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Especialização precoce: os danos causados à criança

   
Universidade Federal do Ceará.
Fortaleza, Ceará.
 
 
Werlayne Stuart Soares Leite
werlaynestuart@yahoo.com.br
(Brasil)
 

 

 

 

 
Resumo
     Este trabalho tem como objetivo relatar e discutir sobre a especialização esportiva precoce, em especial na modalidade Futsal, abordando os inúmeros riscos à que ficam expostas as crianças submetidas a esse tipo de iniciação esportiva. Uma iniciação esportiva baseada nessa metodologia causa inúmeros problemas às crianças, dentre eles podemos destacar: os de ordem neuro-fisiológicas, anatômicas, técnicas, táticas, psicológicas, filosóficas e sociais. O esporte deve ser trabalhado com vistas ao desenvolvimento da criança em relação a determinadas competências imprescindíveis na formação de sujeitos livres e emancipados. A iniciação esportiva deve apoiar-se no desenvolvimento integral das crianças e não usar a criança e o esporte de forma demagógica para conseguir realizar desejos imediatistas de conquistar vitória, títulos, prêmios, o que podemos chamar de "princípio da racionalidade irracional" do esporte.
    Unitermos: Futsal. Especialização precoce.
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 12 - N° 113 - Octubre de 2007

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"(...) se o (a) professor (a) se render ao discurso de que apenas a vitória é construtiva,
o esporte cumprirá a infeliz tarefa de conservar essa estupidez"
.
Wilton Carlos de Santana

Introdução

    O esporte vem ocupando um espaço cada vez maior na vida das pessoas, especialmente das crianças e dos jovens. A influência dos eventos esportivos divulgados com grande freqüência pelos meios de comunicação, a identificação com ídolos, a pressão dos pais e dos amigos e a esperança de obter sucesso e status fazem com que um número crescente de crianças inicie sua prática cada vez mais cedo. Treinar, competir, vencer, prêmios, são palavras comuns no cotidiano dos jovens que praticam esporte ou que o vislumbram como grande possibilidade de sucesso (DE ROSE JR, 2002).

    Toda prática esportiva oferecida às crianças e aos adolescentes é permeada por ações adultas - dos pais, dos dirigentes, dos professores, dos técnicos, dos árbitros; todos interferem de alguma forma nas experiências esportivas de seus praticantes. Essa influência não diz respeito simplesmente aos comportamentos e às atitudes dos adultos no momento da competição, mas também aos valores e aos princípios que norteiam a forma como o esporte é ensinado e praticado (KORSAKAS, 2002).

    A pedagogia do esporte não se resume a métodos de treinamento é mais complexa (princípios, objetivos, estratégias, comunicação, conteúdos, sensibilidade, diálogo com o sistema humano). Valores que permeiam o competir, como participação, alegria, entrega, cooperação, perseverança, auto-estima e o próprio aprendizado técnico e tático, raramente são considerados relevantes (...). O que se pode discutir, e talvez isso seja relevante, é o tratamento que os professores dão à competição (SANTANA, 2004).

    Ainda, em alguns casos, contrapondo-se ao esperado - tratar pedagogicamente o esporte -, os especialistas frequentemente utilizam uma pedagogia pautada em referenciais de rendimento - conquistas, quebra de recordes, resultados imediatos. Logo, uma pedagogia preocupada menos com educação e complexidade e mais com a descoberta e revelação de talentos (SANTANA, 2004).

    Desvinculada de uma finalidade educacional, a pedagogia dos professores especialistas em esporte na infância deixa a desejar. Penso que os especialistas devem reconhecer a conexão entre esporte na infância, educação e complexidade (SANTANA, 2004). O início da participação da criança no processo competitivo pode variar de acordo com o esporte praticado, chegando-se, em determinados casos, a registrar a participação de crianças de 3 anos competindo em ginástica e natação (DE ROSE JR, 2002).

