Corpo objeto: um olhar das ciências sociais sobre o corpo na contemporaneidade |
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*Professor, Licenciado em Educação Física pelo IPA; Mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUC/RS. **Professora da Faculdade de Enfermagem, Nutrição e Fisioterapia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUC/RS; Mestre em Ciências Sociais pela PUC/RS. |
José Florentino* jose.a.florentino@gmail.com Fátima Rejane Ayres Florentino fatima.r.a.florentino@gmail.com (Brasil) |
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http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 12 - N° 113 - Octubre de 2007 |
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Introdução
Bem sabemos, o corpo é visto, muitas vezes, como uma massa de modelar, ou seja, socialmente modulável, uma vez que é vivido e vivenciado conforme o estilo de vida da cada indivíduo. Atualmente, o culto ao corpo e os investimentos sobre o mesmo encontram-se, de certa forma, exacerbados. Em cada época se estabelece um modelo de corpo "máquina-perfeita" para o ser humano, levando-se em consideração os valores, as crenças, os mitos, a exigências e os interesses sociais e culturais de cada povo.
Assim, este ensaio está organizado em dois momentos: primeiramente, realizamos uma breve explanação sobre a concepção de corpo, isto é, que tipo de corpo foi sendo construído ao longo de nossa história, e como esta noção de corpo, baseada no racionalismo moderno, influenciou a educação e a própria educação corporal em nossa sociedade. E, por fim, no segundo momento, buscamos refletir sobre os significados que emergem da noção de corpo e as questões advindas da imagem corporal e da busca incessante pelo corpo perfeito.
Corpo "máquina-perfeita"Muito se tem dito sobre as possibilidades de expressão do corpo em nossa sociedade contemporânea. Contudo, a noção de corpo suscita, de imediato, um questionamento central: que corpo e que concepção de corpo estamos buscando ao longo de nossa história, tendo em vista que a espécie humana, de alguma forma, muito antes da polis grega, já teria construído algum tipo de conhecimento sobre o corpo. Podemos dizer que o marco referencial da discussão em busca da corporeidade tem sido aquilo que se passou a denominar de conhecimento moderno, ou seja, aquele conhecimento que emergiu a partir da crise do feudalismo com a chamada Revolução Científica dos séculos XVI e XVII, retomando, por assim dizer, o logos grego por meio de releituras de obras como as de Platão e Aristóteles, o que proporcionou a emergência de uma epistême renascentista que iria fundar novas bases para o conhecimento moderno e, por conseguinte, uma grande transformação nos diferentes aspectos do fazer humano1.
Neste período, do Renascimento, a Filosofia e a Ciência seguiam uma única direção, qual seja: a busca por verdades indubitáveis2. A filosofia de Descartes fundou-se numa filosofia reflexiva, isto é, cada vez mais o ser humano é levado a refletir, buscando conhecer-se; já o conhecimento científico fundou-se excluindo o sujeito do seu objeto de conhecimento. Observou-se uma ruptura entre a reflexividade da Filosofia, ou seja, a possibilidade do ser humano pensar e refletir e a objetividade do saber científico. Surge, assim, uma ciência sem consciência. O abandono da noção de humano, o fazer humano nas ciências humanas, por outras palavras, o homem acabou por "desaparecer". A vida, como um todo, deixou de ser objeto de reflexão (FLORENTINO, 2006).
Assim, no que tange à educação e, porque não dizer, à educação corporal, essa passou a se pautar nos pressupostos do racionalismo moderno, o qual instituía códigos morais que ditavam as condutas, reprimindo as diversas manifestações (expressivas) do corpo humano. A esse respeito, Mendes e Nóbrega (2004, p. 125) afirmam que:
O corpo humano, ao ser comparado com uma máquina hidráulica, recebe uma educação que o considera apenas em seu aspecto mecânico, sem vontade própria, sem desejos e sem o reconhecimento da intencionalidade do movimento humano, o qual é explicado através da mera reação a estímulos externos, sem qualquer relação com a subjetividade. O pensamento de Descartes, fundado no exercício do controle e no domínio da natureza, influencia a educação através da racionalização das práticas corporais. Ao ter como princípios a utilidade e a eficiência, busca-se a padronização dos corpos [...].
Ao refletirmos, no entanto, sobre as transformações que ocorreram ao longo do século XX, percebemos mudanças na forma como vemos e pensamos o corpo. Na Biologia, percebemos essas modificações quando se passou a considerar que organismos e meio ambiente coexistiam, ultrapassando a visão mecanicista de mundo. Na Antropologia, também ocorreram modificações significativas que teriam grande repercussão sobre os conceitos de corpo, cultura e natureza, quando o antropólogo Claude Lévi-Strauss publicou sua obra As estruturas do parentesco em 1949. Em seu livro, Lévi-Strauss teceu duras críticas à antítese entre natureza e cultura, preconizada pela Sociologia na época. Lévi-Strauss defendia a substituição dessas antinomias por relações de complementaridade (MENDES; NÓBREGA, 2004). Em outros termos, para o autor, natureza e cultura se complementavam, eram um "todo". Dessas reflexões, surgiram contribuições importantes para a compreensão do que vem a ser corpo.
