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Corporeidade e alteridade: reflexões a partir da história da educação e da área de trabalho e educação

   
Departamento de Pedagogia
Unicentro - Guarapuava
(Brasil)
 
 
Carlos Herold Junior
carlosherold@hotmail.com
 

 

 

 

 
Resumo
     O objetivo deste estudo é relacionar as questões concernentes ao corpo e à alteridade a partir de duas áreas do conhecimento educacional: história da educação e trabalho e educação. Para isso, dividimos o texto em três momentos: no primeiro, mostramos como a "educação para a alteridade" se constitui em uma das bases do pensamento educacional moderno. No segundo, verificamos formas para fazer com que a temática da alteridade e da corporeidade sejam abordadas pelas análises das transformações do mundo do trabalho. Por fim, como conclusão, refletimos sobre o caráter contraditório da sociedade capitalista ao, mesmo tempo, possibilitar e limitar as discussões sobre educação, corporeidade e alteridade.
    Unitermos: Corporeidade. História da Educação. Trabalho. Educação. Capitalismo.
 
Abstract
     The goal of this study is to put in relation the issues concerning body and alterity, both analyzed from two specifics point of views related to educational fields: history of education and labor and education. For that, we divided the text in three parts: firstly, we show how the "education to alterity" is one of the basis of the modern educational thinking. In the second part, we study the possible way to make these issues being researched all, having the transformations underway in the labor world as scaffolds. As conclusions, we think about the contradictory way of our society, which, at same time, gives possibilities and put limits to the debates on education, corporeality and alterity.
    Keywords: Corporeality. History of Education. Labor. Education. Capitalism.
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 12 - N° 110 - Julio de 2007

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Introdução

    Colocamos como proposta de análise, delimitar as possibilidades de estudar a questão da alteridade na educação a partir de duas áreas: história da educação e trabalho e educação. Com os instrumentais teóricos de cada uma delas, temos tentado pesquisar as diferentes maneiras e discursos educativos que tematizam a corporeidade humana. Não há como negar que essa preocupação de pesquisa é datada. E ela, também, fruto de uma inquietação que se desenvolveu academicamente de forma intensa nos últimos trinta anos. Os estudos sobre o corpo, para alguns, é mais um dos modismos acadêmicos que surgiram e que desaparecerão sem deixar vestígios.

    A principal crítica dirigida a esse conjunto de preocupações é o fato de eles terem se desenvolvido no interior das concepções pós-modernas de filosofia, ciência e sociedade, nas quais todo e qualquer tipo de análise de caráter mais generalizante estaria fadado ao fracasso e/ou significaria um atentado autoritário contra as infinitas possibilidades de se "ler" a corporeidade. Agora, defendem esses analistas, ela deveria ser captada por questionários e análises de caso onde cada país, cidade, grupo, escola ou aluno, representariam uma realidade única e informalizável, a ser descrita (e não criticada), sempre em respeito às diferenças.

    Com o mesmo referencial teórico e recebendo criticas semelhantes, as análises sobre a alteridade nas ciências humanas de forma geral, e na educação de forma específica, ganharam uma força e atenção que resultou em inúmeras publicações e, em alguns casos e em alguns autores, no estatuto de ser a grande questão das inquietações educativas. Dessa maneira, podemos perceber que as questões pertinentes à alteridade e aos estudos sobre o corpo e a sua educação nascem juntas se sustentando uma a outra. A visibilidade acadêmica que elas conquistam acontece de forma simultânea, em um processo onde as discussões de uma fortalecem as da outra. Por exemplo, o reconhecimento da historicidade das diferentes visões e usos do corpo nas diferentes culturas trás implícita o reconhecimento da alteridade, da mesma forma que a defesa da alteridade lança mão dos questionamentos aos universais e que encontram nas diferentes sensibilidades perante a comida, o corpo e as roupas, argumentos extremamente convincentes.

    Frente a isso, pretendemos colocar bases para refletir sobre a alteridade no campo da educação a partir das preocupações sobre a educação do corpo, utilizando as referências instrumentais da história da educação e da área de trabalho e educação. A visibilidade que as questões do corpo assumem na atualidade nos autoriza a dizer que a questão da educação do corpo deixa de ser importante somente para profissionais da educação física e passa a interessar de forma ampla os diferentes especialistas da educação. Aliás, uma das positividades dos estudos culturais sobre o corpo, é ter mostrado o quanto o racionalismo era ingênuo ao secundarizar a corporeidade e, mais importante ainda, o quanto uma análise que negligenciava a educação corpo, indicava no seu próprio bojo uma preocupação com as problemáticas dessa educação.

    Assim, do interior da história da educação e da área de trabalho e educação, tematizaremos as possibilidades e limites de se analisar a questão da alteridade na educação, estudando essa temática tendo como campo empírico as problemáticas concernentes à corporeidade na história da educação e nas correntes transformações do mundo do trabalho e os impactos que essas transformações colocam para a educação e as inescapáveis inquietações sobre o respeito à alteridade.

    Por isso, dividimos a exposição em três momentos: no primeiro, verificamos como as questões da educação do corpo e da alteridade são passíveis de serem vistas no interior do desenvolvimento do pensamento educacional moderno, viabilizando assumir as possibilidades e os limites que são dados em um pensamento gestado no interior das relações sociais capitalistas de produção. No segundo, abordaremos a forma como as transformações no mundo do trabalho podem se configurar em um campo de reflexão para as questões da alteridade, desde que consideradas algumas premissas. E no terceiro à guisa de conclusão, exploraremos as possibilidades de debate sobre a alteridade em que, historicamente, os processos educacionais estiveram atrelados aos mecanismos de exploração do trabalho humano.


1. Educação, corpo e alteridade: um olhar a partir da história da educação

    O processo de construção da sociedade moderna é acompanhado por todo um conjunto de reformulações filosóficas, religiosas e científicas que, ao se oporem aos valores da sociedade feudal, descortinavam uma nova consideração do homem, de sua educação corporal e novas maneiras e objetivos para os relacionamentos sociais.

