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A problemática dos saberes cotidianos e curriculares
na formação inicial em Educação Física: o caso da
Universidade Federal de Goiás

   
*Licenciada em EF Escolar pela Faculdade de Educação Física
da UFG. Professora da Rede Estadual de Ensino de Goiás.
**Doutor em EF pela Unicamp. Professor da Faculdade de EF da UFG.
Professor Colaborador do Programa de Pós-graduação em EF da UnB.
(Brasil)
 
 
Regiane Ávila*
regianeavila@yahoo.com.br  
Fernando Mascarenhas**
fernando.masca@uol.com.br
 

 

 

 

 
Resumo
     Este estudo aborda a temática da formação profissional em Educação Física. Trata-se de uma investigação acerca da relação-tensão entre os "saberes cotidianos" e os "saberes curriculares" no processo de formação inicial. Busca, a partir do estudo de caso, identificar e analisar as "experiências sócio-corporais" e as "crenças" que orientam a hierarquização e seleção de saberes operada pelos estudantes da Faculdade de Educação Física da Universidade Federal de Goiás, mapeando uma dada ordem de limites e possibilidades colocados para a qualificação do trabalho pedagógico organizado nesta instituição formadora.
    Unitermos: Formação de professores. Currículo. Educação Física. Educação.
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 12 - N° 110 - Julio de 2007

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Introdução

    No processo de formação de professores de Educação Física (EF) é comum e aparente a rejeição aos conhecimentos sociais e pedagógicos, oriundos das ciências humanas, de um lado, e a supervalorização das disciplinas de cunho esportivo e biológico, referenciadas pelas ciências naturais e da saúde, de outro. Entre os alunos que ingressam nos cursos de formação inicial, de posse de expectativas geradas a partir dos saberes forjados no processo histórico de sua vida cotidiana, é bastante presente, portanto, a vinculação da EF com o esporte e a área da saúde. Assim, quando em contato com os conhecimentos sociais e pedagógicos, em sua maioria, esses mesmos alunos revelam-se resistentes ou reticentes diante de determinadas disciplinas, o que tem se desdobrado numa tensa dinâmica de hierarquização e seleção dos conhecimentos e "saberes curriculares".

    Nesse sentido, nosso problema de pesquisa compreende a investigação acerca das relações entre os "saberes cotidianos" e os "saberes curriculares" no processo de formação inicial em EF, identificando e analisando quais as "crenças" e "experiências sócio-corporais" sobre as quais se assentam as representações sobre a profissão docente e a identidade dos professores entre os alunos ingressos na licenciatura em EF. Tal intento é para nós um passo importante na tentativa de superar os obstáculos que se interpõem à tendência presente na EF de concretização de uma formação de qualidade técnica e ético-política socialmente referenciada.

    Como pressuposto, ao problematizar as tensões e desencontros entre os "saberes cotidianos" e os "saberes curriculares" no processo de formação inicial, defendemos a permanente identificação e superação das tensões inerentes ao movimento desta relação, entendendo que a prática pedagógica dialógica deve ter nas "crenças" e "experiências sócio-corporais" que os alunos ingressos nos cursos de EF originalmente apresentam, um ponto de partida para a espiral dialética de ampliação do conjunto dos saberes necessários ao futuro exercício crítico, criativo, transformador e autônomo da profissão docente.

    A partir do estudo da Faculdade de Educação Física (FEF) da Universidade Federal de Goiás (UFG), através do princípio da verificação, buscamos analisar como as tensões entre saberes cotidianos e saberes curriculares se processam em um caso particular e real de desenvolvimento. Nesta direção, como recursos metodológicos e técnicas de pesquisa envolvidos na construção desta investigação, além de uma revisão de literatura que nos permitiu a aproximação teórico-conceitual e categorial aos temas em discussão, foi realizada uma análise documental a partir do Projeto Político Pedagógico1 desta instituição formadora, bem como um estudo de campo, desenvolvido entre os meses de setembro e novembro de 2005, que se materializou por quatro sessões de observação e entrevistas semi-estruturadas realizadas junto a dez alunos ingressos no curso de licenciatura em EF. Em sendo assim, apresentamos algumas reflexões e considerações provenientes deste estudo, com especial atenção sobre como as "crenças" e "experiências sócio-corporais" dos alunos ingressos na formação inicial em EF atuam no processo de hierarquização dos "saberes curriculares".


