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Gêneros e Educação Física escolar: notas gerais
sobre a formação cultural no decorrer da história

   
Centro Universitário Positivo - UnicenP.
*Orientador.
(Brasil)
 
 
Natasha Santos | Aline dos Santos  
Aline Rodrigues | Márcia Assis  
Paulo Nass | Dr. André Capraro*
natashas@click21.com.br
 

 

 

 

 
Resumo
     Esse artigo propõe uma reflexão sobre as diferenças de gênero estabelecidas na Educação Física escolar, desde a década de 1930 - em que a disciplina era liderada pelos médicos higienistas - aos dias atuais. Tomando por base estereótipos arcaicos impostos pela sociedade ocidental, no que diz respeito a comportamentos julgados tipicamente femininos ou masculinos. Às meninas, o "direito" à delicadeza, enquanto aos meninos, prevalece a altivez e a agilidade. Tais estereótipos, somados aos contrastes biológicos entre os sexos, provocam a divisão das turmas nas aulas de Educação Física, já que remetem à idéia de que os corpos precisariam ser separados.
    Unitermos: Educação Física. Gêneros. Aula separada. Estereótipos.
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 12 - N° 112 - Septiembre de 2007

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Introdução

    As concepções edificadas acerca da diferenciação de gêneros no decorrer dos séculos permanecem fortes na sociedade contemporânea. Há uma interferência no comportamento de meninos e meninas, aos quais se impõem estereótipos de longa data (Rogoff, 2005).

    Desde o estabelecimento do sistema educacional, voltado para as elites brasileiras, no século XIX, é notória essa preocupação entre os professores que se debruçaram sobre o que era, por eles, considerado um problema metodológico. Por exemplo, de acordo com o médico Afrânio Peixoto (1913), os franzinos, débeis e delicados, bem como os normais, se beneficiam dos exercícios físicos, só a idade e o sexo comportam outras restrições. Isto é, esses exercícios eram importantes para todos, de modo geral, porém deveriam ser trabalhados de forma diferente quanto aos sexos - e idades -, ou seja, a separação entre meninos e meninas, seria incontestável.

    No caso específico da Educação Física, que na sua gênese prezava pelos movimentos ginásticos, essa segmentação entre os sexos era mais explícita e acentuada, uma vez que o fator biológico já fora cientificamente comprovado como mais uma distinção, neste caso, determinante, entre meninos e meninas.

    Como afirmava de forma drástica o renomado Afrânio Peixoto, em seu tratado médico intitulado Higiene:

O exercício útil, se auxilia a vencer pela medida e apropriação os obstáculos naturaes, transfórma-se em um grande mal acrescido, quando demasiado e impróprio. Os abusos são tão funestos que nesse período seria talvez mais prudente fazer cessar todos os exercícios; às mulheres o conselho é mais pertinente ainda. Fóra disto e nos outros estados do sexo, o exercício regular e comedido não tem contra-indicação, como aliás para todos os casos (Peixoto, 1913, p. 344).

    É fato que tal preceito permanece em vigor no Brasil mesmo passado mais de um século. A separação dos sexos nas aulas de Educação Física, em algumas escolas, ocorre desde o primário escolar ao ensino médio. Diferente das demais disciplinas, em que os alunos atuam como um único grupo, sem a necessidade de segmentação. Os argumentos para a continuidade dessa norma tomam por base a Biologia, tendo em vista as diferenças observadas entre os meninos e as meninas. Como se pode observar no seguinte trecho:

Esse padrão é semelhante independentemente da modalidade ou do grupo muscular testado: aumento de força aproximadamente duas vezes maior entre as idades de 7 e 12 anos, com valores médios ligeiramente maiores em meninos do que em meninas. Durante a puberdade, a força nas meninas mantém um platô, enquanto que, estimulada pelos hormônios androgênicos, a força muscular nos meninos é mais acentuada (Rowland, 2003, p.368).

    O que faz permanecer os ideais supracitados é o não entendimento por parte da sociedade em geral sobre os contrastes entre gênero e sexo. Além da generalização pré-estabelecida no que diz respeito ao quesito biológico, resumindo-o à força, característica tipicamente masculina.

