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Adolescente em conflito com a lei: a miopia em
torno do estatuto da criança e do adolescente

   
Doutoranda em Políticas Publicas e Formação
Humana - PPFH/UERJ. Bolsista da FAPERJ.
(Brasil)
 
 
Cristina Borges de Oliveira
cristinborges@bol.com.br
 

 

 

 

 
Resumo
     Este texto objetiva refletir sobre a política pública brasileira materializada no ECA Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) como representação de uma conquista pela luta em favor do Estado democrático e também pela garantia e ampliação dos direitos de crianças e adolescentes brasileiros em conflito com a lei.
    Unitermos: Estatuto da Criança e do Adolescente. Políticas públicas. Adolescente em conflito com a Lei.
 
Abstract
     This text objective to reflect on the Brazilian public politics materialized in the statute of the child and of the adolescent (1990) as representation of one conquest for the fight in favor of the democratic state and also for the guarantee and magnifying of the rights of children and adolescents Brazilians in conflict with the law.
    Keywords: Statute of the child and the adolescent. Public politics. Adolescent in conflict with the law.
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 12 - N° 113 - Octubre de 2007

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No sinal fechado
Ele vende chiclete
Capricha na Flanela
E se chama Pelé
Pinta na janela
Batalha algum trocado
Aponta um canivete
E até
Dobra a Carioca, olerê
Desce a Frei Caneca, olará
Se manda pra Tijuca
Sobe o Borel
Meio se maloca
Agita numa boca
Descola uma mutuca
E um papel
Sonha aquela mina, olerê
Prancha, parafina, olará
Dorme gente fina
Acorda pinel [...] 1
.

Introdução

    Em 2007, ano de Jogos Pan-Americanos na cidade do Rio de Janeiro/BR, os brasileiros/as parecem estar presenciando uma tragédia anunciada: o aumento do índice de adolescentes em conflito com a lei, envolvidos em crimes hediondos, envolvidos com o tráfico de drogas, entre outros fatos permeiam o nosso cotidiano e, consequentemente, os noticiários nacionais e internacionais. Neste contexto, discutir sobre o descaso histórico do Estado e da sociedade para com crianças e adolescentes brasileiros que estão à margem do seio social pode parecer, a primeira vista, repetitivo. Entretanto, faz-se mister considerar estes fatores para que possamos compreender o atual quadro de abandono do poder público, as situações de desigualdades, exclusão social e o crescente e absurdo envolvimento de crianças e adolescentes com o uso e tráfico de drogas, em situação de risco e/ou em conflito com a lei, no País. Arantes (2000: 92) chama-nos a reflexão para uma observação, no mínimo, curiosa

[...] porque uma questão de tal magnitude e complexidade como esta - sempre discutida nos seminários especializados sobre o tema, em seus aspectos históricos, educacionais, culturais artísticos, éticos, políticos, econômicos, internacionais, religiosos, místicos, etc- para efeitos práticos de políticas públicas é sempre reduzida aos seus aspectos médico, jurídico e policial? (apud Gonçalves Bastos, 1992, 1993).

    As diferentes perspectivas anunciadas se evidenciam, no Brasil, quando se discute o tema infância e adolescência em situação de risco. Vale destacar que, anterior ao Estatuto da Criança e do Adolescente popularmente conhecido como ECA (1990)2 , a Lei nº 6.697/79, que instituiu o Código de Menores, esteve em vigência por onze anos. O ECA é disposto na Lei nº 8.069/90 de 13 de julho de 1990, e adveio substituindo o antigo Código de Menores. O Estatuto objetiva, entre outras coisas, ser capaz de coibir a prática de condutas ilícitas cometida por pessoas com idade inferior a dezoito anos e dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente. A regulamentação do Estatuto da criança e do adolescente representa um passo adiante nas políticas públicas brasileiras como uma legislação referente aos direitos humanos.

    O ECA (1990) considera como criança, o indivíduo com idade entre zero e doze anos (0 à 12 ) incompletos, e como adolescente a pessoa com idade entre doze e dezoito anos (12 à 18 ) incompletos. Foi criado para proteger e garantir que estas crianças e adolescentes tivessem acesso a direitos básicos como saúde, educação, cultura, esporte, lazer, entre outros, sendo esses direitos deveres do Estado e da família, preferencialmente propiciados pelas políticas públicas. O Estatuto da criança e do adolescente materializa uma das diversas lutas e conquistas do movimento de democratização real da sociedade, ou seja do ponto de vista da promoção de direitos, o ECA (1990) representa uma importante política pública brasileira que se opõe às políticas mercantis.