Corpo significadoQual o significado de corpo (saúde, força, identidade, estética, qualidade de vida e beleza) dentro de um contexto social? Podemos pensar numa maneira de responder a essa pergunta, levando-se em consideração quais são os valores culturais que a nossa sociedade tem relacionado ao padrão físico ideal. Contemporaneamente, as questões da imagem corporal têm representado a aceitação ou não do indivíduo em todas as esferas (social, cultural, política e econômica) da sua interação, seja no trabalho ou nas relações pessoais, podendo o corpo tornar-se inclusive fator de discriminação e exclusão social, caso o indivíduo estiver fora dos limites estabelecidos pelos padrões vigentes em nossa sociedade.
Mas, o que vem a ser corpo? Para Neto (1996, p. 9): "O corpo é a base da percepção e organização da vida humana nos sentidos biológico, antropológico, psicológico e social". Desse modo, todo nosso agir, falar, sentir, andar e pensar representam modos de vida diferentes, de um determinado grupo social. Hoje, em pleno século XXI, nunca o corpo foi tão valorizado, nunca o corpo foi tão cultuado. Nas palavras de Codo e Senne (1985, p. 9):
Nunca se falou tanto do corpo como hoje, nunca se falará tanto dele amanhã. Um novo dia basta para que se inaugure outra academia de ginástica, alongamento, musculação; publiquem-se novos livros voltados ao autoconhecimento do corpo; descubram-se novos preconceitos quanto à sexualidade, outras práticas alternativas de saúde; em síntese, vivemos nos últimos anos perante a incontestável re-descoberta do prazer, voltamos a dedicar atenção ao nosso próprio corpo.
É dentro desse contexto que o corpo passa a ser cultuado. Um culto que exige, em sua maioria, sacrifícios. O corpo passou a ser palco privilegiado da ascensão, da aceitação social. Entretanto, o problema que se impõe é que por trás desta busca incessante pelo belo, pelo estar bem consigo mesmo, há, de acordo com Neto (1996, p. 10), um "narcisismo e um individualismo exacerbados que levam as pessoas a acreditar no elixir da vida, em poções mágicas, na juventude eterna". Podemos observar que, para se sentirem entre os belos, os indivíduos fazem de tudo, até procedimentos que podem acabar mal, como, por exemplo, o caso da mulher que teve queimaduras em seu corpo após ter se submetido a sessões de bronzeamento artificial. Com efeito, "no século XXI, o risco que muitos preferem evitar é o de serem diferentes. A palavra de ordem hoje é intolerância à feiúra, à diferença" (ZERO HORA, 2007, p. 18).
Nunca tantos medicamentos, moderadores de apetites e suplementos nutritivos foram criados para atenderem a busca do corpo perfeito. Também, nunca tanto dinheiro foi gasto, investido em academias, em clínicas de tratamento cirúrgico e estético e em pesquisas para atender esta demanda pela busca do "corpo ideal", magro e jovem. O culto excessivo à magreza cria um desequilíbrio. Se, antes, emagrecer era tornar-se saudável, agora, torna-se insana obsessão e, dessa forma, vem provocando mudanças nos padrões de comportamento humano. Cada vez mais o indivíduo precisa ser magro para se sentir magro e menos gordo para se sentir gordo (ZERO HORA, 2007).
A dedicação ao cuidado do corpo exacerbou os aspectos meramente físicos, tornando-se o próprio corpo um cartão de visitas que antecede a própria comunicação verbal do indivíduo. O corpo, paradoxalmente, passa a ser algo muito mais do que os seus aspectos físicos ou funcionais. Ele, em si próprio, comunica mais do que o próprio indivíduo, já que é por meio dele que se dá a primeira percepção do mundo exterior ao nascer, antes mesmo da consciência do próprio ser.
O corpo tornou-se um símbolo dentro da sociedade que o considerará aceitável, ou não, conforme a cultura daquela estrutura social. O indivíduo é visto através de uma lente cultural. Há uma idealização da imagem corporal como padrão que deverá ser seguido. No meio escolar, por exemplo, que é constituído por crianças e adolescentes que estão se sociabilizando, a imagem do corpo é tomada como importante fator de identidade e de comunicação.