    Uma das promessas mais alardeadas no início da modernidade é que a felicidade, o conhecimento, a riqueza e a liberdade estariam ao alcance do homem e poderiam ser gozadas imediatamente, desde que conquistadas com trabalho e razão. A possibilidade de essa transformação social acontecer foi sustentada pela importância que a educação e a reflexão detida sobre ela passaram a ter. A autoridade de quem ensina e do que se ensina, tornam-se concebidos, todavia, como prerrogativas a serem conquistadas pela demonstração, pelo exemplo e pela razão, e não mais obtida à força e aos berros. O processo educativo ganha nesse momento, um caráter de "diálogo" que nos séculos precedentes, remontando ao surgimento do cristianismo, fora visto como desnecessário e mesmo prejudicial. Podemos dizer que a educação moderna inicia uma abertura para o "outro", à medida que é deflagrado um processo de equilíbrio de forças e autoridade entre professor e aluno, proporcionado pela discussão, pela necessidade do argumento e pela atenuação visível de procedimentos tais quais os castigos, a memorização etc. O esforço em reconhecer em quem aprende a presença de uma determinada forma e conteúdo de pensamento e sentimento, coloca novos desafios. Nesse ínterim, a educação do corpo e a preocupação com a saúde, com o papel formativo das necessidades corporais nos valores morais é um passo extremamente importante para qual chamamos atenção. A educação moderna, ao enfatizar a educação do corpo, reformula o debate educativo e o empurra para questões educacionais extremamente concernentes à visão de alteridade que começa a ser construída na época moderna, tocando uma visão diferente sobre todos aqueles que até então seriam considerados marginais: as crianças, as mulheres e povos de outras culturas.

    No interior do espaço familiar, na educação doméstica, começam a serem sentidas, também, as conseqüências concretas da ampla transformação que ocorre na sociedade. A educação planejada e intencional, concebida como necessidade somente do primogênito, passa a ser defendida como relevante para todos os filhos. Essa transformação, que acompanha as mudanças nas formas históricas de transmissão de propriedade, impacta diretamente a consideração educativa e passa a colocar como necessária a educação corporal para todos os filhos de um casal, fazendo com que, no espaço doméstico, haja um pequeno processo de "democratização" educacional em que o "outro", também, seja visto como formalmente "educável", fazendo com que "cada um" fosse instrumentalizado com as características necessárias para viver em uma sociedade que começava a mostrar suas novas características, entre elas o elogio da "independência individual". Podemos encontrar essas preocupações em vários pensadores preocupados com a educação nos inícios da modernidade.

    A obra literária de Rabelais (1991), evidencia a importância de uma boa educação que proporcione condições para que uma pessoa execute atos grandiosos e relevantes. A lassidão corporal com que Gargântua fora inicialmente educado, se revelou no momento em que seus pais perceberam que ele não conseguia dialogar com um garoto de sua idade, educado nos moldes que valorizavam a educação do corpo. A falta de "forças" e de "autocontrole" incapacitava-o de tomar atitudes importantes para outras pessoas. A gula, o desregramento total dos hábitos é mostrado como um ato de egoísmo que, no fim, redundaria em infelicidade ao próprio Gargântua e à sua família. Para lutar contra isso seus rumos educativos são corrigidos, e ele começa a receber uma educação baseada em uma correta alimentação, no levantar cedo, na higiene, no fortalecimento corporal, em que cada oportunidade para uma lição moral ou para a transmissão de um conhecimento "concreto" e "significativo" não era mais perdida. O resultado foi Gargântua ter se tornado um homem corajoso e capaz feitos que a genialidade literária de Rabelais evidencia em sua grandiosidade e relevância para toda sua sociedade.

    Montaigne (1984) também é um exemplo interessante para mostrar o papel que a educação teve no nascimento da modernidade para formar um homem que, seguindo os passos dos Ensaios, deveria conhecer tudo, falar de tudo com todos, além de ter a habilidade de viver dignamente em um mundo de certezas abaladas. Para Montaigne, inquestionável era o valor que as atividades físicas e a sapiência na hora de escolher o que ensinar e quando ensinar teria nos processos formativos da criança. O filósofo francês, nesse sentido, não poupa palavras para criticar as escolas em que estudara e as outras de que possuía relatos, em que os castigos corporais, a imobilidade, o excesso de informações inúteis formavam o que ele chamava de "burros carregados de livros". O resultado a ser colhido desse tipo de educação, seria a capacidade de diálogo, a consciência de que tendo as certezas se esvaído, restando somente opiniões que, para serem acolhidas, deveriam passar pelo crivo da discussão, do debate. O erro deixaria de ser visto como condenável, passando a ser encarado como as primeiras tentativas na formação de um homem livre e que respeitasse a liberdade alheia de ter, "cada um", suas idéias. A base desse projeto filosófico e educacional, Montaigne vai buscar nos gregos e nos romanos, que ele cita abundantemente para evidenciar que sem uma educação física esmerada e que ocupasse o centro do processo educativo, o resultado seria o dogmatismo e o autoritarismo que ele via presentes em sua sociedade, assolada pelas batalhas entre católicos e protestantes.

    Comênio (1976) também teve um papel central para as discussões que entabulamos. O educador morávio, ao pensar a educação que ensinasse "tudo a todos", coloca, ao lado das inovações didáticas, uma preocupação muito grande com a saúde de quem aprende. Paralelo ao nascimento de uma nova pedagogia, estaria, necessariamente, a educação física. Consoante às inquietações de Rabelais e Montaigne, ele verificava que os conflitos entre grupos religiosos diferentes deveriam ser controlados e superados pela atuação educativa. Diferentemente, porém, de Rabelais e Montaigne, Comênio acreditava que para a educação e a educação do corpo efetivamente colaborar no processo, ela deveria ser aplicada a todos os membros da sociedade.

    Na Inglaterra, Locke (1986) também reflete sobre a sociedade e sobre a educação e, com isso, elabora um pensamento político em que a educação, a alteridade e a educação corpo aparecem de forma intensa. A grande questão que aflige o pensamento lockeano é a estrutura política inglesa, baseada nas justificativas de caráter religioso do poder real. Indo de encontro ao absolutismo, ele elabora uma análise da sociedade em que coloca como principal ponto de apoio, a assunção de que os homens são iguais. As diferenças, afirma o filósofo inglês, só deveriam ser respeitadas se baseadas no trabalho. Com isso, Locke escreve, então, seus Pensamentos sobre a educação, cujo objetivo era evidenciar as formas corretas, justas e racionais de se construírem as energias, as capacidades físicas, intelectuais e morais, capazes que formarem o "homem de negócios". Para ele, sem essa via educativa, qualquer desigualdade seriam ilegítima e assim, seria considerada uma injustiça, a ser corrigida através do questionamento ao poder político.