    Vale a pena destacar que o que regulamenta a aplicação de medidas protetoras para a criança quando cometem infração ou se encontram em situação de risco, está disposto no art. 101 da Lei n. 8069/90. Os adolescentes também estão sujeitas à aplicação das mesmas medidas protetoras e o emprego de medidas sócio-educativas de acordo com o art. 112 do mesmo Estatuto da Criança e do Adolescente. Desta perspectiva, compreendê-los como pessoas em desenvolvimento, estando ou não em conflito com a lei, é o que prevê o ECA (1990), não devendo ser esta compreensão pautada pelo Código Penal.

    Nos últimos anos assistiu-se a significativas metamorfoses na história da humanidade. Transformações de diferentes ordens como: política, tecnocientífica, social e econômica, o surgimento e expansão da globalização e mundialização, a evolução do conhecimento científico-tecnológico - destaque para a conquista do espaço, o domínio da engenharia genética - a expansão da informática, a popularização da cibercultura, os primeiro passos da nanotecnologia, entre tantas outras. Na atualidade, a variada oferta de tecnologias e informações faz parte do cotidiano de muitos jovens, dessa maneira, concordamos que são inúmeros os canais de comunicação.

    Portanto, estar alheio aos fatos, desconhecer as normas de conduta socialmente aceitas, não se dá unicamente pela falta de informação uma vez que com a velocidade do mundo moderno não há espaço para a ausência de informações, mas, sim para exclusão o que cabe discutir sobre a valoração ética e não somente a falta de conhecimento. Crianças e adolescentes estão mais afeitos a essas inovações tecnocientíficas não sendo raro há inversão de papeis, jovens orientarem adultos sobre as novas formas de tecnologia, informação e comunicação.

    Nesse contexto, o adolescente entre 16 e 18 anos precisa ser encarado como pessoa capaz de entender as conseqüências de seus atos, no entanto, talvez não sendo capaz, ainda, de dimensioná-los concretamente. Advogamos que, adolescentes em conflito com a lei não devem se submeter às sanções de ordem penal. Apesar de entender-se que o jovem nessa faixa etária possui plena capacidade de discernimento, estando apto a escolher os seus representantes políticos, há outras tantas variáveis, não somente a idade, que influem em seu comportamento: o desinvestimento social, a miserabilidade, a falta de investimento na educação, a falta de investimento em medidas preventivas contra a violência, o parco investimento em esporte e lazer em áreas de risco, entre outros fatores, podem ser identificados como mazelas desencadeadoras desse processo estarrecedor de violência crescente envolvendo adolescentes.

    Após tantas ocorrências que caracterizam a barbárie que acomete os grandes centros urbanos, a sociedade civil brasileira coloca, novamente, em discussão o tema da redução da maioridade penal, em função de muitos crimes hediondos terem a participação de 'menores', muito deles, que no ano de 2007, encontram-se com a mesma idade do ECA (1990), ou seja, dezessete anos. Algumas questões inquietantes estão postas: que sentido carrega o vocábulo menor? Menor de tamanho, de idade, de amadurecimento, de discernimento, ou ainda, menor que a vítima, menor que o agressor, menor que a vontade política, que a capacidade da justiça, menor que a organização e mobilização da sociedade civil.

    O sistema jurídico brasileiro em vigência3 define que a maioridade penal se dá aos 18 anos de idade. Norma que se encontra inscrita nos seguintes Diplomas Legais: artigo 27 do Código Penal; artigo 104 caput do Estatuto da Criança e do Adolescente; e artigo 228 da Constituição Federal. A legislação manteve-se leal ao fundamento de que o indivíduo menor de 18 anos não apresenta desenvolvimento cognitivo completo para compreender o caráter de seus atos, Adotou-se uma perspectiva biologicista, em que se considerada unicamente a idade independentemente da sua capacidade psíquica, emocional, intelectual e cultural de compreensão. A redução da maioridade penal irá acrescentar mais pessoas no sistema penal falido, que ainda não consegue recuperar aqueles que nele se encontra.