    Fomentar entre crianças desde cedo a idéia de tornarem-se campeões e craques necessariamente não as tornaram, e quem responsabilizar-se-á pelas conseqüências? Há indícios de que muitas são as crianças que iniciaram precocemente no futsal e, por uma lesão grave, estresse de competição, treinamento, desinteresse, saturação, o abandonaram também precocemente. Será que esse fato, por si só, não coloca em dúvida a metodologia adotada? (SANTANA, 2001).

    Se analisarmos os fatores mais importantes dessa realidade absurda, teremos "a mentalidade competitiva, obrigatoriedade por títulos e cobranças dos adultos em relação às crianças (MUTTI, 1995), a sustentação no esporte da competição e mais, da vitória como prioridades" (FREIRE, 1993).

    A verdade é que, no momento em que naturalmente vai acabando a submissão da criança ao pensamento dos adultos, isso na segunda infância, e ela pode decidir o que quer fazer, ela pára com o esporte. Isso não é absolutamente preocupante? Por si só, não é motivo suficiente para repensarmos o processo de iniciação esportiva da criança? E pensar que esse sujeito, desistindo do esporte na infância, tenderá a não praticá-lo por toda sua vida. Tenderá a não incorporá-lo à sua cultura. Tenderá a não praticá-lo nas suas horas de lazer e entretenimento. No caso de possuir talento, não poderá usufruir do seu ápice esportivo como atleta da modalidade, que acontece mais para frente, dos vinte e quatro aos vinte e sete anos (CINAGAWA, 1993). Nem poderá fazer parte de um grupo privilegiado que pratica o Esporte-Espetáculo e até vir a fazer dessa atividade sua profissão (SANTANA, 2001).

    Em última análise, os inconvenientes causados pela especialização esportiva precoce e a excessiva competitividade (lesões, estresse, saturação...) afastam a criança da prática esportiva. E o que menos deseja-se é esse afastamento. É triste deparar com crianças intranqüilas, atingidas por conflitos e / ou lesões e, por isso, desistindo ou sendo impedidas de fazer esporte. Já é tempo de nos perguntarmos: (...) O sistema permite (ou ignora) as conseqüências de uma prática inadequada? Procede o Professor (a) ou Técnico (a), pais, ou quem quer que seja, reduzir a criança a um mero objeto produtor de resultados, a um potencial, promessa esportiva e depositar na mesma suas aspirações, seus desejos e vontades? (SANTANA, 2001)

    Será que esse esporte é realmente capaz de contribuir para a educação dos indivíduos? Como pode uma prática com fins educativos pautar-se na seleção e na especialização de poucos, ser excludente por essência, dando-se o direito de escolher aqueles que terão acesso aos seus benefícios (KORSAKAS, 2002).

    Alguns princípios e procedimentos (pedagogia) devem ser construídos para se ensinar futsal na infância que se contraponham a outros, voltados apenas para a especialização, a seleção, a revelação de talentos e a conquista de títulos. Esse novo modo de ensinar esporte deve facilitar às crianças construir autonomia (...), nesta perspectiva o esporte é um facilitador para se atingir os fins anteriormente descritos (SANTANA, 2004).


Os danos causados à criança

    Entendemos por treinamento intensivo precoce (especialização esportiva) o período onde adotam-se programas e métodos de treinamento especializados (SANTANA, 2001). É quando a criança faz, sistematicamente, um único tipo de esporte e encontra aulas que não são diversificadas (SANTANA, 2004). Implica ainda em competições regulares, aprimoramento técnico dos fundamentos, assim como do conhecimento tático e o desenvolvimento das capacidades físicas direcionadas para o rendimento esportivo (SANTANA, 2001). Nesse tipo de treinamento, a criança é pressionada a comportar-se como alguém que não é. É o tipo de situação inútil, que leva os professores a tomarem o tempo dos outros de ser criança (SANTANA, 2004).