    Por outro lado, Locke, por viver e pensar em um país em que o desenvolvimento capitalista se deu a passos rápidos, expressa também no interior de seu pensamento, as nascentes contradições dessa sociedade e da filosofia liberal que ele justifica e sustenta. O que o filósofo inglês quer formar é o "gentleman", o "homem de negócios", cuja vontade é se estabelecer como um conquistador de riquezas, o mais competente. Para isso, desde cedo a criança deveria aprender que é na sociedade que o interesse individual se realiza em meio às diferenças, na persuasão do outro e no convencimento. Para tanto, a educação deveria primar não só pelas forças físicas e intelectuais necessárias, mas também pelo conhecimento acurado dos gestos e das expressões faciais que se trocam nas interações sociais: deveria o "gentleman" estar preparado para tudo comer e beber, dançar e postar-se com elegância, ser correto no elogiar e no criticar. As diferenças pessoais que se estabelecem e se manifestam nas trocas sociais deveriam ser eficazmente manobradas em proveito do sucesso individual que, na Inglaterra daquele momento, já significava o acúmulo de riquezas pelo mérito individual.

    Mesmo citando Locke em alguns momentos de sua obra educacional, Rousseau (1992), no século XVIII, raciocina, quanto aos fins, de forma oposta ao inglês e elabora um conjunto filosófico em que as questões da educação, do corpo e dos relacionamentos sociais entre as pessoas aparecem como importantes. O ponto de partida é a mesma questão: porque a sociedade se apresentava com tantas injustiças e o que deveria ser feito para "consertá-la"? Ao diagnosticar que os avanços das ciências e das artes era responsáveis pelas enormes diferenças e injustiças sociais que assolavam a França pré-revolucionária, Rousseau verifica que a natureza e os homens são bons, mas que a sociedade, depravada pelo egoísmo alastrado pela ciência e pelas artes, tratou de marcá-los com as mesmas características, estando aí, a causa de todo o sofrimento, de toda tirania, de toda a violência, da riqueza perdulária e da gigante miséria que, anos depois, faria a França passar pela Revolução. A saída seria estabelecer um outro "Contrato Social", baseado no que Rousseau chama de "Vontade Geral". O fundamento dessa construção seria uma educação que possibilitasse a criança exercer as forças que a natureza nela depositara. Dentre essas forças, a vontade e a necessidade de movimento, de brincadeira, de espaço, enfim, a educação do corpo, a mais importante nos primeiros anos da infância, não deveria perder o espaço com o passar do tempo, mas seria, ao invés, ladeada com as questões intelectuais e morais. Estas estariam então baseadas na saúde e no desenvolvimento corporal que, afinal de contas, é o que a natureza manifesta, desde que não atrapalhada pela interferência indevida da sociedade. Indevida, porque para Rousseau, o fato de a sociedade não poder voltar ao tempo em que os homens eram "livres" na natureza, colocava como extremamente necessária a intervenção do preceptor, que semelhante a um jardineiro, deveria proteger a "pequena planta", e possibilitar que natureza presente em sua estrutura "desabrochasse" e se manifestasse em toda sua força, bondade e beleza.

    Como conseqüência desse respeito à boa natureza do homem, Rousseau visualiza o nascimento de uma sociedade em que o egoísmo não tivesse espaço e que os homens pudessem viver em harmonia. A saúde, a capacidade de trabalhar com a mão, a educação corporal de forma geral, redundaria em homens capazes de estabelecerem laços sociais autênticos.

    O trajeto percorrido pelo pensamento educacional moderno permite verificar que a construção de uma nova sociedade colocou a educação e a educação o corpo como centrais para fazer com que os relacionamentos entre as pessoas se dessem em outros parâmetros, marcados pela felicidade, respeito, harmonia e justiça. A educação moderna, ao criticar as estruturas educativas que existiam, colocava nas atitudes pedagógicas um ponto de apoio para que um mundo mais livre e fraterno existisse. Nesse sentido, a discussão das idéias, a defesa do respeito à individualidade de quem aprende, a necessidade de quem ensina em bem conhecer o mundo, os homens e as ciências, vinham como resultado da necessidade de capacitar o aluno com as características necessárias para que o convencimento, o reconhecimento das diferenças entre homens, países e culturas, fosse levado a sério: no caso de Rabelais, para que o aluno pudesse realizar grandes obras; em Montaigne para que se fosse feliz em mundo de opiniões diferentes; em Locke para que o homem de negócios tirasse o maior proveito possível dessas diferenças; e em Rousseau para que a bondade naturalmente presente, não fosse deturpada e acabasse redundado na sociedade injusta, ignorante e doente, tal qual o diagnóstico feito pelo pensador genebrino.

    Por mais que esse pensamento se justificasse nas condições históricas que iam sendo construídas sob influência desse mesmo pensamento educacional, não podemos esquecer, porém, que com o surgimento de novas variáveis, a distância entre o que se pensa sobre a educação do corpo e o que acontece na prática social, aumenta. Distância essa, também, que não pode ser vista como erro, mas sim como mais uma manifestação do caráter orgânico das contradições do capitalismo que se manifestam em sua plenitude no século XIX.

    Se até então, o pensamento educacional preocupava-se em construir uma nova sociedade e/ou justificar as transformações que aconteciam ou deveriam acontecer em nome da razão, da liberdade, da fraternidade e de um determinado tipo de igualdade, com o século XIX, o pensamento educacional liberal passa por transformações devido às primeiras manifestações das crises do capitalismo. Com o questionamento radical da sociedade pelo movimento operário através da idéia de transitoriedade das relações sociais e a necessidade da revolução para que as contradições do capitalismo fossem superadas, a educação começa a ser efetivada como pública, universal, laica e obrigatória. Se a revolução francesa já havia colocado o assunto dos sistemas nacionais de ensino na sua pauta, da mesma forma que Comênio no século XVI a sinalizava, foi com as crises do século de XIX que vários países se puseram a criar suas escolas públicas, permitindo que "todos" a freqüentassem.