    Por ocasião das comemorações do aniversário de quinze anos do ECA representantes de entidades de defesa da criança e do adolescente apontam que, se fossem contemplados todos os dispositivos presentes no Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) a realidade das crianças e jovens brasileiros seria bastante diferente. Donde se conclui que, o ECA (1990) necessita ser contextualizado adequadamente, pois para satisfatória operacionalização da legislação instituída no Brasil é necessário que o Estatuto não esteja isolado, outros instrumentos de promoção dos direitos humanos também devem ser considerados com a devida seriedade, como: leis nacionais, municipais e estaduais, além de tratados internacionais, nos quais, o Brasil é signatário.

    A chamada miopia em torno do Estatuto da Criança e do Adolescente equivale a manter em foco restrito, interesses imediatos e de curto prazo, consideradas relevantes, somente variáveis próximas e visíveis. A ênfase na redução da maioridade penal é ressaltada, num momento em que se evidencia, no Brasil, a violência. Mas também, se vivencia a expectativa do início de um grande evento esportivo internacional, 'os jogos Pan-americanos - Rio 2007', e concomitantemente, a campanha para que o Brasil seja candidato a sediar a Copa do Mundo em 2014. O discurso de defesa desses eventos é aquele que aponta a possibilidade de crescimento da sociedade brasileira como principal motivo para que as competições sejam disputadas em território nacional. Neste contexto o papel da escola e do esporte é hiper-dimensionado.

    Esta discussão sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, faz-nos recordar matérias veiculadas por ocasião do aniversário de quinze anos de existência do ECA. O jornal carioca O Globo (14/07/2005), publicado um dia depois do aniversário de quinze anos do estatuto, apresenta diferentes avaliações sobre o mesmo: "O estágio da criminalidade põe em xeque as intenções do ECA[...]", e também "[...] ainda estamos longe do cenário ideal, mas houve um grande avanço". A reportagem intitulada Teste de Vida Real (2005) aborda uma das mais cruéis realidades para quem vive em qualquer das grandes regiões metropolitanas brasileiras, e um dos aspectos mais dramáticos das mazelas sociais do país: a condenação por parte de crianças e adolescentes brasileiros à degradação e ao crime, caminho pequeno até a morte.

    Adolescentes assaltando em sinais de trânsito; portando arma de fogo; servindo de soldados para o tráfico de drogas; se prostituindo, crianças e adolescentes abaixo da linha de pobreza, que sofrem maus tratos e abandono, sem perspectiva nenhuma de futuro e que vivem num mundo cujos valores éticos estão mais próximos da barbárie do que da civilização. Este é o paradoxo: a sociedade atual ter tudo para ser civilizada e ainda assim, pratica a barbárie. Estas ainda são manchetes, infelizmente, comuns nos noticiários brasileiros. Daí o índice de assassinatos de jovens ser muito alto em relação à média nacional. Para muitos adolescentes, o caminho é sem volta!

    O adolescente envolvido em ato infracional é personagem constante das notícias sobre violência em nosso país e continua a ser um grande desafio posto ao poder público e à sociedade de uma maneira geral, fazendo parte do nosso imaginário social adjetivos como: delinqüente, trombadinha, de menor, pivete. Francis Hime e Chico Buarque de Hollanda em 19784 já cantavam essa inquietação "No sinal fechado/ Ele transa chiclete/ E se chama pivete/ E pinta na janela/Capricha na flanela/ Descola uma bereta/ Batalha na sarjeta/ E tem as pernas tortas".

    Há quem diga que o ECA é bastante controverso, no entanto, o Estatuto publicado em 1990 se constitui como instrumento que pretende acolher e resgatar, da marginalidade, a criança e o adolescente em conflito, ou não, com a lei no Brasil e ainda, proteger a sociedade e protegê-los desta mesma sociedade. Tal legislação foi um passo à frente na democratização do Estado, um salto qualitativo para aqueles considerados abandonados, carentes, infratores, em situação de risco, a dialética, encontra-se no poder do Estado em instituir o pátrio poder que desencadeia o controle, a intervenção e a exclusão, com toda carga negativa que o termo 'menor' carrega, sem direito à cidadania e dignidade.