    Quando temos toda uma orientação voltada para a busca precoce de resultados imediatos vemos cada vez mais distante uma iniciação esportiva adequada. O problema agrava-se quando sabemos que essa busca pela especialização precoce tende a encontrar mais adeptos no meio esportivo. Por quê? Por que a especialização precoce permite resultados a curto prazo. Significa dizer que o Técnico que incluir métodos de treinamentos especializados obterá melhores resultados (a curto prazo) do que o que priorizar uma iniciação esportiva comprometida com a construção do conhecimento relativo às particularidades do esporte, com a promoção e a incorporação de valores e idéias indispensáveis ao desenvolvimento humano, valorizando a criança enquanto um ser criativo, espontâneo, em formação. Desvincular o processo de iniciação do treinamento precoce e da excessiva competitividade, poderá significar não conquistar medalhas. Assim, vemos alimentados e fomentados os desejos dos imediatistas (SANTANA, 2001).

    Marques (1991) afirma que "a formação multilateral (e aqui não pode ser entendido apenas do ponto de vista motor) tem reflexos a longo prazo no rendimento (...) não cria condições para êxitos imediatos (...), pelo contrário a especialização precoce permite uma rápida obtenção de resultados".

    Para onde nos levará criarmos na iniciação um contexto imediatista? Entendendo como contexto imediatista, objetivamente, quando o Técnico ou Professor tem à sua disposição um grupo de crianças entre 05 e 12 anos, e estabelece como objetivos: promover uma equipe titular, estrutura-la técnica e taticamente, vencer os adversários, disputar as finais, conquistar títulos. Todas as suas iniciativas e dos pais e dirigentes são nessa direção (SANTANA, 2001).

    Há um consenso razoável na área esportiva de que a especialização precoce submete a criança a riscos consideráveis. Por conseqüência, se o professor adotar uma pedagogia que eleja princípios e procedimentos de ensino que tornem o processo de treinamento demasiadamente exigente e especializado, pode acontecer de as crianças, ao longo de temporadas, afastarem-se do esporte. Esse fato, por si só, já não bastaria para se refutar a especialização esportiva precoce? (SANTANA, 2004)

    O esporte, como um legado deixado para a humanidade através dos tempos, envolve outras variáveis como competitividade, vitória, derrota, glória, etc. que se não visto com um olhar crítico e amplo dentro de uma prática educativa, pode ser muito prejudicial ao desenvolvimento de crianças e jovens. Como por exemplo, o uso excessivo de competições toma um caráter seletivo e restrito ao invés de se tornar um meio de motivação estimulante de si mesmo (MACHADO & PESOTO, 2001).

    Parece haver muita disparidade entre como a criança faz e pensa e como os regulamentos e os adultos a obrigam a agir. Parece haver muita cobrança, formalidade, preciosismo, discriminação (SANTANA, 2001). Muitas dessas competições seguem moldes e normas determinadas para a competição adulta, espelhando-se em modelos pouco recomendados para as diferentes faixas etárias e outras variáveis importantes como o sexo, o estágio de desenvolvimento e o nível de habilidade dos praticantes, entre outras (DE ROSE JR, 2002).

    Freire (1989) refere-se àqueles que criam os mecanismos de competição entre as crianças na escola como "(...) formadoras de campeões, selecionadoras de raça, disseminadoras de sentimentos preconceituosos, reprodutoras da forma mais abominável de competição que orienta as relações entre as pessoas de nossa sociedade, e que encontra sua expressão ritual mais importante nos jogos olímpicos modernos. Vencer a qualquer custo é o lema que orienta a competição, nas relações sociais e nos jogos desportivos". O mesmo podemos dizer daqueles que organizam as competições, entre crianças, fora da escola! O que deve ficar bem claro é que esse tipo de comportamento, esse modelo, precisa ser, efetivamente, abandonado, pois é incompatível à criança. A criança está iniciando (SANTANA, 2001).

    A verdadeira natureza da competição é que ela cria mais perdedores do que vencedores. Nesse ponto a competição passa a ser tanto desencorajadora quanto ameaçadora àqueles que não possuem capacidades e habilidades suficientes para desempenhar adequadamente e obter o desejado sucesso (DE ROSE JR, 2002).

