Lazer, esporte e presidiários: algumas reflexões | |||
Professor do Programa de Pós-Graduação em História Comparada/IFCS/UFRJ e da Escola de Educação Física e Desportos/UFRJ; Professor do Programa de Pós-Graduação em Lazer/UFMG; Coordenador do Grupo de Pesquisa "Anima": Lazer, Animação Cultural e Estudos Culturais/UFRJ. http://www.lazer.eefd.ufrj.br |
Prof. Dr. Victor Andrade de Melo victor.a.melo@uol.com.br (Brasil) |
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Eu assinei a pena de vida
Tic, tac,
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http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 11 - N° 106 - Marzo de 2007 |
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Introdução
Nos últimos anos, tem se tornado cada vez mais comum a ocorrência de rebeliões em presídios e penitenciárias brasileiras3. Nos jornais e noticiários de televisão, podemos ver constantemente semelhantes imagens serem veiculadas: presos com o rosto coberto e em atitude de revolta, portando armas primitivas, confeccionadas na própria cela; reféns sofrendo violência física e emocional, às vezes até mesmo sendo executados; policiais tensos cercando o presídio, preparados para a invasão, prontos para atirar; famílias desesperadas a esperar notícias de seus entes.
Imersas na crise de valores que cerca a sociedade contemporânea, ainda mais uma sociedade tão desigual e injusta como a brasileira, o impacto das imagens desperta no espectador os sentimentos mais extremos, que transitam entre a raiva e a pena. Independente da postura, parece ser unânime um pensamento: o nosso sistema penal está ultrapassado e já não mais atinge seu objetivo de ressocialização, se é que alguma vez o atingiu. Como afirma Jorge Béja:
O Estado parece desconhecer que, mesmo condenado, o detento continua ser humano. Seus erros não lhe tiram a proteção da sociedade. Pelo contrário, dela exigem todas as atenções, cuidados e empenho no cumprimento do dever, legal e social, da recuperação (...) O condenado, enquanto preso e no cumprimento da pena, sabe que está sob a proteção e guarda do Estado. E continua com todos os direitos de ser humano. Teoricamente, ao menos. Porque, na prática, a situação entre nós é outra... 4.
Não é nosso intuito neste artigo discutir profundamente o nosso sistema penal, mas, partindo de uma determinada compreensão ideal (não no sentido de "idealizada", mas na perspectiva de utopia que deve ser buscada), questionar: pode um programa de esporte e lazer contribuir para a ressocialização dos presidiários? Como?
Partindo do princípio de que as pessoas, pelos mais diversos motivos (inclusive e até mesmo fundamentalmente sócio-econômicos), podem cometer equívocos para com a sociedade, devendo pagar por isso com um período de exclusão, mas também que tal período deve necessariamente contribuir para sua reintegração na sociedade, pretendemos neste artigo discutir sobre como e até quando pode um programa de lazer colaborar para o alcance desse intuito.
Queremos desde o início afastar qualquer postura funcionalista acerca das possibilidades de contribuição de um programa de lazer para os detentos. Não se trata de conceber um programa para simplesmente "ocupar o tempo", "desviar energia" ou "acalmar" o preso, contribuindo para que ele supostamente não se revolte contra o sistema, contraditório e opressor. Antes se trata de conceber uma proposta de lazer como uma possibilidade de humanização e sensibilização, que possa auxiliar a desencadear iniciativas de reflexão do preso sobre sua realidade, tanto na prisão quanto na sociedade como um todo, e ponderar sobre sua (re)inserção na sociedade.
Por certo, o problema é muito mais complexo, pois se trataria de modificar radicalmente a concepção do sistema penal (desde o injusto modelo de punições até a reclusão em si) e mesmo a própria consideração da sociedade para com o ex-recluso. Todavia, se um programa de lazer não é suficiente para sozinho resolver o problema e modificar a realidade, acreditamos que ele pode ser uma boa ferramenta de intervenção. Logo, não podemos fechar os olhos para essa possibilidade de atuação e de contribuição.
Vivências de lazer em presídios e penitenciáriasO diretor mandou reunir os presos no pátio para as boas novas. Feito o confere, deu início ao discurso:
- Atendendo a solicitação, quero informar que daremos início às obras de restauração do nosso presídio de segurança máxima.
Alguns tiveram a vontade de aplaudir, mas acharam conveniente proceder como os demais companheiros. Todos em silêncio, esperando para ver o bicho que ia dar. Dr. Waldemar dos Ferrolhos prosseguiu:
- (...) Vocês devem estar morrendo de curiosidade com as obras. Vamos começar pelo complexo esportivo (...) construiremos quadras poliesportivas, parque aquático, pista de ciclismo, teremos uma praia artificial para duplas de vôlei e futevôlei. Sem falar no principal. Vamos construir cinco campos de futebol!
- Êêêêêêê!!! (Comemoração intensa dos presos) (...)
- Quando é que começam as obras, doutor?
- Logo após a assinatura do contrato.
- E quando é que assina o contrato?
- Hoje, primeiro de abril 5.A crônica acima explicita bem a comum falta de investimentos em uma estrutura de lazer/atividades físicas para presidiários. Obviamente que se levarmos em conta que os problemas do sistema penal são os mais diversos e mais graves possíveis, aparentemente poderiam parecer menores as preocupações com o lazer. Mas deixemos claro que consideramos um equívoco estabelecer, devido a uma situação de escassez, uma rígida e estática prioridade de necessidades humanas.