    Dialeticamente, alguns juristas menoristas - juizes que foram responsáveis pela construção do Código de Menores citado inicialmente - afirmam que não se deveria lançar sobre uma lei tamanha responsabilidade. Alegam que a lei nº. 8.069/90 que dispõe sobre o ECA, quando apresenta artigos sobre os direitos dos menores não abarca os deveres dos mesmos, afirmam ainda que este Estatuto protege bandido porque reconhece leis que não podem ser cumpridas. Essa é a voz da corrente que não reconhece o Estatuto da Criança e do Adolescente como um avanço social, uma conquista, e de certa maneira, indica como solução para diminuição da violência a simples redução da maioridade penal.

    De um ponto de vista crítico e comprometido com a melhoria das condições de vida das crianças e adolescentes brasileiros, as intenções e objetivos com que o ECA foi redigido são extremamente louváveis. No entanto, a contradição em torno de sua prática tornou alguns dos seus dispositivos uma utopia. Infelizmente, na realidade concreta, somos obrigados a admitir que aumenta o estágio de violência e a contínua e sistemática situação em que crianças e adolescentes são coptados pelo crime, em especial pelo tráfico de drogas, nas grandes cidades brasileiras. Vide o documentário Falcão: meninos do tráfico de M. V. Bill e Celso Athayde, realizado pela CUFA - Central Única das Favelas e exibido no dia 19 de março de 2006 no programa "Fantástico" da Rede Globo de televisão.

    A precariedade das políticas públicas para adolescentes, especialmente aqueles em conflito com a lei, como os sistemas sócio-educativos, não muda o quadro atual de nossa sociedade que convive com a freqüência e a gravidade dos atos infracionais, a exclusão social sofrida pelos adolescentes pobres e suas famílias, e a violência praticada contra eles. Perto de seu aniversário de dezessete anos na data de 13 de julho de 2007, ainda assistimos, estarrecidos, situações que oscilam entre extremos como: violência sendo praticada em unidade de atendimento direto aos adolescentes aos quais são atribuídas práticas infracionais5; rebeliões violentas e crueldade praticada nas instituições para adolescentes infratores; instituições mal administradas com execução de medidas sócio-educativas ineficazes permeadas por tortura, maus tratos, prática de execução sumária de infratores ou meros suspeitos, ao completo descaso do poder público frente aos milhões de crianças e adolescentes brasileiros que estão crescendo na miséria e no abandono.

    Arantes (2000, p 21) denuncia, com base em análise e informações da Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (ANCED),

[...] a situação do atendimento ao adolescente autor de ato infracional tornou-se uma das mais escandalosas do país, por diversas razões, entre as quais: internação de adolescente sem determinação judicial; tempo de internação superior ao limite legal; internação de adolescentes indevidamente.

    Arantes (2000) vai mais longe afirmando que o Estado brasileiro opta frequentemente pela medida de internação e não pela assunção de medidas em meio aberto, talvez por falta de interesse/vontade política, por ineficiência e/ou ausência de estruturas compatíveis para tal operacionalização. O agravante é que o próprio sistema de internação não dispõe de infra-estrutura adequada e ainda programas que realmente proporcionem reabilitação para estas pessoas em desenvolvimento "[...] verificou-se que não apenas o Poder Judiciário, mas também o Ministério Público, a Polícia Civil, e o Conselho Tutelar estavam encaminhando adolescentes para o cumprimento de medidas sócio-educativas" (Arantes 2000, p 12). O que causa bastante estranheza e que certamente não corresponde aos objetivos do ECA.

    A fim de apresentar a incoerência entre as medidas e ações desenvolvidas pelas políticas públicas e o que preconiza a lei nº 8.069/90 correspondente ao Estatuto da Criança e do Adolescente destacamos que o modelo de atuação dos órgãos oficiais brasileiro é americanizado. Para o caso de crianças e adolescentes envolvidos com uso e/ou tráfico de drogas, as medidas adotadas são: tolerância zero e total abstinência. O ECA prevê que podem ser adotadas diferentes medidas para crianças e adolescentes infratores, ou seja, a criança que comete ato infracional deve receber medida de proteção, que supostamente instaure os seus direitos e não uma pena, não podendo ser detida/internada. Tais medidas podem abarcar: matricular a criança na escola; encaminhar a criança para o serviço de saúde para tratamento, reintegrar a criança na família entre outras. No entanto, alguns juristas, incoerentemente, não compreendem que problemas de ordem de saúde - como uso de drogas- devam ser tratados no sistema público de saúde.

