Autoconceito do idoso e Biodança: uma relação possível |
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*Mestra em Gerontologia pela Universidade Católica de Brasília, fisioterapeuta e professora-didata de Biodança. **Profª Dra. em Psicologia, psicóloga e docente do Mestrado em Gerontologia da Universidade Católica de Brasília. (Brasil) |
Noeme Cristina Alvares de Carvalho* noecarvalho@uol.com.br Carmen Jansen de Cárdenas** ccardena@pos.ucb.br |
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http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 12 - N° 112 - Septiembre de 2007 |
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Introdução
O envelhecimento da população mundial, motivado pelo aumento da expectativa de vida, revela, por um lado, uma grande conquista da humanidade em toda a sua história e, por outro, representa um de seus grandes desafios, haja vista a necessidade de se envidarem esforços sociais e econômicos no sentido de possibilitar, a essa população, uma longevidade saudável, do ponto de vista fisiológico, psicológico e social.
O envelhecimento pressupõe um conjunto de mudanças físicas, psicológicas, afetivas e sociais sujeitas ao tempo vivido1 e singular para cada pessoa2. Essas modificações podem acarretar crises e necessidades de adaptação a situações novas3, muitas vezes traduzidas em limitações físicas, cognitivas, financeiras e sociais4.
Essa nova realidade, frequentemente somada a perdas acumuladas em sua história de vida, pode se refletir na maneira de o idoso perceber a si mesmo, inclusive revestindo essa percepção de aspectos negativos5. E a autopercepção ou autoconceito negativo pode dificultar a capacidade de adaptação do idoso às transformações advindas do processo pessoal.
Nesse contexto, a prática da Biodança pode representar uma alternativa de reintegração do idoso às mudanças e exigências multidirecionais que podem surgir durante o envelhecimento, em especial, relacionadas à vida afetiva.
ObjetivoO objetivo primeiro deste estudo foi investigar de que forma a pratica da Biodança pode influenciar na mudança do autoconceito do idoso. Outros objetivos especificamente contemplados foram: a caracterização do processo de envelhecimento, a análise do construto autoconceito, a descrição da teoria da Biodança e a relação da prática da Biodança, mediante uma pesquisa empírica, à configuração do autoconceito de idosos.
MetodologiaTratou-se de uma pesquisa de natureza exploratória, qualitativa. Em relação aos meios, a pesquisa foi classificada como bibliográfica e de campo.
A pesquisa experimental foi realizada no Serviço Social do Comércio (SESC), na cidade de Taguatinga, Distrito Federal, Brasil.
O grupo foi formado com 21 integrantes com idade igual ou superior a 60 anos, e finalizou com 16 participantes.
A coleta de dados teve uma duração de 17 semanas e foi realizada nos meses de setembro de 2005 a janeiro de 2006.
Foram realizados 14 registros em campo: um registro para a obtenção dos dados pessoais dos participantes (questionário), visando à composição de seu perfil demográfico; dois para a coleta de informações (entrevistas), um inicial e outro final, referentes ao tema do trabalho e 11 encontros grupais para as aulas de Biodança.
Instrumentos de coletaOs dados foram coletados por meio de questionário, entrevista semi-estruturada oral, realizada antes e no final do experimento, gravação eletrônica de relatos verbais feitos em cada aula de Biodança e observação.
ResultadosOs resultados foram apresentados em três seções: a primeira, denominada Perfil do Participante, traz características gerais e informações completares dos participantes; a segunda seção, Roteiro das Aulas de Biodança, apresenta o roteiro dos 11 encontros de Biodança; a última seção, Análise e Discussão, contém os dados coletados das questões de pesquisa.
Perfil do Participante:O integrante pertence a um grupo de convivência de idosos, é mulher, brasileira, nordestina, tem 70 anos de idade, reside em Taguatinga ou outra cidade satélite, mora no Distrito Federal há 35 anos. É viúva, tem cinco filhos, vive com filhos, é católica praticante e cursou o primeiro grau incompleto (antigo primário).
O seu gênero musical preferido é o forró. Aprecia música, mas consegue se lembrar somente do título de uma música preferida. Gosta de dançar forró, seu lazer preferido é cinema, contudo o lazer praticado é a hidroginástica. Está realizando tratamento de saúde para hipertensão, embora tome medicação para tratar duas enfermidades. Faz caminhada uma a duas vezes por semana e não apresenta restrições à atividade física.
Roteiro de Aulas de Biodança:Para a investigação de campo foram programadas 11 aulas. Os objetivos gerais das aulas foram definidos paulatinamente, e do ponto de vista cronológico foram agrupados na seguinte ordem: iniciar o processo de integração do grupo; reconectar-se ao ritmo do próprio corpo e ao ritmo do outro; aumentar a autopercepção corporal e a percepção do corpo do outro, sob o enfoque vital, afetivo e transcendente; integrar os movimentos pélvicos aos movimentos de todo o corpo; vivenciar um contato afetivo indiferenciado e proporcionar um contato afetivo incondicional; vivenciar o continente afetivo do grupo; exercitar a expressividade corporal sob a perspectiva afetiva, criativa e lúdica; explorar e ampliar o espaço vital; vivenciar situações que evocam a determinação e a assertividade; intensificar a integração com os demais participantes; despedir-se dos colegas de grupo e da equipe de pesquisa.