Deveríamos, nesse aspecto em especial, considerar duas dimensões: a) o lazer é tão importante quanto qualquer outro aspecto da vida humana, embora a sociedade capitalista extremamente produtivista tente considerá-lo como algo pernicioso; b) o lazer, enquanto instrumento educacional, pode ser uma poderosa arma para construirmos uma nova sociedade. Enfim, não podemos restritivamente considerar o lazer como uma dimensão menor do ser humano.
As primeiras propostas de inclusão de atividades de lazer em casas de detenção, notadamente físicas6, parecem ter surgido em 1876, com a criação do Reformatório de Elmira (Nova Iorque - EUA), como conseqüência de um congresso realizado em Cincinnati, em 1869. Em Elmira, no âmbito de uma proposta de programa de atividades laborais, foi construído um ginásio, no qual diariamente os presos faziam ginástica7.
Em 1930, no X Congresso Internacional Penal e Penitenciário de Praga, a introdução dos esportes nas casas de detenção é discutida de forma mais estruturada. Cabe destacar que, desde então, houve muitas propostas de inclusão de esportes e de atividades físicas em estabelecimentos de detenção. Todas tinham em comum o fato de encarar tais atividades como "calmantes", por permitir o dispêndio de energia, e, nesse mesmo sentido, como forma de controle dos desejos sexuais dos detentos.
Reflexos dessas iniciativas pioneiras existem até os dias de hoje. Interessante observar, por exemplo, que na atual estrutura do Departamento do Sistema Penal (Desipe), órgão ligado à Secretaria de Justiça e responsável por controlar o sistema penitenciário do Estado do Rio de Janeiro, existe uma Seção de Educação Física e uma Seção de Ação Cultural, ligadas à Coordenação Técnico-Social, um dos órgãos de direção intermediária.
Declaradamente, também na Política de Ressocialização do Sistema Penitenciário do Estado do Paraná encontramos as atividades de lazer encaradas como parte da educação e citadas como importantes para o desenvolvimento do detento, fundamental para seu exercício de cidadania: "Este processo se efetua em todos os níveis do conhecimento humano: nas artes, pela promoção de atividades artísticos-culturais; na saúde física e mental, através de desporto e recreação"8.
A Organização das Nações Unidas (ONU), em suas "Regras Mínimas para o Tratamento de Presos" (1988), pelo menos em três momentos se preocupa diretamente com as atividades de lazer dos detentos: no item 1 da regra 21, sugere pelo menos uma hora diária de exercícios físicos ao ar livre; no item 3 da regra 21, sugere que deve haver instalações que permitam a prática de atividades físicas e recreativas; e na regra 78, sugere que devem ser oferecidas atividades recreativas e culturais. Na Lei de Execução Penal Brasileira (No. 7210 de 11/7/1984), também se sugere, no artigo 40, que o preso deve ter o direito à prática de atividades esportivas e recreativas.
Mas se esse direito é constantemente reconhecido em leis, regulamentos e propostas, lamentavelmente na prática é pouco observado e respeitado, por descaso e deficiência, fatores por certo associados. Pensar em um programa de lazer adequado e de qualidade parece ainda mais distante quando sabemos que muitos outros direitos dos detentos são sistematicamente desrespeitados.
A despeito desse desrespeito e pouca atenção, com certeza os detentos têm seus momentos de lazer. Vale a pena começarmos então exatamente por tentar desvendar as características desses momentos. Para tal, faremos uso de trabalhos que, direta ou indiretamente, já abordaram o assunto. Entre eles, a pesquisa de Fabiane Domingues9, a única específica que encontrei sobre o assunto, lamentavelmente pouco conhecida nos círculos acadêmicos.
Comecemos a discussão por uma questão conceitual, a partir da dimensão "tempo". Seria estranho pensar na dimensão tempo disponível, fundamental na definição conceitual de lazer, para alguém que está o tempo todo recluso? Veremos que não.
TempoNo interior dos presídios e penitenciárias, como em qualquer outro lugar, existem rotinas que devem ser cumpridas. Basta perceber que um certo número de presos trabalha nas casas de detenção, conseguindo algum rendimento financeiro com seu ofício, além de reduzirem sua pena na proporção de 1 dia para cada 3 trabalhados. Para esses, a rotina no interior das prisões é semelhante a de quem está fora, com a diferença óbvia de que ao final do expediente não é possível ir para casa ou qualquer outro lugar que não seja a cela.
Os trabalhos são os mais diversos: funções necessárias para o funcionamento das detenções (faxina, cozinha, trabalho burocrático, entre outros), contratos de prestação de serviços para empresas externas diversas, e mesmo alguns casos de iniciativas individuais, como a confecção de objetos.
Mesmo para os que não trabalham, por falta de possibilidade ou por não desejarem, existe um tempo determinado para a realização de certas atividades, o que acaba por estabelecer uma rotina diária10. Cabe lembrar que os presos permanecem soltos durante o dia, sendo somente recolhidos às celas a noite.
Vale lembrar que existem também os que se encontram excluídos em celas ou pavilhões isolados, devido a punições e/ou problemas com outros presos. Para esses sim, não existe a possibilidade de convívio e de vivências de lazer, a não ser muito restritas.
Em todos os presídios há um horário rígido para o "banho de sol", onde são permitidas as atividades físicas e onde podem ser implementadas atividades de lazer em geral. Esse horário nem sempre é respeitado e logo suspenso, caso haja algum problema na disciplina ou como forma de imputar um castigo aos detentos, dependendo mesmo do humor da equipe de segurança.
