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Cidadania participativa: um referencial da
Educação Física para uma educação cidadã

   
Mestre em Educação nas Ciências, pela UNIJUÍ, RS, Doutor em
Teologia, Professor Adjunto da UNIOESTE, membro do GEPEFE e
do Grupo de Pesquisa Cultura, Fronteira e Desenvolvimento Regional.
 
 
Alvori Ahlert
alvoriahlert@hotmail.com
(Brasil)
 

 

 

 

 
Resumo
     O presente texto discute a cidadania participativa como exercício prático educativo e, conseqüentemente, como um lugar privilegiado na Educação Física Escolar. Uma cidadania plena somente torna-se realidade através de práticas participativas e politicamente engajadas. Neste contexto, a Educação Física Escolar constitui-se em contribuição referenciada a partir de seu fundamento no movimento humano. Assim, a Educação Física pode tornar-se uma disciplina capaz de impulsionar a interdisciplinaridade e desafiar para um movimento social de efetiva construção da cidadania participativa.
    Unitermos: Cidadania. Participação. Educação Física escolar.
 
Resumen
     El presente texto plantea la ciudadanía participativa como ejercicio práctico educativo y, consecuentemente, como un lugar privilegiado en la Educación Física Escolar. Una ciudadanía plena solamente se hace efectiva a través de prácticas participativas y políticamente articuladas. En este contexto, la Educación Física Escolar puede constituirse en un contribución referenciada a partir de su fundamento en el movimiento humano. Así, la Educación Física puede transformarse en una disciplina capaz de impulsar la interdisciplinaridad y a aportar a un movimiento social de efectiva construcción de la ciudadanía participativa.
    Palabras clave: Ciudadanía, participación, Educación Física escolar.
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 12 - N° 107 - Abril de 2007

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Introdução

    A promulgação da Nova Constituição da República Federativa do Brasil, em 1988, selou um novo momento na participação da sociedade no processo de construção de um país mais justo e democrático. Nela estão as marcas das organizações populares que pressionaram pela aprovação de uma carta que apontasse para a cidadania, a dignidade da pessoa humana (Direitos Humanos), para a ética na gestão pública e privada e para uma maior participação da sociedade civil através dos conselhos populares garantidos na Constituição.

    Entretanto, os revezes impostos pelas políticas neoliberais do Estado brasileiro recolocaram na ordem do dia o tema da cidadania para impulsionar uma participação mais efetiva da sociedade brasileira nos rumos políticos, econômicos e sociais do país. Isso pressupõe que se dê à cidadania o lugar privilegiado da educação.

    Neste contexto, a Educação Física Escolar também elegeu a cidadania como eixo norteador do seu processo de formação, para que os alunos tornem-se capazes de participar das atividades corporais mediante atitudes de respeito, dignidade e solidariedade mútuas; interagir com a multiplicidade de culturas corporais; entender-se como integrante da natureza, cuidando da mesma enquanto condição de qualidade de vida e saúde; conhecer, dialogar e refletir sobre as concepções de corpo, beleza enquanto culturas diferenciadas de cada grupo social; defender o direito de todos às atividades físicas e de lazer para uma vida de saúde e bem estar de toda a população, entre outras. (Cf. BRASIL, 1997)

    Em vista disso, nosso estudo tem o objetivo de explicitar uma concepção de cidadania contectada com o campo educativo formal e suas implicações com a área da Educação Física Escolar. Partimos da hipótese de que a chave principal do processo de formação para a cidadania está na participação.


A cidadania como um exercício prático educativo

    O termo cidadania está muito em voga na atualidade. As três últimas décadas permitiram o crescimento do debate das grandes questões sociais voltadas para a construção de mais cidadania. Entretanto, proporcionalmente à velocidade com que se popularizou o termo cidadania tornou-se refém do discurso das elites, que têm mantido o poder com toda a astúcia que lhes é própria. Elas incorporaram o termo aos seus discursos de promessa para enganar o povo e o manter sob o domínio de seus interesses. O melhor viés que seus teóricos encontraram para "camuflar" seus interesses foi através da educação, transformando-a na terapia para a cura dos males da exclusão.

    A cidadania é uma das grandes questões da educação, mas esta concepção traz justamente o perigo de uma abstração deste conceito (Cf. FERREIRA, 1993, p. 6). Daí a necessidade de construir uma definição para um consenso mínimo sobre seu significado no contexto educacional, para que esse conceito permita significar os valores e objetivos necessários para a sua vivência.