No total, foram propostos 102 exercícios e foram utilizadas 99 músicas, de gêneros diferentes e buscou-se associar cada música ao tipo de exercício, levando em conta os possíveis efeitos diante dos objetivos da aula e do fenômeno pesquisado.
Em relação às vivências, foram abordadas as cinco linhas propostas por Toro6: vitalidade, sexualidade, criatividade, afetividade e transcendência, às quais correspondiam os exercícios respectivos.
Análise e discussão dos dadosA análise visou demonstrar se a prática da Biodança contribuiu positivamente para a modificação do autoconceito.
O processo de categorização (Quadros 1 e 2) partiu da determinação de unidades de registro retiradas de palavras-chave da definição de autoconceito elaborada neste trabalho, a partir de Freire7, Sanchez e Escribano8 e Merleau-Ponty9: autoconceito é o conjunto de percepções acerca de si mesmo, em relação ao outro e ao mundo, envolvendo atitudes valorativas, vivências, sentimentos e a noção de corpo-sujeito único e indivisível.
Essas palavras foram entendidas na perspectiva do autoconceito, auto-estima e auto-imagem, construtos definidos por Novaes10:
Autoconceito: consciência do eu.
Enunciado: que juízo você faz de si mesmo com essa idade?
Auto-estima: percepção afetiva de si.
Enunciado: que sentimento que você tem por você mesmo nessa idade?
Auto-imagem: representação do eu.
Enunciado: como você se vê nessa idade?No agrupamento pelo léxico foram consideradas referências qualitativas das falas dos participantes, associadas ao enunciado proposto sobre o fenômeno. Quanto aos indicadores, apesar de Bardin11 sugerir uma seleção de acordo com a freqüência de indicadores das categorias no texto, aqui este critério não foi observado. Foram computados todos os indicadores identificados, porque se tratava de um grupo pequeno.
Os Quadros 1 e 2, apresentam, respectivamente, os resultados da primeira e da segunda entrevistas.
AutoconceitoÀ primeira pergunta, as respostas indicaram categorias de três áreas diferentes: relacionamento, afetividade e cognição.
As três áreas abrangidas pelas respostas coincidem, no geral, com as que refletem perdas significativas para o idoso: o relacionamento, que demonstra aspectos de sua vida familiar/social; a afetividade, que representa o suporte emocional com que ele enfrenta o seu processo; a cognição, que implica o contato com as gerações mais novas e com outras, principalmente neste tempo de grandes mudanças tecnológicas.
Na segunda entrevista, no término da pesquisa de campo, observou-se que as respostas às três unidades de registro, em sua maioria, foram marcadas pela clara expressão da palavra "mudança" ou por outras que deixavam implícito esse sentido. Isso justificou a criação da categoria "mudança", e as áreas em que as mudanças ocorreram transformaram-se em subcategorias.
Em relação ao autoconceito, primeira unidade de registro, 100% dos participantes indicaram mudanças que envolveram: relacionamento, bem-estar, percepção do outro, autovalor, controle e percepção de si. Como se verifica, a subcategoria "relacionamento" repete uma categoria desenvolvida na primeira entrevista, o que não deveria ocorrer em uma categorização.
A participante que não concordou em responder a primeira entrevista, (conforme nota no Quadro 1), teve a sua entrevista considerada nesta pesquisa por evidenciar uma necessidade premente ao se apresentar por ocasião da segunda, e enfaticamente ter dito que "preciso fazer a entrevista agora".
Auto-estimaÀ segunda pergunta - "que sentimento você tem por você mesmo nessa idade?" -, realizada na primeira entrevista, as respostas se centraram em única categoria, "gostar de si", literalmente, correspondendo ao sentido etimológico da palavra: estimare, significando amar, e "auto", daquilo que é próprio12.
Na segunda entrevista, como já foi dito, surgiu a categoria "mudança", passando as demais à condição de subcategorias.
Em termos gerais, a mudança da auto-estima, entre a primeira e a segunda entrevista, tal como no autoconceito, expandiu-se tanto no sentido de aprofundamento ("gostar de si", que se mantém) quanto no surgimento de outros indicadores (Quadro 4,). Porém, diferente do autoconceito, não se observou um total desfocamento de si nesse "gostar". Apenas o "despertamento" e o sentimento de autocrítica trouxeram a presença do outro na valorização da troca e na identificação da necessidade de limites, respectivamente.
Auto-imagemNa terceira pergunta "qual a imagem que você faz de si mesmo; como você se vê neste momento de sua vida?" -, as respostas dadas, quando da primeira entrevista, foram classificadas em três categorias: aparência física, orgulho e bondade, abrangendo as áreas física, psicológica e afetiva. Pelos indicadores, verifica-se a prevalência da auto-imagem relacionada mais com a aparência física do que com o afetivo ou psicológico, o que pode ser explicada pela associação comum de imagem ao aspecto físico.