Devido às intensas transformações de origem bioquímica que passa o corpo humano, nas fases da infância e da adolescência, esse padrão torna-se um árduo desafio, e essas crianças e adolescentes quando não correspondem à imagem "ideal", formada pela sociedade e divulgada pela mídia, encontram dificuldades de adequação, sentindo-se inseguros em relação ao seu próprio corpo e a sua aceitabilidade no meio social e escolar. O padrão ideal imposto pela mídia pode custar um sentimento de inapropriação aos indivíduos que, por ventura, não corresponderem ao "modelo" presente no imaginário popular - um anseio pela aceitabilidade sempre muito caro. Vivemos, de certa forma, numa cultura em que tudo vale a pena para ser belo, para conquistar o ideal estético (ZERO HORA, 2007).
Nessas condições, o educador, conforme Moreno, Polato e Machado (2006), necessita ter plena consciência da amplitude das questões envolvidas e precisa estar bem preparado para enfrentar situações que aflorem no dia-dia em sala de aula e exponham a nudez, não só do corpo como também toda a gama complexa que compõe o indivíduo inserido no meio social no qual vive e convive. Com efeito, podemos dizer, fazendo uso das palavras de Le Breton (2006, p. 87 [grifo nosso]), que:
A preocupação com a aparência, a ostentação, o desejo de bem-estar que leva o ator a correr ou a se desgastar, a velar pela alimentação ou a saúde, em nada modifica, no entanto, a ocultação do corpo que reina na sociabilidade. A ocultação do corpo continua presente e encontra o melhor ponto de análise no destino dado aos velhos, aos moribundos, aos deficientes ou no medo que todos temos de envelhecer. Um dualismo personalizado de algum modo se amplia, é necessário não confundi-lo com "libertação". A esse respeito, o homem só será "libertado" quando qualquer preocupação com o corpo tiver desaparecido.
Considerações finaisPortanto, o ideal é pensarmos o corpo como objeto da educação, ou seja, é reconhecer que o conhecimento emerge do corpo a partir das experiências vividas. Experiências, essas, que estão relacionadas tanto com a autonomia do corpo quanto com a sua dependência ao meio, a cultura e a sociedade em que vive. Nesse contexto, consideramos que, na própria ação, já há cognição, uma vez que a aprendizagem emerge do corpo a partir das suas relações com o entorno (MENDES; NÓBREGA, 2004).
A gestualidade ou os cuidados com o corpo podem e devem ser tematizados nas diferentes práticas educativas, inseridos nas grades curriculares e viabilizados por diferentes disciplinas. O desafio está para os educadores e, principalmente, para os educadores físicos, em desmitificar o culto ao corpo perfeito, dando subsídios para se pensar num corpo que contenha significações que singularizam o sujeito, que permitam a intercomunicação com a singularidade do outro indivíduo, sendo considerada base para a construção do conhecimento.
Notas
A Revolução Científica teve início com Nicolau Copérnico e, posteriormente, com Galileu Galilei ao fazer oposição à concepção geocêntrica de Ptolomeu e da Bíblia; Copérnico apresentou sua concepção heliocêntrica em 1543. Após suas descobertas a terra deixa de ser o centro do universo, tornando-se mais um entre tantos planetas que formavam o Universo (CAPRA, 1982).
A ciência estava sendo cunhada tanto pela filosofia de Descartes e Bacon, quanto pela física de Galileu e Newton.
Referências
CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação: a ciência, a sociedade e a cultura emergente. São Paulo: Cultrix, 1982.
CODO, W; SENNE, W. O que é corpo(latria)? São Paulo: Brasiliense, 1985.
FLORENTINO, José A. Niklas Luhmann e a teoria social sistêmica: um ensaio sobre a possibilidade de sua contribuição às políticas sociais, exemplificada no fenômeno "rualização". 2006. 204f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, PUCRS, Porto Alegre. 2006.
LE BRETON, David. A sociologia do corpo. Petrópolis: Vozes, 2006.
MENDES, Maria Isabel Brandão de Souza; NÓBREGA, Terezinha Petrucia. Corpo, natureza e cultura: contribuições para a educação. Revista Brasileira de Educação, n. 27, p. 125-137, set/out/nov/dez 2004.
NETO, Samuel de Souza. Corpo, cultura e sociedade. In: NETO, Samuel de Souza. Corpo para malhar ou corpo para comunicar? São Paulo: Cidade Nova, 1996, p. 09-37.
MORENO, Bruno; POLATO, André; MACHADO, Afonso. O aluno e seu corpo nas aulas de educação física: apontamentos para uma reflexão sobre a vergonha e a mídia. Movimento & Percepção, Espírito Santo de Pinhal, v. 6, n. 8, jan/jun 2006.
ZERO HORA. "As mulheres bancam os riscos". Donna ZH, p. 18. 2007.
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