    As raízes da cidadania estão na sociedade grega, mais especificamente na cidade grega1. Cidadania significava viver e participar da vida da cidade; viver e participar da associação de pequenos núcleos de vida: a família, a fratria, a tribo. Na sociedade grega, a democracia era direta, não havia representantes do povo, cada cidadão tinha acesso às assembléias onde podia argumentar a favor de suas posições. Mas, o conceito de cidadania ampliou-se para além da questão de viver a cidade. O cidadão passou a se ligar ao Estado; com essa ligação ampliaram-se os direitos e os deveres para o cidadão. Foram os romanos que deram uma definição, um significado jurídico ao termo. Moura Ramos, citado por Libâneo, afirma que

A cidadania (o status civitatis dos romanos) é o vínculo jurídico-político que, traduzindo a pertença de um indivíduo ao Estado, o constitui perante este num particular conjunto de direitos e obrigações [...] A cidadania exprime assim um vínculo de caráter jurídico entre um indivíduo e uma entidade política: o Estado. (LIBÂNEO, 1995, p.18)

    A modernidade, inaugurando a nova sociedade da democracia burguesa, vinculou a cidadania com os direitos de liberdade de pensamento, de religião, de comércio, de produção, de propriedade privada. Individualizando a pessoa, alienando-a dos outros pares, a burguesia pôde limitar o alcance da cidadania. Marx, ao tratar da Questão Judaica, mostra que a Declaração dos Direitos do Homem, de 1793, reduz a questão da cidadania a questões políticas. "O assunto torna-se ainda mais incompreensível ao observarmos que os libertadores políticos reduzem a cidadania, a comunidade política, a simples meio para preservar os chamados direitos do homem". (MARX, 1989, p. 58) Leia-se, portanto, direitos do homem burguês. Para o autor, o homem egoísta da sociedade civil burguesa é o homem natural. A revolução política, a mera defesa da questão política apenas dissolve a sociedade civil sem revolucionar o mundo das necessidades, do trabalho, dos interesses privados. Para o liberalismo e o neoliberalismo, a cidadania está centrada no princípio individualista onde cada qual cuida dos próprios interesses.

    Já para a crítica marxista, a cidadania requer a responsabilidade de uns pelos outros. Comparato, no prefácio do livro de Pinsky, caracteriza a diferença entre a perspectiva capitalista e a socialista.

Para o socialismo, muito ao contrário, constitui rematado absurdo imaginar que a harmonia social pode resultar de uma concorrência de egoísmos. Sem o respeito ao princípio de solidariedade (solidum, em latim, significa a totalidade), isto é, sem que cada cidadão seja, efetivamente, responsável pelo bem-estar de todos, jamais se chegará a construir uma sociedade livre e igualitária. (COMPARATO, 1999, p. 12)

    As idéias acima expostas evidenciam que a cidadania não se dá por decreto. A cidadania não pode ser visualizada como algo dado, pois seus pressupostos são a história e a filosofia. Ela se permite ver, notar, conceituar, quando é vivida, exercida pelo cidadão.(Cf. FERREIRA, 1993, p. 19) Cidadania implica uma luta ferrenha dos seres humanos para serem mais seres humanos; significa a luta pela busca da liberdade, da construção diária da liberdade no encontro com o outro, no embate pelos espaços que permitam a vivência plena da dignidade humana. A cidadania compõe-se de um conjunto de direitos fundamentais para a existência plena da vida humana: direitos civis, que significam o domínio sobre o próprio corpo, a livre locomoção, a segurança; direitos sociais, que garantam atendimento às necessidades humanas básicas, como: alimentação, habitação, saúde, educação, trabalho e salário dignos; direitos políticos, para que a pessoa possa deliberar sobre sua própria vida, expressar-se com liberdade no campo da cultura, da religião, da política, da sexualidade e, participar livremente de sindicatos, partidos, associações, movimentos sociais, conselhos populares, etc. (Cf. MANZINI-COVRE, 1998, p. 11-15). Braga, discutindo a qualidade de vida urbana e cidadania, resume bem um conceito atual de cidadania necessária.

O sociólogo britânico T. H. Marshall, em seu conhecido ensaio "Classe Social e Cidadania", definiu a cidadania como um conjunto de direitos que podem ser agrupados em três elementos: o civil, o político e o social, os quais não surgiram simultaneamente, mas sucessivamente, desde o século XVIII até o século XX.

