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Reflexões sobre lazer e trabalho no contexto da infância

   
*Professora do Departamento de Educação Física da
Universidade Federal de Viçosa. Especialista em Lazer
(UFMG).**Professor Doutorando do Departamento de
Biologia Animal da Universidade Federal de Viçosa.
(Brasil)
 
 
Alynne Andaki*
alynne@ufv.br  
Edmar Lacerda Mendes**
edpersonal@ig.com.br
 

 

 

 

 
Resumo
     A infância brasileira tem passado por profundas transformações, influenciada pela intransigência do capitalismo, pelo complexo sistema da globalização, redução do tempo "livre", culto ao trabalho, dentre outros fenômenos sociais modernos. Tais fenômenos que a princípio parecem pertencer somente à vida adulta, já fazem parte do universo infantil. Atualmente, ser criança é se preparar para vida adulta, para o trabalho, para as obrigações e responsabilidades que, exigidas desde então, funcionam como um treinamento para uma fase seguinte. O objetivo do presente estudo foi discutir a relação entre Lazer e Trabalho no contexto da infância. O procedimento metodológico se deu através de uma densa revisão literária. O trabalho infantil é uma realidade em nosso cotidiano e aparece diante de nós a todo instante, no trânsito, ruas, em fábricas, em domicílios. Suas conseqüências vão muito além de um prejuízo físico, moral ou intelectual, pois atinge a sociedade como um todo à medida que as crianças são exploradas e trabalhadores adultos perdem seus lugares. O direito ao lazer e ao lúdico parece ser uma realidade bem distante da vida destas crianças, e já que não encontramos um equilíbrio entre trabalho e lazer na vida adulta, o que repassamos a estas crianças é que ainda o trabalho é prioridade em nossa sociedade. É de suma importância que ocorram debates, discussões e reflexões a respeito do tema.
    Unitermos: Lazer. Trabalho. Infância.
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 12 - N° 112 - Septiembre de 2007

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Introdução

    A infância brasileira tem passado por profundas transformações, influenciada pela intransigência do capitalismo, pelo complexo sistema da globalização, redução do tempo "livre", culto ao trabalho, dentre outros fenômenos sociais modernos.

    Tais fenômenos que a princípio parecem pertencer somente à vida adulta, já fazem parte do universo infantil. Atualmente, ser criança é se preparar para vida adulta, para o trabalho, para as obrigações e responsabilidades que, exigidas desde então, funcionam como um treinamento para uma fase seguinte.

    "O que você vai ser quando crescer?"

    A pergunta tantas vezes repetida pelos adultos reforça a infância como uma fase efêmera, esvaziada de sentido no seu presente, menosprezada e prospectiva, o que demonstra uma concepção de infância restrita, desconsiderando o indivíduo dentro de seu processo contínuo de formação.

    Às crianças cujas condições sociais, econômicas e culturais permitem, têm seu tempo completamente preenchido por atividades, são as incansáveis "escolinhas", aulas e cursos, que mantêm a ordem, a disciplina e a responsabilidade para além das atividades escolares. Desde cedo, pais preocupados com a formação de seus filhos, já os preparam para um mercado competitivo, uma economia globalizada. E todas essas obrigações impostas pela sociedade podem ser comparadas com o trabalho, obrigação da vida adulta.

    Mas, por outro lado, temos uma realidade cruel de crianças que também não têm tempo disponível, pois o mesmo é preenchido, ou melhor, explorado pelo trabalho precoce, seja ele em ambiente doméstico, atividades lícitas ou ilícitas (tráfico, prostituição), como também na zona rural (carvoarias, canaviais, etc.). Apesar das exorbitantes diferenças, de tamanha desigualdade, o que estas crianças apresentam em comum é que possuem a infância marcada pela supressão total/parcial do seu tempo de lazer/lúdico, comprometendo assim, a sua cidadania infantil, já que consideramos o Lazer como um direito social.


O ponto de partida e o objetivo

O professor disserta
Ponto difícil do programa,
Um aluno dorme,
Cansado das canseiras da vida.
O professor vai sacudi-lo?
Vai repreendê-lo?
Não.
O professor baixa a voz
Com medo de acordá-lo
.
(O professor, Carlos Drumond de Andrade)

    A complexa problemática da exploração do trabalho infantil incomoda, instiga a mim como cidadã, animadora sócio cultural1 e, sobretudo com educadora. Não sendo possível separar as diversas esferas da minha vida, a exploração de crianças, a negação de seus direitos, incomoda e me desafia como humana.