    Alterações metodológicas fizeram-se sentir, quando a preocupação comeniana de "ensinar tudo a todos", virara lei, colocando desafios didáticos prementes. Interessante observar que há uma continuidade entre o pensamento educacional moderno e o pensamento reformulado no interior da crise do capital no que diz respeito às pautas educacionais, mesmo que o fim histórico seja outro. No início da modernidade, a secundarização do conteúdo em relação ao método, significou a necessidade da preocupação mais próxima com um aprendizado mais efetivo por parte do aluno. Agora, o nascente escolanovismo sustentava-se na necessidade de se efetuar um processo educativo em detrimento da instrução. A consideração da "opinião pública", que de acordo com Hobsbawn (1988) foi uma das conseqüências desse processo, se deu também pela oferta de uma educação que ao "respeitar os diferentes ritmos", as diferentes condições e as diferentes dificuldades (agora todas reunidas dentro da escola), acabava por secundarizar o acesso ao conhecimento científico e filosófico à classe trabalhadora, em favor do desenvolvimento dos sentimentos e das atitudes que, no intercâmbio social fora da escola, possibilitassem o esfriamento das explosões revolucionárias. O cerne do discurso pedagógico tornara-se, então, o respeito absoluto das diferenças, para que a reivindição radical de igualdade por parte da classe operária fosse inoperante.

    Uma das bases para o provimento desses sentimentos e atitudes de responsabilidade do indivíduo frente à sociedade, da formação cidadão (Leonel, 1994), foi a luta travada nesse momento da história para a criação da disciplina escolar de educação física. Retomando todo o discurso do pensamento moderno, professores, filósofos e políticos se puseram a mostrar a validade das atividades corporais para o "aprendizado" da vida em sociedade que evitaria os questionamentos e exigências que, passaram a serem vistos, como impulsionados por um egoísmo resultante da "falta de educação" e do respeito às instituições. Para entrar na escola pública, as atividades corporais deveriam ser cientificamente embasadas, racionalmente empregadas e primar pelo respeito às particularidades de cada indivíduo. Entretanto, o estudo das obras que versavam sobre a educação física nesse momento, revela preocupações concernentes ao "engrandecimento da raça", com a eugenia e com a higiene que, no século XX, redundariam no nazi-fazismo e no seu projeto educativo altamente baseado nas atividades corporais (Adorno e Horckheimer 1985). O corpo e sua educação passam a integrar já no século XIX, um projeto coletivo que visava fazer com que o "estágio positivo" da sociedade não apresentasse os problemas que eram vistos, mas que eram vistos como passíveis de correção desde que todos, "respeitados em suas particularidades", se "sentissem" cidadãos ou responsáveis pela sociedade, "igualmente".

    No período compreendido entre a construção, a consolidação e a crise do capitalismo, é possível verificar que aquilo que hoje se discute sobre o relacionamento entre educação e alteridade é um ponto fulcral para a sociedade capitalista como um todo. Entre as promessas da nascente burguesia e as explicações para as crises nos séculos XIX, a necessidade de se educar para a liberdade, para o respeito mútuo, o elogio da diferença baseada na igualdade entre homens, estiveram sempre presentes. Entretanto, há que se considerar que historicamente, resguardadas as diferenças, as mesmas idéias assumem valores variados de acordo com a perspectiva que defendem. A partir do século XIX, a questão se complexifica, pois a idéia de educação para todos, de respeito às individualidades e consideração das diferenças vinham como bases para se impedir a construção de relações sociais que efetivamente possibilitariam, pela libertação da produção social da apropriação privada, o nascimento de uma sociabilidade que alimentasse e fosse sustentada pelas potencialidades e limites individuais e em que elas não fossem fonte de conflitos ou de exploração mercadológica.


2. Alteridade e as transformações no mundo do trabalho

    Tendo como foco analisar a questão da Alteridade na Educação pelo prisma da área de Trabalho e Educação, devemos assumir que tal prisma não é muito recorrente. Isso se deve ao fato de a questão da Alteridade, vista como a consideração do outro, da relevância da diferença para a construção das diferentes identidades sociais e subjetivas, ter sido trazida para a pauta acadêmica no esteio da critica ao racionalismo.

    Além disso, há a consideração, largamente difundida, de que o trabalho está em vias de desaparecimento. "Fim dos empregos", "Adeus ao trabalho", "Sociedade do conhecimento", são expressões correntes não só nos meios de comunicação, mas em boa parte da academia, sempre utilizadas para depreciar a utilização do trabalho como temática em si, e também como temática incapaz suscitar discussões em outras áreas do conhecimento, tal como a educação e suas relações com os debates sobre a alteridade.


2.1. O trabalho como uniformização e sofrimento

    A visão negativa que o trabalho possui frente aos estudiosos que se ocupam da questão da alteridade efetivamente origina-se do processo contraditório de construção histórica da forma trabalho que começou a acontecer com o surgimento da sociedade capitalista. Apesar de ela remontar à desconsideração grega do trabalho e à visão cristã de trabalho como expiação dos pecados, é no início da modernidade que trabalho e realização pessoal começam por dissociar-se devido aos fatos que tiveram lugar no processo de formação da classe operária, apesar de haver, ao mesmo tempo, a formação da visão liberal de sociedade a expressar claramente que pelo trabalho, as forças e riquezas individuais poderiam ser conquistas e somente por ele legitimadas.

    Até então, o trabalho era visto como controlado por quem trabalha, responsável também pela totalidade das atividades necessárias e dos produtos a serem produzidos para a própria subsistência. O trabalho era um assunto da esfera privada, o que deixou de acontecer com as transformações que ocorreram na nascente sociedade capitalista: o trabalho torna-se questão a ser debatida e elogiada publicamente (Como fazer as pessoas trabalharem mais e melhor?). Como mostra Arendt (2005), no inicio da modernidade esse fato possibilitou a aplicação e o próprio desenvolvimento científico e tecnológico que culminaram na revolução industrial.

    Com o desenvolvimento do capitalismo vemos o controle do processo de trabalho ser, pela força, transmitido ao proprietário dos meios de produção. Marx (1994), na Assim Chamada Acumulação Primitiva, narra a maneira como a violência acabou por obrigar os antigos camponeses a se submeterem às rotinas das nascentes manufaturas, chegando à "subsunção real" no capitalismo industrial. Além da "legislação sanguinária" a que Marx faz menção, há que se notar as numerosas resistências por parte dos trabalhadores para se submeterem a este processo.

