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Trabalho, corpo e educação em John Locke

   
UNICENTRO - Guarapuava, PR.
(Brasil)
 
 
Carlos Herold Junior
carlosherold@hotmail.com
 

 

 

 

 
Resumo
     O objetivo deste trabalho é analisar a relação entre corpo, trabalho e educação em John Locke. Para isso, dividimos o texto em dois momentos: no primeiro, relacionamos o pensamento político e filosófico do autor com as transformações da sociedade no século XVII. No segundo, analisamos a importância da educação física no seu pensamento educacional. Como resultado, pudemos verificar a forma como Locke, ao pensar sobre a educação do corpo, relaciona-a de forma próxima com os debates sociais e políticos que aconteciam na Inglaterra.
    Unitermos: Corpo. Trabalho. Educação. Educação Física. História da Educação.
 
Abstract
     The aim of this study is to analyze the relationship among body, labor and education in John Locke's thought. For that we divided the text in two parts: firstly, we put in relation his philosophical and political thought with social transformations which took place in XVII century. After that, we studied the role played by physical education in Locke's educational thought. As results, we could verify that when Locke focused on body education, he put it closely related with social and political debates carried out in England.
    Keywords: Body. Labor. Education. Physical Education. History of education.
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 12 - N° 108 - Mayo de 2007

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Introdução

    Com o desenvolvimento da sociedade capitalista a partir do século XV, assistimos a um processo de transformações social que coloca o trabalho, o corpo e a educação em um relacionamento cheio de peculiaridades.

    Como mostra Arendt (2005) ao analisar o que ela chama de "condição humana", o trabalho assumiu na modernidade um estatuto público e uma relevância que para a autora, foi a base para que as revoluções que aconteciam na filosofia e na ciência maximizassem as características da nova sociedade no que diz respeito ao desenvolvimento das forças produtivas.

    Um outro fato importante em um contexto em que a luta pela transformação ou manutenção das relações sociais é explícito, foi a intensidade com que as questões educativas foram abordadas. Tanto por aqueles que viam nas transformações sinais de degradação e de um individualismo exacerbado, quanto para aqueles que viam que as instituições deveriam se adequar aos "novos tempos" e ao "novo mundo", a educação assumiu um lugar de destaque. Filósofos, políticos e a sociedade de uma maneira geral associaram de forma intensa a realização pessoal com as práticas educativas.

    Além disso, uma outra manifestação desse processo acontece: é a retomada das discussões em torno do corpo humano que atinge as ciências, a filosofia e a política. Se os desenvolvimentos historiográficos em torno da idade média já não permitem mais afirmar de forma cabal que o corpo fora "esquecido" ou posto de lado no medievo, observamos que é na modernidade que a corporeidade humana e a possibilidade de pensá-la cientificamente é colocada de forma a justificar uma vida com mais sentido, uma ciência que se ocupasse de conhecer o homem em suas particularidades anatômicas e uma sociedade em que valorizasse e respeitasse o fato de cada indivíduo construir sua vida pelo trabalho.

    Por conta dessas constatações, as relações entre corpo, trabalho e educação podem se configurar em um ponto de reflexão extremamente privilegiado sobre a condição moderna. Com a ambição de colocar algumas questões sobre esse relacionamento este estudo tem por objetivo fazer a análise de um pensador em que essas três questões, e as mútuas implicações entre elas, aparecem de forma privilegiada: John Locke.

    O que queremos é apresentar no pensamento de Locke o valor que as questões concernentes ao corpo e a sua educação possuíam, buscando ver essa importância na forma como o autor pensava sua sociedade relacionando-a com as transformações políticas, econômicas e ideológicas que colocavam o trabalho como um dos pontos de maior destaque no processo de gestação do capitalismo.

    Para atingir esse objetivo, dividiremos o texto em dois momentos: no primeiro procuraremos por em evidência a relação do pensamento lockiano com seu contexto particular e, ao mesmo tempo, com as transformações sociais mais amplas que afetavam a Europa no século XVII, estudando como as questões políticas analisadas pelo filósofo inglês passavam pela consideração do trabalho como lócus de reflexão. No segundo, verificaremos como Locke elaborou seu pensamento educacional como conseqüência de suas posições sobre o trabalho e, além disso, como no interior desse pensamento educacional o corpo e sua educação apresentaram-se de forma destacada.