    Para aqueles adolescentes que possuem envolvimento com drogas e ou cometeram ato infracional a medida aplicada deve ser sócio-educativa. Adolescentes em cumprimento de medidas sócio-educativas (capítulo IV, da lei 8.069/90 - Estatuto da Criança e do Adolescente). O adolescente recebe tal medida (internato que é igual à reclusão e pena) caracterizada pelo sistema penal infanto-juvenil. Como uma das medidas sócio-educativas importa-se o modelo americano de justiça terapêutica que é medida aplicada como alternativa ao combate as drogas, tal prática brasileira é controlada pelos juristas de cada localidade, pautada no binômio: tolerância zero e total abstinência.

    Arantes (2000) aponta-nos significativos questionamentos e reflexões sobre o tráfico de drogas e sobre as contradições engendradas em seu bojo, e ainda, quais frações de classes se beneficiam com esta circunstância.

Sobretudo nos parece necessário para uma prática conseqüente do ponto de vista ético político, para que o combate ao tráfico não seja uma justificativa para a manutenção da apartação social, que possamos responder: o que é tráfico; quais seus interesses; como se articula com o contrabando de armas e outros crimes, quem se beneficia dos bilhões de dólares movimentados pelo tráfico, como este dinheiro é transformado em dinheiro legal e como se integra ao capital internacional; que paises enriquecem e que paises são destruídos com o tráfico [...] ( Arantes , 2000, p 92).

    Do ponto de vista das relações sociais e da formação humana as conseqüências são dramáticas. A respeito o estudo e as conclusões de Bucher (1996) sobre os discursos proferidos em defesa da guerra contra as drogas, colaboram como alerta a que devemos estar atentos.

As análises dos mecanismos de poder envolvidos no discurso de "combate às drogas" indicam formas de um processo disciplinar referentes a um contexto autoritário, discriminatório e repressivo. Seus textos contribuem com o trabalho político (se não policial) de sujeição do cidadão a um determinado ideário de (pseudo) harmonia social, ajudando a encobrir as contradições inerentes às sociedades modernas e sustentando relações de força estabelecidas entre certos grupos sociais. Esse processo contrasta em particular com a abordagem do "problema das drogas" que o situa no âmbito da saúde pública, como uma ameaça não à ordem social, mas à saúde da população no sentido amplo, visando primeiramente os danos causados pelos abusos de álcool e de fumo. O discurso em pauta não se constitui, portanto, como uma concepção provisória e aprimorável nem sequer como um conhecimento objetivo e instrumentalizante ou uma idealidade discursiva sobre drogas e seus inegáveis malefícios. Seu condicionamento insidioso, indubitavelmente eficaz pela impregnação maciça da opinião pública que opera, atém-se à meta de disciplinarização dos cidadãos na medida em que as ações preconizadas compactuam com normas de conduta constitutivas de um amplo projeto regularizador das relações sociais. Apontando a possibilidade e a ameaça de condutas desviantes, justifica-se a prescrição normativa que desencadeia o controle, a intervenção e a exclusão (BUCHER, 1996, p.40).

    No entanto, com bastante otimismo utópico, ainda vislumbramos um cenário de possibilidades para a garantia dos direitos humanos da criança e do adolescente como cidadãos. Tal evolução pode ser identificada quando percebemos, na história, que parte do percurso árduo de luta pela proteção dos direitos das crianças e adolescentes brasileiros foi transposto pela formulação de uma política pública, materializada num Estatuto de proteção e dignidade que traz para o âmbito da justiça infanto-juvenil diretrizes e orientações que devem ser acatadas. Nesta perspectiva, as palavras de Sader (2007, p 8) reforçam o entendimento sobre o sentido crítico das políticas públicas.

As políticas públicas representam políticas que se opõem frontalmente à mercantilização, em todos os seus aspectos. Se o neoliberalismo é uma máquina cruel de cassação de direitos, as políticas públicas se caracterizam pela afirmação de direitos.