    "Podemos começar a educar, começando pelo nosso próprio olhar. É processo de transformação que acontece a medida que nos permitimos sermos tocados pela emoção, pelo amor, à medida que nos humanizamos". (AMARAL, 2000)

    Como professora de escola pública, tenho contato direto com crianças trabalhadoras, filhos da também classe trabalhadora, que vivem a dura realidade de trabalhar e estudar. E suas ausências em atividades de lazer extra-classe2, são sempre justificadas pelo trabalho, eliminando assim uma das poucas oportunidades que são oferecidas a estas crianças de vivenciarem atividades lúdicas.

    Acrescento também que minhas discussões sobre a temática serão feitas a partir de minha trajetória enquanto estudiosa do lazer, objeto ao qual venho me dedicando desde a graduação com o meu trabalho de conclusão do curso, que impulsionou que buscasse maiores conhecimentos determinando minha escolha pela especialização em Lazer. O caminho ainda é curto, mas apenas um começo para discussões e reflexões a respeito do lazer, trabalho e infância.

    Lazer e trabalho são práticas sociais relacionadas em nosso cotidiano, mas cada um possui a sua identidade, não as consideraremos como opostas ou contrapostas e sim como diferentes esferas da vida humana.

    O presente artigo objetiva discutir a relação entre Lazer e Trabalho no contexto da infância, tendo em vista a problemática do trabalho infantil e a supressão do seu tempo total/parcial de lazer. Para alcançar tal objetivo, a pesquisa será do tipo qualitativa e, resultado de um trabalho bibliográfico.


O lazer

    O entendimento de lazer, a formação de suas concepções, ampliação e aprofundamento de seus significados e valores fazem parte de um processo contínuo. Estudiosos da área confirmam este processo, e segundo BRAMANTE (1998: 9) "nos últimos dez anos, venho sistematicamente construindo a minha versão desse fenômeno para melhor interpretá-lo e compreendê-lo".

    CAMARGO (1988) em seu depoimento afirma que "o lazer é um produto da revolução social ao mesmo tempo técnica e ético estética."E MARCELLINO (1998) faz considerações a respeito do lazer como:

  1. Cultura vivenciada (praticada, fruída ou conhecida) no tempo disponível das obrigações profissionais, escolares, familiares, sociais, combinando os aspectos tempo e atitude. Essa posição baseia-se no concreto da sociedade urbano industrial- tal como é, e não do devir- ou seja como deveria ser;

  2. O lazer gerado historicamente e, dele, podendo emergir de modo dialético, valores questionadores da sociedade com um todo, e sobre ele também sendo exercidas influencias da estrutura social vigente;

  3. Um tempo que pode ser privilegiado para vivências de valores que contribuam para mudanças de ordem moral e cultural, necessárias para solapar a estrutura social vigente;

  4. Portador do duplo processo educativo- veículo e objeto de educação, considerando-se assim não apenas as possibilidades de descanso e divertimento, mas também desenvolvimento pessoal e social (Dumazedier 1979, 1973).

    Quando investigamos sobre as concepções de lazer, verificamos que não existe um consenso nem entre pesquisadores, técnicos ou sociedade em geral. É um termo de difícil definição e que exige reflexões mais consistentes sobre seus significados.

    Considerarei o lazer como direito social, fator de qualidade de vida, um tempo privilegiado para vivências lúdicas de conteúdos culturais em patamares críticos e criativos.

    Nem sempre o lazer foi considerado direito social, atualmente o lazer vem ganhando importância dentro do setor público e privado para que realmente tenham todos acesso ao mesmo. Segundo WERNECK (2000), do ponto de vista histórico-social, o lazer foi uma ocorrência característica da sociedade moderna urbano-industrial, fruto de reivindicações por um "tempo de folga", embora constituísse um objeto de reflexão desde a Antiguidade grega, foi a partir principalmente da Revolução Industrial que o lazer passou a ser concebido como direito social.