Segundo Drauzio Varella11, na Casa de Detenção de São Paulo (o Presídio do Carandiru) era na parte da manhã que ocorriam a maior parte das atividades de lazer. O mesmo modelo parece ser seguido, segundo Neninho de Obaluaê12, na Penitenciária Central do Paraná: lazer pela manhã e trabalho pela tarde. Já na Penitenciária Lemos de Brito, parte do Complexo Penitenciário Frei Caneca13, no Rio de Janeiro, o acesso às instalações era permitido tanto pela manhã (entre 8h30min e 11h) quanto pela tarde (entre 14h e 16h30min)14.
Em alguns casos, a natureza do trabalho no interior do presídio é até mesmo motivo que impede o preso de participar das atividades de lazer. Neninho de Obaluaê, ao narrar sua experiência como detento na Penitenciária de Avaré (São Paulo), enumera as atividades de seu cotidiano:
Quase não podia nem curtir o recreio devido às minhas atribuições. Às 6:30 ia para a aula de datilografia. Às 7:30, tinha aula de matemática. As demais matérias, estudava na cela à noite. As tardes, passava na minimarcenaria. Quando chegava ao pátio só dava para correr umas trinta voltas em torno da quadra de futebol de salão e tomar banho, numa ducha do pátio. Às vezes, ainda dava para jogar uma pelota 15.
Os finais de semana também são momentos especiais para muitos, pois é quando podem receber visitas de familiares e visitas íntimas. Os horários de visitas variam bastante entre as detenções, mas normalmente elas acontecem no sábado e no domingo.
O presídio é todo transformado, pelos próprios presos, para que possa receber com dignidade os visitantes. É sempre uma rotina árdua para os visitantes, que se submetem a filas para entrar nas detenções e revistas rigorosas (muitas vezes humilhantes), e uma espera ansiosa para os detentos "privilegiados" que recebem visitas16. Em geral, a rotina é semelhante. Abraços e piqueniques entre familiares, cultos religiosos, sacolas com cigarros e alimentação.
A visita íntima também varia bastante. Em algumas detenções existem celas reservadas ou pode-se levar o cônjuge para a cela. Na Penitenciária Lemos de Brito, é até mesmo permitido o pernoite em determinadas datas festivas. Em outros casos, por serem proibidas, só resta aos presos montarem "barracas" por ocasião das visitas, o que acaba por causar muitos constrangimentos. Obviamente que essas visitas também são canceladas de acordo com os problemas nas detenções, ligados a disciplina e/ou castigo por alguma ocorrência.
InstalaçõesAs próprias instalações dos presídios e penitenciárias, em geral antigas, em estado precário e cheias de improvisações para comportar a crescente população carcerária, não facilitam a vivência de práticas de lazer pelos detentos. Em comum, na grande maioria delas, é a existência de campos de futebol e/ou quadras esportivas.
No Presídio do Carandiru eram bastante modestas as instalações oferecidas para os cerca de 7200 presos (distribuídos em 7 pavilhões, cada um com 5 andares) desfrutarem de atividades de lazer. No primeiro andar do Pavilhão Cinco, ao lado da carceragem, da enfermaria e da Isolada, encontrava-se uma biblioteca modesta e uma sala de aula. Não podemos de deixar de observar que elas se localizavam exatamente no pavilhão mais cheio e mal conservado do presídio. No segundo andar do Pavilhão Seis há também um auditório que no passado foi um cinema, desativado após ter sido destruído em uma rebelião. Nesse mesmo pavilhão também funcionava o Departamento de Esportes17.
Nos pavilhões Sete e Oito existia uma precária estrutura para a prática de esportes. No Sete, havia "uma quadra de esportes e dois campinhos de futebol empoeirados, palcos de batalhas futebolísticas nas quais os atletas não chegam a primar pela técnica, muito menos pela elegância do vestuário"18. Já no pavilhão Oito, o mais problemático, existia uma quadra esportiva e um campo de futebol de chão batido, o maior do presídio.
A mesma estrutura deficiente podia ser encontrada na Penitenciária de Avaré e na Penitenciária Lemos Brito. Na primeira havia um campo de futebol e quadras esportivas19. Já na segunda, havia uma quadra esportiva e um pátio (conhecido como Mineirão), além de um auditório. Os espaços nunca eram abertos simultaneamente, devido a questões de segurança20.
Já na Penitenciária de Araraquara (São Paulo), segundo sua página na internet21, existem as seguintes instalações esportivas: uma quadra poliesportiva em cada um dos quatro pavilhões; e um ginásio de esportes geral, que conta com um campo de futebol, uma pista de atletismo, uma piscina e uma quadra poliesportiva coberta. Havia também um cinema, que foi destruído e desativado por ocasião de uma rebelião de presos, em 1986. Lamentavelmente não foi possível saber qual o estado de conservação das instalações, nem tampouco a forma como tem sido ocupadas e utilizadas.
No Carandiru e na Penitenciária de Avaré havia bibliotecas modestas. Já na Penitenciária Central do Paraná, não havia mais. Segundo informara-se Neninho: "-Havia uma antes da rebelião. Depois dela, o diretor na época mandou pôr fogo em todos os livros..."22. No Complexo Penitenciário da Frei Caneca, no Rio de Janeiro, a biblioteca existia oficialmente desde 1890, mas seu estado e sua qualidade variaram muito no decorrer do tempo.
PráticasÉ o futebol a prática de lazer mais comum entre os presos. É fácil entender a presença constante desse esporte nos presídios e penitenciárias: a) não há necessidade de instalações muito elaboradas, logo o que há nas detenções, por mais precário que seja, permite a prática; b) também não é caro e difícil obter o material mínimo para o jogo (uma bola); c) sem falar na óbvia popularidade do esporte.