O elemento civil é composto daqueles direitos relativos à liberdade individual: o direito de ir e vir, a liberdade de imprensa e pensamento, o discutido direito à propriedade, em suma, o direito à justiça (que deve ser igual para todos). O elemento político compreende o direito de exercer o poder político, mesmo indiretamente como eleitor. O elemento social compreende tanto o direito a um padrão mínimo de bem-estar econômico e segurança, quanto o direito de acesso aos bens culturais e à chamada "vida civilizada", ou seja, é o direito não só ao bem estar material, mas ao cultural. (BRAGA, 2002, p. 2)

    Na mesma medida, a cidadania exige o exercício de deveres para que os próprios direitos se efetivem. Isto significa que cada indivíduo deve fomentar a busca e a construção coletiva dos direitos; o exercício da responsabilidade com a coletividade; o cumprimento de regras e de normas de convivência, produção, gestão e consumo estabelecidos pela coletividade; a busca efetiva de participação na política para controlar seus governos eleitos dentro de princípios democráticos.

    Teixeira e Vale (2000, p. 24-27) dão uma definição de cidadania que não permite uma abstração teórica. Entendem que a cidadania não pode estar desvinculada das reais condições sociais, políticas e econômicas que constituem a sociedade. Para uma cidadania efetiva, reúnem algumas categorias indispensáveis para o exercício da cidadania que implica, em primeiro lugar, a participação organizada para que as pessoas não sejam objetos da ação, mas, sujeitos da prática política da comunidade até a do Governo Federal. Por isso, ela é conquista e, como tal, torna-se o próprio processo emancipatório. A emancipação do ser humano é um processo contínuo de transformação da sociedade de exclusão. Segundo Adorno,

[...] uma democracia com o dever de não apenas funcionar, mas operar conforme seu conceito, demanda pessoas emancipadas. Uma democracia efetiva só pode ser imaginada enquanto uma sociedade de quem é emancipado. Numa democracia, quem defende ideais contrários à emancipação, e, portanto, contrários à decisão consciente independente de cada pessoa em particular, é um antidemocrata, até mesmo se as idéias que correspondem a seus desígnios são difundidas no plano formal da democracia. (ADORNO, 1995, p. 141-142)

    A vivência da democracia exige uma crescente organização da sociedade civil para possibilitar e aprofundar a participação de todas as pessoas. A democracia vai além da democracia representativa que tem mantido no poder as elites dominantes. A história da democracia brasileira, pautada na democracia representativa, tem permitido o controle do Estado sobre a população, quando a verdadeira democracia é a democracia direta na qual o Estado está sob o controle da população. O exercício mais efetivo deste processo democrático tem sido o orçamento participativo, que vem sendo praticado em várias cidades e Estados do País; trata-se de decisões políticas para a aplicação de recursos e distribuição de renda, conforme as necessidades das comunidades organizadas através de conselhos populares.

O que se trata é de democratizar radicalmente a democracia, de criar mecanismos para que ela corresponda aos interesses da ampla maioria da população e de criar instituições novas, pela reforma ou pela ruptura, que permitam que as decisões sobre o futuro sejam decisões sempre compartilhadas. (GENRO, 2001, p. 18)

    Tal proposta permite uma nova relação com as questões tradicionais referentes às outras duas categorias fundamentais da cidadania: os direitos e deveres, já anteriormente tratados. Levando a um crescendo, entra em cena uma nova categoria, que é a questão do saber. Dominar os conteúdos da cultura e construir novos conhecimentos a partir deles, para dentro do contexto das necessidades das populações, significa ter na educação seu principal instrumento, e no resgate dos valores humanitários como a solidariedade, a consciência do compromisso para com o bem-estar de todos, a fraternidade e a reciprocidade, a urgência mais fundamental.


A inseparabilidade entre educação e cidadania no processo educativo

    Há uma tendência muito forte que continua presente na sociedade brasileira. Política ainda é um tabu e, conseqüentemente, sua discussão está muito ausente do processo de formação da Educação Básica. Isso decorre de uma separação ideológica de dois termos inseparáveis: cidadania e política. As elites têm evitado falar da relação entre estas categorias. Assim, a política não tem encontrado seu lugar no processo educativo. Muitas vezes os lemas e planos pedagógicos governamentais falseiam esta inseparabilidade, fazendo com que a cidadania esteja acima ou nada tenha a ver com a política.