    Singer (1977) realça que existem períodos maturacionais ideais para determinadas experiências onde o indivíduo estará mais preparado, permitindo, desta forma, com que as vivências tragam maiores e melhores benefícios.

    Surge, portanto, a noção de "prontidão esportiva", desenvolvida por Robert Malina (1988), que "é o equilíbrio entre o nível de crescimento, de desenvolvimento e de maturação e o nível da demanda competitiva. Quando a demanda for maior que as características individuais, então o indivíduo não estará pronto para competir".

    É exatamente nesse desequilíbrio que se pode encontrar o grande aspecto negativo da competição infanto-juvenil. Normalmente, quando isso ocorre e a criança e o jovem são submetidos a desafios, surgem problemas de ordem física, como o aparecimento de lesões importantes, que podem até afetar o processo de crescimento e desenvolvimento, e de ordem psicológica, que podem levar à sérias conseqüências comportamentais. A prontidão competitiva inclui componentes físicos, fisiológicos, psicológicos (emocionais e cognitivos) e sociais (DE ROSE JR, 2002).

    Levando-se em consideração os estágios de desenvolvimento motor de uma criança e relacionando-os com a prática esportiva competitiva, observa-se que, na maioria das vezes, ela é levada a uma prática esportiva específica muito antes de ter cumprido etapas importantes na solidificação esportiva. Não são raras as vezes em que as crianças e jovens são colocados diante de situações complexas antes de atingir estágios básicos de desenvolvimento motor, exigindo-se comportamentos que não são adequados à sua capacidade de realização (DE ROSE JR, 2002).

    Os professores que desejam de seus alunos resultados em curto prazo e que cedem às pressões de pais (que exigem de seus filhos resultados que os deixem orgulhosos) especializaram precocemente. Tal especialização pode ser tática, motora e técnica. Por extensão, o treinamento, que poderia ser algo bom, diversificado, passa a ser ruim. E passa a ser ruim porque, antes do tempo, faz a criança aprender muito sobre uma única coisa. Ruim também porque a criança é pressionada a atender interesses alheios (SANTANA, 2004).

    O esporte passa a ser utilizado "(...) demagogicamente, para atender as nossas ambições de técnico, bem como às ansiedades de pais, submetendo crianças a terríveis pressões, fazendo com que poucas se tornem atletas, mas muitas percam a infância" (NISTA-PICCOLO, 1999).

    É inaceitável o esporte entrar na vida de uma criança apenas com os referencias de competição e rendimento, fazendo-a persegui-los a qualquer preço. Fomentar entre crianças a idéia de que só a vitória é importante, é incoerente. A criança precisa perceber a importância de saber lidar com as diferenças, e quem aprende que só a vitória tem valor, poderá não saber lidar com as nuanças, valorizar a busca, o esforço próprio, respeitar o outro, interagir, cooperar, rever pontos de vista (SANTANA, 2001).

    Toda competição exige preparação e treinamento e isso pode ocorrer precocemente, causando diversos problemas à criança. Uma série de estudos aponta os efeitos do treinamento precoce no aparelho locomotor e cardiorespiratório, na coluna vertebral, no crescimento e na maturação sexual (DE ROSE JR, 2002).

    A tentativa de antecipar o processo de crescimento e desenvolvimento motor da criança seria uma vantagem? Para João Bosco da Silva, professor e Mestre em Educação Física, em Aprender a aprender fazendo (1995) essa tentativa trará "(...) graves conseqüências de ordem neuro-fisiológicas, anatômica, psicológica e pedagógica, pois ao ignorar as fazes e estágios especificados pela ciência 'a formação física específica' e o 'rendimento técnico' (treinamento precoce) constituem prioridades absolutas, deixando de respeitar a natureza da criança (...)".

    A motivação competitiva faz com que a criança supere o mecanismo de auto-regulação, através da liberação intensa de adrenalina, o que pode ser extremamente prejudicial (FIORESE, 1989). A fim de atender às exigências externas ela vai além. Por conta disso, acaba sendo prejudicada fisiologicamente (SANTANA, 2004).