No Presídio do Carandiru, por exemplo, além dos jogos diários, era comum a realização de campeonatos internos de futebol e disputas de equipes do presídio com times de fora, sempre tratados com o maior respeito pelos detentos. Como afirma Drauzio Varella: "Nessas ocasiões, pobre de quem desrespeitar um visitante"23. Os jogos eram realizados no campo do pavilhão Oito.
Segundo Varella, os campeonatos internos eram realizados entre pavilhões, com regulamentos discutidos intensamente, organizados pela FIFA (Federação Interna de Futebol de Amadores), supervisionados por um funcionário responsável pela Diretoria de Esportes do presídio. Pela descrição, como era de se esperar, percebemos que os campeonatos seguem exatamente a lógica do campo esportivo.
Na verdade, nem sempre são tão tranqüilas essas partidas, daí a necessidade de os responsáveis pela organização e pela arbitragem gozarem de prestígio e "moral" para serem respeitado pelos outros presos. Não custa lembrar que o clima de tensão que culminou com a chacina que matou 111 presos em 1992, teve início exatamente em um jogo de futebol24; uma briga que a princípio seria de "rotina" acabou alcançando uma dimensão de tragédia.
Na Penitenciária Lemos de Brito, segundo Fabiane Domingues25, a organização das atividades esportivas ficava também a cargo de uma liga dirigida pelos próprios presos: a Liga Esportiva Lemos Brito (LELB). Segundo a autora, a Liga organizava campeonatos de futsal nos mais diferentes níveis: entre os times filiados (eram 9 na época da pesquisa), sempre divididos em "novos" (até 30 anos) e "veteranos" (a partir de 31 anos); entre as galerias dos pavilhões; entre seleções internas e equipes de fora do presídio. Segundo esse levantamento, essas equipes envolviam, na época da pesquisa, aproximadamente 27% do efetivo da penitenciária.
Curiosamente, a autora, quando desenvolvia sua pesquisa, foi convidada a levar uma equipe da Universidade do Estado do Rio de Janeiro para a realização de um "amistoso" na penitenciária. A realização do jogo agradou muito aos presos, já que pela primeira vez uma equipe de universitários participava de um jogo naquela detenção. Assim como no Carandiru, nessas ocasiões o respeito com os visitantes era sempre muito grande.
Mesmo que não exista uma preparação técnica e tática mais específica, que aliás é constantemente solicitada por alguns presos, não há como negar que a lógica da prática segue os ditames do campo esportivo. Há árbitros, súmulas e exigência de uniformes nos campeonatos da Liga:
Um aspecto importante diz respeito às roupas que os internos usam nas atividades físicas. Durante os jogos de futsal da liga esportiva, todos os presos que compõe as equipes usam uniformes das equipes. Nenhum jogador participa de uma partida se não estiver uniformizado e de tênis 26.
Jogos menos organizados ocorriam no pátio do Mineirão, independente da Liga. Naquele espaço existiam duas balizas de futebol, mas nenhuma demarcação. Ali a prática era sempre mais dura e as regras bastante flexivéis, não havendo também qualquer exigência de uniforme. Aconteciam por certo, devido a tais características, algumas lesões mais sérias e mesmo um número maior de confusões entre os presos. Mas muitos preferem esse jogo exatamente devido às suas características:
Aqui jogo pelada de vez em quando, para ocpuar o tempo. O futebol na cadeia se torna mais pesado. Não quero jogar no time de camisa porque não quero compromisso. Se jogo mal, tem críticas. Quero jogar sem responsabilidade 27.
Vale destacar que, em 1991, foram organizados, no Rio de Janeiro, os I Jogos Penitenciários Estaduais. Estiveram envolvidos quase 1000 presos das mais diferentes unidades do sistema penal do Rio de Janeiro, participantes de competições de futsal, voleibol e futebol society. Lamentavelmente tais jogos não tiveram continuidade, sendo mais um episódio isolado e não parte de uma política clara de esporte e lazer para os detentos28.
Na verdade, apesar de estarem presentes na programação dos Jogos Penitenciários, quase não se pratica outro esporte que não o futebol nas detenções estudadas. De alguma forma, essa falta de opções para além do futebol parece incomodar alguns presos. Vejamos um interessante depoimento: "Fora isso não tenho mais prazer pra jogar, não tenho liberdade. Aqui é uma obrigação, imposição, não tem outro tipo de lazer"29.
Existe até mesmo uma ligação entre outros esportes e a homossexualidade, o que também reduz as possibilidades de vivências esportivas dos detentos:
Gosto de vôlei. Aqui é coisa de bicha, o pessoal tem preconceito. Seria bom se tivesse mais vôlei, para sair desse negócio só de futebol. Mas primeiro tinha que ensinar o pessoal a jogar, ter uma orientação. O vôlei psicologicamente é mais brando 30.
Isso não significa que as atividades físicas estejam restritas à prática do futebol. Na Lemos de Brito, muitos presos praticavam com freqüência a corrida, a ginástica e a musculação, confeccionando inclusive alguns implementos como pesos e barras. Foi também identificada a prática de artes marciais e do frescobol. Segundo Domingues, aproximadamente 63,3% dos entrevistados praticavam alguma forma de atividade física, sem que ficasse claro com qual freqüência.
No Carandiru, ao enumerar as atividades dos presos, Dráuzio Varella31 dá também a impressão de que a preferência era pelas atividades físicas: futebol, boxe, capoeira, halterofilismo. Vale destacar que existia um programa de treinamento para presos interessados na prática do boxe, conduzido pelo técnico Lindoarte Patriota, que orientava os detentos duas vezes por semana, e pelo agente carcerário João Ribeiro. Havia competições internas e alguns presos inclusive participavam de um campeonato amador da Federação Paulista de Pugilismo. Esse programa, que estava interrompido desde 1995, tendo retornado em 2000, foi suspenso em 2002 devido a uma fuga ocorrida durante a realização de uma luta fora do presídio32.