    Por sua vez, a implementação do capitalismo industrial do século XIX não fora o resultado final no processo de simplificação e desqualificação do trabalho. No século XX, as práticas e as teorias tayloristas, e as implementações fordistas, aprofundaram ainda mais a exploração do trabalho, ligando-o fortemente à idéia de sofrimento e de penúria.

    Aqui, mais uma vez, nada ocorrera de forma de tranqüila. Paralelo ao desenvolvimento das práticas Tayloristas, houve o desenvolvimento das Ciências do Trabalho, na Europa, que com análises na física e na fisiologia, tentavam encontrar a quantidade de trabalho a ser requisitada que, ao mesmo tempo, proporcionasse maior produtividade sem prejudicar o trabalhador. A idéia desses pesquisadores era a de que o trabalho fazia parte da natureza de forma geral e, bem conduzido, deixaria de ser visto e sentido como sofrimento, redundando isso em maior riqueza produzida e menor quantidade de revoltas, sabotagens e reivindicações por maiores salários.

    Desse debate, o prevalecimento das práticas tayloristas foi claro. Considere-se, ainda, o fato de que na primeira grande guerra a exploração do corpo humano ter sido levado a limites jamais imaginados, colocando a parcialização das tarefas, bem como a sua cronometragem e aceleração dos movimentos como verdadeiros paradigmas do trabalho industrial, apesar das advertências "acadêmicas" de Lahy e Marey.

    O domínio de Taylor, pode ser visto como uma continuidade com a herança filosófica da modernidade que possibilitou com que o trabalho fosse esvaziado de qualquer particularidade subjetiva do trabalhador, tal como existia no trabalho pré-capitalista. Daí então, a voz quase uníssona dos analistas que quando querem contemplar a questão da alteridade, dificilmente o fazem pelo estudo do trabalho.


2.2. As visões de trabalho a partir da década de 70

    A partir da década de 70, com o acirramento das crises do capitalismo, houve todo um conjunto de reformulações produtivas, em que flexibilização tornou-se o conceito chave e a tecnologia micro-eletrônica o meio técnico possibilitador.

    No que diz respeito ao trabalhador, surge todo um discurso que defende as diferenças qualitativas entre as "novas formas de trabalho" e as formas de trabalho do capitalismo industrial.

    Um primeiro resultado observável é a associação do "novo trabalho" com a inteligência. A denominação "sociedade do conhecimento" vem como possibilidade de apreender as novas necessidades impostas ao trabalhador para que ele seja "competitivo" "empregável" exigindo que o processo formativo estenda-se por toda sua vida e, além disso, não seja reduzido ao tempo de trabalho, abarcando a vida doméstica e o tempo de lazer.

    Conjuntamente a este tipo de análise, surge também a idéia de que a penúria do trabalho, típica do trabalho industrial, teria sido ultrapassada, e a realização pessoal, a possibilidade de exercer o controle do processo do trabalho, tudo somado com a maior disponibilidade de tempo para as atividades a serem exercidas no tempo livre, estariam ao alcance. Dados estatísticos sobre essa mudança no trabalho e a diminuição do tempo despendido com ele tornaram-se vistos como sinalizadores que o relacionamento com trabalho passaria por uma mudança, querendo isso dizer que ele havia deixado de ser a principal atividade na história pessoal dos indivíduos (Rifkin 1995), como o era na época em que as jornadas eram imensas e o sofrimento era brutal. Para tornar esse tipo de leitura ainda mais penetrante no entendimento que se tem sobre a sociedade contemporânea, ela vem freqüentemente associada com a idéia de que o capitalismo estaria deixando de existir e que uma sociedade mais fraterna, um "comunismo espontâneo" (Negri e Hardt 2000), estaria lentamente tomando lugar, impulsionado pelas transformações tecnológicas que acontecem. Tudo passaria a ser uma questão de tempo e de tecnologias acumuladas.

    Se de um lado, o trabalho passa ser cada vez mais secundarizado pela importância social que passaria a ter, de outro ela começa a ser visto como passível de reconhecer as diferenças pessoais e de grupos que um dia "foram" totalmente desconsideradas pelo trabalho industrial. Ou seja, estudos sobre o trabalho começaram a focalizar outras dimensões que não as características passíveis de serem encontras no trabalho masculino, racional e euro-americano.

    Um dos pontos mais freqüentes nessas análises é o elogio e a demanda de "qualidades femininas" (assim adjetivadas por se colocarem em contraposição ao "excesso de razão", à resistência e a força física) (De Masi 2000). Em tempos de produção flexível, a sensibilidade, a intuição e a capacidade para o diálogo tornaram-se altamente valorizadas. Como conseqüência, um dos motes mais freqüentes nos analistas que defendem essas idéias é a critica a Descartes e ao dualismo corpo-mente, vista como limitada para entender as novas competências para o trabalho, agora exigidas e que, devido às exigências produtivas, estariam franqueando uma maior acesso das mulheres ao mercado de trabalho qualificado.

    Como resultado, a forma de se encarar o corpo no trabalho também mudou. Rabinbach (1992) mostra que o corpo, visto como motor humano, sempre esteve em lugar central nas considerações do trabalho. A diferença entre essa análise e as que advogam o surgimento de um "novo tipo" de trabalho é a defesa da corporeidade, concebida como a característica inabsorvível da existência cotidiana de cada pessoa e que, para ser "utilizada" nas novas organizações, deve ser, primeiramente, considerada como tal.

    No interior desse processo, a própria alcunha "Sociedade do conhecimento", passa por reformulações conseqüentes dessa consideração da corporeidade no interior dos processos de trabalho. O conhecimento que agora é alvo de consideração é uma "cognição encarnada", na expressão de Varela et alli (2004). Trata-se um saber contextualizado e prático que passaria a ser, cada vez mais, requisitado justamente nas montagens tecnológicas mais eliminadoras do "fator humano" (Dejours 1997). A criação, a mobilização e, sobretudo, a transmissão desse conhecimento, tornam-se uma questão a ser debatida tanto nos ambientes de trabalho quanto nas instâncias educativas e formativas para o trabalho.