    Acreditamos que o objeto proposto apresenta um valor a ser considerado, sobretudo se mantermos a vista que, na atualidade, as questões concernentes à educação do corpo e as transformações do trabalho são ou desvalorizadas ou analisadas de forma apressada e limitada.(HEROLD JR 2006)


1. As lutas históricas de Locke e o trabalho como criador e legitimador das diferenças

    Marx (1994), ao analisar o processo de surgimento da sociedade capitalista, na Assim chamada acumulação primitiva, observou a particularidade histórica da Inglaterra que, diferentemente de outros países, imprimiu velocidade e contundência nas transformações econômicas. Isso teve como conseqüência o fato desse país ter servido ao filósofo alemão como exemplo clássico de surgimento da sociedade capitalista.

    No texto em questão, vemos como as transformações da sociedade inglesa criaram as condições básicas para que o ponto de apoio da sociedade capitalista existisse: a separação entre o trabalhador e seus meios de produção. Marx adverte também sobre a forma como liberdade e trabalho passaram a ser práticas e valores da nova sociedade, mesmo que para ele isso já explicitava as contradições de um modo de produção em que a liberdade de "trabalho" significou a usurpação dos meios e dos instrumentos de trabalho, sendo possível, assim, a base jurídica de compra e venda do trabalho que escondia o processo de produção de mais-valia.

    Tendo por base essa conjuntura em que os fundamentos da sociedade capitalista se construíam, Locke expressa e estimula claramente em seu pensamento a luta que a nascente burguesia inglesa entabulava para fazer acontecer as transformações, não deixando de justificá-las e entendê-las de forma a endossar seus interesses.

    Locke participou desse grande esforço coletivo refletindo de forma densa e envolvida nas lutas práticas e cotidianas, para a contestação de uma estrutura política baseada em privilégios e desigualdades. Enguita (1986) nos adverte sobre o fato de o pensador inglês não estar preocupado com a criação de uma sociedade igualitária. O que Locke queria, partindo da constatação do nascimento de uma sociedade em que o trabalho deveria ser comprado e utilizado de forma "livre", fundar um estado em que as diferenças fossem legitimamente justificadas. Além disso, o que o pensador propunha era a criação de um Estado em que a propriedade conquistada de forma "justa" e "responsável" fosse protegida.

    Por conta disso é que o filósofo começa seu Segundo tratado sobre o governo (LOCKE 1983), afirmando que, depois de ter procurado na Bíblia a justificativa para a permanência de um soberano no poder, não encontrara nada que explicasse o fato de alguém ser "naturalmente" superior ao outro. Locke lança a base para as idéias de democracia liberal, ao endossar que o poder político deveria ser delegado a alguém pela capacidade que essa pessoa ou um governo possuíssem para cuidar dos conflitos entre os diferentes indivíduos. Se no estado de natureza os problemas eram resolvidos pelo envolvidos e em igual medida ao dano proporcionado, a vida sociedade pedia que esse "direito" fosse transmitido ao governo para que a associação não se desfizesse. Observamos que Locke elabora um raciocínio para dar ao governo a base sobre a qual ditar os procedimentos e os valores que guiariam as ações do poder político.

    Locke afirmou que na natureza, tudo seria de todos. O que faria algo ser possuído individualmente é o trabalho. É pelo trabalho que se possui algo e somente assim é que a propriedade privada seria justificada. Entretanto, no estado de natureza o limite das posses é estabelecido pela capacidade e pela utilidade em consumi-las. Para ultrapassar esse limite é que a moeda teria sido criada, diz Locke, possibilitando que o acúmulo de riquezas deixasse de ser algo injusto, passando a ser a expressão de uma grande capacidade de trabalho que, no final das contas, beneficiaria não só o indivíduo possuidor, mas toda sociedade.

    Locke afirma que é "pela obra das mãos e pelo trabalho do corpo" que conseguimos construir nossa posição na sociedade. Para justificar as riquezas e fraquezas individuais, bem como a diferença que entre as pessoas na sociedade, o filósofo inglês viu na capacidade de trabalho o ponto sobre o qual a sociedade se constrói.