    As primeiras noções de lazer vêm da sociedade greco-romana, em que o lazer era um privilégio de classes, estava diretamente relacionado com o ócio era a total desobrigação com o trabalho, com atividades políticas, condição propícia para contemplação e reflexão. O lazer era representado então pela vida contemplativa, inverso da vida ativa, a qual deviam se dedicar os menos abastados, os artesãos e lavradores. E através do lazer, ou seja, da ausência de lazer as desigualdades sociais eram acentuadas, pois a grande parcela da população não tinha acesso aos bens culturais, a educação.

    É dentro deste contexto histórico que podemos tecer as primeiras relações entre lazer e trabalho, os dois como objetos que se contrapõem, já que o prazer está ligado ao lazer e as atividades penosas ligadas ao trabalho, e somente terão o prazer aqueles que tem o privilégio de se desligar das atividades produtivas, do trabalho.

    Ao longo da história ocorreu uma inversão de valores, o lazer vem tentando ganhar espaço, enquanto que o trabalho é supervalorizado. Com a lógica do capital, o processo de acumulação de bens faz com que as pessoas diminuam seu "tempo livre" para estarem numa jornada dupla e até mesmo tripla de trabalho.

    Mais adiante estreitaremos a relação entre lazer e trabalho, e voltando as vivências de lazer que procuram encontrar forças para sobreviverem em uma sociedade capitalista, temos que pensar na acessibilidade, do produto lazer que esta sociedade produz e consome. O acesso a bens culturais, o acesso ao lazer, o direito de exercer a cidadania tem relação tênue com o poder de consumo. O poder aquisitivo de um indivíduo é fundamental para nossos parâmetros de inclusão/exclusão social, mas também para o exercício de nossas "liberdades civis", como liberdade de escolha, direito de esboçar nossas opiniões e críticas e até mesmo o direito de ir e vir.

    Temos de pensar num lazer de qualidade, equilibrado, que propicie aos indivíduos descanso, divertimento e desenvolvimento e que atenda as condições econômicas e sociais de cada um, trazendo satisfação pessoal.

    As atividades de lazer têm em comum a busca pelo prazer, e independente de classe social, e de tantos fatores inibidores, todos procuram no lazer uma vida com sentido. E o lazer oferece inúmeras possibilidades de acordo com os interesses de cada um. Dumazedier, citado por MARCELLINO (2000) afirma que, o que se busca predominantemente em uma atividade de lazer, interesses e motivações preponderantes que os levam a praticá-la é o que permite a classificação do lazer em seus conteúdos. A classificação efetuada por Dumazedier (1980) divide o conteúdo do lazer em cinco categorias: os interesses físicos, artísticos, práticos ou manuais, intelectuais e sociais, e Camargo (1986) acrescenta o interesse turístico. Não devemos pensar nestas categorias isoladamente lembrando que estes interesses partem de opções pessoais, e que a escolha de uma atividade não a restringe a uma categoria, podendo transitar entre os diversos interesses.

    "Não há duvidas que as atividades de lazer devem procurar atender as pessoas em seu todo. Mas, para tanto, é necessário que as mesmas pessoas conheçam os conteúdos que satisfaçam os vários interesses, sejam estimuladas a participar e recebam um mínimo de orientação que lhes permita a opção. Em outras palavras, a escolha está diretamente ligada ao conhecimento das alternativas que o lazer oferece. Por esse motivo é importante a distinção das áreas abrangidas pelo conteúdo do lazer." (MARCELLINO, 2000: 17)

    Segundo a classificação de Dumazedier, as categorias são divididas de acordo com o predomínio em suas atividades. No interesse artístico, o predomínio é estético, o imaginário, as emoções e sentimentos, abrange todas as manifestações artísticas. Já nos interesses intelectuais temos o contato com o real, o racional, com as informações. No campo dos interesses físicos há predomínio das modalidades esportivas, atividades físicas e do movimento. Os interesses manuais são caracterizados pela manipulação, pela transformação de objetos e materiais. Já os interesses sociais, são alcançados com o contato, com o convívio social, e finalizando com o turístico, surge o interesse por novos lugares e novas culturas, viagens.