    Entretanto, Ferreira afirma que "[...] a prática educativa sempre traz em si uma filosofia política, tenha o educador consciência disso ou não". (FERREIRA, 1993, p. 5). Também para Freire, "[...] não é possível separar política de educação, o ato político é pedagógico e o pedagógico é político". (FREIRE, 2000, p. 127)

    Já a nova LDB - Lei Federal nº 9394/96 "[...] nomeia o Ensino Fundamental como educação básica e que tem por finalidade desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores". (BRASIL, 1998, p. 41) Segundo a LDB, essa formação se dá através de várias formas:

I- o desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo; II - a compreensão do ambiente natural e social, do sistema político, da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade; III- o desenvolvimento da capacidade de aprendizagem, tendo em vista a aquisição de conhecimentos e habilidades e a formação de atitudes e valores; IV- o fortalecimento dos vínculos de família, dos laços de solidariedade humana e de tolerância recíproca em que se assenta a vida social. (BRASIL. LDB, 2000, p. 30)

    De certa forma, toda a educação tem como objetivo integrar a pessoa ao conjunto da sociedade, isto é, visa à socialização, inclusive nos moldes das tendências críticas e transformadoras, pois, como lembra Ferreira, "[...] a luta pela definição dos fins da educação inscreve-se na luta de classes como luta por hegemonia".(FERREIRA, 1993, p. 10)

    Neste contexto, a referida autora tece suas críticas a Dermeval Saviani que estaria escorregando para o idealismo ao propor uma educação para a cidadania pensando-a somente a partir de duas estruturas: o resgate dos conteúdos para todas as crianças e a educação centrada na disciplina e na organização de idéias. A cidadania, enquanto conquista e construção, requer muito mais do que o domínio dos conteúdos.

    Ferreira (FERREIRA, 1993, p. 18) ainda analisa a leitura crítica hermenêutica de Giroux, que aponta para a necessidade de uma leitura e interpretação das teorias educacionais. As três grandes linhas por ele analisadas são a racionalidade técnica, a racionalidade hermenêutica e a racionalidade emancipatória.

    A racionalidade técnica trabalha com os princípios epistemológicos do positivismo. Os desajustes e a não-integração do aluno são vistos como anomia. A educação passa a ser vista como correção de comportamentos, disciplina e enquadramento social. Neste contexto defende-se uma eticidade na qual se trabalha a harmonia social e a eliminação dos conflitos. Busca-se um constante aprimoramento das técnicas pedagógicas que são vistas como solução para a integração, são as linhas que trabalham com a idéia de que existe um consenso social.

    Trabalhando com uma perspectiva fenomenológica, a racionalidade hermenêutica considera central o binômio: intencionalidade/significação. A hermenêutica liga-se à leitura dos signos dando a significação dos fatos. O consenso significa um acordo de consciências, a partir da compreensão dos fatos, o que faz da educação um diálogo unificador da sociedade, devendo ela considerar os valores e as motivações dos alunos. Giroux aponta para os erros dessa abordagem, pois ela permanece na consciência individualista da modernidade, perde de vista a questão ideológica do processo educativo e as relações de poder nele implicadas. A deficiência da racionalidade hermenêutica estaria na não discussão das questões políticas concernentes ao processo educativo. A não-intervenção passa a ser intervenção, uma ação política real e definida, porém, ocultada. A educação nesta perspectiva acredita e busca na formação da cidadania, a participação do aluno na criação de uma sociedade justa e igual, mas não discute as condições e as relações de poder em que se dão as inter-relações pedagógicas.

    A terceira grande linha deseja ir além da abordagem hermenêutica, centrando a sua crítica nas relações sociais. Para Giroux, conforme Ferreira, (Cf. FERREIRA, 1993, p. 12-18) a emancipação se dá através da dialética da crítica e da ação na sociedade. Uma consciência construída criticamente assume o compromisso de fazer história. Neste contexto, a educação deve ter um fundamento político e normativo para proporcionar o engajamento no processo formador. Já a ausência de princípios emancipadores faz da educação um processo de adaptação, de enquadramento social, onde o consenso se dá sob a orientação das classes dominantes, através da coordenação exercida por um Estado paternalista. Por outro lado, a emancipação requer cidadania ativa, inconformada, indignada, que luta para conquistar uma sociedade efetivamente democrática. O consenso social deve ser construído pela disputa dos projetos políticos, sociais e econômicos. Assim, a cidadania passa pelas disputas políticas para desmascarar as inverdades e permitir o embate das questões valorativas. Trata-se de um consenso construído pelo conjunto dos sujeitos envolvidos no processo político e pedagógico.

