavelmente a competição (PRONI, 2002). Nesse caso, o esporte seria a reprodução fiel do mundo do trabalho, sendo os elementos lúdicos totalmente eliminados, aquilo que Huizinga chamara de "dessacralização do lúdico" (HUIZINGA, 2001). Nesse tipo de interpretação o esporte seria "a poesia da hierarquia"; guiado única e exclusivamente pelo princípio de rendimento. Contudo, acreditamos que o esporte não pode ser reduzido exclusivamente a competição, pois se trata de uma atividade especificamente humana que expressa as manifestações mais fundamentais da própria vida; todos os seus conflitos e perplexidades.

    Estas análises funcionais fazem uma concepção de estrutura rígida e mecânica onde a realização de estudos estáticos e a manutenção das estruturas funcionais prevalecem em detrimento das mudanças, que se diga, são permanentes. "Não há necessidade de se agarrar ao pressuposto de que todas as instituições de uma determinada sociedade possuem uma função positiva, sem incorrer em custos. Não há necessidade de tomar como premissa que determinada instituição é imprescindível ao desempenho desta ou daquela função" (BURKE, 2002: 152-3).

    Outro problema está na crença de que essas teorizações podem ser generalizadas e desse modo, ganhem validade universal. Mas atualmente, aceita-se, cada vez mais, a idéia de que as leis da interpretação funcional-estrutualista só se aplicam sob certas condições. E é preciso considerar que existem múltiplas formas de organização do campo esportivo. Existem múltiplas maneiras do esporte se manifestar. Os moldes olímpicos constituem apenas uma das possibilidades. É fundamental insistir um pouco mais: no esporte não encontramos somente a competição e o princípio de rendimento. É certo que o encontramos também, mas não somente ele.

    No segundo caso, e inversamente, nota-se a associação dos esportes na natureza ao comportamento cooperativo. Essas interpretações são possíveis graças à efetiva presença de um tipo de deslocamento do elemento competitivo do outro, do adversário, para si mesmo. Este deslocamento parece mesmo acontecer, e constitui esses esportes como sendo uma espécie de auto-competição. De uma outra forma, estes deslocamentos podem acontecer na direção dos elementos naturais. Nesse caso, é a natureza que se torna o adversário da disputa. A pesquisa de Souza (2004) sobre os praticantes de rafting demonstra claramente isso quando afirma que "o discurso desses praticantes de rafting tem como marca a força, o poder, a luta para se alcançar o quer. No imaginário desses atores, o rio precisa ser vencido, pois ele representa uma força superior, engolidora, e que será abatida por eles através da cooperação de todos da equipe e, também com a utilização de sua arma, o remo" (p. 119).

    Mas se compreendido de uma forma linear, estas interpretações também estarão fadadas ao fracasso e a imprecisão. Nesse caso, ambas interpretações iriam fazer parte de um esquema de análise dual, que compartimenta o fenômeno esportivo em sendo por um lado, uma manifestação do espetáculo e do rendimento e por outro, uma expressão do lazer e da ludicidade. Estas análises parecem-nos demasiadamente frívolas e ainda mais equivocadas. Pois, a prática esportiva, aquela que se desenrola no mundo real, não pode estar dividida entre a pura gratuidade ou a severa seriedade; a funcionalidade e o desinteresse. Existem jogos e práticas com predominância em certos aspectos, mas não exclusividade. Ou seja, não há um esporte absoluta e univocamente competitivo ou ao contrário, cooperativo. O que existe é uma predominância em um ou outro desses aspectos. A predominância do elemento competitivo na interpretação do fenômeno esportivo é fruto, além da já mencionada tradição de análise marxista, da difusão massiva do espetáculo esportivo pelas redes de televisão, que maximizam a dimensão competitiva em nome de um saciamento da sua própria espetacularização1.

    Para a análise dos esportes na natureza as interpretações dualistas do esporte somente - as que o compreendem como um elemento competitivo e performático por um lado ou inversamente como um elemento lúdico e cooperativo por outro - são problemáticas. Em primeiro lugar porque estes esportes são dotados de significações mais diferenciadas com relação à competição conforme já dissemos e conforme dados empíricos de campo demonstram. Isso não significa que os esportes tradicionais não o sejam. O fato é que neste tipo de interpretação, as significações heterogêneas são desconsideradas, e o esporte é tomado como uma prática cultural que possui um sentido unívoco. Aliás, isto é um tipo de equívoco teórico comum nas investigações do campo esportivo. Pecam por negligenciarem a apropriação cotidiana e microsocial de que são passíveis as manifestações esportivas. Marco Stigger (2002), nos alerta para as conseqüências disso, que segundo o autor, faz com que a maioria das pesquisas priorize os grandes eventos esportivos, enfatizando as análises macrossociais que, insistimos, desprezam a realidade microscópica e distanciam as reflexões teóricas do espaço concreto onde o esporte também acontece, desconsiderando os contextos culturais específicos e particulares. Nas palavras do autor "o esporte tem sido investigado com interesses voltados aos grandes eventos esportivos" (ibid., p. 10). Soma-se a isso, a profunda carência de dados empíricos encontradasna maioria dos trabalhos que, mesmo assim, tentam, forçosamente, serem generalizadas hegemonicamente.