2. A educação no pensamento de Locke e o valor da educação física

2.1. A presença de Locke nos manuais de história da educação

    O pensamento educacional de Locke é analisado de forma ampla nos manuais de história de educação e em estudiosos da educação na sociedade capitalista. Vale observar que a admiração que pensamento educacional de Locke recebe está constantemente ligado com a importância que o filósofo inglês atribui ao corpo e à educação física. Enguita (1986), ao redigir uma apresentação e introdução da tradução espanhola dos Pensamentos sobre a educação, depois de ter listado algumas características da obra, afirma que Locke tinha uma "especial atenção prestada à educação física" (ENGUITA, 1986, p. 14).

    Cambi também segue o mesmo caminho, afirmando algumas características da educação física no filósofo inglês:

A educação do corpo (ou "vaso de argila", como se exprime Locke) deve ser marcada pela regra do "endurecimento", que exclui a excessiva "delicadeza" e os "demasiados cuidados", exige um modo de vestir, nem leve nem pesado, que permita a robustez, e uma vida "ao ar livre", válida tanto para os rapazes como para as moças. (CAMBI, 1999, p. 319).

    Manacorda (2006) explica que fortemente relacionado ao valor dado para a educação física, está o trabalho:

O jogo, a utilidade prática, a persuasão racional, os métodos não-constritivos e o autogoverno são os instrumentos desta pedagogia, que objetiva não a variedade dos conhecimentos, mas a liberdade do pensamento. A esses podem acrescentar-se a educação física e o trabalho, que, todavia, servem especialmente para o fortalecimento moral e como hobby, útil ao gentil-homem também para o controle da boa execução do trabalho dos dependentes (MANACORDA, 2006, p. 226).

    Já Aranha (2006) verifica em Locke a relevância que o exercício físico possuía para a formação das características intelectuais e morais:

Sua pedagogia realista recusa a retórica e os excessos da lógica, ressaltando o estudo da história, geografia, geometria e ciências naturais. Valoriza a educação física e, como médico e de saúde frágil, dá inúmeros conselhos para o fortalecimento do corpo, o aumento da resistência e do autodomínio. Para ele, o jogo constitui excelente auxiliar da educação, como exercício físico, desafio e possibilidade de superação dos próprios limites (ARANHA, 2006, p. 156).

    Paralelo a essa afirmação da relevância da educação física para a formação do gentleman está a constatação de que John Locke pensou e escreveu suas análises educacionais com os olhos voltados para as classes dirigentes que, na Inglaterra do século XVII, formavam-se pelos conflitos e mútuas influências entre a decadente nobreza feudal e nascente burguesia. Enguita, enfatizando as relações entre Locke e a burguesia, nesse sentido, afirma:

Poucos pensadores na história apresentam uma relação tão perfeitamente orgânica com as inquietudes de uma classe - a burguesia nascente, neste caso - com o fizera John Locke. Frente as cosmologias totalizantes próprias das sociedades integradas defende uma concepção perfeitamente parcelada, quase mercantil do conhecimento. Frente ao absolutismo monárquico, uma teoria contratualista da sociedade e do Estado (ENGUITA, 1986. p. 09).

    Enguita vai além em sua análise dos vínculos históricos de Locke e sublinha o fato de Locke estar buscando criar um pensamento educacional que ambicionava justificar e legitimar as diferenças sociais:

Se a educação é o que cria as diferenças, parece que daí deveria seguir-se a utilidade e a necessidade daquela para terminar com estas. Mas as desigualdades sociais não são nada que tire o sono ao protegido de Lord Shaftesbury. Locke está perfeitamente convencido que todo o mundo está bem onde está, de que não se trata de empregar a educação para com as diferenças, mas para adaptar-se a elas (ENGUITA, 1986, p.15).

    Cambi (1999) observa também os inegáveis vínculos entre John Locke e o capitalismo inglês reconhecendo o caráter classista da educação lockiana, afirmando paralelamente o valor da educação e da filosofia de Locke:

Que Locke afinal não tenha levado em nenhuma conta o problema da educação do povo, como já foi muitas vezes destacado, ou que o tenha resolvido de forma caritativa ou através de escolas de trabalho forçado para os rapazes pobres, isso não vem prejudicar o valor teórico de sua proposta pedagógica (CAMBI, 1999, p.321).