Na segunda entrevista, os indicadores foram mais amplos, abrangendo cinco categorias: independência, aceitação de si, vaidade, conformação e narcisismo.
No geral, foi observado que todas as respostas fixaram-se em aspectos físicos, o que corresponde à idéia comum de imagem corporal associada mais à disposição física, aos movimentos, à aparência corporal (peso) e à apresentação (trajes, maquilagem).
Em relação à auto-imagem, na diferença das respostas da primeira e segunda entrevistas como nos construtos anteriormente analisados, verifica-se também uma ampliação do conceito de auto-imagem, tanto no sentido de aprofundamento (independência como um resultado de gostar de si) como em outras direções (auto-imagem como aceitação de si, conformação, vaidade e narcisismo) (Quadro 4).
ConclusãoConcluímos que a possibilidade de uma relação entre o construto autoconceito e Biodança estaria centrada, por parte dessa, em seu método, elementos, recursos e metodologia de trabalho.
Em relação à metodologia, a proposta da Biodança é de um método vivencial, ou seja, uma prática de procedimentos voltados para a vivência, com a finalidade de auto-integração e integração com o outro e com o grupo.
Os elementos música e dança funcionam, na metodologia, como fatores que operacionalizam a integração nos três níveis acima propostos.
A metodologia de trabalho da Biodança consiste na utilização conjunta dos elementos e dos recursos, tais como consigna, adequação metodológica ao tipo específico de grupo, entre outros. Pelos resultados obtidos e categorizados expressos na mudança positiva do autoconceito, ficou claro que a contribuição da Biodança para esse resultado e nas respectivas condições de pesquisa, está na utilização conjunta dos elementos e dos recursos previstos.
Outro aspecto a ser considerado é que essa metodologia sustenta-se, filosoficamente, no princípio biocêntrico. Na prática, o cuidado à vida norteia o planejamento e realização das aulas de Biodança, que se traduz no respeito, no reconhecimento e na valorização dos participantes, em particular, e do grupo, como um todo. Esse cuidado à vida proporciona um ambiente acolhedor e fecundo denominado por Toro de "matriz de renascimento", que facilita as transformações.
Os idosos, em sua trajetória pessoal de vida, permeada de conquistas e perdas, incorporam, de maneira cumulativa, vivências que poderiam possibilitar uma configuração negativa do autoconceito.
É por meio de sua corporeidade, "corpo que fala/corpo que dança", que o idoso revela sua interioridade, contextualizada ao momento; veste seus movimentos de emoções e sentimentos; colore ou acinzenta etapas de sua história de vida na voz ou na expressão do seu rosto. E é por meio do resgate de movimentos corporais mais integrados, plenos de significado, vivenciados no "aqui e agora", que o idoso pode reconfigurar o seu autoconceito.
O conhecimento primordial por meio da vivência integradora, capaz de favorecer a ressignificação de fatos vivenciados, relacionados às experiências subjetivas de dor, perdas, alegria, prazer, desafios, esperança, entre outras, conhecimento esse que pode ensejar o alcance de níveis mais elevados de integração pessoal, expressos no desenvolvimento das cinco linhas de vivência da Biodança.
Sob esse prisma, a Biodança vivenciada pelos participantes desta pesquisa pode ter contribuído para o resgate de sentimentos, emoções e expressões corporais relacionados a si próprios, inibidos e/ou reprimidos por circunstâncias diversas, inclusive decorrentes da presente época.
Em relação ao autoconceito e seus elementos fundantes, a auto-estima e a auto-imagem, a sua mudança positiva poderia se justificada, neste estudo, pelo caráter permeável do autoconceito. Essa porosidade em relação aos efeitos saudáveis da música, da dança, somados aos da palavra, representada pela consigna e, atuando como uma tríade operacional, facilitou alcançar experiências vivenciais de integração.
É nesse sentido que se pode concluir que, para o grupo pesquisado e nas condições de investigação, a Biodança, com seu método vivencial, pode ter possibilitado a esse grupo um novo conceito e uma nova visão de si mesmo e, um reconhecimento de seu autovalor.
Referências
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Steglich, LA. Terceira idade, aposentadoria, auto-imagem e auto-estima. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre (RS), 1978.
Toro, Rolando. Biodanza. São Paulo (SP): Olavobrás, 2002.
Freire, Sueli Aparecida. A personalidade e o self na velhice. In: Freitas, Elizabete Viana de (Org.). Tratado de Geriatria e Gerontologia. Rio de Janeiro (RJ): Guanabara Koogan, 2002, 929-935.
Sánchez, Villa Aurélio, Escribano, Elena. Medição de autoconceito. Bauru (SP): EDUSC, 1999.
Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da percepção. São Paulo (SP): Martins Fontes, 1994.
Novaes, Maria Helena. Autoconceito - um sistema multidimensional hierárquico e sua avaliação em adolescentes. Arquivos brasileiros de psicologia, 1985, v. 37, n. 3, jul/set, 27-43.
Bardin, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa (Distrito de Lisboa): Edições 70, 1977.
Cunha, Geraldo. Dicionário etimológico Nova Fronteira. 2 ed. Rio de Janeiro (RJ): Nova Fronteira, 2001.
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