Saberes cotidianos e curriculares na formação inicial em EF

    Conforme aponta Tardif (2004), o "saber docente" é formado por diferentes tipos de saberes, como por exemplo: os "saberes das disciplinas" e os "saberes da formação profissional", isto é, os "saberes curriculares"; e, os "saberes da experiência", também chamados "saberes cotidianos". Em conjunto, estes saberes forjam e constituem o "saber docente". Nesta perspectiva, a preocupação deste trabalho consiste em avaliar de que maneira os "saberes cotidianos" - ou seja, os saberes oriundos da formação escolar, da relação com a família, o ambiente de vida, as demandas impostas pelo mercado etc - interagem com os "saberes curriculares" no processo de formação inicial, pois sabemos que as mediações que envolvem e perpassam a dinâmica curricular não são produzidas somente a partir das interações dos alunos com os "saberes das disciplinas" que conferem forma e conteúdo a um curso de formação inicial, mas, também, a partir dos saberes que esses mesmos alunos trazem e carregam consigo acerca da profissão docente e a identidade do professores de EF.

    No caso da FEF-UFG, em que o processo de formação orienta-se a partir de um Projeto Político Pedagógico de orientação sócio-crítica2, alunos que geralmente tiveram uma educação básica de viés funcionalista e instrumental - reforçadora dos vínculos da EF com o esporte e a saúde -, quando entram em contato com os "saberes curriculares", logo manifestam certa rejeição e indiferença em relação a estes. Referindo-se a esta problemática, Tardif (2004) pondera que um aluno, ao ingressar no curso de formação inicial, traz consigo inúmeras "crenças" sobre a profissão docente e a identidade do professores. No caso da EF, o aluno chega ao curso com concepções acerca do que é EF, qual o papel e perfil do professor que irá atuar nesta área, até mesmo "crenças" de como se dá o processo de ensino-aprendizagem, tudo forjado principalmente a partir da experiência da educação formal básica e também da educação do corpo operada em ambientes educacionais informais distintos - clubes, escolas de iniciação esportiva, programas públicos, academias de ginástica etc.

    Salientando que tais experiências são constituídas a partir da história de vida de grupos cultural e economicamente heterogêneos de alunos, pode-se dizer que um conjunto de "crenças" são formadas como conseqüências da experiência concreta que o aluno viveu e mantém com a escola, seus professores, família, outras instituições, amigos e colegas, enfim, as relações que estabeleceu e vêm estabelecendo com a sociedade. Destaca-se, portanto, que entendemos por "crenças" um tipo de conhecimento impregnado de emoções, preconceitos e valores que o [aluno] constrói - resultado das informações que acessa e das relações que estabelece com seu contexto mais amplo" (MOLINA NETO, 2003, p. 150).

    No amplo universo da cultura e da subjetividade dos alunos, as "experiências sócio-corporais" vivenciadas durante sua história de vida, dentro e fora da escola, bem como as demandas impostas pelo mercado profissional como requisito para a empregabilidade, são determinações da vida cotidiana fortemente influenciadoras do perfil dos alunos ingressos da formação inicial.

O aluno, com base nas experiências sociais (assumidas neste estudo, como as vivências proporcionadas pelas interações que ocorrem nas relações sociais que incluem atividades e experiências corporais e valores a ela atribuídos) realiza ações, interações, hierarquizações, escolhas e, sobretudo, filtra o conhecimento acadêmico que lhe interessa no locus da dinâmica curricular (FIGUEIREDO, 2004, p. 91-92).

    Uma das manifestações mais aparentes da influência que exercem as "experiências sócio-corporais" diz respeito à posição que vem ocupando a EF no imaginário dos alunos ingressos, vista como promotora de saúde, além da forte relação que mantém com o esporte. Com isso, a EF, que deveria ser compreendida dentro de uma concepção generalista e multidisciplinar - que envolve as variadas dimensões da educação do corpo e possíveis campos de intervenção profissional -, é reduzida pelos alunos às questões unilaterais da saúde e do esporte. Segundo Figueiredo (2004), as "experiências sócio-corporais", agem como uma espécie de "filtro", que tende a acompanhar os alunos ao longo de todo o processo de sua formação inicial, definindo a hierarquização dos "saberes curriculares".