No caso da Penitenciária Central do Paraná, Neninho de Obaluaê33 nos dá uma descrição interessante de seu envolvimento com uma academia de capoeira que lá estava organizada. As aulas eram ministradas por presos "graduados", havendo inclusive a comum cerimônia do batizado e da troca de cordões. Na verdade, independente dessa estrutura organizada, em muitos presídios há a prática informal e o ensino da capoeira.
Em algumas detenções são também oferecidas atividades artísticas. Na Lemos de Brito, por ocasião da pesquisa de Domingues, as aulas de teatro, ministradas por uma professora voluntária, recentemente tinham sido interrompidas. Na Penitenciária Estadual de Maringá houve aulas de teatro, coral e artes plásticas e no Conjunto Penal de Jequié, de coral e teatro; nesse último caso conduzidas por grupos de religiosos, logo diretamente ligadas a seus intuitos, ou pelo Setor de Terapia Ocupacional, que organizava festivais de poesia e música.
Também eventualmente são organizadas apresentações musicais. Em muitas penitenciárias e presídios há, por exemplo, festas de fim de ano, sempre realizadas de acordo com o humor e a disponibilidade do diretor daquele momento.
Importante observar que é usual que se organizem grupos musicais nos presídios, como o "Reunidos por Acaso" e o "Bola +1", conjuntos de samba do Carandiru. Neste mesmo presídio também se destacaram o grupo de rap "509-E", formado pelos músicos-detentos Dexter e Afro-X. Através da música, eles procuram retratar e denunciar a realidade, o cotidiano e as dificuldades da vida naquela Casa de Detenção. O grupo chegou a lançar CD e ter clips veiculados pela MTV, assinados por Maurício Eça, o mesmo diretor que gravou, com o grupo Racionais MC, o clipe da música "Diários de Um Detento"34.
Como incentivo à atuação e à organização desse grupo, existia o interessante trabalho de Sofia Bisilliat, criadora do projeto "Talentos Aprisionados". A proposta de Sofia era contribuir para a reabilitação do preso através da cultura, estimulando os talentos que já existem na música, pintura e literatura. A iniciativa conta com apoio da direção e interesse de muitos presos.
Houve ainda uma experiência interessante desenvolvida no Rio de Janeiro: um concurso de poesias para detentos e detentas, promovido pela Secretaria Estadual de Justiça e Cidadania, a partir de iniciativa de Romildes Meirelles, que desde 1986 tenta levar a poesia aos presídios. No primeiro ano de realização houve apenas 15 participantes, mas na última edição 120 detentos(as) se interessaram, dos quais foram escolhidos 73 poemas para serem publicados35.
Outra iniciativa: o projeto "Viva.com arte e cidadania", no Lemos de Brito. O objetivo era apresentar e discutir com os detentos importantes obras de arte, sempre utilizando os recursos do computador, desenvolvendo seu senso artístico e tecnológico simultaneamente. Pretendia-se dar aos alunos noções de arte e informática. Por trás da iniciativa se encontravam Roberto Baggio, do Comitê para Democratização da Informática, e Frances Marinho. As aulas eram coordenadas por Vanda Viola e Viviane Zambelli36.
Na verdade, todas essas iniciativas foram de grande valor e poderiam ser de grande importância para a ressocialização do detento, mas como não partem de uma ação articulada e contínua, acabam dependendo de voluntários e da boa vontade dos que estão responsáveis pela condução dos caminhos dos presídios, estando logo sujeitas a interrupções. Quando há profissionais interessados e a direção dos presídios e penitenciárias não se interpõe, as atividades são oferecidas. Mas mesmo que o Estado, através das direções, não crie problemas, no mínimo parece negligenciar o real potencial dessas atividades, ao não valorizar e implementar organizadamente um programa consistente e adequado de lazer.
Apontamentos para um programa de lazer em presídiosPartindo do apresentado, como pensar um programa de lazer para presídios e penitenciárias? Por que implementar esse programa? Seria preciso desde o início refletirmos sobre duas dimensões que ficam muito evidentes ao abordar-se a temática: a) a utilização de manifestações culturais como estratégias para trabalhar outros conteúdos; b) as atividades de lazer como "válvulas de escape".
Quanto à primeira dimensão, as manifestações culturais como estratégia central e/ou de grande relevância no processo de intervenção, devemos lembrar que consideramos que invariavelmente as atividades de lazer são culturais e que um programa de lazer deveria sempre ser desenvolvido considerando a dupla dimensão educativa do lazer (educar pelo e para o lazer). Nesse sentido, é possível pensar que as manifestações culturais possam ser de grande eficácia para melhorar a qualidade de vida dos detentos.
Uma interessante experiência nesse sentido foi desenvolvida por Drauzio Varella, no Presídio do Carandiru. O médico foi responsável por desenvolver um projeto de prevenção e esclarecimento sobre a AIDS naquela casa de detenção, já que havia uma epidemia da doença. Drauzio resolveu reunir cerca de 300 presos por vez, até atingir a maior parte possível da população encarcerada, nas antigas instalações do cinema, hoje um auditório, e exibir vídeos educativos sobre a doença. Antes disso, exibia clipes musicais diversos e após os vídeos educativos colocava-se a disposição para esclarecimento das dúvidas dos presos.