    Dentre todo o universo a que o lazer faz parte, a visão funcionalista de que o lazer compensa a insatisfação e a alienação do trabalho e de outras esferas da nossa vida, ainda é a que mais predomina no senso comum. Tratando sempre o lazer como uma válvula de escape, após uma longa jornada de trabalho, usufruir do "tempo livre", "tempo do não trabalho" para recarregar as energias.


Lazer e trabalho

    Vivemos em uma sociedade que cultua o trabalho, as pessoas são julgadas pela profissão que exercem. Se outrora as pessoas utilizam do trabalho para ganhar a vida, subsistência, hoje é o próprio trabalho que dá sentido às suas vidas, Guimarães (2003).

    Existe uma estreita relação entre lazer e trabalho, que pode ser verificada desde a Antiguidade Clássica, em que iniciou-se uma contraposição entre trabalho e lazer. Somente teriam direito ao lazer, ao ócio, à liberdade aqueles que tivessem total descompromisso com atividades produtivas, enquanto que o trabalho segundo WERNECK (2000) tinha a conotação de algo penoso, um verdadeiro castigo para o ser humano. A origem etimológica dessa palavra (do termo latino tripalium) expressa a idéia de padecimento e cativeiro.

    Já nesta época a dualidade entre lazer e trabalho foi enfatizada. De um lado o lazer privilégio das classes nobres, e do outro o trabalho para servos e escravos; liberdade/compromisso, vida contemplativa/ativa, descanso, deleite/obrigações. Com o passar do tempo o sentido de lazer foi sendo modificado e um dos marcos nesta relação foi a Revolução Industrial.

    A partir da Revolução Industrial, o cotidiano das pessoas se dividiam em dois tempos distintos "tempo de trabalho" e "tempo de não trabalho". Neste período a cultura provinciana passa a ser substituída pela cultura cosmopolita em que as festas populares, os espetáculos passam a ser adquiridos através do capital. E pela lógica do capital, quanto mais trabalhos, maiores serão as recompensas, os prazeres que este poderá proporcionar.

    Com a substituição da mão de obra humana pela máquina esperava-se um aumento no "tempo de não trabalho", no "tempo livre" do trabalhador o que de fato não ocorreu. Imbuídos na lógica do capital, adultos, crianças, homens e mulheres passavam dia e noite dentro das fábricas.

    O pensamento puritano influenciou muito essa inversão de valores, valorização do trabalho e abominação do lazer. Os puritanos condenavam o ócio, não poderiam os trabalhadores ficar deitados, descansarem, se divertirem durante determinado tempo e não estarem produzindo, era considerado uma perda de tempo, dentro da lógica capitalista "tempo é dinheiro".

    E essa lógica capitalista vem se perpetuando durante séculos e hoje essa relação se encontra acirrada. Cultuamos o trabalho, quanto mais tempo livre temos, maiores são as cobranças de que temos que preenche-lo, sendo produtivos. O lazer por muitos ainda é aceito para recarregar as energias para mais um dia de trabalho, como válvula de escape, um auxílio para suportar a disciplina e as imposições sociais, tudo isto dentro de uma visão funcionalista do lazer, sendo o mesmo um contraponto ao trabalho.

    Esta relação que a princípio parece ser tão verdadeira, ao senso comum, deve ser repensada e merece reflexão. O lazer não ajuda a conviver com as injustiças sociais, pelo contrário tem seu caráter libertador, não é um simples (aliviador) de tensões, estresse, deve-se sempre respeitar as opções e que estas extrapolem descanso e divertimento, que também contribuam para o desenvolvimento.

    Quando se discute a dimensão do trabalho, logo nos vem em pensamento a questão do desemprego. Este é um dos graves problemas que assolam a vida dos brasileiros. Trabalho parece privilégio e não direito. É um dos assuntos mais discutidos na mídia. À medida que o trabalho formal se torna mais difícil, o informal aumenta, e muitas vezes através de crianças que se tornam responsáveis pelo sustento de suas casas. O que estamos acompanhando é uma deterioração das relações de trabalho visualizada nas relações informais de emprego. Desemprego expressa, portanto, apenas a ponta do iceberg, pois o problema é muito mais grave e substancial que parece ser, afirma WERNECK (2001).