    Constatado esse processo, questiona-se: como essas diferenças entre meninos e meninas são concebidas historicamente nas aulas de Educação Física?

    Visando responder tal problemática, parte-se da hipótese de que a questão de gênero é uma constituinte chave no processo ensino-aprendizagem. Porém, negligenciada tendo em vista que não existe uma diferenciação clara entre gênero e sexo. Sendo assim, valências como a sociabilidade, fundamentais à área, ganham uma conotação secundária.


Gênero e Educação Física

    Tão discutidas no meio acadêmico, as diferenças entre homens e mulheres ultrapassam divergências físicas e/ou sexuais. Além de haver uma má distinção relacionada aos conceitos de sexo e gênero, conta-se com a constituição de pressupostos sobre o que vem a ser feminino e masculino.

    Tem-se o gênero como uma "construção sócio-cultural", organizada ao longo das décadas por concepções desenvolvidas e aplicadas pela sociedade, baseando-se em fatores lapidados, essencialmente, pela cultura, variável entre as regiões (Sabino & Luz, 2007; Meyer, 2003).

    Dagmar Estermann Meyer, em seu artigo Gênero e educação: teoria e política, defende que:

Como construção social do sexo, gênero foi (e continua sendo) usado, então, por algumas estudiosas, como um conceito que se opunha a - ou complementava a - noção de sexo e pretendia referir-se aos comportamentos, atitudes ou traços de personalidade que a cultura inscrevia sobre o corpo sexuado. [...] Nesse contexto, o conceito de gênero passa a englobar todas as formas de construção social, cultural e lingüística implicadas com os processos que diferenciam mulheres de homens, incluindo aqueles processos que produzem seus corpos, distinguindo-os e separando-os como corpos dotados de sexo, gênero e sexualidade (Meyer, 2003, p. 15).

    Por outro lado, o sexo abrange as características biológicas - e inquestionáveis - de homens e mulheres, independente de questões psicológicas e comportamentais. Tais peculiaridades diferem meninos e meninas, em especial, na Educação Física, a partir da separação dos sexos nas aulas, atribuída a essas dessemelhanças.

Reduzido a esqueleto diz-se que os ossos das mulheres são mais delicados, menos volumosos, de extremidades menos grossas, tuberosidades menos salientes e superfícies da inserção muscular menos notaveis, caracteres que não são especiaes ao sexo (Charpy) porém a determinado indivíduo mais franzino (Peixoto, 1913, p. 305).

    Tomando como base as ideais supracitadas, há duas visões a fim de justificar a origem das diferenças de gênero: uma de caráter biológico e a outra, cultural (Rogoff, 2005). A preparação biológica dos papéis de gênero sustenta que as estratégias reprodutivas são bastante distintas, partindo-se do instinto de assegurar a sobrevivência dos genes. As diferenças de gênero seriam decorrentes do fato de as mulheres investirem muito em cada filho, enquanto os homens não precisam se esforçar tanto para obter o mesmo efeito. Sendo assim, as mulheres se comprometem a criar seus filhos, ao passo que os homens proporcionam sua proteção.

    Quanto ao treinamento para o papel de gênero, as crianças assumem papéis de acordo com os modelos apresentados em seu cotidiano e com os estímulos a determinadas atividades. Por exemplo, na sociedade ocidental contemporânea, as meninas devem manter-se sempre limpas e cheirosas, restritas às regularidades buscadas, por elas mesmas, enquanto jovens e aderidas para o resto de suas vidas. Alguns aspectos desses papéis de gênero são transmitidos pelos pais, sobretudo quando estes mantêm um padrão tradicional e singular, quanto à educação de seus filhos. Desse modo, as crianças já iniciam sua vida social de maneira segregada, o que tende a ser conservado na escola.

    Cria-se, em cada sociedade, um conceito diferente de corpo, que acarreta certas regras concebidas como indicadoras de normalidade. Às meninas, é imposta a condição de delicadeza e cuidados, o que resulta na deficiência de algumas habilidades motoras - salvas exceções femininas -, ao contrário dos meninos, dos quais já se espera agilidade e altivez. Em virtude disso, acontece a chamada, segundo Jocimar Daolio (1997), "antalização das meninas", no sentido de lentidão ou descoordenação ao realizar os exercícios físicos.