Curiosa foi a estratégia que utilizou para mobilizar ainda mais os presos, sugestão de um dos detentos: exibir também um filme erótico ao final da sessão. Comenta o autor acerca de sua experiência: "No final, depois que eu saía da sala, entrava um vídeo de erotismo explícito. A estratégia de misturar música, medicina preventiva e sexo foi imbatível: um sucesso de público"37.
O médico comenta que acredita que experiência semelhante possa ser repetida em outras cadeias, desde que sempre seja observado que o filme de sexo explícito somente deve ser projetado quando o médico sair da sala e que os presos devem ver a sessão completa: não vale comparecer para ver apenas o filme erótico.
Aliás, em uma fala dos presos, indignado por que outros detentos teriam atrapalhado a sessão, fica claro o quanto eles consideravam a atividade também como uma forma de diversão:
- Qual é a desses caras, meu, querer zoar o médico que vem comscientizar os manos do perigo dessa praga e dar uma distração para a coletividade? Eles não estão tirando o doutor, estão tirando nós!" 38.
Dando continuidade à campanha, foi promovido um concurso de cartazes de prevenção à AIDS. Os vencedores foram afixados pela cadeia e os responsáveis premiados com maços de cigarros, a moeda corrente no presídio. A premiação foi entregue no cinema do pavilhão Seis, animado pelo grupo de pagode "Reunidos Por Acaso" e contando com a presença de Rita Cadilac, que enlouqueceu os presos com sua performance39.
Enfim, o sucesso da experiência de Varella nos chama a atenção para as possibilidades de utilizarmos as atividades de lazer como forma de promover intervenções educativas. Por certo, se isso é louvável e não há nenhum problema com tal atitude, não podemos restringir um programa de lazer a esse intuito e dimensão. Isso é importante, componente do programa de lazer, mas não suficiente.
Passemos a discutir a outra dimensão facilmente evidenciável quando se pensa em um programa de lazer: as atividades encaradas como "válvulas de escape". No trabalho de Fabiane Domingues40 encontramos uma referência ao importante trabalho de Armida Bergamini Miotto e suas considerações sobre o lazer dos detentos. Por certo há que se valorizar as preocupações da autora com o assunto, bem como seus esforços de teorização, mas os limites de sua contribuição nos deixa claro como o assunto tem sido tratado de forma superficial, limitada e até mesmo equivocada.
O que chama mais a atenção é a constante compreensão acerca da importância das atividades de lazer para os detentos: devem servir para desviar energia, canalizar desejos, relaxar, atenuar o cotidiano. Tal perspectiva, além de limitada, acaba também por reproduzir equívocos históricos, frutos de uma consideração funcionalista e linear das possíveis contribuições educacionais das atividades de lazer. Por exemplo, a crença em uma suposta relação direta entre a prática esportiva e a disciplinarização. Vejamos o que fala Miotto sobre o futebol, considerado por ela o mais adequado para prisões "masculinas" (não poderiam as mulheres praticar futebol?), já que ajudaria a controlar e dissipar tensões:
cada jogador tendo as próprias qualidades pessoais que há de desenvolver, deverá entretanto, observar as regras do jogo, conservando a sua posição e abstendo-se de fazer o jogo individual (...). Além disso, há um juiz que, aplicando as referidas regras do jogo, controla e julga os movimentos, os atos, os êxitos (gols) e as faltas. (...) Isso não é somente disciplinador, mas também contribui para o senso de justiça 41.
Na verdade, o que podemos observar é uma adequação completa ao modelo do campo esportivo, que tem sido fartamente criticado nos últimos anos, e uma compreensão ideal das possíveis contribuições da prática esportiva para os indivíduos. Lembremos que não há estudos significativos que comprovem de forma clara que o envolvimento com o esporte significa diretamente o respeito a regras ou a diminuição do individualismo. Mas ainda, o fato de aceitar as regras do esporte, sempre sob supervisão de um árbitro, não significa que isso será reproduzido em outros momentos da vida. Além disso, esse conceito de disciplina, na qual as regras do jogo são traçadas incondicionalemnte por alguém que sequer conhecemos, está muito aquém do que desejamos a partir de uma perspectiva diacrônica de sociedade.
Existem muitos exemplos de que a prática esportiva em si não é suficiente para "recuperar" os indivíduos ou "evitar" que as pessoas se envolvam com crimes. São fartos os exemplos de ex-atletas, alguns até de renome, que acabaram parando nas casas de detenção. No caso específico da "recuperação" de presos, há o célebre caso de Rui Barbosa Bonfim, que foi campeão brasileiro de boxe, na categoria meio-pesado, chegando a estar incluído entre os 30 mais bem posicionados no ranking do Conselho Mundial. Rui era condenado a 23 anos de prisão por assalto e cumpria pena no Carandiru. Quando foi transferido para uma colônia penal, em função de seu desempenho esportivo, Rui fugiu e voltou a cometer crimes42. Enfim, não se pode compreender o esporte, de forma linear, como um remédio.
Com isso, não pretendemos negar que um programa de lazer também pode contribuir para manter o equilíbrio do preso. Drauzio Varella, aliás, observa que o pavilhão Sete é o mais tranqüilo do Presídio do Carandiru, entre outros motivos devido à ocupação freqüente dos detentos, entre as quais com a prática esportiva:
O Sete foi construído para ser um pavilhão de trabalho e assim permanece. A ocupação, as práticas esportivas e a relativa ausência de superlotação são responsáveis pela fama de calmo atribuída ao pavilhão. De fato, muitas vezes passam-se dois ou três anos sem ocorrer uma única morte em suas dependências 43.