As "crenças" no processo de formação inicial

    Pressupondo que a hierarquização e seleção dos "saberes curriculares" está relacionada aos "saberes cotidianos" forjados a partir das "crenças" e "experiências sócio-corporais" dos alunos ingressos nos cursos de EF, apresentamos um conjunto de depoimentos que expressam as "crenças" que permeiam o universo subjetivo dos alunos ingressos da FEF-UFG, quais sejam: a "crença" da desvalorização do professor; a "crença" da desvalorização do professor de EF; a "crença" referente à prática profissional do professor de EF; a "crença" do "mau" professor de EF; a "crença" do "bom" professor de EF; e, a "crença" do professor de EF como intelectual.


    A "crença" da desvalorização do professor:

    A "crença" da desvalorização do professor que atua na escola faz com que muitos alunos, a despeito de terem ingressado em um curso de licenciatura, apresentem expectativas de trabalho dirigidas a outros campos de intervenção profissional.

Eu penso na ginástica laboral. Eu achei super interessante. Eu assisti uma aula só, aí não posso falar assim realmente o que é ginástica laboral. Mas eu achei super interessante.
Aluna G, 1°ano vespertino.

    Apesar da precariedade em que se encontram as reais condições para a realização das aulas de EF na escola, esta não é a principal explicação para a ausência de expectativa de atuação neste campo de intervenção por parte dos alunos ingressos, mas, sim, o baixo valor da remuneração paga aos professores em geral. Em uma sugestão para a melhoria do curso da FEF-UFG, um aluno propõe aos professores da formação inicial que:

(...) ampliem mais um pouco esse campo de visão deles em relação à área de trabalho, porque pra eles até agora é só escola, escola, escola. Eu acho que o mercado de trabalho hoje não tá bem pra esse lado, todo mundo sabe que escola realmente não dá dinheiro, não enche barriga, pode encher, mas o cara vai se matar de trabalhar. E eles podiam ampliar mais o campo de visão deles para o mercado. Fazer uma coisa mais atual porque essa visão deles, acho que ta meio retrógrada.
Aluno H, 1°ano matutino.

    Nesta direção, a FEF-UFG deve buscar alternativas estratégicas para que mesmo diante das "crenças" da desvalorização da profissão docente, os alunos não se desmotivem pela área da EF escolar, pois vendo neste campo de intervenção poucas possibilidades de ascensão econômica, tendem a rejeitar os "saberes das disciplinas" mais diretamente ligados ao ambiente da escola, bem como os conteúdos sociais e pedagógicos tratados ao longo do curso. Mesmo em uma licenciatura, que é o caso do curso de EF da UFG, os alunos geralmente apresentam grande desinteresse quanto à possibilidade futura de trabalho na escola.


    A "crença" da desvalorização do professor de EF:

    Como se não bastasse a pouca valorização atribuída aos professores de um modo geral, o professor de EF vem sofrendo cada vez mais uma desvalorização que lhe é conferida pelo próprio coletivo docente no ambiente escolar. Esta "crença" presente nos alunos ingressos é na verdade construída pelo próprio contato do aluno com a EF escolar no processo de sua educação básica.

    Na citação abaixo, o aluno manifesta sua "crença" de que o pouco prestígio social que o professor de EF possui é algo que está relacionado à questão do vestibular, pois ao passo que os conteúdos da EF não constam deste exame, o aluno do ensino médio preocupa-se somente com as disciplinas que lhe serão exigidas no momento do vestibular, rejeitando os conteúdos da EF, principalmente quando se aproxima a época do exame.

    Quando questionados se o professor de EF possui algum prestígio social, respondem:

Ta meio longe ainda, porque em detrimento e proveito, vamos dizer assim, da coisa que é o vestibular, no 2° grau mesmo a gente já não vê a freqüência de tantas aulas de EF, porque os alunos já ficam mais direcionados pro vestibular.
Aluno I, 1°ano vespertino.