    Defender o ECA é dar continuidade à luta pela ampliação dos direitos desse grupo, afim de, combater a exploração, a aliciação e a discriminação; significa, principalmente, estarmos comprometidos como cidadãos participativos, com as decisões sociais, conscientes do nosso papel na convivência com as nossas crianças e adolescentes. É trazer estes adolescentes em conflito com a lei para dentro das possibilidades de formação integral, de novas informações e de estudos com dignidade, respeito à cidadania e a pluralidade social, cultural e econômica. Respeito às diferenças e ainda ao fato, indiscutível, destas crianças e adolescentes serem pessoas em desenvolvimento.

    Construir novas possibilidades para contraposição instalada em nosso contexto social significa participar da consolidação de um futuro melhor e mais digno para as crianças e os adolescentes brasileiros. Tal perspectiva se traduz em tomada de conhecimento, ou seja, visibilidade e transparência no trabalho que é desenvolvido para o adolescente autor de ato infracional nas diferentes cidades do país. Como demonstram pesquisas Oliveira, (2002)6; os adolescentes em conflito com a lei são, em sua maioria, do sexo masculino, com baixa ou nenhuma escolaridade e oriundos de famílias bastante pobres -. Constituir outras possibilidades de contraponto é defender os direitos desse grupo, o que significa verdadeiro investimento social, investimentos na educação, investimentos em frentes de trabalhos, em saúde, em esporte e lazer, em segurança pública, entre outros. Para que estas crianças e adolescentes nutram um sentimento de pertença, e tenham consciência dos seus direitos e deveres e preocupações com as futuras gerações.

    Significa ainda, se indignar sempre com a violência que assola aqueles que migram para os grandes centros com a ilusão de prosperidade, é não se cansar de denunciar a desvalorização do homem e da cultura do campo que acaba por estimular o inchaço nas favelas das grandes cidades, a vida sub-humana e indigna. Nesse caso estamos falando daqueles que clamam por reforma agrária e não, dos grandes latifundiários, atuais co-responsáveis por parte dos massacres que ocorrem na zona rural. Para finalizar nossas reflexões e estimular a inquietação diante desse tema, parafraseamos Arantes (2000, 91)

[...] porque nas guerras que se travam para o combate ao tráfico se exige o sacrifício do corpo favelado? Não será por que - a partir de um entendimento desses jovens como "hediondos", seus corações e mentes supostamente "defeituosos" demandado tratamento psiquiátrico e aplicação de medidas punitivas severas e extremas - conseguimos finalmente reeditar, em moldes tupiniquins, a proeza que há tanto nos persegue no Ocidente: identificar, num só corpo, a figura do doente mental e do criminoso.

    Encarar a situação é não negar que o sistema de medidas de prevenção contra a violência, contra o tráfico e uso de drogas é mínimo, ou inexistente nas cidades em que as situações de violência estão, completamente, fora de controle. Inúmeras pesquisas comprovam que a impunidade, em todas as frações de classe, favorece a violência e a criminalidade, assim, como garantir que o adolescente em conflito com a lei seja assistido, punido sem que seus direitos sejam violados. È importante deixar claro que não entendemos a relação pobreza / criminalidade/ violência como uma relação direta, a maioria pobre brasileira, não está envolvida com a criminalidade.

    A discussão da diminuição da maioridade penal é bastante espinhosa, pois em situação de comoção coletiva que vem à tona com o caso do menino João Helio7 se pega a exceção - adolescente envolvido em crime hediondo - e propõe-se criar uma legislação, que generaliza, a partir da exceção. Não podemos pensar em saídas imediatas. Diminuir a maioridade penal, simplesmente, é não considerar que, atualmente, em função de uma série de fatores, parte dos adolescentes estão se envolvendo em ato infracional de maneira reincidente e em idades cada vez mais tenras.

    Desta perspectiva, diminuição da maioridade penal para adolescente infrator, futuramente estará se dando voz de prisão às crianças ao nascer.