    Para o bem da criança e do próprio esporte é melhor pararmos de investir nas crianças nossas aspirações pessoais, nossos interesses, nossos desejos. Porque (e quem é Técnico [a], pai ou diretor [a] sebe disso) muitas crianças param de praticá-lo no melhor momento, na hora em que estão amadurecendo quantitativa e qualitativamente. Porque, quem foi criança e parou de jogar (ou jogou) por sentir-se pressionada, rotulada, insegura, lesionada, não esquece a terrível experiência. E, pior do que isso, passam anos no esporte e o abandonam. Saem do mesmo desgastadas emocionalmente, fragmentadas, inseguras, lesionadas, levando, vida afora, as possíveis conseqüências. Algumas param, pois sentem-se desgastadas, desmotivadas em conquistar mais aquele título, aquele campeonato (pois em alguns anos de prática intensiva já conquistaram títulos municipais, estaduais, prêmios individuais) e preferem freqüentar outros ares. É a tal da saturação esportiva. O garoto não quer mais continuar a prática esportiva porque começou muito cedo, foi várias vezes campeão, está saturado (PINI & CARAZZATTO, 1978).

    Outros estão parando porque têm uma certa dorzinha no joelho, no tornozelo, na coxa, e os médicos ortopedistas pedem para parar (com toda razão), tratar urgentemente e ainda colocam a culpa no Futsal, por ser um esporte jogado em piso muito duro, que não permite deslizamento específico, exigindo movimentos velozes que podem ocasionar o arrancamento de tendões junto à inserção óssea e até mesmo fraturas, devido a criança não apresentar maturação óssea equivalente (NEGRÃO, 1980), e, ainda, se for uma atividade extenuante e realizada por longo período de tempo, lesões epifisárias que atrapalham sobremaneira no crescimento, podendo sofrer modificações irreversíveis [GUEDES & GUEDES (1995), PINI & CARAZZATTO (1978), FIORESE (1989)].

    Não podemos ignorar ser lamentável ver uma criança ser lesionada aos poucos, por excesso de treino, ou ser insistentemente julgadas por suas atitudes dentro do esporte. No futuro, quem se responsabilizará pelas conseqüências? (SANTANA, 2001)

    Tem aqueles garotos que sentem-se completamente abalados emocionalmente, com medo de errar, inseguros e que querem parar. Sabe o que é isso? Estresse de competição (OLIVEIRA, 1993). Devido a todo esse tempo expostos aos conflitos emocionais causados pelas competições (crítica dos pais e dos [as] técnicos [as], derrotas, punições, elogios, comparações). É... a coisa vai ficando séria, e nas categorias acima, dos 13 aos 19 anos, há indícios de ser bem menor o números de jogadores atuando (SANTANA, 2001). Esses procedimentos acabam resultando em problemas de diferentes dimensões: físicas, técnicas, táticas, psicológicas e filosóficas (PAES, 2002).

    Quem compete é submetido a exigências de vários tipos, inclusive a social, pois a participação expõe o indivíduo ao julgamento de outros, podendo obter status dentro do seu grupo social. Esse é um dos motivos que pode tornar a competição um evento potencialmente estressante em função das demandas da situação e é enfatizado quando a competição se torna mais formalizada (DE ROSE JR, 2002).

    Analisemos a afirmativa de Bento (1989) acerca das estruturas que orientam a iniciação esportiva: "As estruturas, há longo tempo criadas para o desporto de rendimento (e geradoras de conflito), implicam uma prática de desporto pelas crianças, que não se justifica por mais tempo. Orientado pela finalidade de produzir rendimento desportivo, o sistema de desporto conduz a que o desportista perca a sua posição de sujeito da atividade, se transforme em objeto, num produto visível, mensurável e valorável, que o seu corpo se transforme em instrumento de apresentação do rendimento do sistema".