    O professor de EF vem apresentando cada vez menos prestígio na escola, ao contrário dos que vêm atuando no esporte de alto rendimento, nas academias e em outros campos de atuação, que vêm recebendo progressivamente um reconhecimento da sociedade e, principalmente, um certo prestígio atribuído pelos alunos ingressos da formação inicial. O que não é de se estranhar, pois as últimas reformas educacionais3 para a EF vêm buscando valorizar os profissionais que atuam nos outros campos desta área, ou seja, os profissionais que contribuem para o desenvolvimento do mercado de trabalho voltado aos aspetos da saúde e embelezamento do corpo, algo que está em consonância com a própria intensificação do processo de mercantilização das práticas corporais.


    A "crença" referente à prática profissional do professor de EF:

    Devido às mais variadas relações que o aluno ingresso manteve na sociedade ao longo de sua história de vida pessoal, ele acaba por interiorizar algumas "crenças" referentes à prática de sua futura atividade profissional. Acreditam que o papel do professor de EF consiste em:

(...) influenciar as pessoas à prática de esporte, prática da saúde, prática decente, incentivar elas nas escolas é importante, virado mais pra essa área assim de orientação esportiva mesmo e na área de saúde.
Aluno H, 1°ano matutino.

    A citação acima expressa de forma bastante clara a forte relação conferida ao curso de EF com os conteúdos esportivos e biológicos.


    A "crença" do "mau" professor de EF:

    No decorrer da experiência como aluno da EF escolar, os alunos ingressos na formação inicial em EF trazem consigo determinadas "crenças" que caracterizam o "bom" e o "mau" professor desta área. Essas "crenças" se formam na medida em que esses alunos vão tomando contato com diferentes professores durante sua trajetória escolar, o que pode se observar pela seguinte fala:

Os professores de EF, eles, nem todos, mas alguns...O quê que acontecia? Eu chegava, eles soltavam a bola e o pessoal ia brincar. Era isso que acontecia, ou seja, eu tinha uma visão de que o professor de E.F, cada vez mais estava sumindo, porque para jogar a bola lá qualquer aluno poderia pegar a bola e brincar.
Aluna G, 1°ano vespertino.

    A aluna em questão foi construindo sua visão a respeito do "mau" professor de EF através de sua experiência escolar. Nota-se também que o "professor bola" - ou seja, aquele que joga a bola na quadra e ignora seu papel pedagógico e suas responsabilidades para com o aluno - foi bastante citado pelos entrevistados como o modelo de mau professor.

É aquele que pega simplesmente joga a bola e vira as costas pra turma e não liga.
Aluno I, 1°ano vespertino.

Aquele que chega dá uma bola pro pessoal fazer o que quer.
Aluno D, 1°ano vespertino.

    Outros aspectos também foram citados pelos alunos ingressos como características de um "mau" professor de EF. Segundo os entrevistados, os professores que não respeitam os limites dos alunos, não respeitam suas habilidades, apresentam um mau relacionamento com a turma, pouco domínio do conteúdo e os que trabalham apenas tecnicamente o ensino, promovendo exclusão em suas aulas, são aqueles que se enquadram no modelo de "mau" professor de EF. Vejamos a seqüência das falas abaixo acerca das "crenças" do "mau" professor que os alunos possuem.

Esse professor que não respeita os limites do aluno, que passa a atividade lá só e pronto.
Aluna A, 1°ano matutino.

O professor que não domina o conteúdo e que não sabe passar.
Aluna E, 1°ano vespertino.


    A "crença" do "bom" professor de EF:

    Os alunos ingressos da formação inicial em EF sabem que não é qualquer professor que responderá às reais necessidades que a escola pública hoje necessita. Acreditam que para trabalharem com qualidade é preciso adquirir certas competências, destacando:

Aquele que consegue colocar a prática e a teoria ao mesmo tempo. Aquele que não exclui ninguém, que consegue passar tudo ao mesmo tempo pra gente, que não fica só na prática, aquela coisa tecnicista, que saiba envolver, que saiba criar, no meio dos jogos, que saiba explicar a teoria.
Aluna C, 1°ano matutino.