A infância

    A infância pode ser entendida sob várias perspectivas e uma delas é que, o desenvolvimento humano ocorre em etapas ou estágios. De acordo com Castro (1990), citado por SOUZA (2001) a infância sob o aspecto pedagógico normativo prioriza o processo de socialização, destacando o tempo que transcorre da infância à vida adulta como trajetória de capacitação dos sujeitos à vida social e "produtiva". Sob esse aspecto, as etapas do desenvolvimento aproximam-se nitidamente da seqüência de dispositivos institucionais de credenciamento à vida adulta. Supõe-se assim que a infância deve ser vista como mero estado de passagem, precário e efêmero que caminha para sua resolução posterior na idade adulta por meio de acumulação de experiências e conhecimentos. (Castro,1992, 1994)

    Contrapondo a esta perspectiva, SOUZA (2001) cita Perrotti que afirma que desse modo é criado um descompasso temporal que impossibilita qualquer integração da existência total vivida pelas pessoas, já que a realidade temporal do sistema (externa) impõe-se à realidade temporal humana (interna) sem a menor consideração pelas características desta. Este tipo de fragmentação do homem em tempos estanques é fruto do capitalismo neoliberal, da ordem social vigente.

    Esta visão das crianças denomina que elas têm que acompanhar o desenvolvimento do meio, do sistema, sem preocupações com seu desenvolvimento interno, saltando fases e tendo que descobrir desde já as obrigações e compromissos do mundo adulto.

    MARTINS (1991) traz a concepção de uma de criança sem infância, fato que está acontecendo com as crianças do Brasil e de outros países do chamado Terceiro Mundo. Na verdade, seria mais correto falar em milhões de crianças do mundo inteiro que estão convertidas numa humanidade separada e mutilada que constitui efetivamente um trágico Quarto Mundo.

    Quando tentamos retratar a infância brasileira, percebemos que as desigualdades sociais atingem a todos, e que as crianças são vulneráveis aos problemas do "mundo adulto", e que, aquela visão romântica da infância, de um mundo encantado, procura encontrar forças para resistir neste mundo globalizado. E MARCELLINO (2000) afirma o quanto seria bom se a infância continuasse a ser marcada pelo domínio do lúdico, do brinquedo da brincadeira, de uma cultura da criança, já que o que vemos atualmente são crianças que tem cada vez mais precocemente subtraído de seu cotidiano, estes tipos de atividades.


A infância e o trabalho

    A utilização de crianças em atividades de trabalho é muito antiga. Têm-se relatos que desde a Idade Média as crianças já ajudavam seus pais nos serviços das propriedades agrícolas, não possuindo este tipo de atividade, um caráter rígido e árduo.

    No Brasil, o trabalho infantil tem sido uma constante histórica:

Desde o século XVI, os colonizadores portugueses, interessados inicialmente na extração do pau-brasil e na construção das primeiras vilas, levaram ao trabalho não só adultos indígenas, mas também suas crianças. Embora essas já tivessem responsabilidades ao lado dos adultos no seio de suas culturas nativas, uma diferença qualitativa e quantitativa foi introduzida com a chegada dos colonizadores. Com a colonização, o trabalho das crianças deixou de significar o momento no qual a comunidade dos adultos ensinava todos os aspectos da vida, tanto práticos como simbólicos, aos novos membros. Antes, saber fazer, saber viver, participar e conviver eram parte do estar junto no ato da caça, da construção, da semeadura, e portanto, parte essencial do processo de inclusão da criança no mundo produtivo e simbólico dos adultos. (OIT, 2003)

    Desde o início da nossa história, o trabalho infantil se fez presente, porém com caráter bem diferente, o simbolismo, a representatividade do trabalho dentro da cultura foi perdendo espaço para o trabalho que explora e visa o lucro. Resistentes, e insatisfeitos, ao preço de muitas vidas, os nativos foram sendo substituídos pelos trabalhadores negros em regime de escravidão. E do grande contingente de escravos que chegava ao Brasil, a maioria tinha idade entre 10 e 20 anos.

    Se o escravo adulto era fácil e lucrativamente explorado, as crianças o eram ainda mais: ocupavam menos espaço nos barcos negreiros, demandavam menos água e comida, brigavam menos e com sorte teriam alguns anos a mais de vida útil antes de sucumbir à desnutrição, à doença e aos maus tratos. (OIT, 2003)

    Importando modelos de trabalho, a sociedade brasileira iniciou um processo de exploração do trabalho infantil, que foi agravado ainda mais com a Revolução Industrial.