    Para Ferreira, (Cf. FERREIRA, 1993, p. 12-18) esta visão traz resquícios do idealismo, não considerando suficientemente as relações entre o ser humano e as condições materiais. Entretanto, acredita-se que ela reforça a dimensão da inseparabilidade entre educação, cidadania e política. Assim como a palavra e a liberdade são construções educativas através das quais "[...] o ser humano se constitui num ser capaz de existir no mundo e relacionar-se com este mundo e seu entorno social e natural com liberdade e autonomia responsáveis", (AHLERT, 2001, p. 103-104) também a cidadania não pode ser outorgada ou cedida, mas deve ser uma conquista. Nestas tarefas os educadores têm um papel fundamental, o de provocar alunos e alunas a conquistá-las.

    Neste sentido, Streck questiona a intencionalidade política conservadora de fazer passar a idéia de que a educação prepara para a cidadania. Para ele, esta visão dá uma conotação abstrata ao processo educativo, pois cinde os dois termos, dando-lhes significados próprios e estanques. Assim, fundamentando-se em Freire e Arroyo, afirma que

[...] não existe num primeiro momento uma preparação para a cidadania para depois poder exercê-la. Educação é sempre exercício de cidadania como prática de liberdade. O pressuposto básico para isso é reconhecer a aluna e o aluno como co-cidadã e co-cidadão que, em todos os estágios do desenvolvimento e em todas as modalidades de educação, são parte dos processos sociais de exclusão e de inclusão. (STRECK, 2001, p. p. 58)

    A educação para a cidadania, embora historicamente polêmica, é pressuposto para viver a democracia, pois o Estado é uma disputa de classes a partir de interesses opostos. É necessário impedir que as classes dominadoras se perpetuem no poder no Estado. Por isso é necessário preparar o cidadão para que ele possa ter capacidade participativa e decisória no processo democrático.

O Estado de direito, fundado no respeito a uma constituição, não define necessariamente o pior dos sistemas. A democracia, num sentido ainda a definir, pode ser a organização mais eficaz da comunidade, a fim de lutar contra a violência que a ameaça, interna como externamente. A vida no Estado pode ser pensada como participação nessa luta, participação nada supérflua. (CANIVEZ, 1991, p. 12)

    E isso pressupõe uma educação que habilite o cidadão a participar das ações políticas que organizam a vida no Estado. Daí a justificativa para a educação do cidadão para uma democracia participativa.

    A cidadania traz intrinsecamente ao seu conceito a pertença do indivíduo ao Estado. Esta pertença recebe um sentido jurídico que define direitos e deveres segundo leis próprias de cada Estado. Neste sentido, o tipo de cidadania é reflexo do tipo de Estado que está em vigor.

    A questão da cidadania implica, portanto, a discussão sobre o modo com que a pessoa se insere na comunidade e da sua relação com o fenômeno político. Para Canivez, existem duas formas representativas da cidadania na atualidade:

A primeira opõe a cidadania ao Estado: insiste na liberdade dos indivíduos ou das comunidades, em oposição ao Estado, considerado como um poder externo à sociedade e que a ela se impõe. A segunda enfatiza a tradição, a identidade e a continuidade da nação. A cidadania e, sobretudo, o acesso à cidadania, depende então da adesão a uma certa maneira de viver, de pensar ou de crer. (CANIVEZ, 1991, p. 15)

    A dimensão da cidadania como pertencimento ao Estado coloca a questão do conceito deste no seu duplo significado, conforme as duas grandes teorias de sociedade construídas ao longo da modernidade. Por um lado, a visão liberal entende que a sociedade, como um conjunto de relações sociais e de trabalho e troca, tem capacidade de auto-organizar-se. Não necessitaria o Estado interferir continuamente na organização dos indivíduos constituintes da comunidade social. Ao Estado caberia a fiscalização e a fixação de leis e regras para garantir a propriedade e a livre concorrência. De outro lado, encontra-se a crítica marxista que, lendo a realidade concreta e materialista de sua época, identifica o Estado como um ente acima dos cidadãos. Este Estado é um instrumento privativo da classe burguesa hegemônica e sua função está em manter jurídica, ideológica e concretamente as relações de produção e consumo da sociedade capitalista, fazendo o papel de regulador e defensor dos interesses privados dos detentores dos meios de produção através das forças armadas, da justiça e do sistema educacional.