    Conseguir trabalhar de forma que não haja exclusão durante as aulas é, segundo os alunos, uma das habilidades e competências que o professor de EF deve possuir para intervir com qualidade. Além do mais, é necessário que ele domine o conteúdo a ser transmitido e vá além de simplesmente permitir aos seus alunos a vivência das práticas corporais, mas que venha também estimular a reflexão sobre estas práticas vivenciadas no ambiente de aula.

É o que educa, é o que sabe socializar a sala, sabe integralizar as matérias, as disciplinas, não fica só específico na disciplina de EF, procura envolver outras disciplinas, envolvendo junto com a EF. Tem ética. Basicamente eu acho que é isso.
Aluno B, 1°ano vespertino.

    É notável que a "crença" do que é um ser "bom" professor de EF não é igual para os alunos na formação inicial. No entanto, percebe-se que há um possível acordo sobre o perfil de professor ideal, que deverá ser capaz de trabalhar além da especificidade dos conteúdos da cultura corporal, apresentando um caráter reflexivo além de ser um exemplo a ser seguido por seus alunos.


    A "crença" do professor de EF como intelectual:

    A última "crença" a ser analisada diz respeito à visão dos alunos sobre o professor de EF como intelectual. Os alunos afirmam que antes de ingressar no curso tinham a visão do professor de EF apenas como um prático esportivo e recreador. No entanto, após o contato com os "saberes das disciplinas", e diante do domínio técnico-pedagógico dos conteúdos por parte dos professores das disciplinas de cunho "teórico", assumem terem mudado suas concepções acerca do professor de EF.

Eu não via, aqui cheguei no 1º semestre, fiquei até abismado assim, com a capacidade que os professores aqui tem é professores igual o que é doutor e outros vários professores aí que são muito bem preparados assim, e esse lado do professor de educação física assim eu não conhecia.
Aluno J, 1°ano matutino.

    A fala acima expressa de maneira bastante clara o quanto a dinâmica curricular da formação inicial da FEF-UFG tem conseguido, não só problematizar, mas, de algum modo, provocar mudanças na visão dos alunos sobre o professor de EF como um mero recreador e prático esportivo, "crença" construída durante sua história de vida. Tal dinâmica, permite a associação do professor de EF à identidade do professor-intelectual, contribuindo para a conscientização da importância de se ter um bom embasamento teórico-conceitual para a organização de um trabalho de qualidade. Isto tem permitido, no processo de formação inicial da FEF-UFG, certo interesse dos alunos ingressos pelos conhecimentos das ciências humanas e pelos conteúdos pedagógicos e sociais. No entanto, as "crenças" acerca da EF ainda vêm constituindo grande obstáculo para que esta conscientização implique em uma menor rejeição destes conhecimentos.


As "experiências sócio-corporais" dos alunos

    A vinculação da EF com esporte e a saúde, ainda vem sendo a principal referência cultural e subjetiva dos alunos que ingressam no curso de EF da UFG. Ao perguntarmos a uma aluna o que influenciou sua escolha pelo curso de EF, ela responde:

Bom, eu sempre gostei muito da área de esporte assim, saúde, o cuidado com o corpo, conhecer o corpo, saber certos exercícios, certas coisas pra ser saudável.
Aluna F, 1°ano matutino.

    A relação do exercício físico com a saúde é reveladora dos limites que se colocam para uma formação inicial generalista e multidisciplinar em EF. Ainda que em cursos voltados para a licenciatura, os alunos trazem de sua história de vida, concepções acerca do que é a EF e, em sua maioria, relacionam-na à saúde e a prática esportiva, obliterando sua visão apenas em direção às questões de ordem biológica e esportiva. Na realidade o que vem acontecendo, conseqüência da vinculação do curso com a área da saúde, é que a entrada no curso de EF ganha cada vez mais para o aluno o significado do ingresso em um curso da área da saúde4.

Bom, pelo fato de eu sempre ter praticado esportes. Na verdade eu não queria o curso porque eu pretendia fisioterapia, mas como eu não consegui passar na UEG vim fazer o curso aqui pra mais futuramente poder fazer fisioterapia.
Aluna A, 1°ano matutino.