Muitos presos reconhecem que a inatividade acaba por conduzir ao aumento da tensão e criminalidade, tentando se engajar em qualquer tipo de atividade que lhes é oferecida, inclusive esportivas e de lazer em geral: "- Com o corpo cansado, a saudade espanta"44. Neninho de Obaluaê também manifesta concordância com esse pensamento:
queria preencher ao máximo meu tempo, para não ficar esquentando a cabeça com minha desdita. A ociosidade era, sem dúvida, o mal maior para quem cumpre pena. Por não ter o que fazer o preso vive tendo idéias de macaco 45.
No trabalho de Domingues, também encontramos outro depoimento nesse sentido:
O esporte ajuda a recuperar a índole. Enquanto está na quadra, não está envolvido em briga, discussão. Também diminui a ociosidade. Estou envolvido para preencher o tempo vazio, tenho satisfação em ajudar os companheiros e prazer em manter um time campeão 46.
Não estamos a negar a priori essa possibilidade, mas a acreditar que um programa de lazer deve se prestar a algo muito mais complexo do que essa perspectiva. Deve sim contribuir para o equilíbrio do preso, mas no sentido de esclarecê-lo acerca de sua realidade, buscando dele posições não conformistas. Logo, vislumbramos não um equilíbrio estático, alienado e desconectado da realidade, mas sim um equilíbrio dinâmico, consciente e crítico.
Também não devemos negar que exercícios físicos são importantes para garantir uma qualidade de vida melhor para o detento. Entretanto, um programa de atividades físicas não pode ser encarado como "salvador da pátria", nem encobrir os outros problemas que atingem diretamente a saúde dos presos. Não se deve negligenciar que as condições de vida nas casas de detenção são péssimas, por mais que os presos se esforcem para manter a limpeza das instalações e "recuperar"47 a comida de má qualidade que lhes é servida. Aliás, essa baixa qualidade da alimentação também é responsável pelo número elevado de presos obesos:
A comida servida pela casa é triste. Depois de alguns dias, não há cristão que consiga digerí-la; a queixa é geral. (...) Riquíssima em amido e gordura, a dieta, entretanto, engorda. Obesidade aliada à falta de exercícios físicos é um dos problemas de saúde da Detenção 48.
Além disso, não devemos restringir o programa de atividades físicas a sua contribuição para a dimensão física da saúde. Devemos pensar que esse programa, inserido em outro maior de lazer, poderá ampliar sua amplitude de colaboração para a ressocialização do detento. Vale lembrar que um programa de lazer deve procurar trabalhar com os mais diferentes interesses e linguagens, não somente com os físicos.
Feitas as críticas às abordagens do assunto, passemos a tentar responder as duas perguntas iniciais desse item. Comecemos por discutir sobre quem seria o responsável por desenvolver o programa de lazer: deveria haver um profissional específico para tal? Em uma situação a mais adequada possível, deveríamos pensar em uma equipe multidisciplinar, formada por profissionais das mais diversas áreas, que trataria de implementar um projeto interdisciplinar. Mesmo se isso fosse facilmente possível, de forma alguma deveria significar a dissolução das ligas e a não identificação das lideranças e potencialidades dos próprios detentos.
Na situação concreta, quando dificilmente será contratado mais de um profissional, a articulação com as lideranças das detenções é ainda mais importante. Deveríamos pensar em contar com parceiros que já estão envolvidos com as atividades culturais e/ou aqueles que ainda não estão, mas possuem vontade e talento para tal. Poderia-se pensar em uma comissão de lazer, formada pelos presos e por um animador cultural contratado, que se incumbiria de planejar e executar um programa.
Isso, sem dúvida, traria grandes benefícios aos detentos, na medida que tornaria o programa mais adequado às necessidades dos interessados. Também por potencializar as possibilidades de intervenção, na medida que será possível contar com um maior número de envolvidos e possivelmente com maior número de interesses culturais a serem abordados. Por fim, vale lembrar que a ação educativa de um programa de lazer começa já no momento de sua preparação, segue pela implementação e vai até a avaliação e continuidade. Não se trata de desenvolver um programa de lazer para os presos, mas sim em conjunto com eles.
Obviamente que para tal, o animador cultural responsável pela implementação deve estar completamente desprovido de moralismos e conservadorismos e ter denotada capacidade de articulação. Vale lembrar que o processo da animação cultural é sempre um processo de mediação, sem o qual corre-se o risco de seu esvaziamento ou de torná-lo uma proposta funcionalista de simples oferecimento de uma gama de atividades.
Além disso, um programa de lazer para detentos deve seguir as dimensões que temos apontado para outros fóruns: procurar trabalhar os mais diferentes interesses humanos (conteúdos culturais do lazer); buscar o equilíbrio entre consumo e prática das atividades culturais; mediação entre diferentes padrões de organização cultural; não se encerrar em si, mas ser uma forma de contribuir para a conscientização do detento, a partir da compreensão da dupla dimensão educativa do lazer, sem que isso de forma alguma signifique abandono das características de ludicidade dos momentos de lazer.
ConclusãoEnfim, não adianta mais simplesmente declarar na legislação a importância das atividades de lazer para a ressocialização dos detentos, nem tampouco simplesmente aceitar a forma com a qual essas têm sido vivenciadas nos dias de hoje. Trata-se de efetivamente compreender sua importância e implementar um programa adequado, consistente e consciente, que possa exponenciar as possibilidades educativas das atividades. Isso significa também pensar no equilíbrio e na saúde do detento, mas não de forma a "adaptá-lo" ao sistema, e sim na perspectiva de contribuir para que melhor reflita sobre a realidade que o cerca.