    Em parte, estas preposições explicam a recusa generalizada em se considerar os esportes na natureza como sendo um esporte. Na medida em que o fenômeno esportivo é reduzido à competição e os esportes na natureza são identificados como "cooperativos" reforçando ainda mais sua segregação do campo esportivo, já que este, como já dissemos, é precipitadamente identificado tão somente com elementos competitivos. Além disso, a identificação dos esportes na natureza somente com elementos cooperativos é tão falaciosa quanto a identificação dos esportes tradicionais com elementos competitivos.

Todo movimento humano é, de alguma maneira, competitivo na medida que ele se desencadeia como um exercício de superação de resistência, pois ele se coloca como uma busca de equilíbrio, de harmonia, de beleza. A competitividade não deve ser entendida como competição na demonstração de superioridade. O movimento parece ser sempre um para o encontro, para a aproximação buscando superar distâncias, obstáculos, sejam físicos ou psíquicos (SANTIN, 1987: 36).

    Além disso, mesmo que a idéia de "pureza dos jogos vertiginosos" fosse verdadeira, e o esporte fosse identificado tão somente com a competição, não se pode subestimar a força da sociedade do espetáculo, que via de regra, não deixa nada incólume, e rapidamente ampara esses esportes através da mídia e o transformam em competição, transfigurando também o jogo vertiginoso em esporte. E mais fundamentalmente, não acreditamos que estas duas categorias - jogo e esporte; lazer e rendimento - possam continuar sendo pensadas separadamente. É preciso urgentemente, resgatar a idéia de uma dialética entre jogo e esporte. Onde apesar de se reconhecer a diferença entre essas duas categorias; nas regras, no tempo e no espaço, ambas mantêm por um lado, as características fundamentais do jogo, e por outro, as características fundamentais do esporte. Em outras palavras, o esporte é o jogo transformado, ampliado e estabilizado. Se essa relação entre jogo e esporte não existisse o esporte não atingiria o atual nível de popularidade (ELIAS e DUNNING, 1992), pois o prazer de competir também é lúdico. E inversamente as práticas de "jogo puro", se é que existem, também guardam e recebem aproximações e interferência do esporte.


Sobre o conceito de AFAN

    Todas essas polêmicas e controvérsias remetem-nos a um termo cunhado por Javier Olivera Betran (2003), e que tem sido largamente aceito e utilizado, que é o conceito de "Atividades Físicas de Aventura na Natureza" sintetizados na sigla AFAN. "Conceitos costumam vir em pacotes de pressupostos que precisam de análise minuciosa" (BURKE, 2002: 69). Portanto, sem pretender negar, a priori essa conceituação, coloquemos-nos a estuda-la.

    Segundo este autor, o esporte é a prática social mais relevante do período moderno; uma espécie de equivalente sociocultural da modernidade; o símbolo que a identifica. Em contrapartida, as novas práticas corporais na natureza seriam "práticas originais da atualidade e concepções físicas recreativas diferentes do esporte, pelo modelo corporal em que se baseiam, pela motivação e as condições de prática, pelos objetivos a serem conseguidos ou pelo meio utilizados para seu desenvolvimento" (p. 164).

    Embora aceitemos a idéia de que os esportes na natureza se identifiquem com um quadro social mais atual, que do ponto de vista acadêmico tem sido freqüentemente designado como pós-modernidade, também acreditamos que o fenômeno esportivo se refere a uma prática social concebida no seio da sociedade, e em alguma medida é por ela determinada. Esse debate traz à tona a ambigüidade presente na própria idéia de pós-modernidade, cabendo-nos a indagação de como é compreendido, nesse caso, o termo? Pois, se for entendido como a inauguração de um novo período histórico; demanda, quase que obrigatoriamente, compreender práticas culturais que se identificam com essas transformações sociais sem nenhuma relação com "práticas modernas".

    Sem a pretensão de firmar posições conclusivas sobre esse denso debate teórico, que é a caracterização da pós-modernidade, concordamos com uma perspectiva mais intermediária. Essa perspectiva interpretativa vê como um certo exagero a compreensão da pós-modernidade como uma nova era, ao mesmo tempo em que percebe as inegáveis transformações em andamento nas arenas culturais.