    A utilização da mão de obra infantil intensificou-se em virtude do aumento da necessidade de produção em larga escala, conjuntamente com o objetivo de se cobrir o mais rapidamente possível o investimento efetuado com a compra de máquinas. Nestes casos as condições de trabalho a que os menores ficavam expostos eram extremamente penosas, chegavam ao absurdo de trabalharem até 12 horas seguidas nas fábricas.

    E perpetuado este modo de produção capitalista, a complexa problemática do trabalho infantil persiste, e atualmente atinge aproximadamente 3,8 milhões de crianças e adolescentes no Brasil, segundo dados do UNICEF3. Relata também, dados alarmantes nas questões educacionais, de cada dez crianças trabalhadoras, duas não freqüentam a escola, e como conseqüência à taxa de analfabetismo entre essas crianças atinge 20,1% contra 7,6% das crianças que não trabalham. Todo esse processo vai desencadeando uma série de prejuízos físicos, morais e intelectuais a essas crianças, e reforçando a desigualdade social.

    A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD4) investigou a situação de crianças de 5 a 17 anos de idade principalmente em relação a características de educação e trabalho, aprofundando as diferenças entre crianças e adolescentes ocupados daqueles que não trabalhavam.

    A inclusão ou permanência de crianças e adolescentes na população estudantil pode ser impedida ou dificultada pelo seu envolvimento em atividade econômica. As crianças e adolescentes ocupados apresentam nível de escolaridade menor do que as que não trabalhavam. A taxa de escolarização dos ocupados ficou 80,3% e alcançou 91,1% entre os que não trabalhavam. O distanciamento entre estas duas taxas foi constatado em todas as regiões e Unidades da Federação. (PNAD/Trabalho Infantil, 2001: 35)

    Um dos principais problemas que o trabalho precoce traz a toda sociedade é a evasão escolar, resiste entre as crianças uma grande dificuldade em manter esta dupla jornada: trabalhar e estudar; o rendimento e a motivação diminuem, levando-as a abandonar a escola. Muitos dos responsáveis permitem este abandono, pensando apenas no retorno financeiro e ajuda que os filhos podem oferecer na complementação da renda familiar, sem ter idéia de todo o complexo sistema que esta atitude alimenta.

(...) "na incorporação precoce do braço infantil ao processo de trabalho, para nele substituir o adulto que apesar de barato, tornou-se caro nos termos da lógica cerrada da acumulação sem limite e sem escrúpulos. Hoje o filho criança desemprega o pai adulto, porque seu trabalho é mais barato. Ou o filho criança completa o salário ou o ganho do pai adulto porque o que este recebe é insuficiente para sustentar a família". (MARTINS, 1991: 13)

    A nossa conivência com tal processo permite o agravamento da situação, se não queremos crianças tentando se enquadrar nos padrões de produtividade social, temos que garantir seus direitos, e possibilitar a elas a vivência do lúdico, e do lazer.


Os direitos das crianças

    A Constituição Federal proíbe o trabalho infantil ao estabelecer 16 anos como idade limite para o trabalho. A única exceção à regra é o trabalho na condição de aprendiz permitido a partir dos 14 anos. O trabalho dos 16 aos 18 anos, embora permitido encontra limites em virtude da proteção que a Constituição Federal garante aos adolescentes por sua condição de pessoa em desenvolvimento. Proteção essa que visa garantir ao adolescente o pleno desenvolvimento físico, psíquico e moral. Nesse sentido é que há proibição do trabalho desenvolvido: no período noturno, em condições de insalubridade, periculosidade e penosidade, em locais prejudiciais à formação do adolescente e ao seu desenvolvimento físico, moral e social, em horários ou em locais que não permitam a freqüência à escola.

    Além da Constituição Federal, outros instrumentos como o Estatuto da Criança e do Adolescente, reforçam seus direitos, e devemos ressaltar o direito ao lazer. Por todas as considerações já feitas sobre o lazer considerado direito social, indicador de qualidade de vida e, sobretudo um direito humano, não podemos permitir que tenhamos que reivindicar lazer dentro do contexto infantil, não podemos deixar que as crianças entrem nesta lógica capitalista e seja absorvidas pelo sistema, tendo negado qualquer um dos seus direitos.