Evidentemente estamos diante de uma questão muito maior do que uma mera ocorrência em aula de educação física. As meninas não se sentem "antas" somente nas aulas, mas também quando realizam atividades físicas nas suas horas de lazer. Estamos diante de um fato social, pontuado por uma história cultural que delegou às meninas brasileiras a condição de "antas" quando realizam atividades que exigem força, velocidade e destreza (Daolio, 1997, p. 80).

    Simone de Beauvoir (1980) assevera que "(...) nós não nascemos mulheres, nós nos tornamos mulheres (...)", isto é, ela se volta completamente para a questão cultural e subestima as inquestionáveis interferências hormonais e físicas. É fato que, em se tratando de comportamentos, são criados conceitos de acordo com as características da sociedade em que se está inserido, quer dizer, essas concepções podem ser variáveis; entretanto, é o quesito fisiológico que determina essas definições, de forma indiscutível, em qualquer sociedade.

    As teorias apresentadas são concebidas como excludentes por alguns, porém não há como tratá-las de maneira oposta, uma vez que ambas exercem influências na construção dos papéis, feminino e masculino, e das diferenças entre estes.


Diferenças de gênero na Escola

    Durante o período das décadas de 1930 e 40, os médicos higienistas assumem a liderança do saneamento popular, bem como da Educação Física, em seus primórdios. Buscava-se orientar um novo modo de vida, tendo como objetivo homogeneizar a população - influência eugenista da Alemanha nazista. Desse modo, a escola contribuía para a formação física, mental e intelectual das crianças. À Educação Física cabia ajustar o corpo à mente dos alunos, a fim de torná-lo mais obediente e flexível aos olhos dos pedagogos (Danailof, 2005).

    O "Projeto de Orientação para o Ensino de Educação Física nos Grupos Escolares de Campinas" possibilita uma noção melhor da preocupação e da importância da relação entre nação e corpos regenerados física e moralmente:

Os grupos escolares, conforme ficou estabelecido, deverão ter as suas equipes de ginástica. Essa será selecionada dentre os alunos de 3º e 4º anos, que apresentem a mesma idade cronológica e fisiológica, obtendo-se assim uma turma mais homogênea possível (Acervo histórico Otília Foster, II Relatório de Atividades, 1939).

    Apenas os mais fortes participavam dessas equipes, quer dizer, além da separação entre os sexos, havia a seleção dos melhores. E, na mesma época, foi instituída a Calistenia - um tipo de ginástica com exercícios repetitivos, seriados e ritmados -, prezando a separação de gênero. Em outras palavras, meninos e meninas tinham que continuar a ter aulas de Educação Física separados.

    Um pouco adiante, mais precisamente em 1º de novembro de 1971, foi elaborado o Decreto Federal nº 69.450, capítulo I, art. 5º, cujo conteúdo é: "(...) quanto à composição das turmas, cincoenta alunos do mesmo sexo, preferencialmente selecionados por nível de aptidão física" (Diagnóstico da Educação Física / desportos no Brasil, p. 118).

    Essa separação por sexo continua, ainda, em algumas escolas brasileiras. Visto que a tal diferença entre os corpos, feminino e masculino, seria mais visível e um empecilho, nas aulas esportivas. É cientificamente comprovada a questão de os meninos serem mais fortes, durante a puberdade, como já fora citado. Mas, partindo-se do pressuposto papel da Educação Física escolar, cujos objetivos não incluem rendimento, torna-se viável o trabalho com um único grupo de alunos.

    Além de a Educação Física prezar pelo equilíbrio físico e mental das crianças, conta-se com o fato das diferenças notáveis entre os sexos surgirem no período da puberdade, o que significaria dizer que antes disso, pelo menos, não há motivo para tal separação.