    Observamos dessa maneira, que a historiografia reconhece o valor das idéias de Locke em relação à educação física, bem como a necessidade de entender a educação do corpo como relacionada com o processo de transformação social que ocorria na Inglaterra de forma específica e em toda Europa de forma ampla.


2.2. A educação, corpo e trabalho nos "Pensamentos sobre a educação" (1693)

    Depois de ter afirmado que é o trabalho o que justifica a propriedade privada dos bens que estão na natureza e pertencem indiferenciadamente a todos, o filósofo inglês atribuiu grande importância ao desenvolvimento da capacidade de trabalho, entendida aqui, como a inteligência e a força necessárias ao gentleman e ao homem de negócios para fazer com que suas riquezas aumentem de forma legítima. Consoante com sua filosofia do conhecimento, elaborada no Ensaio acerca do entendimento (1973), vemos que Locke só atribui um caráter natural e divino à igualdade entre homens. A diferenças entre eles residiria no desenvolvimento dessa capacidade do trabalho que, necessariamente se daria pelas relações sociais que se estabelecem na sociedade. É aqui que ganha relevo a problemática educativa no interior da filosofia de Locke. A educação assume um lugar de destaque que é expresso por Locke da seguinte maneira:

A felicidade e a desgraça do homem são, em grande parte, sua própria obra. Aquele que não dirige seu espírito sabiamente, não tomará nunca o caminho certo, e aquele que cujo corpo seja doente e débil, nunca poderá avançar por ele. Reconheço que alguns homens têm uma constituição corporal e espiritual tão vigorosa e tão bem modelada pela natureza, que apenas necessitam de um auxílio dos demais.[...] Entretanto os exemplos deste gênero são bem escassos e penso que se pode afirmar de que todos os homens com os quais encontramos, nove partes de dez são que são, bons ou maus, úteis ou inúteis, pela educação que tenham recebido (LOCKE, 1986, p. 31).

    O vínculo de Locke com a nascente burguesa se expressa claramente nos seus conselhos. Quando se trata de mostrar essa importância que a educação possui, afirmando que "É um mau cálculo fazê-lo rico de dinheiro e pobre de espírito" (p.122), Locke adverte:

Economiza todo o que puderes em brinquedos, roupas e outros gastos inúteis, mas não economize em uma parte tão necessária como esta. É um mau cálculo fazê-lo rico de dinheiro e pobre de espírito. Com profundo assombro temos visto pais que esbanjam sua fortuna para dar a seus filhos belas roupas, [...] e que ao mesmo tempo debilitam seu espírito e não se preocupam de esconder a mais vergonhosa das nudezes, ou seja, sua ignorância e suas más inclinações (LOCKE, 1986, p.122).

    Essa advertência é necessária, pois Locke verificou a necessidade de se escolher um preceptor que estivesse à altura desenvolver seu plano educativo da maneira a mais completa. Por conta disso, os gastos com a educação deveriam ser fatores secundários, se comparados com as exigências a serem buscadas no preceptor:

O preceptor não dever sem somente um homem bem educado; é preciso que conheça o mundo, os costumes, os gostos, as loucuras, as mentiras, as faltas do século em que o destino tem lançado, sobretudo, o país que vive. É preciso que saiba fazer conhecer e descobrir todo isto a seus discípulos, à medida que este se capacita para compreendê-lo; que o ensine a conhecer os homens e seus caracteres; que descubra a careta que disfarçam com freqüência seus títulos e suas pretensões; que faça distinguir o que está oculto no fundo destas aparências (LOCKE, 1986, p. 127).

    Tão importante quanto à educação, está, como afirmam Aranha (2006), Manacorda (2006) e Cambi (1999), a educação do corpo. Locke começa sua obra citando as palavras de Juvenal, dizendo que ele quer formar um homem de espírito forte em um corpo também fortalecido. Além disso, depois das considerações introdutórias, ele inicia suas análises com uma seção chamada Sobre a saúde, justificando que um corpo saudável é necessário para quem quiser ter um importante "papel no mundo" (LOCKE, 2006, p.35).