    Temos que permitir, motivar e criar possibilidades de lazer, independente da classe social, enfatizando características da cultura da criança e do adolescente, o prazer, a alegria, pelo simples fato de serem dimensões do humano, e de estarem proporcionando a estas pessoas formação crítica e criativa.

    O trabalho precoce além de desrespeitar totalmente a cidadania infantil, fere também os direitos já conquistados dos trabalhadores. E talvez, o principal motivo para que ocorra o furto do lúdico na infância esteja baseado na crença de que a criança considerada como adulto em miniatura tenha como única finalidade em sua existência, a preparação para o futuro afirma MARCELLINO (2000).

    Considerando o lúdico em seu caráter libertário e criativo, a sua negação, supressão esteja ocorrendo para que as crianças não se tornem sujeitos da história, autoras de transformações sociais, e sim meros fantoches na reprodução do sistema.

    A exploração do trabalho infantil é inerente ao modo de produção capitalista e com este sistema vigente a abolição deste tipo de exploração requer muitas transformações. Afirma SILVA (2000) que, com toda a experiência adquirida em sua pesquisa5 diz não ser possível a erradicação do trabalho infantil no capitalismo. "Não é possível extirpar o trabalho infantil, isto é arrancá-lo pela raiz e por fim ao furto do tempo de lazer/ lúdico e da degradação da infância, sem que haja, como já se anuncia, uma verdadeira onda de rebeldia e inconformismo dos trabalhadores em nível nacional e mundial."

    É necessária uma reformulação dos programas sociais existentes, para que não se tornem programas assistencialistas, e de inclusão temporária, e que sejam reconhecidas as suas limitações na erradicação do trabalho precoce.

    A presença de um governo comprometido realmente com as questões sociais, somado esforços com algumas ONGs6, poderão atuar na sensibilização da sociedade, requerer um planejamento e execução de políticas sociais integradas a outros setores, a fim de minimizar esta complexa problemática do trabalho precoce.


Considerações finais

    Enfatizando a relação entre trabalho e lazer confirmamos que esta dicotomia, um negando o direito e acesso ao outro tem suas raízes históricas. Há muito tempo a relação entre eles foi de oposição, contraponto. Com o passar dos tempos um se sobrepôs ao outro, ocorreram inversão de valores, e para o senso comum ainda existe esta dualidade, e na atual realidade, é o trabalho que é supervalorizado.

    Procuramos equilibrar as duas dimensões, sabemos que trabalho e lazer fazem parte do cotidiano de todos, inclusive na infância (não podemos negar a existência de obrigações e trabalho nesta fase). Sabemos da importância de uma vida bem dosada, sabendo equilibrar trabalho e lazer, tendo uma vida "com sentido e não consentida". Temos que provocar questionamentos e reflexões a respeito desse equilíbrio, sabendo das dificuldades em se contrariar a lógica capitalista, mas fazendo com que busquem vivências de lazer significativas para a sua realidade.

    Cabe ressaltar ainda que, essas obrigações que diminuem o tempo disponível das crianças para o lazer nem sempre vêm figuradas em trabalho, e sim, em outros tipos de compromissos que não seja a dura realidade do trabalho precoce, como aulas de idiomas, computação, etc.

    O trabalho infantil é uma realidade em nosso cotidiano e aparece diante de nós a todo instante, no trânsito, ruas, em fábricas, em domicílios. E suas conseqüências vão muito além de um prejuízo físico, moral ou intelectual destas crianças, atinge a sociedade como um todo, à medida que estas crianças são exploradas, trabalhadores adultos estão perdendo seus lugares, ferindo direitos já conquistados.

    Evadindo das escolas para aumentarem a renda familiar, e até mesmo sendo a única fonte de renda, estas crianças trabalhadoras alimentam um sistema em que, sem estudo, sem formação, dificilmente poderão exercer outra função que não a dos seus subempregos que agora executam. E ainda, dentre tantas possibilidades, muitos se envolvem em atividades ilícitas, aumentando a criminalidade, abusos e violência.