    A maior incidência de especialização precoce está centrada nos clubes, onde o chamado senso comum, influenciado por vários setores da sociedade, sobretudo pela mídia, entende equivocadamente que esse procedimento pedagógico é eficiente na identificação do talento esportivo (PAES, 2002).

    Ao observarmos o esporte praticado por crianças e jovens nos clubes, nas chamadas categorias de base, identificamos rapidamente algumas características do esporte de rendimento reproduzidas nesse contexto: técnicos maltratando seus "atletas" por erros cometidos, pais xingando árbitros, frases agressivas entoadas pela torcida. Aprofundando um pouco o nosso olhar para além do momento da competição, encontramos crianças submetidas a "peneiras" para a seleção da equipe e a seções de treinamento exaustivas, muitas vezes incompatíveis com a continuação dos estudos (KORSAKAS, 2002).

    Chaves (1985) assim relata: "(...) as crianças muitas vezes, ao se lançarem em busca da atividade física, vão com a idéia errônea de cedo se tornarem campeões, idéia esta estimulada pelos companheiros, pais, professores e treinadores (...)".

    Grande parte dos pais, ainda que bem intencionada, coloca os filhos no esporte e fomenta o sonho de que sejam os atletas que eles nunca foram ou coisa parecida. Alguns acham que o filho tem mesmo um dom, crêem que isso os diferencia dos outros e esperam que os leve ao esporte profissional (SANTANA, 2004).

    Penso que investir em uma pedagogia que entenda o esporte de maneira simplista, resumindo-o, entre outras coisas, apenas ao ensino de suas particularidades técnicas e táticas, à busca de resultados e de revelação de talentos, a crença de que a criança talentosa é diferente e chegará ao esporte profissional, de que o esporte é trabalho, não é um caminho promissor e, portanto, deve ser superado (SANTANA, 2004).

    Alguns dirigentes de clubes concebem o esporte de criança como um trabalho e a infância como um tempo de investimento. Por isso, alguns cobram dos professores a conquista de títulos e avaliam a qualidade do técnico apenas pelos resultados dos jogos (SANTANA, 2004).

    Segundo Gadotti (1997) a educação não pode ser orientada pelo paradigma que simplesmente dá ênfase apenas a eficiência. Ele diz que a educação é muito mais do que a instrução, do que treinamento ou a simples repetição. Capitanio (2003) afirma que a educação é um processo em longo prazo e precisa combater o imediatismo, o consumismo, se quiser contribuir para a transformação de uma sociedade. Ela se prolonga pela vida de toda pessoa, deixando marcas boas ou ruins, somáticas ou psicológicas. As somáticas são visíveis, porém as psicológicas não.

    Mas, ao que parece, este paradigma vem de encontro ao conceito atual de esporte, divulgado pela mídia e pela sociedade capitalista: o esporte como uma mercadoria de consumo (CAPITANIO, 2003). Ghiraldelli (1993), diz que esta abordagem esportiva atual acaba encobrindo uma estrutura social injusta e excludente, pois ele, o esporte aparece como sendo a salvação para a marginalidade e a pobreza, praticando-o, a criança, adolescente ou o adulto, estaria a caminho da ascensão social.

    Alguns técnicos e professores, preocupados apenas com o resultado, exacerbam-se. O fato é que passam a agir inadequadamente (gritos, sansões, coerção) e a conduzir as crianças de modo que se atendam apenas os seus interesses e os de outras pessoas (SANTANA, 2004).

    Em muitos casos, o que se pratica hoje na iniciação no Futsal é simplesmente treinamento precoce. É uma cópia do treinamento do jovem e do adulto. (...) Como explicar o clima de "guerra" das competições infantis? Como explicar uma criança passar anos no Futsal sem jogar? Como explicar uma criança entrar e sair de uma aula ou treino de Futsal sem dizer uma só palavra, sem comunicar-se com o outro, sem explorar, como disse João Batista Freire, em Educação de Corpo Inteiro (1989) "(...) o território dos sentimentos, das paixões, das emoções, por onde transitam medo, sofrimento, interesse, alegria".