    Ele fala sobre o cuidado na escolha das roupas, sobre a importância de acostumar a criança aos banhos frios e a suportarem também o calor, sobre a natação e sobre o contato com o ar livre. Interessante observar que, no que diz respeito à alimentação, o autor chega às minúcias, sugerindo alimentos, quantidades, validando ou refutando práticas aceitas em relação ao açúcar, condimentos, leite, falta de apetite, bebidas, frutas, sono e a importância do levantar-se cedo, sobre a moderação à mesa e a necessidade de horários determinados para as refeições.

    Locke não secundarizou os conteúdos intelectuais da educação, mas não os enxergava como fins últimos da prática educativa: "A leitura, a escrita, a instrução, tudo creio que seja necessário, mas não acredito que seja a parte principal da educação". Ele justifica dizendo que: "Imagino que me tomarias por um louco se não estimasse infinitamente mais a um homem virtuoso e prudente que a um escolar perfeito" (LOCKE, 1986, p.208). Ao iniciar suas reflexões sobre a questão do corpo, além do caráter pragmático que essa modalidade educativa tem, notamos no autor que ela exerceu um papel de sustentador lógico para explicitar suas considerações sobre as outras modalidades educativas. É o que vemos quando Locke observa:

Como a fortaleza do corpo consiste principalmente em ser capaz de resistir à fadiga, o mesmo ocorre com a do espírito. E o grande princípio ou fundamento de toda virtude se apóia nisso, em que o homem seja capaz de recusar-se a satisfação de seus próprios desejos, de contrariar suas próprias inclinações e seguir somente o que sua razão dita como o melhor, ainda que o apetite se incline em outro sentido (LOCKE, 1986, p. 67).

    A educação do corpo para Locke deve ser dar na construção do hábito. Assumindo que o excesso de zelo das mães amolecem o caráter e o corpo da criança assume que "É preciso que os meninos sejam endurecidos para todos os sofrimentos, sobretudo, para os do corpo. Não devem ser sensíveis senão para os que despertam em um coração bem nascido, a vergonha e um vivo sentimento de honra" (LOCKE, 1986, p.155). Por outro lado, os castigos, sobretudo os que envolvem sofrimento corporal são alvo de grande atenção e preocupação pela parte de Locke. A diferença entre educar pelo endurecimento e o castigo é claro, afinal, uma coisa seria utilizar a dor e o sofrimento para educar o corpo e o espírito, outra coisa seriam utilizá-las para punir as faltas cometidas pelo jovem cavalheiro. Locke, assim, recomenda, no que tange aos castigos, prudência:

Os golpes e os demais castigos servis e corporais não convém, pois, como meio de disciplina na educação de uma criança que queremos fazer um homem prudente, bom e ingênuo e, por conseguinte, raras vezes será aplicado e somente em grandes ocasiões, em casos extremos (LOCKE, 1986, p.79).

    Podemos ver nessa prudência, o relevo que ganha o corpo e a atuação educacional sobre ele. Nas considerações de Locke, a não observância entre a sábia medida entre a rigidez e liberalidade, entre carinho e violência, redundaria no fracasso da empresa educativa, que no caso da Inglaterra, inviabilizaria a justificativa e o acesso a mais riquezas, bem como impossibilitaria uma sociedade politicamente baseada na proteção das forças de trabalho naturalmente depositadas, mas socialmente desenvolvidas pela educação e educação física. Nesse ínterim, salta aos olhos a forma como Locke, ao defender e descrever as formas de se educar fisicamente está, no fim, endossando a necessidade da transformação social que, no século seguinte, proporcionaria o liberalismo e a revolução industrial.


Considerações finais

    Analisar o pensamento educacional de Locke do século XVII, além de levar em conta as advertências de Aranha (2006), Manacorda (2006), Cambi (1999) e Enguita (1986) sobre o fato de o filósofo considerar a educação física somente para o gentleman e/ou o homem de negócios, implica também o cuidado para se reconstruir o ambiente social, econômico e político que explica tal fenômeno. Essa advertência é importante para que se evite uma análise anacrônica que, no fim, impediria que o estudo histórico tivesse seu potencial explicativo viabilizado.

    O desenvolvimento da sociedade inglesa nos século XVII nos mostrou que, de uma determinada maneira, toda sociedade fora educada fisicamente. Entretanto a abrangência das práticas educativas modernas, que teve em Locke um de seus principais sistematizadores, bem como a diferença entre essas práticas e a educação da nascente classe trabalhadora é o que deve ser analisado e entendido.