    O acréscimo do prefixo "pós" a modernidade, faz alusão a própria idéia de modernidade. Ou seja, é algo que vem depois; que se segue. Assim, os esportes na natureza, ainda que associados ao quadro pós-moderno, seriam transformações no fenômeno esportivo; seriam esportes que vem depois; mas que de alguma maneira dão continuidade aos processos deflagrados anteriormente.

    Para irmos mais longe, ousaríamos dizer que nos esportes na natureza - ainda que identificados ao quadro da pós-modernidade - não há nenhuma ruptura teórico-conceitual com os esportes modernos ou tradicionais. E mais ainda, ousaríamos dizer que o que ocorre nestes "novos esportes" é tão somente um aprofundamento ao processo de esportivização inaugurado pela modernidade. Eles não só dão continuidade ao mesmo processo, como vão além, aprofundando. Mas historicamente, qual teria sido o processo moderno de esportivização?

    Primeiro, a transformação de elementos da cultura corporal em esporte, ou seja, a regulamentação dos passatempos, compreendidas aqui no sentido elisiano. Segundo, a orientação dessas práticas, já transformadas em esporte, por pretensões cosmopolitas e universais através da criação de regras rígidas seguidas da burocratização de suas instituições. Todo um processo que o desenvolvimento dos esportes na natureza parece reproduzir, o que nos habilitaria a trata-lo como um esporte. Pois é isso mesmo que este fenômeno parece ser.

    Mas não estamos propondo uma "leitura" homogeneizadora do esporte. Para longe disso, os esportes na natureza devem sempre ser visto como uma sub-cultura do esporte. Ou seja, apesar de sua crescente profissionalização e espetacularização, cada vez mais evidente, continuaríamos cometendo erros de abordagem ao trata-lo somente na perspectiva da institucionalização e regulamentação esportiva. A marginalização esportiva dessas modalidades convive harmoniosa e contraditoriamente com um processo de mercantilização imposto desde os primórdios desses esportes. Entretanto, não devemos subestimar o fato de que muitas modalidades dos esportes na natureza foram elevadas ao estatuto de princípio filosófico e existencial, o que ao mesmo tempo as dotam de significados distintos e múltiplos.

    Todas as problematizações expostas até aqui quando agrupadas em categorias mais gerais, dizem respeito ao desafio de analisar mudanças sociais. E remetem-nos a velha discussão sobre as teses de continuidade e descontinuidade na história social do esporte. De maneira tanto grosseira quanto vulgar essas teses são ligadas e reduzidas, respectivamente, a compreensão do esporte como uma natureza essencial ou inversamente, como uma natureza histórico-social.

    Dito de outra forma, os esportes respondem a demandas sociais muito precisas e determinadas. A forma de se praticar esportes e/ou de se exercitar é compatível com as condições culturais da população que os pratica, pois o esporte é uma representação lúdica e simbólica do modo de viver de uma determinada sociedade. Daí nossa opção teórica em adotarmos o princípio de compatibilidade entre esporte e cultura.

    E mais ainda, o esporte enquanto produto cultural é dinâmico, sofre mutações no seu desenrolar histórico, acompanhando as mudanças estruturais por que vem passando a sociedade contemporânea. Devemos então fugir a tentativa de canonização de uma determinada forma de expressão do esporte, e compreender que essa manifestação cultural, como todas as demais, é dinâmica. Mudanças ocorridas na forma do esporte se manifestar socialmente compõe, nada mais, nada menos, uma nova configuração do fenômeno esportivo, sem com isso descaracterizá-lo como tal, pois são apenas adequações e apropriações à própria (re) configuração que a sociedade e todas as suas práticas culturais estão sujeitas. Trata-se, em última análise, de uma atualização; uma adequação das práticas esportivas, antes condicionadas ao contexto da modernidade, às condições pós-modernas de vida.

    Do mesmo modo, devemos também fugir dessa execrável tentativa de sacrossantificar determinados modelos teóricos de análise, sabidamente esgotados. Se existe dificuldade na interpretação de um determinado fenômeno social a partir de um certo modelo de análise, a inadequação não está no fenômeno investigado, mas sim no modelo, que dá sinais de fraqueza. Lembremos que são os modelos de análise teórica que devem se ajustar ao objeto de estudo e não o contrário. Insistir neste tipo de idéia é tão inconveniente quanto inadequado. Representa mesmo uma inversão da hierarquia ética, já que, uma vez mais, é o método de análise que deve se ajustar ao objeto e não objeto ao método.