    Paralelamente, surge também todo um conjunto de análises, baseadas em Foucault, que mostram a necessidade de estruturas organizacionais reverem o exercício e as características de "controle", no sentido de viabilizar que esses conhecimentos, pautados que são na sensibilidade individual que tocam a saúde, a aparência física e as relações interpessoais, passem a serem viabilizados e circulem com o menor número possível de restrições. Alguns teóricos do trabalho colocam a corporeidade (Dejours 1993, Böhle e Milkau 1998) como o centro dos processos de reformulação dos processos produtivos para o trabalho em estruturas produtivas baseadas na micro-eletrônica, em um nível comparável aos conhecimentos teóricos exigidos para a formação da mão-de-obra qualificada.

    De uma forma geral, essa análise evidencia que consoante às transformações metodológicas com que a atualidade é analisada, as questões concernentes à alteridade passam a integrar o conjunto de preocupações dos analistas do trabalho por terem eles verificado que as novas exigências sugerem que os esquemas anteriores de reflexão sobre o emprego e a formação de mão-de-obra passam por reformulações. A consideração da sensibilidade, da corporeidade, de valores comportamentais vistos como "femininos", e as justificativas para o fechamento de fábricas situadas em países do capitalismo central para os de países "emergentes" (Brasil, por exemplo), passam evidenciar que as questões da alteridade impactam e são impactadas pelas questões do trabalho. Há também a análise De Masi (2000), que chega a afirmar que lugares em que a "moral protestante do trabalho" não se desenvolveu (o autor cita, entre outros lugares, a Bahia(sic!)) possuem maiores chances de se destacarem mundialmente, por não terem tido as capacidades criativas e intelectuais de seus habitantes instrumentalizadas e desvalorizadas pelo trabalho industrial! Trata-se aqui de um caso extremo de absorção de um discurso que enxerga um processo de humanização do trabalho, por defender a menor importância que trabalho possui para a configuração das histórias pessoais.

    O que queremos mostrar é que uma consideração mais detida da categoria trabalho, além de problematizar a idéia de que o trabalho perde importância tanto na vida pessoal dos trabalhadores quando na esfera de análise sociológica e histórica das transformações das sociedades, evidencia que contrariamente ao que normalmente se assume, o trabalho não é meramente o destruidor das diferenças, da alteridade, mas historicamente, ele é o possibilitador, o criador dessas diferenças. Essa observação, porém, não endossa as análises do trabalho feitas por Rifkin (1995), De Masi (2000) e Negri e Hardt (2000), que verificam um processo de humanização ou o surgimento de uma nova sociedade baseada na criatividade, sensibilidade, na consideração da alteridade e no lazer, sem a contestação das relações sociais de produção capitalista. A relação entre essas diferentes visões, seus limites e possibilidades pode ser considerada de maneira a buscar concatenações, se assumirmos as concepções e a importância que o trabalho possui para a sociedade, tal qual criadas por Marx (1994) e desenvolvidas por Kosik (1970) e Lukács (1979, 2004).


2.3. A relevância da categoria trabalho para a atualidade

    Acreditamos que o conjunto de considerações acima apresenta um duplo problema: de um lado, há uma consideração das transformações do trabalho que superestima as positividades dos fatos que assistimos a partir da década de 70. De outro, há uma subestimação do papel do trabalho para a reflexão das questões concernentes à educação e à alteridade.

    Para problematizar essa dupla dificuldade, devemos ter claro qual o papel que a categoria trabalho desempenha na sociedade e qual sua relevância para a reflexão histórica sobre os dilemas que a sociedade capitalista enfrenta. Para tanto, baseamo-nos nas análises feitas por Marx (1994) Engels (1991) e desenvolvidas por Kosik (1970) e Lukács (1979, 2004), que colocam o trabalho, de forma crítica, em posição central para entender a construção das diferentes sociedades.

    Marx define a categoria trabalho em um duplo aspecto: quando ele fala em trabalho, ele se refere ao trabalho concreto ou ao trabalho abstrato. Por trabalho concreto, Marx entende que se trata do relacionamento entre homem e natureza que acontece em todas as sociedades e pelo qual os homens, socialmente, constroem-se individualmente e coletivamente. Por trabalho abstrato, entendemos o trabalho subsumido, no caso do capitalismo, à produção de mais-valia.

    Essa diferenciação é importante, pois possibilita escaparmos das análises contraditórias e limitadas que se faz sobre o trabalho, ora enxergando-o como fonte de todas as mazelas que assola o indivíduo em suas particularidades, uniformizando ou destruindo diferenças culturais; ora, vendo-o, pelo viés de um determinado liberalismo ingênuo e/ou alguns teóricos da "sociedade do conhecimento", como uma atividade que hoje estaria totalmente isenta da quase escravidão com o quê, até então, a sociedade trabalhou. O que há de problemática nesta visão, é não consideração da relação dialética entre as duas visões, o que acarreta ou uma desconsideração do trabalho, ou uma apologia do trabalho.

    O trabalho, ao mesmo tempo em que é fonte de toda riqueza, e de todas capacidades humanas, as instrumentaliza e, ao invés de ampliar esse processo de criação socialmente, proporciona embrutecimento e exploração, justamente por estar o trabalho atrelado a relações sociais de produção pautadas na sua exploração pelo capital. O problema não está nas "atividades de trabalho", ou no fato delas solicitarem quantidades maiores ou menores de força ou de inteligência, mas sim na condição dessas forças e dessas inteligências só poderem ser postas em movimento quando os produtos sociais dessas forças são apropriados privadamente sob a forma de mais-valor.

    Por essa diferenciação é que Marx (1994) e o marxismo que encontramos em Kosik (1970) e em Lukács (1979, 2004) colocam a possibilidade de utilizarmos o trabalho como fato central para reflexão sobre a contemporaneidade. Isso, porém, não quer dizer que o trabalho possa ser usado de forma unilateral, simplificada e mecânica para reflexão das dimensões artísticas, culturais, étnicas e sociais. O caráter basilar do trabalho para o histórico salto da natureza para a sociedade faz com que em diferentes sociedades, o trabalho ofereça condições de visibilidade ora mais amplas ora reduzidas sobre as variadas questões sociais, mesmo as mais "afastadas", pelas numerosas mediações que possuem.