    Não se pode pensar em saídas imediatas, o Estado e a sociedade devem sim, mudar o foco da discussão e investir, na prevenção, ou seja, a estratégia de prevenção é fundamental para a redução da incidência da violência. E as medidas significativas podem pautar-se em: melhoria da situação econômica, social e de educação; introdução de medidas específicas de intervenção dentro de zonas geográficas definidas; estimulo ao fortalecimento das famílias e comunidades; investimento em construção, equipamento, assessoramento e manutenção de áreas destinadas ao esporte e lazer, entre tantas outras. Essas medidas são políticas públicas interventivas que devem se dar em um contexto de justiça e igualdade social, afim de, contribuir com a diminuição do fosso entre ricos e pobres em viés exeqüível a curto, médio e longo prazo.

    As reflexões em torno de alternativas que abarcam o esporte e o lazer como forma de políticas públicas preventivas contra o uso de drogas e a violência, estão, de alguma forma, relacionadas às discussões sobre: valoração ético político, identidade, elevação da auto-estima, interações sociais, saúde, resgate da dignidade, otimização do tempo disponível, igualdade de oportunidades, etc. Citamos alguns temas que caracterizam um viés importante que fundamenta o estimulo e o engajamento da sociedade nas atividades relacionadas à prevenção da violência que também contempla a prevenção do uso indevido de drogas. O dito popular, sabiamente define em máxima que o melhor é prevenir do que remediar. Desta forma, iniciativas propostas e executadas, ainda que precariamente, pela Secretaria Nacional Antidrogas (Senad)8 resultam da inquietação de uma sociedade civil organizada que está, literalmente, farta de vivenciar passivamente a degradação de adolescentes pertencentes a várias frações de classe.

    A principal conclusão que chegamos com esta discussão é que a responsabilidade pelo resgate dos adolescentes em conflito com a lei deve acontecer por meio de um trabalho integrado das distintas searas governamentais, das iniciativas comunitárias e dos movimentos sociais organizados. O dialogo entre a área acadêmica Educação Física e outras diferentes áreas de interface se dá na tentativa de provocar discussões contínuas sobre as causas da violência entre crianças e adolescentes. E, neste sentido apontar possíveis soluções concretas para reduzir o envolvimento dos jovens com a violência, sublinhando, demarcadamente, que todas as crianças e adolescentes são recuperáveis, desde que haja um vínculo com os jovens e um comprometimento do Estado, família, escola, comunidade e autoridades.


Notas

  1. Consulta-se: Canção intitulada "Pivete" autoria de Francis Hime e Chico Buarque, 1978. In: Hollanda, Chico Buarque de. Letra e música: incluindo Gol de Letras de Humberto Wernwck e Carta ao Chico de Tom Jobim. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 172.

  2. Consulta-se:Diário Oficial da União - DOU em 16/07/90. disponível em: portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/ lei 8069_01.pdf .Acessado em janeiro de 2007

  3. JORGE, Éder. Redução da maioridade penal. In: Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 60, nov. 2002. Disponível em:http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3374>. Acesso em: 25 mar. 2007.

  4. Canção intitulada "Pivete" autoria de Francis Hime e Chico Buarque, 1978. In: Hollanda, Chico Buarque de. Letra e música : incluindo Gol de Letras de Humberto Wernwck e Carta ao Chico de Tom Jobim. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p172.

  5. Vale ressaltar que os menores infratores brasileiros são encaminhados pela Delegacia de Polícia da Criança e do Adolescente (DPCA) e pelos Juizados da Infância e Juventude (JIJ) para as unidades de atendimento direto aos adolescentes.

  6. OLIVEIRA, Maria Cecília Rodrigues de. O processo de inclusão social na vida de adolescentes em conflito com a lei. 2002. FFCLRP/ Ribeirão Preto/SP. ( dissertação de mestrado)

  7. João Helio Fernandes Vieites, criança de apenas seis anos arrastada por mais de sete quilômetros nas ruas de um bairro carioca, presa pelo cinto de segurança do veículo, após a mãe ter sofrido assalto e entregue o carro passivamente. Notícia disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/mat/2007/02/08/294494115.asp

  8. Propostas que podem ser encontradas em:www.obid.senad.gov.br


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Sites para consulta

  • www.obid.senad.gov.br

  • http://oglobo.globo.com/rio/mat/2007/02/08/294494115.asp

  • http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3374

  • portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/ lei 8069_01.pdf

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