    Infelizmente, o problema evidenciado está distante de ser resolvido, pois os alunos encontram reforços suficientes para fundamentar suas "crenças" sobre a EF, pois a quase totalidade das instituições formadoras que possuem o curso de licenciatura em EF classificam este curso na área das ciências biológicas e da saúde, reforçando a rejeição dos conhecimentos que trabalham temas das ciências humanas e sociais que tanto contribuem para o alargamento da produção de conhecimento na EF. Ao fazermos a pergunta sobre quais disciplinas que os alunos pior avaliaram no 1°ano, a resposta vem quase de maneira unânime, apontando uma frustração diante de "saberes curriculares" referenciados nas ciências humanas e sociais.

Políticas Públicas. Eu acho que os textos são muito carregados assim, tem que ler muito. É coisa que não aplica muito na Educação Física. É lógico que é do cotidiano da gente. Fala sobre a escola, a prática na escola, mas o conteúdo é muito cansativo.
Aluna A, 1°ano matutino.

    Na FEF-UFG, o tipo de saber que vem predominando no cotidiano do processo de formação inicial nos parece ser o saber-fazer, principalmente aquele organizado a partir das ditas "disciplinas práticas", nas quais o aluno acredita se apropriar dos "saberes disciplinares" quando conseguem realizar de modo tecnicamente eficaz a prática corporal objeto da disciplina correspondente, ou seja, o saber é confundido com o produto do aprendizado.

Natação. Eu gosto de água, eu tenho uma especialização no bombeiro em salvamento aquático e tenho muita facilidade com água.
Aluno J, 1°ano matutino.

    No entanto, mesmo em menor número, encontramos alguns alunos preocupados em se apropriar de "saberes disciplinares" que lhes permitam assumir uma posição reflexiva diante de sua futura atividade profissional, todavia atribuindo "à atividade uma aparência de um saber-objeto constituído por enunciados (normativos), como exemplo, os saberes que aquele tipo de atividade mobiliza" (FIGUEIREDO, 2004, p. 99).

Eu conheço o handebol a mais de cinco anos, na verdade, porque eu pratico desde a quinta série. Eu não sei, assim, por exemplo, eu já comecei a dar aula e tal, eu não sei as metodologias para ensinar o handebol, eu ensino o handebol da minha forma, mas eu não sei como seria a forma correta, então eu tenho vontade de aprender o handebol.
Aluna G, 1°ano vespertino.

    No campo dos reforços para a rejeição dos conhecimentos das ciências humanas e sociais, encontramos valores como individualismo, competição exacerbada, pragmatismo, mobilidade econômica etc. Estes valores, ao interagirem com os "saberes curriculares", vêm resultando em uma forte tensão com as disciplinas das ciências humanas e sociais. Ao perguntarmos a um aluno qual disciplina até o momento menos lhe agradou, este responde:

Fundamentos sócio-filosóficos da EF. É uma matéria que eu não concordo com nada. Tem ela, tem a matéria do... Agora que faltou o nome [Educação Brasileira], também que eu não concordo. Concordar, assim, eu concordo. É importante pra você ter uma visão assim do outro lado da coisa, mas é uma coisa assim que eu tenho minha opinião, eu realmente eu assumo que eu sou capitalista, eu quero é ganhar dinheiro e não concordo com o ponto de vista que eles têm.
Aluno H, 1°ano matutino.

    Como anteriormente mencionado, as "experiências sócio-corporais" dos alunos ingressos de EF funcionam como uma espécie de "filtros" por onde passam todos os "saberes curriculares", resultando em uma valorização ou rejeição de determinado conhecimento. Constata-se que os critérios utilizados pelos alunos para a hierarquização e seleção dos "saberes curriculares" passam pela concepção de EF relacionada à área de biológicas e da saúde, o que vem a refletir no processo de formação inicial como uma super-valorização das disciplinas relacionadas a estas áreas do conhecimento.

Nutrição. Porque eu sempre gostei dessa área de nutrição porque ela ta muito envolvida também com a parte de resultado no treinamento. Ela envolve bastante essa área e eu acho interessante assim, saber o quê que influencia o quê que pode deixar de influenciar, atrapalhar.
Aluno H, 1°ano matutino.