    Entretanto, Canivez (1991, p. 16-17) lembra que há questões que são comuns às duas teorias, como a visão do Estado enquanto máquina estrutural que de fora impõe regras às relações sociais. Ambas as teorias têm na extinção do Estado a utopia de uma sociedade completamente livre. A cidadania em uma comunidade política submete-se a uma autoridade legal fora da família ou casta. O indivíduo é livre cidadão, sujeito apenas à autoridade e não mais a alguém em particular. Esta comunidade política de cidadãos já não possui mais sua unidade exclusivamente na dominação de uma tradição. Agora, ela provém do embate de interesses de tradições e classes diferentes.

    Para Canivez, na sociedade moderna, "[...] o cidadão é uma espécie de consumidor e o Estado um prestador de serviços." (CANIVEZ, 1991, p. 27) Trata-se, obviamente, de uma definição burguesa. Nesta visão os direitos a serem exercidos têm como condição a prática de um conjunto de deveres.

    Quanto à dimensão política da cidadania, Canivez (Cf. CANIVEZ, 1991, p. 31) sustenta na concepção moderna de Eric Weil, que entende a cidadania como um Estado no qual cada cidadão, no seu conjunto de responsabilidades e liberdades, pode candidatar-se ao cargo de governante. Portanto, ser eleitor e elegível. Essa definição, por sua vez, implica uma prática educativa própria. Se todos os cidadãos são iguais em direitos e deveres, então, para o exercício destes, necessitam das mesmas condições de formação, apropriação e construção do saber. Deve ter acesso a uma educação que o habilite na condição de um governante em potencial.

    Já a ação política, Canivez (CANIVEZ, 1991, p. 140-141) fundamenta-a na teoria política de Hannah Arendt, para quem a República é o Estado no qual o cidadão é um participante da res publica - "coisa pública". No sentido moderno,

[...] o Estado é a organização da comunidade em instituições, todas elas solidárias: o governo, o parlamento, a administração, a organização do povo em corpo eleitoral são instituições estreitamente dependentes umas das outras. O Estado não é, portanto, uma associação de indivíduos ligados por um contrato, como para Rousseau, mas uma organização de instituições que agem junto. (CANIVEZ, 1991, p. 148)

    No Estado, o cidadão toma parte das decisões que comprometem a comunidade e que devem ser construídas através de assembléias comunitárias e assembléias representativas constituídas pelos eleitos das comunas.

Este exercício participativo exige capacitação dos instituintes. Assim, para que esta democracia moderna se efetive, faz-se necessária a existência de cidadãos ativos, ou seja, de uma sociedade na qual todos os seus integrantes têm capacidades e habilidades para serem governantes nas mais variadas instâncias e níveis em que se desdobram as funções do Estado. Essa capacitação do cidadão requer, portanto, uma educação que forma cidadãos ativos. Conforme Canivez, Arendt entende a educação como uma ação essencialmente conservadora, e quando não for conservadora se tornará reacionária. Aqui, porém, trata-se não de uma educação que conserva um status quo burguês, no qual as elites econômicas e políticas mantêm os privilégios educacionais diferenciados para seus filhos. Educação conservadora, na teoria arendtiana, é aquela que [...] conserva a herança de saber e de experiência recebida do passado e transmiti-la às novas gerações. (CANIVEZ, 1991, p. 141)

    O Estado, como organização da vida da comunidade, exige da educação uma significação fundamentalmente política. Sua função concernente à democracia busca a socialização e a educação moral dos indivíduos que fazem a comunidade. Trata-se de uma educação em valores universais. Mas isso não significa uma educação apenas adaptativa. Canivez vê na educação a função "[...] de levar o indivíduo a pensar e, sobretudo, a 'compreender' porque isso é exigido - e, conforme o caso, por que isso, que de fato se exige dele, não é exigível". (CANIVEZ, 1991, p. 150-151)

    No Estado moderno, onde o governo é a mola propulsora da política administrativa e das políticas publicas, geralmente, o cidadão é passivo. Ele elege seus governantes e, posteriormente, relaciona-se apenas como opinião pública de pressão pró ou contra as ações políticas e administrativas empreendidas pelos governantes. No entanto, a democracia possibilita o exercício da cidadania ativa. Para Canivez,