    Com essa clareza à frente, a tão propalada extinção da sociedade do trabalho é uma observação limitada das crises que acontecem com o trabalho abstrato e que, mesmo com a presença cada vez mais intensa dos artefatos tecnológicos, não é eliminada a necessidade da relação entre homem e natureza pelo trabalho, mesmo que esse processo aconteça socialmente, sendo impossível sua captação empírica em nível individual. Ou seja, a unidade entre cabeça e mãos, a presença do integral homem no trabalho de que fala Marx no capital ao referir-se ao trabalho concreto, independente da quantidade e da qualidade de tecnologia; essa presença da omnilateridade humana acontece social e coletivamente, fazendo com que a integralidade humana seja construída e posta em prática de forma ampla, mas que por estar subsumida aos desígnios do capital, é alienada de cada trabalhador, que ao produzir a riqueza social, tem a degradação moral, a física e a intelectual como resultados. O mesmo acontece com os trabalhadores que devido à mediação da micro-eletrônica, possuem uma relativa autonomia no processo de planejamento e na execução de seu trabalho. O elogio ao trabalho qualificado, criativo, autônomo, não vê que esse trabalho, ao ser instrumentalizado pelas relações sociais capitalistas, longe de ser fonte de enriquecimento pessoal e material, longe de ser a alternância construtiva e livre entre esforço e descanso (Arendt 2005), é sim fonte de alienação, exploração e instrumentalização ainda mais atrozes que as do trabalho industrial. Nesse momento, a subjetividade, a corporeidade, a preocupação com aparência e saúde e o tempo de não trabalho começam a serem também utilizados e não pagos pelo capital.

    Devido à explicitação das contradições do trabalho e também ao fato das forças produtivas estarem limitadas às relações sociais produtivas que primam pelo lucro, o capitalismo combina diferentes formas de trabalho, desde as mais modernas, como os processos produtivos guiados pela micro-eletrônica e pela necessidade de flexibilidade, passando pelo trabalho industrial guiado pelo relógio, pela repetição de movimentos, chegando até formas de trabalho escravo e infantil. Todas essas formas de trabalho combinadas representam a totalidade do modo capitalista de produção, o quê por si só inviabiliza a crença de que o trabalho fora ultrapassado ou que o capitalismo fora revolucionado sem a necessidade da mobilização da classe trabalhadora.


Conclusões

    Não pretendemos negar que as discussões sobre a alteridade, não só na educação, mas nas mais variadas áreas do conhecimento, aparecem como questões acadêmicas recorrentes somente nas últimas décadas. Há que se registrar que a questão da alteridade é uma das positividades dos processos de crítica aos referenciais da modernidade, o que para a história e para a história da educação, entre outras coisas, proporcionou um rico debate sobre métodos e conteúdos das suas abordagens.

    Essa relevância, todavia, não invalida o fato de que esses estudos ao enxergarem-se como livres de qualquer relação com as transformações sociais, políticas e econômicas mais amplas, em favor das diferentes subjetividades e identidades culturais, perdem de vista um caminho que poderia enriquecer ainda mais as relevantes conclusões dos cultural studies. Foi isso que objetivamos colocar em relevo, ao optarmos por verificar como o cerne da questão da alteridade se apresenta como relevante em outros momentos históricos das práticas educativas, evidenciando que é justamente as mútuas relações entre as práticas e discursos educativos sobre o corpo e as transformações mais amplas da sociedade, o quê possibilita um entendimento com mais nuances sobre as possibilidades e limites para a construção de uma sociedade em que as diferenças de gênero, étnicas e culturais, sejam vistas de outra forma.

    Para a sociedade capitalista, tanto na modernidade quanto no primeiro momento de crise no século XIX, pudemos ver que quando a educação e a educação física eram pensadas, sempre houve uma preocupação de integrar, de incorporar, de libertar e de harmonizar. Se os estudos na história e na história da educação, já mostraram que as práticas educativas concretas, do dia-a-dia, não são feitas por grandes homens (e para história da educação, Rabelais, Montaigne, Locke, Comênio e Rousseau possuem um lugar inegável), não há como negar que o estudo desses autores, tendo como anteparo o desenvolvimento histórico da sociedade capitalista, possibilita visualizar as numerosas contradições entre o pensar e o fazer, além de esclarecer que as características que alguns discursos pedagógicos possuem quando falam sobre o respeito às individualidades ou sobre a consideração das diferenças.

    Excetuado Comênio (que sinalizou, marcado pelas questões religiosas, a necessidade de todos passarem pelas práticas educativas formais) e, na economia, as advertências de Adam Smith (1984) sob a necessidade de se educar a classe trabalhadora, a grande maioria do pensamento educacional moderno nem sequer concebia a idéia de oferecer oportunidades educativas à classe trabalhadora: Montaigne oferece seu modelo educativo à nobreza, Locke se preocupa com a educação do homem de negócios e Rousseau, ao considerar que a pobreza era mais próxima da natureza (o frio e a fome são mais "educativos" que o excesso de proteção e a gula), acreditava que seu modelo educativo era necessário somente para os ricos.

    Vemos que no relacionamento entre possibilidades e limites encetados no capitalismo para uma consideração efetiva da alteridade, com maior ou menor relação com os processos educativos formais, houve avanços e retrocessos (Enguita 1996): a) a primeira legislação contra o trabalho infantil, só surge no século XIX devido a uma disputa entre industriais e agricultores em torno da "lei dos cereais" (Hubberman, 1996), possibilitando que as nascentes escolas públicas pudessem ser freqüentadas; no que tange à igualdade de gênero, a criação da escola pública no século XIX, por questões de infra-estrutura (número de professores e escolas e a possibilidade de uma remuneração menor) e por fatores concernentes ao pensamento pedagógico (a crença de que a mulher seria mais capaz de efetivar o novo papel da escola, devido às suas "características naturais") deu base para o processo de "Feminização corpo docente" (Sforni 1996), colocando a mulher efetivamente em um espaço que não o doméstico, iniciando um "processo educativo" que assistimos aos resultados mais claramente nas últimas décadas (Enguita 1996). No que diz respeito às desigualdades entre diferentes etnias e culturas, desde Montaigne, que redigiu um ensaio enaltecedor d' Os canibais, passando pelo elogio do bom-selvagem de Rousseau, chegando ao imperialismo e ao nazi-facismo do século XX, notamos claramente a forma como as démarches do capitalismo possibilitam e limitam essas questões.