    A confusão proveniente da identificação do fenômeno cultural, passível de inúmeras apropriações e ressignificações, com as instituições "oficiais" que representam apenas um modelo de prática dos muitos que seriam possíveis, é emblemática. A recusa generalizada que se observa hoje em aceitar essas novas práticas como compondo mais uma manifestação esportiva, deve-se, provavelmente, a esse inexorável atrelamento às instituições esportivas hegemônicas, sendo estas últimas, decisiva e verdadeiramente influenciadas por uma excessiva valorização da competição. Novamente estamos diante de um elemento que nos remete ao problema da utilização cega e dogmática de concepções teóricas de análise funcional-estruturalistas, que "não se preocupam com pessoas, mas sim com estruturas" (BURKE, 2002: 153).

    As conseqüências dessas interpelações teóricas nos parecem suficientemente evidentes, a ponto de as recusarmos. Tomar como premissa que o surfe e o futebol, por exemplo, pertencem a culturas diferentes é no mínimo exagerado. É certo que estas modalidades pertencem a subculturas diferentes, mas com referências mínimas em comum. O que se torna ainda mais evidente nos dias de hoje, onde a distância cultural entre as duas modalidades parece diminuir cada vez mais. O vertiginoso movimento de esportivização de elementos da cultura corporal dá provas disso. Mas a ênfase na análise das estruturas tende sempre a estagnação e a imobilidade, e desconsideram, com freqüência, a influência de alguns grupos, indivíduos e eventos nas mudanças de uma determinada cultura. O apego cego e dogmático a teorias santificadas, faz esquecer que instituições humanas manifestam-se sempre de maneira múltipla e variada.

    No nosso caso, estamos tentando nos reportar ao fenômeno social esportivo como um todo, ou seja, a manifestação e expressão de um símbolo cultural que é muito maior do que às pretensas instituições que tentam representá-lo. Pretendemos pensar o esporte além do olhar institucional. E sendo assim, seria um enorme reducionismo compreender esse objeto à luz exclusivamente do elemento competitivo ou a partir das representações forjadas por este modelo hegemônico e institucional (estrutural). Sem desconsiderar a relevante contribuição de Javier Oliveira Bétran para o estudo dos esportes na natureza, nos sentimos à vontade para tecer críticas e recusar seu conceito de AFAN. E nesse sentido, o que estamos propondo aqui é mais do que a aceitação dos esportes na natureza como sendo um esporte. Estamos fundamentalmente propondo, uma compreensão ampliada do próprio conceito de esporte.

    Como último motivo para nossa opção em tratar esse fenômeno no 'hall' dos fenômenos esportivos, mas não menos importante, está no fato de que a utilização do termo esporte é mais universal e usual entre a população em geral. Mais uma vez, as reflexões de Peter Burke, agora sobre a utilização de termos técnicos no âmbito da teoria social, também podem ser aplicadas nessa situação. Especialmente quando diz que,

Alguns deles [termos técnicos] não possuem nenhum equivalente na linguagem comum e, na falta de palavras para expressa-los, podemos deixar de perceber determinado aspecto da realidade social. Outros termos são definidos de forma mais precisa que seus equivalentes da linguagem comum e, assim, possibilitam distinções mais perfeitas e uma análise mais rigorosa (BURKE, 2002: 68).

    O próprio autor nos chama atenção para o fato de que antropólogos, já há algum tempo, vem enfatizando a necessidade de se estudar os modos pelo quais as "pessoas comuns" vivenciam a sociedade e suas categorias conceituais empregadas para apreende-la. Salientam a necessidade de se utilizar tanto categorias oficiais como oficiosas; a necessidade de se recorrer a modelos populares ou aos planos de ação que intermediam a atribuição de significado a esse mundo de experiências. Evidentemente que isso pode facilmente ser aplicado aos estudos do esporte. Pois também é preciso estudar os modos pelos quais os "praticantes comuns" vivenciam o esporte e não só os atletas, compreendidos como "praticantes oficiais". Também é preciso estudar as categorias conceituais utilizadas pelos "praticantes comuns" para apreender o esporte. Sem isso, provavelmente, as práticas culturais e todos os seus símbolos permanecerão inteligíveis. Talvez por isso, essas considerações só façam sentido para aqueles que, de fato, desejam confrontar-se com os dados da realidade; para aqueles que, de fato, pretendem deparar-se com a concretude do vivido e não apenas divagar pelo universo da teoria; para aqueles que, de fato, se interessam pela vida de verdade.

    Em última análise não se trata de substituir termos populares por termos acadêmicos ou vice-versa, trata-se, isso sim, de complementá-los. Do mesmo modo, também não se trata de compreender empirismo e teoria como fenômenos antagônicos, trata-se, isso sim, de utiliza-los de maneira hábil, coerente e mútua.


Nota

  1. Aqui vem a idéia do victor que se contrapõe a idéia de um esporte de espetáculo e outro de lazer. Também as suas considerações sobre a teoria de campo como intermediador desse dilema.


Referências bibliográficas

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