[...] o cidadão ativo é aquele que exerce responsabilidades políticas, em um nível qualquer de hierarquia de um partido ou na das funções públicas. Essas responsabilidades podem ser definidas por um status (como são as do deputado ou ministro). Elas também podem ser informais (assim como as dos conselheiros privados, como os que assessoram todos os homens políticos). O cidadão é então tanto mais ativo quanto mais próximo estiver dos centros de decisão. Em outras palavras, é tanto mais ativo quanto mais participar do governo. (CANIVEZ, 1991, p. 154)

    Esta participação requer uma capacidade organizativa da cidadania. Depende do cidadão refletir sobre as questões econômicas, políticas e sociais, construir opinião sobre essas questões, manifestar-se e participar do debate e das decisões sobre os grandes temas que a organização democrática requer. Esta cidadania demanda um sistema escolar que eduque o cidadão.

Em uma democracia, a escola deve educar cidadãos ativos. Não deve preocupar-se em ensinar aos indivíduos como defender seus interesses materiais, sociais e profissionais. Não deve também treiná-los para as lutas políticas, para a competição pelo poder, para as manobras partidárias. Seu papel, em outros termos, não é iniciá-los à vida política. Essa iniciação, que passa pela participação em debates, assembléias, campanhas de todo tipo, é incumbência dos partidos. [...] Decerto não deve orientar as preferências partidárias dos cidadãos, mas deve dar-lhes a cultura e o gosto pela discussão, que lhes permitirão compreender os problemas, as políticas pretendidas, e debater sobre isso. (CANIVEZ, 1991, p. 157)

    Na perspectiva da cidadania, será que em nossos programas acadêmicos procuramos estes comportamentos e atitudes? Como lidamos com as vaidades pessoais e nos perguntamos se somos humanistas de fato ou humanistas de ocasião?

    Fundamentada em Eric Weil, Canivez, a autora da citação acima, vê na instituição escolar a tarefa e a possibilidade da formação do cidadão capacitado para o diálogo argumentativo sobre os temas fundamentais para a democracia, como a Constituição, o direito, o Estado, a informação, a comunicação, a justiça. Por isso, este lugar da educação é um lugar próprio da política. A educação para a cidadania é uma educação política.

    Em síntese, a democracia é a organização de uma comunidade ou de comunidades humanas cuja normatização e organização das relações estão assentadas sobre um conjunto de leis constitucionais consensualmente construídos. Ela pressupõe a condição de cada indivíduo participar do processo democrático mediante a escolha de líderes e governantes (cidadania passiva) ou postular funções de governante e ou participar da discussão e decisão das políticas públicas a serem executadas pelo Estado (cidadania ativa).

    Essa cidadania ativa somente é possível quando os cidadãos desenvolvem, através da educação, as capacidades de julgar as questões pertinentes do Estado para além das particularidades e interesses individuais. Esta educação deve assentar-se sobre o princípio do diálogo para que, via argumentação, se produza um consenso entre todos os concernidos. Trata-se da busca de um consenso de sentido estreito, onde todos os temas relevantes a uma vida democrática e inclusiva sejam discutidos e decididos pela participação de todos os cidadãos.


A modo de conclusão algumas reflexões sobre as potencialidades da Educação Física Escolar para uma formação cidadã participativa

    A Educação Física constitui sua área de trabalho fundamentada nas concepções de corpo e movimento. Esta visão permitiu a superação de sua condição histórica limitadora que se restringia aos aspectos fisiológicos e técnicos. Hoje se considera as dimensões culturais, sociais, políticas e afetivas que constituem o corpus cidadão.

    Assim, a Educação Física, a partir dos Parâmetros Curriculares Nacionais, assumiu uma nova condição: a de trabalhar numa perspectiva de cultura corporal, o que amplia a contribuição da Educação Física Escolar para o exercício da cidadania.