Com certeza, um programa de lazer em presídios e penitenciárias não é suficiente para resolver todos os problemas do sistema penal, da sociedade e da vida de cada preso. Mas pode ser um bom contributo para o despertar de novas sensibilidades, recuperando a humanidade em presos e no sistema.
Antes de terminar, vale lembrar que as casas de detenção destinadas a adolescentes estão cada vez mais cheias e têm apresentado sérios problemas no que se refere à violência e à infra-estrutura. Lamentavelmente essas instituições, no que se refere ao lazer, apresentam também as mesmas limitações que os presídios e penitenciárias de adultos. Vale destacar que no caso dos adolescentes, essa falta de atenção e de incentivo é ainda mais grave. Deveríamos, então, com ainda maior premência, ter em conta as considerações deste artigo.
Por fim, fiquemos com as palavras de Florisval Alves da Silva, diretor de segurança do Presídio do Carandiru, que acredita que a cultura é o caminho mais efetivo para a recuperação dos presos:
Pois se de mil detentos a gente puder recuperar um, já é maravilhoso. Bom também para as pessoas perceberem que aqui dentro existem seres humanos e não bichos, e que eles têm a capacidade de mudar 49.
Alguém ainda pode duvidar disso? Alguém ainda pode negar isso?
Notas
"Pena de vida". Letra de Pedro Luís.
"Diário de um detento". Letra de Mano Brown e Jocenir. Racionais MC.
Presídios são estabelecimentos destinados a presos aguardando julgamento. Penitenciárias são destinadas a condenados em regime fechado. Existem também as colônias e institutos penais, destinados aos condenados em regime semi-aberto. As delegacias deveriam somente ser utilizadas para prisões temporárias e apuração. Obviamente a super lotação e a desorganização do sistema penal faz com que muitas vezes as características acima sejam desrespeitadas.
BÉJA, Jorge. Prefácio. In: LOPES, Geraldo. O sistema: corrupção e violências nas penitenciárias brasileiras. Rio de Janeiro: Razão Cultural, 2000. p.5.
VIEIRA, Cláudio. A reforma. O Dia, Rio de Janeiro, coluna "Romance Policial", p.16, 23 de maio de 2000.
Vale a pena lembrar a classificação de atividades de lazer de Joffre Dumazedier, segundo a ênfase do conteúdo cultural central: físicas, artísticas, manuais, sociais, intelectuais. Mesmo com problemas, parece ser a classificação ainda mais usualmente usada e aceita pelos estudiosos do lazer.
DOMINGUES, Fabiane. Esporte e atividade física no sistema penitenciário. Rio de Janeiro: UERJ, 1995. Memória (Licenciatura em Educação Física).
"Política de Ressocialização do Sistema Penitenciário". Extraída da página do Departamento Penitenciário da Secretaria de Justiça do Estado do Paraná (http://celepar.br/celepar/seju/depen).
Op.cit.
Uma descrição do cotidiano na já demolida Casa de Detenção de São Paulo, o Presídio do Carandiru, na época o maior da América Latina, pode ser obtida entre as páginas 44 e 46 do livro: VARELLA, Drauzio. Estação Carandiru. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
Op.cit.
OBALUAÊ, Neninho de. Beco sem saída: eu vivi no Carandiru. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1999.
O Complexo, também já demolido, comportava cerca de 3 mil presos e era formado pelo Presídio Petrolino Werling de Oliveira, Milton Dias Moreira, o presídio feminino Nelson Hungria e o Hospital Penitenciário, além do Lemos de Brito.
DOMINGUES, op.cit.
Op.cit., p.87.
Muitos não tem essa possibilidade, já que são esquecidos pelos seus amigos e familiares.
VARELLA, op.cit.
Ibid., p.31.
OBALUAÊ, op.cit.
DOMINGUES, op.cit.
Maiores informações podem ser obtidas em: http://www.techs.com.br/penitenciaria.htm.
apud. OBALUAÊ, op.cit., p.118.
Op.cit., p.33.
Ibid.
Op.cit.
Ibid., p.25.
Apud. id., p.47.
id.
Apud. id., p.42.
Apud. id., p.48
Op.cit.
OHATA, Eduardo. Detentos são banidos de campeonato. Folha de São Paulo, São Paulo, caderno "Esporte", p.12, 19 de março de 2000.
Op.cit.
MARTINS, Ana Cecília. Verso da realidade. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, caderno B, p.1, 1 de junho de 2000.
MAIRAN, Paulo. A poesia por trás das grades. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, caderno "Cidade", p.18, 2 de julho de 2000.
VENTURA, Mauro. Belas artes. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, caderno B, p.10, 12 de agosto de 2000.
VARELLA, op.cit., p.73.
Apud. ibid., p.74. Vale a pena destacar que os presos que atrapalharam a sessão foram agredidos pelos outros e obrigados a pedir desculpas ao médico.
Id., p.76.
Op.cit.
Apud. ibid., p.33
OHATA, op.cit., p.12.
Op.cit., p.32.
Apud. ibid., p.141.
Op.cit., p.85.
Apud. op.cit., p.43.
A prática comum de receber as péssimas alimentações, lavar os alimentos, adicionar outros temperos e cozinhar de novo, em fogareiros improvisados confeccionados com tijolos e resistências elétricas, é conhecida como "recorte" (VARELLA, op.cit.)
Ibid., p.41.
In: MARTINS, Ana Cecília. Escolta na Gravação. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, caderno B, p.2, 1 de junho de 2000.
revista
digital · Año 11 · N° 106 | Buenos Aires,
Marzo 2007 |