    Em outro trabalho (HEROLD JR 2004) utilizamos a descrição que Marx fizera da Legislação Sangüinária, para explicar a dicotomia "combinada" entre o pensamento educacional moderno e a formação corporal da nascente classe trabalhadora na Inglaterra. Nessas leis eram punidos por vadiagem os camponeses expulsos de suas terras, ou por se "recusarem" a trabalhar nas nascentes manufaturas, ou pelo fato de essas nascentes manufaturas não se desenvolverem em número suficiente para absorver os camponeses que chegavam às cidades. As amputações, os castigos, a violência e a perseguição foram, nesse sentido, os grandes recursos pedagógicos utilizados pela nascente burguesia para dar início ao processo de exploração de trabalho e produção de mais-valia.

    Essa violência pode ser vista como a base sobre a qual as qualidades desenvolvidas pela educação de Locke no homem de negócios existissem e/ou pudessem ser exercidas. Podemos afirmar, assim, que a educação dos manuais e a "pedagogia da fábrica" (KUENZER 1986) são faces da mesma moeda: o desenvolvimento do capitalismo e da sociedade moderna.

    Tendo por base esse entendimento, notamos que Locke sustentou em seu pensamento educacional o que Adorno (1985) chamou de "amor e ódio ao corpo" nos albores da modernidade: ao mesmo tempo em que o corpo foi exaltado, cultivado e elogiado ele passa também a receber um tratamento que o mutila, instrumentaliza-o e o castiga de uma forma altamente "educativa". É esse relacionamento marcado por contradições e combinações que ata de forma firme as problemáticas que dizem respeito ao corpo, ao trabalho e à educação.

    É o que observamos em Locke. São as relações e mediações entre essas três considerações que, ao mesmo tempo, inaugura uma sociedade que se via como liberdade, como igualdade, como expressão da luta contra as opressões, mas que, paralelamente, condicionava o nascimento de um modo de produção em que a exploração do trabalho alheio se dá com a justificativa de ser ela uma relação "inescapável" e juridicamente legítima.

    Com isso, reiteramos a valia de se estudar o pensamento de Locke no que toca a educação física, por ser esse pensamento uma das representações mais claras da maneira como a modernidade ao discutir as atividades educacionais a serem aplicadas ao corpo, afirma também, a necessidade da transformação social que ocorria sustentada no surgimento de novas formas de trabalho.


Referências

  • ADORNO, T. & HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1985.

  • ARANHA, M. L. de A. História da educação e da pedagogia: geral e do Brasil. 3. ed. São Paulo: Moderna, 2006.

  • ARENDT, H. Condition de l'homme moderne. Paris : Pocket, 2005.

  • CAMBI, F. História da pedagogia. São Paulo: Editora da UNESP, 1999.

  • ENGUITA, M. F. Prólogo à edição espanhola de Pensamientos sobre la educación. Madrid: Ediciones Akal, 1986. p.09-23.

  • HEROLD JR, C. As relações entre corpo e trabalho: contribuição crítica à educação. 2006. 138p. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Paraná, Pós-graduação em Educação, Curitiba-PR.

  • HEROLD JR, C. Corpo, pensamento educacional e práxis: a "teoria" e a "prática da Educação Física nos albores da modernidade. Acta Scientiarum: human and social Sciences. v. 26, n. 2, 2004. p. 221-230.

  • KUENZER, Acácia Z. Pedagogia da fábrica: as relações de produção e a educação do trabalhador. São Paulo, Cortez : Autores Associados, 1986.

  • LOCKE, J. Pensamientos sobre la educación. Madrid: Ediciones Akal, 1986.

  • LOCKE, J. Segundo tratado sobre o governo. 3.ed. São Paulo: Ed. Abril, 1983.

  • LOCKE, J. Ensaios acerca do Entendimento Humano. São Paulo: Editora Abril, 1973. (Coleção Os Pensadores)

  • MANACORDA, M. A. História da educação: da antiguidade aos nossos dias. 12.ed. São Paulo: Editora Cortez, 2006.

  • MARX, K. O capital: crítica da economia política. 14.ed. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1994. v.1, livro 1.

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revista digital · Año 12 · N° 108 | Buenos Aires, Mayo 2007  
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