    Vale verificar assim, o caráter basilar dessas questões que tocam a alteridade e como elas estão relacionadas com as transformações históricas que ocorrem na dialética entre manutenção e transformação social. Se a análise da história da educação e da educação do corpo que fizemos, vai ao encontro das correntes análises sobre a alteridade na educação ao endossar o valor dessas análises, ela as problematiza por defender seu caráter relacionado com as possibilidades e limites de uma sociedade baseada na exploração do trabalhado.

    Se historicamente, a análise da questão educacional deve estar atrelada aos desafios e problemas históricos do capitalismo, temos como resultado a afirmação de o estudo do mundo do trabalho se configura em mais uma das instâncias analíticas a serem assumidas. Para tentar reverter tanto a desconsideração, quando a consideração apologética das transformações hodiernas do capital, é necessário tomar a categoria trabalho na sua dupla acepção, de trabalho concreto e de trabalho abstrato, colocando o trabalho como um ponto de apoio crítico para evidenciar o limite de algumas análises sobre a alteridade, que não vêem nele uma ocasião de aprofundar suas análises. Ao mesmo tempo, a consideração crítica da categoria trabalho evidencia as formas limitadas com o que o trabalho é recusado como lugar de análise, por ser encarado como a fonte de extermínio de toda e qualquer alteridade.

    As transformações que ocorrem no capitalismo a partir da década de 70, longe de terem iniciado uma era em que o sofrimento no trabalho e o próprio trabalho estejam desaparecendo, acarretou um processo exploratório ainda mais acirrado da classe trabalhadora. Hirata (1993) demonstra que as desigualdades entre trabalho masculino e feminino ainda grassam as empresas, em termos salariais e de relações de subordinação abusivas. No que diz respeito as diferentes potencialidades étnicas e culturais para o trabalho, apesar do otimismo preconceituoso de De Masi (2000), o que assistimos é a destruição de diferentes modalidades culturais oriundas da penetração do capital em lugares antes marginais ao processo de valorização capitalista, o que redunda não na "aldeia global", mas no acirramento entre conflitos étnicos em várias partes do mundo. Os discursos apologéticos sobre as "novas tecnologias", a "sociedade do conhecimento", "ócio criativo" etc, devem passar um crivo analítico rigoroso que problematize essas assunções.

    Não queremos negar, por sua vez, que com a incorporação das tecnologias micro-eletrônicas e com os desdobramentos culturais e sociais das crises do capitalismo, parte do trabalho utilizado na produção da mais-valia demande um comprometimento operário mais intenso, mobilizando recursos pessoais e intelectuais que dão a uma reduzida parcela do trabalho novas características. Entretanto, a vulgarização de discursos sobre a necessidade de um trabalho sentimentalmente mais autêntico, que valorize as dimensões estéticas e o bem-estar do trabalhador, deve ser detidamente analisada. A mera crítica aos paradigmas da modernidade, sobretudo ao racionalismo que tocou as estruturas trabalhistas industriais, longe de possibilitar condições de trabalho que respeite as especificidades culturais, de gênero e pessoais do trabalhador e da trabalhadora, sinalizam para o fato de a subsunção real do trabalho ao capital ter tocado e mercantilizado as diferenças culturais, bem como os processo de formação de identidades e subjetividades.

    Dessa crítica não deve resultar que o trabalho só ofereça negatividades. Marx evidencia que é no trabalho e pelo trabalho que a humanidade se constrói coletivamente e individualmente. É o encontro de múltiplos fatores sociais, climáticos, pessoais e históricos pelo trabalho, que possibilita a existência de variadas culturas e valores. Todas elas giram, algumas mais proximamente do que as outras, em torno do inescapável fato de termos de produzir a nossa existência e dar a ela um significado que não seja só o natural e/ou o biológico. É dessa construção laboral que surgem as variadas capacidades humanas e as variadas manifestações culturais.

    Esse entendimento do trabalho em nenhum momento deve ser tomado como uma relação entre infra e supra-estrutura de caráter mecânico e determinista. As críticas ao trabalho como ponto deflagrador de análises, nesse sentido, possuem o mérito de ter chamado a atenção para que um desenvolvimento de uma "filosofia da práxis" se desse, acarretando, em outras, as elaborações que Kosik e Lukács efetuaram para fazer frente às simplificações economicistas. Quando o trabalho é tido insuficiente pela importância que possui na atualidade para explicar essa mesma realidade, são as abordagens mecanicistas e economicistas que se mira. Fazemos o mesmo, mas evidenciando que criticar algumas abordagens do trabalho não significa abandonar o trabalho das análises. Woolfson (1982) elenca uma quantidade considerável de pesquisas nas mais diversas áreas do conhecimento que endossam a tese de Engels (1991) de ser o trabalho fundamental para a "hominização do homem". Gould (1982) acompanha essa consideração ao desenvolver seus estudos em história natural.

    Foi essa relevância do trabalho que propusemos nesse estudo sobre a alteridade. Pela categoria trabalho, entendida tanto como construtora da multiplicidade cultural e de sua consideração na elaboração das diferentes identidades humanas, assim como trabalho que destrói ou explora essa multiplicidade e inviabiliza essa consideração, acreditamos que é possível encontrarmos meios para efetivar uma compreensão mais crítica da educação no processo. O ponto central é a análise sobre as possibilidades da formação de um trabalhador que traga em si a consideração do outro e a sua riqueza pessoal em termos de habilidades e conhecimentos e que, além disso, utilize essas características em um processo de trabalho em que o produto dessa bagagem cultural é alienado e explorado privadamente, apesar do caráter altamente social do processo. Ou seja, como educar para a alteridade, quando ela não pode ser vivida cotidianamente, mas é explorada e, conseqüentemente, destruída também nas rotinas de trabalho "inteligentes"? Além disso, como educar para a alteridade de forma efetivamente autônoma e atinada com a construção de uma "outra" sociedade, verificando que historicamente, uma determinada "educação para a alteridade" é uma das constituintes orgânicas do pensamento educacional liberal?


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