    O esporte de criança precisa de um clima menos suscetível de confronto, menos rivalizável, que gere menos expectativa quanto mais nova for a criança - ainda que acredite que a competição nessa faixa etária não é um mal em si, mas o é o tratamento que se dá a essa (SANTANA, 2004).

    O que está equivocada é a competição que elaboramos para a criança. Errados somos nós que fazemos da competição um fim em si mesma: a busca dramática pela vitória, transformando a disputa entre crianças num verdadeiro "campo de batalha". Nós que criamos a "seriedade", a "obrigatoriedade pela vitória", a formalidade, os regulamentos, retiramos o lúdico, a brincadeira, o faz de conta. Nós é que queremos transformar a criança precocemente num campeão, atleta, artilheiro. Nós é que queremos que o nosso filho seja titular, vencedor, responsável (SANTANA, 2001).

    Se deslocarmos o foco para a prática do esporte na escola, a visão não será muito diferente, apesar de ser um ambiente teoricamente comprometido com o esporte-educação que, segundo o decreto nº. 2.574, de 29 de abril de 1998, é aquele "praticado nos sistemas de ensino e em outras formas assistemáticas de educação, evitando-se a seletividade, a hipercompetitividade de seus praticantes, com a finalidade de alcançar o desenvolvimento integral do indivíduo e a sua formação para o exercício da cidadania e a prática do lazer". Além disso, não são raras as vezes que a grande preocupação em ter equipes competitivas nas escolas sobrepõe-se à intenção de ensinar o esporte para seus alunos, portanto, qualquer proposta pedagógica é facilmente substituída por um determinado número de bolsas de estudo oferecidas a alguns alunos (KORSAKAS, 2002).

    Todos esses aspectos do processo competitivo, quando relacionado ao esporte praticado por criança (...) podem trazer problemas que devem ser contornados adequadamente para que não se tornem inibidores da participação dos jovens no referido processo, causando-lhes estresse excessivo e prejudicando seu desenvolvimento como participante e como cidadãos comuns (DE ROSE JR, 2002).


Conclusão

    A especialização esportiva precoce vem sendo cada vez mais usada por professores em clubes e escolas. Isso reflete a busca de treinadores e de instituições por mais status na sociedade e uma melhor afirmação de seus nomes. Isso por sua vez reflete a necessidade de auto-afirmação do sistema capitalista vigente.

    Há quem diga que essa metodologia pode ser eficaz para descobrir novos talentos esportivos, no entanto, os danos são maiores que os benefícios. Quantos atletas talentosos e famosos temos hoje? Se nos preocupássemos em desenvolver as crianças longe de um contexto imediatista, certamente teríamos um número maior de atletas e de "talentos".

    Devemos ensinar esporte para as crianças para que estas possam construir autonomia, adiquirir segurança, integrar-se socialmente, para que ela possa incorporar uma cultura de lazer com o esporte e que possa usá-lo na sua vida e se tornar uma pessoa mais saudável.

    Ensinar esporte às crianças é muito mais do que apenas repetir treinamentos de pessoas adultas, é contribuir para sua formação integral: suas habilidades motoras, desenvolvimento físico, cognitivo, afetivo e social.

    Penso que o ensino superior brasileiro passa por um momento inusitado, aumenta cada vez mais o número de instituições de ensino. No entanto, a formação de novos profissionais não se afirma na qualidade. Não podemos justificar apenas nesse ponto o despreparo de muitos professores. Nesse ponto a questão é pedagógica.

    Temos que estudar cada vez mais para sabermos que muitas coisas que fazemos estão erradas e para que possamos mudá-las. Mesmo assim é preocupante saber que alguns professores sabem disso e, no entanto, preferem se render ao sistema. Nesse ponto a questão é ética.

    Precisamos decidir-nos se seremos professores, na real essência da palavra, agentes transformadores de uma sociedade, ou se seremos apenas meros reprodutores de práticas ultrapassadas e prejudiciais.


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