Embora exista uma certa coincidência de valores entre os gêneros, a média do VO2 máx. está ligeiramente maior nos meninos em toda a idade pré-púbere. Quando o VO2 máx. é expresso em valores relativos à massa corporal em quilogramas, são observadas diferenças não-significativas em meninos nas idades de 6 a 16 anos (Rowland, 2003, p. 367).

    Essa "diferença não-significativa" se limita, na citação, ao VO2 máx. Todavia, se os contrastes fisiológicos são a principal causa para a divisão nas aulas, e se tais contrastes não assumem profunda significância - sobretudo quando não se trata de rendimento -, durante o ensino fundamental não haveria tamanha necessidade em separar os alunos por sexo.


Considerações finais

    É fato que algumas das percepções e atitudes referentes ao assunto, foram historicamente edificadas e, sendo assim, aderidas como um costume que, apesar das mudanças ao longo dos anos, ainda apresenta resquícios tradicionais. Vale lembrar, que se trata de uma sociedade de raízes machistas e inflexíveis quanto aos comportamentos julgados inadequados (Meyer, 2003); uma vez que meninas e meninos já tinham, desde cedo, suas respectivas condutas designadas, de acordo com o sexo.

    Sabendo que as concepções geradas acerca dos gêneros e seus respectivos papéis são de cunho cultural, cabe à própria sociedade extirpar tradições que não contribuem para o desenvolvimento humano, mas o impedem. Neste caso, a escola - sem ignorar a influência dos pais - deveria exercer função essencial na construção desses preceitos, já que é onde a vida social das crianças se concretiza.

    Contudo, algumas instituições, em se tratando da Educação Física, mantêm parâmetros excludentes entre os alunos, quanto às diferenças biológicas. Isto é, a escola contribui para a perpetuação do dualismo mente e corpo, já que as mentes não precisam ser separadas, mas os corpos - presentes apenas nas práticas físicas - sim. O que não poderia acontecer, pois a Educação Física não é apenas o desenvolvimento físico, mas também, sob o aspecto educacional, só pode ser compreendida quando atinge o homem em sua totalidade. Em outras palavras, quando for capaz de contribuir para o equilíbrio da individualidade do sujeito como um todo, sem corresponder apenas ao ponto de vista somático, adotado por uma maioria - o que inclui alguns profissionais da área.

    Conforme supracitado, há a valência força, entendida como característica própria do gênero masculino, o que justificaria sua valorização extrema. De encontro a isso, as meninas também apresentam atributos nos quais se destacam, como a flexibilidade, por exemplo. Neste sentido, o professor pode usar sua aula para provar que não existe um sexo "superior", há apenas sexos distintos.

    E essa aprendizagem poderia se estender às questões de gênero - por exemplo, as meninas têm um comportamento muito mais aceitável em atividades competitivas, característica não tão comum entre meninos. O que remete, mais uma vez, à idéia de que as diferenças existem e não devem ser ignoradas, mas também, não devem ser compreendidas como fator determinante de superioridade ou o contrário.


Referências bibliográficas

  • DAOLIO, Jocimar. Cultura: Educação Física e futebol. Campinas: Editora da Unicamp, 1997.

  • BARROS, Daisy R. P.; BARROS, Darcymires do R. Educação Física na escola primária. 3. ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1970.

  • PEIXOTO, Afrânio. Higiene geral. 3. ed. Rio de Janeiro: S/Ed., 1922.

  • LOURO, Guacira L.; NICKEL, Jane F. (Org.). Corpo, gênero e sexualidade: um debate contemporâneo na educação. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2003.

  • ROGOFF, Barbara. A natureza cultural do desenvolvimento humano. São Paulo: Artmed Editora, 2005.

  • DANAILOF, Kátia. Imagens da infância: a educação e o corpo em 1930 e 1940 no Brasil. Rev. Bras. Cienc. Esporte, v. 26, n. 3, Campinas, 2005, p.9-24.

  • LOUZADA, Mauro; VOTRE, Sebastião; DEVIDE, Fabiano. Representações de docentes acerca da distribuição dos alunos por sexo nas aulas de Educação Física. Rev. Bras. Cienc. Esporte, v. 28, n. 2, Campinas, 2007, p. 55-68.

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