    O direito ao lazer, ao lúdico parecem ser uma realidade bem distante da vida destas crianças, e já que não encontramos um equilíbrio entre trabalho e lazer na vida adulta, o que repassamos a estas crianças é que ainda o trabalho é prioridade em nossa sociedade.

    É de suma importância que ocorram debates, discussões e reflexões a respeito do tema, para que o governo, auxiliado pela sociedade, se organize para que ocorra a erradicação de tal tipo de exploração. É preciso também que ocorra um maior esclarecimentos à população em geral, intensiva campanha para que haja uma desmistificação do trabalho infantil, já que em uma sociedade capitalista, temos enraizado que "o trabalho enobrece o homem" e que acaba gerando uma cultura equivocada sobre o trabalho precoce como: "Crianças pobres precisam trabalhar para ajudar a família" ou "é melhor trabalhar que ficar temos enraizado que" "o trabalho enobrece o homem" e que acaba gerando uma cultura equivocada sobre o trabalho precoce como: "Crianças pobres precisam trabalhar para ajudar a família" ou "é melhor trabalhar que ficar na rua", "eu sempre trabalhei ajudando meus pais".Tentando sempre destacar a importância da cultura do lazer e do lúdico na infância, não permitindo que este sejam considerados supérfluos e dispensáveis na vida de uma criança.


Notas:

  1. Considero como animadora sócio cultural, profissionais da área do lazer que trabalham com a educação informal, a educação do olhar, dos sentimentos, educação para e pelo lazer. Entendendo o lazer como fenômeno cultural.

  2. São oferecidas atividades de lazer em horário extraclasse para os alunos dentro e fora do ambiente escolar.

  3. Fundo das Nações Unidas para Crianças

  4. O Instituto de Geografia e Estatística- IBGE divulgou uma pesquisa suplementar sobre Trabalho Infantil realizada através da Pesquisa Nacional de Amostra Domiciliar (PNAD-2001).

  5. Tese de Doutorado defendida em 2000-Departamento de Ciências Sociais Aplicadas à Educação/UNICAMP intitulada O Assalto à Infância no Mundo Amargo da Cana-De-Açúcar, Onde Está o Lazer ? O Gato Comeu!!!???

  6. Organizações não governamentais.


Referências

  • BRAMANTE, A.C. Lazer: concepções e significados.In: Revista Licere, vol.1 n.1 Belo Horizonte,1998.

  • CAMARGO, L. O. de L.Lazer: concepções e significados. In: Revista Licere, vol.1 n.1.Belo Horizonte,1998.

  • IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. In: www.ibge.gov.br/estatistica/condicaodevida/trabalho_ infantil

  • GUIMARÃES, E. Notas de Aula. VI Curso de Especialização em Lazer. UFMG, 2003.

  • MARCELLINO, N.C. Estudos do Lazer: uma introdução. 2ªed. Campinas, SP: Autores Associados, 2000.

  • MARCELLINO, N. C. Lazer: concepções e significados. In: Revista Licere, vol.1 n.1. Belo Horizonte,1998.

  • MARCELLINO, N. C. Lazer e Humanização. Campinas, SP: Papirus,1983.

  • MARTINS, J.S.(coord.). O Massacre do Inocentes: a criança sem infância no Brasil. Hucitec, São Paulo,1991.

  • OIT. Organização Internacional do Trabalho. Boas práticas de combate ao trabalho infantil: 10 anos do Ipec no Brasil. Organização Internacional do Trabalho-Brasília, OIT, 2003.

  • SILVA, M. R. da.O assalto à infância no mundo amargo da cana de açúcar, onde está o lazer? O gato comeu!!???. In: XII Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte - Anais. Caxambu, 2001.

  • SOUZA, Solange J. Ressignificando a psicologia do desenvolvimento. In: Infância: fios e desafios da pesquisa. Campinas: Papirus, 2001, 5ª ed.

  • UNICEF. Fundo das nações Unidas da Criança. In: www.unicef.org.br (acessada em 05/07/03).

  • WERNECK, C. L. G. Panorama Atual e Implicações na Sociedade Brasileira. In: Lazer e Mercado. Campinas, SP: Papirus, 2001.

  • WERNECK, C. L. G. Lazer, Trabalho e Educação: relações históricas, questões contemporâneas. Belo Horizonte: Ed. UFMG;CELAR- DER/UFMG, 2000.

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