    Outro critério encontrado para a hierarquização e seleção dos "saberes curriculares" na formação da FEF-UFG são as "experiências sócio-corporais" vivenciadas pelos alunos ao longo de sua história de vida antes de ingressarem no curso, o que se manifesta quando apresentam a curiosidade por cursar "disciplinas práticas" que já vivenciaram durante sua história de vida.

Tenho curiosidade da disciplina futebol, porque eu pratiquei futebol já, eu queria ver como é que é a teoria fora da prática assim.
Aluno B, 1°ano vespertino.

    Na realização deste trabalho, percebemos e constatamos que muitos alunos na formação inicial em EF da UFG não são conscientes que estão em processo de formação, pois muitos parecem ver no curso uma extensão das práticas que já experimentavam antes do ingresso no mesmo. Em alguns casos, como afirma Figueiredo (2004), esse prolongamento das práticas perdura por todo o processo de formação inicial. No entanto, não só as "experiências sócio-corporais" vivenciadas pelos alunos durante sua história de vida vêm contribuindo para a hierarquização e seleção dos "saberes curriculares", pois as afinidades e preferências por determinadas práticas corporais também se apresentaram como aspectos que envolvem este processo de hierarquização e seleção.

Ginástica ...eu nunca fiz e tal, mas quando era bem novinha meu sonho era fazer ginástica olímpica, aí eu a primeira matéria que a gente teve ginástica 1, ginástica 2 e eu gostei. E porque, também, a professora, o jeito dela explicar os fundamentos da ginástica me atraíram muito sabe, tipo dar estrelinha, cambalhota, essas coisas assim.
Aluna E, 1°ano vespertino.

    Ainda associado aos critérios secundários na hierarquização e seleção dos saberes curriculares, há a valorização de determinadas "disciplinas práticas", as quais o aluno não havia tido nenhuma experiência anterior com a modalidade. O aluno aqui, vê no curso de EF, a oportunidade de vivenciar práticas corporais que não lhe foi possível vivenciar em momento anterior ao ingresso no curso de EF.

Natação. Contato com a água, poder aprender os estilos certos. Porque até então a gente acha que sabe nadar lá fora, então principalmente eu que nunca tive oportunidade de fazer uma aula de natação ou de ter a oportunidade de desenvolver os quatro estilo e aprender os fundamentos dele, as noções tudo, posição tudo isso.
Aluno I, 1°ano vespertino.

    O que se pode perceber, é que para o grupo de alunos envolvido na pesquisa, a relação que eles vêm estabelecendo com as ditas "disciplinas práticas" é que o saber executar - como exemplo, saber nadar, saber jogar vôlei, saber jogar futebol etc - é indispensável no processo de formação.

    As "experiências sócio-corporais" vêm também influenciando a escolha da futura atuação profissional na área, como exemplo:

Escola. Porque eu tive experiência com ser professor de capoeira que querendo ou não querendo você ensina o que você tem que ensinar seu aluno até a teoria, ir atrás dos conhecimentos da capoeira e tudo. Que é a área mesmo escola, e capoeira hoje em dia trabalha na escola aí você pode trabalhar capoeira envolver EF/capoeira. Sincronia muito grande.
Aluno B, 1°ano vespertino.

Assim, no início eu falei do meu serviço com o esporte e a gente vivencia alguns esportes radicais lá no bombeiro, mergulho, rapel e eu queria trabalhar com isso, como instrutor, montando uma equipe de, até uma equipe pra competir nesses esportes de aventura fora do corpo de bombeiro, com a EF.
Aluno J, 1°ano matutino.

    Através desta análise e discussão acerca das "experiências sócio-corporais" dos alunos da formação inicial da FEF-UFG, fica claro a valorização das "disciplinas práticas", tanto daquelas que garantem aos alunos o contato com as práticas corporais já vivenciadas durante sua história de vida, como daquelas que os alunos ainda não tomaram contato. Ao valorizarem as disciplinas que já vivenciaram, os alunos acabam por ter nestas mesmas disciplinas uma possibilidade para o prolongamento desta prática. Portanto, ao valorizarem as "disciplinas práticas", cujos conteúdos não vivenciaram anteriormente, vêem no curso a oportunidade de aprender e tomar contato com novas práticas corporais. Assim, encontramos uma contradição, pois os alunos, mesmo apresentando "crenças" relacionadas com o ideal de um "bom" professor de EF, quando acreditam que este professor deve possuir um conhecimento além da prática, valorizam as disciplinas cujas práticas já lhe eram familiares devido às suas vivências, valorizando, assim, o saber-fazer.