    Segundo os PCNs da Educação Física,

A concepção de cultura corporal amplia a contribuição da Educação Física escolar para o pleno exercício da cidadania, na medida em que, tomando seus conteúdos e capacidades que se propõe a desenvolver como produtos socioculturais, afirma como direito de todos o acesso a eles. Além disso adota uma perspectiva metodológica de ensino e aprendizagem que busca o desenvolvimento da autonomia, a cooperação, a participação social e a formação de valores e princípios democráticos. (BRASIL, 1997, p. 28)

    Junte-se a isso o programa paranaense de Reformulação Curricular desenvolvido pela Secretaria de Educação, que adotou como referenciais para a construção das Diretrizes Curriculares para o Ensino Fundamental - Educação Física e que desafiam para a redução das desigualdades sociais: o desenvolvimento de processos educativos que busquem um desenvolvimento econômico, político, social e cultural da sociedade; a luta por uma educação pública gratuita e de qualidade; a conscientização e formação de um profissional educador como um sujeito epistêmico, que possui autonomia reflexiva crítica e seja capaz de articular e construir conhecimentos transformadores da sociedade. (Cf. SEED. Diretrizes Curriculares Estaduais. Governo do Paraná, 2005)

    A partir disso, a Educação Física Escolar, para se tornar uma contribuição efetiva para a formação de uma cidadania plena, deve organizar seu currículo considerando toda a riqueza da interdisciplinaridade, priorizando temas de caráter social para que os setores populares, as grandes periferias urbanas, as vilas, os bairros desenvolvam atividades de exercícios e esportes coletivos, acompanhados de ações políticas reflexivas com vista ao um processo cada vez maior de participação popular na organização e nas decisões de ordem econômica, política e social que dizem respeito e atingem diretamente a população historicamente alijada dos processos decisórios e participativos da sociedade.

    A partir da Educação Física escolar, desafia-se a escola a interagir mais com a sociedade através de projetos múltiplos e interdisciplinares, como por exemplo, Rua do lazer, Ginástica na Praia, no Parque, na Praça, Passeios Ciclísticos, Caminhadas Urbanas Inter-bairros para que a população conheça sua cidade, sua realidade e desenvolva um senso crítico face aos problemas que esta realidade apresenta. E isto pode ser organizado a partir da escola de forma interdisciplinar, onde as outras áreas do conhecimento são integradas, como a Geografia, a História, a Matemática, a Biologia, etc.

    Toda a realidade que requer mudanças, transformações, precisa de movimento. E ninguém melhor do que a Ciência do Movimento para ser a mola propulsora de um movimento motivador, transformador e emancipador da sociedade. A Educação Física Escolar é, assim, uma área do conhecimento que, por excelência, pode lançar as bases para se colocar um sociedade em movimento para a busca de uma cidadania plena sustentada no fundamento da participação de todos os concernidos.

Numa perspectiva "revolucionária", o professor de Educação Física deve ter consciência de que, através de sua disciplina, tem uma contribuição específica a dar, em vista do atendimento aos interesses das camadas populares. Para isso, basta trabalhar sobre o bom senso, procurando elevar a consciência dispersa e fragmentária as classes, ao nível de uma concepção de mundo coerente e homogênea, contrária à hegemonia burguesa. (BARBOSA, 2001, p. 105)

    E o profissional da Educação Física escolar tem todas as habilidades necessárias para romper a visão tradicional da disciplina que sempre foi a de ensinar o desporto e monitorar a prática do lazer. Sua variada formação na academia, sustentada nas disciplinas de anatomia, psicomotricidade, cultura brasileira, cinesiologia, fisiologia, psicologia, filosofia, sociologia história da Educação Física, entre outras, não permite mais restringir-se apenas a explicar de forma biomecânica os movimentos humanos em todas as atividades esportiva e jogos diversos. Para a construção de uma cidadania plena, o profissional pode ajudar, a partir de cada atividade, a explicar as potencialidades do movimento em movimentos sociais e históricos que engendram a participação social e política para uma efetiva cidadania participativa. Assim como o esporte, o jogo e o lazer só fazem sentido mediante o "mexa-se", isto é, a participação, assim estas atividades podem impulsionar as consciências para uma maior participação política e cidadã na sociedade.


Nota

  1. Aqui é importante observar que quando falamos de cidadania grega estão citados apenas os cidadãos. Entre eles havia democracia. Porém, a sociedade não é protótipo de cidadania, pois "Vale lembrar que Atenas, nos tempos de seu maior desenvolvimento, possuía noventa mil cidadãos livres, entre homens, mulheres e crianças; enquanto isso, o número de escravos para ambos os sexos alcançava a soma de 365 mil pessoas". Alvori AHLERT. A eticiddade da educação: o discurso de uma práxis solidária/universal, p. 27.


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revista digital · Año 12 · N° 107 | Buenos Aires, Abril 2007  
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