Considerações finais

    Salientamos a importância em compreender e a necessidade de se dialogar com as "crenças" e "experiências sócio-corporais" dos alunos ingressos no curso de EF. Como visto, as representações acerca da prática docente e da identidade do professor de EF vêm sendo influenciadas por estes tipos de "saberes cotidianos". Além do mais, quando perduram até o fim do curso, acabam por modelar o perfil do aluno egresso da FEF-UFG, uma vez que não valorizam os "saberes curriculares" vinculados aos aspectos sociais e pedagógicos. Vale dizer que as conseqüências para a prática profissional destes futuros professores de EF são bastante negativas, devido, justamente, à rejeição de conhecimentos de profunda importância para o trabalho docente.

    A partir desta discussão, avaliamos que muitos são os caminhos possíveis na busca de superação das tensões presentes nesta relação entre "saberes curriculares" e "saberes cotidianos" no processo de formação inicial em EF. Um deles passa pela seleção dos "saberes das disciplinas" organizados ao longo da dinâmica curricular, bem como o seu correspondente trato pedagógico, que deverá confrontar dialogicamente estes "saberes curriculares" - que pouco vem se articulando a um estudo de caráter sócio-antropológico sobre a realidade dos alunos ingressos nos cursos de EF -, às suas "crenças" e "experiências sócio-corporais", isto é, os "saberes do cotidiano".


Notas

  1. Trata-se do projeto de reforma curricular do curso de Licenciatura Plena em Educação Física , para atender aos fins e objetivos do ensino de graduação superior e do desenvolvimento da educação básica, conforme determina a LDB, as Resoluções n. 01, 02, 27, 28/CNE e Parecer n. 09/CNE que trata da formação de professores para a educação básica e Resolução n. 07/CNE e Parecer n. 158/CNE que trata da formação profissional específica da Educação Física. Em nível local, trata-se do atendimento à Resolução n. 06/2002/CONSUNI que cria o RGCG e a Resolução n. 004/ CEPEC que estabelece a nova política de formação de professores no âmbito da UFG e do próprio Estatuto da UFG.

  2. A resolução n. 715 do CEPEC-UFG, de 2005, que fixa o atual currículo do curso, apresenta as disciplinas e sua forma de organização, os critérios e procedimentos de avaliação, assim como o eixo espistêmico da formação, explicitando os princípios, finalidades, competências e habilidades em que esta formação será pautada, é a expressão formal do Projeto Político Pedagógico da FEF-UFG. Disponível em: http://www.fef.ufg.br.

  3. Sobre Reformas Educacionais e políticas de formação de professores de EF, ver David (2003).

  4. Diferente de como a EF está enquadrada para os órgãos oficiais de estímulo, fomento e avaliação à pesquisa no país, subordinada a grande área da saúde, destaca-se que o curso de Licenciatura em EF da UFG está vinculado às ciências humanas, o que determina os conteúdos a serem privilegiados no processo seletivo para o ingresso no curso.


Referências

  • DAVID, Nivaldo Antonio Nogueira. Novos ordenamentos legais e a formação de professores de educação física: pressupostos de uma nova pedagogia de resultados. 2003. Dissertação (Mestrado em Educação Física) - Faculdade de Educação Física, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2003.

  • FIGUEIREDO, Zenólia Campos. Formação docente em educação física: experiências sociais e relação com o saber. Movimento, Porto Alegre, v.10, n.1, p. 89-111, abr. 2004.

  • MOLINA NETO, Vicente. Crenças do professorado de educação física das escolas públicas de Porto Alegre-RS/Brasil. Movimento, Porto Alegre, v.9, n.1, p. 145-169, abr. 2003.

  • TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.

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revista digital · Año 12 · N° 110 | Buenos Aires, Julio 2007  
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